Niemeyer, 2013, Cantos, Curas e Alimentos

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Cantos, curas e alimentos: reflexões sobre regimes de conhecimento Krahô 1 Júlio César Borges Universidade de Brasília Fernando Niemeyer 2 Universidade Estadual de Campinas RESUMO: Este artigo propõe uma aproximação compreensiva aos regimes de conhecimento do povo indígena Krahô. Tal qual o desenho enredado de caminhos (pr`y) que interligam as aldeias, o pensamento mehim pode ser vis- to como uma rede que conecta pessoas, animais, plantas, nomes pessoais, prerrogativas rituais, espíritos (mecarõ), mortos e tantos Outros. O recorte do presente artigo procura captar concepções e práticas que dotam de especificidade alguns destes “caminhos” enquanto regimes de conhecimen- to que, atualizados no campo interétnico, nos aproximam da noção krahô do que temos chamado de “propriedade intelectual”. Na verdade, pretende- mos mostrar que uma noção de “propriedade” do conhecimento, tal como nossa sociedade a compreende, não corresponde às formas nativas de apro- priação, transmissão e validação do conhecimento, e que isso gera efeitos singulares quando – em um palco de negociações interétnicas – estes dois sistemas são postos a interagir. Trataremos, pois, das formas de produção e circulação de conhecimentos agrícolas, xamânicos e rituais e dos códigos sen- síveis subjacentes à sua constituição. Por fim, veremos como se comporta a agencialidade indígena frente a dois projetos de pesquisa que, recentemen- te, buscaram acessar tais conhecimentos – tidos como “tradicionais” – e os desencontros cognitivos gerados nestas interações. PALAVRAS-CHAVE: Conhecimento tradicional, Krahô, propriedade in- telectual, regimes de conhecimento. 08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 255

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Artigo sobre os Krahô

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Cantos, curas e alimentos:reflexes sobre regimes de conhecimento Krah1Jlio Csar BorgesUniversidade de BrasliaFernando Niemeyer2Universidade Estadual de CampinasRESUMO: Este artigo prope uma aproximao compreensiva aos regimesde conhecimento do povo indgena Krah. Tal qual o desenho enredado decaminhos (pr`y) que interligam as aldeias, o pensamento mehim pode ser vis-to como uma rede que conecta pessoas, animais, plantas, nomes pessoais,prerrogativas rituais, espritos (mecar), mortos e tantos Outros. O recortedopresenteartigoprocuracaptarconcepeseprticasquedotamdeespecificidade alguns destes caminhos enquanto regimes de conhecimen-to que, atualizados no campo intertnico, nos aproximam da noo krahdo que temos chamado de propriedade intelectual. Na verdade, pretende-mos mostrar que uma noo de propriedade do conhecimento, tal comonossa sociedade a compreende, no corresponde s formas nativas de apro-priao,transmissoevalidaodoconhecimento,equeissogeraefeitossingulares quando em um palco de negociaes intertnicas estes doissistemas so postos a interagir. Trataremos, pois, das formas de produo ecirculao de conhecimentos agrcolas, xamnicos e rituais e dos cdigos sen-sveis subjacentes sua constituio. Por fim, veremos como se comporta aagencialidade indgena frente a dois projetos de pesquisa que, recentemen-te, buscaram acessar tais conhecimentos tidos como tradicionais e osdesencontros cognitivos gerados nestas interaes.PALAVRAS-CHAVE: Conhecimento tradicional, Krah, propriedade in-telectual, regimes de conhecimento.08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 255- 256 -JLIO CSAR BORGES & FERNANDO NIEMEYER. CANTOS, CURAS E ALIMENTOS...Os Krah e os projetos de etno-pesquisaOsKrahseautodenominamMehimns,mesmocorpo/carne.Coletividade classificada pela etnologia como Timbira Oriental, por sesituarem margem direita do rio Tocantins, os Mehim so falantes deuma variante da lngua J, tronco Macro-J.3 Vivem atualmente em 27 aldeias espalhadas pelos cerca de 300 milkm2deCerradoda T.I.Krah,nonordestedoestadodo Tocantins.Em contato com a sociedade nacional desde a primeira metade do s-culo XIX, os Krah se viram forados a deslocar suas aldeias do Mara-nho, onde ento viviam, rumo ao sul ante o avano das frentes de co-lonizao;porfim,fixaram-senaregiointerfluvialdosriosManoelAlves Grande e Manoel Alves Pequeno, onde hoje se encontram. Seuterritrio foi demarcado pelo Estado, em 1944, aps o massacre perpe-trado por fazendeiros incomodados com a presena mehim e constantesroubos de gado (Melatti, 2009 [1967]). Ao longo do sculo XX, a re-giocircunvizinhadaterraindgenafoiextensivamenteocupadaporfazendasdegros,principalmentesoja,mastambmsorgoemilho,destinadosaomercadodecommodities.NaviradaparaosculoXXI,uma conjuno de fatores levou a que os Mehim passassem a ser vistospeloocidentecomodetentoresdevaliosasinformaesassociadasbiodiversidade.Essa imagem se consubstanciou em dois projetos de etno-pesquisasobre conhecimentos tradicionais associados a recursos genticos. Umdeles acessou conhecimento dos wajakas (xams) entre os anos de 1999e 2001. Trata-se do projeto de etnofarmacologia concebido pela Univer-sidade Federal do Estado de So Paulo Unifesp, em articulao com aassociao indgena Wyty-Cati que, poca, representava treze aldeiastimbira, dentre as quais trs das dezoito aldeias krah. A pesquisa tinhafinalidade de bioprospeco e buscava a descoberta (e patenteamento)08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 256REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2012, V. 55 N 1.- 257 -de novos princpios bioqumicos com atuao sobre o sistema nervosocentral (Rodrigues, 2001; vila, 2004; Carneiro da Cunha, 2009). Ooutro projeto fruto da iniciativa da Unio das Aldeias Krah Kapey,que procurou a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria Embrapa,em 1996, a fim de obter uma variedade de milho (phypej: milho bom)que havia se extinguido de suas roas. Nos percursos da semente (vila,2004), foi concebido e implementado um projeto de pesquisa etnobio-lgica envolvendo acesso a conhecimentos tradicionais associados agro-biodiversidade,reconhecidosatualmentecomoparteindissociveldaconservao local dos recursos genticos (diz-se on-farm).Os dois projetos, em momentos distintos dos seus respectivos ciclos,se viram cercados por mltiplos coletivos mehim entre os quais desliza-va a titularidade dos conhecimentos acessados. Isto em grande parte pelofato de que o que conhecemos hoje sob o etnnimo krah o resulta-do de uma histria de alianas e guerras entre diferentes grupos. antesde tudo a histria da fluidez das identidades cujos contornos simblicosacompanhamomovimentodeexpansooucontraosocioespacial.Em parte forado pelo cerco colonial, o constante movimento de cisese fuses foi que aproximou os Mkamekr dos Prekamekr e, dentreestes, os Kenpokateje os trs grupos principais que deram origem aopovo Krah. Desde Azanha (1984), conhecemos o carter relacionaldos nomes e etnnimos entre os Timbira como indicadores deste cons-tanteprocessodediferenciaoeidentificao.4AdistinoentreMakramekr e Prekamekra/Kenpokateye permanece ativa ainda nos diasde hoje, vindo tona, por exemplo, travestida em faccionalismo polti-cosobaroupagemdasassociaes,comconsequnciasconsiderveisquando se pretende definir alguma forma de propriedade sobre os co-nhecimentostradicionaisqueassociamosaopovoKrah,comoumtodo.5 Foi o jogo intra e intersocietrios de identidades que, ao dar sen-tido prxis mehim, delimitou rotas de circulao dos seus conhecimen-08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 257- 258 -JLIO CSAR BORGES & FERNANDO NIEMEYER. CANTOS, CURAS E ALIMENTOS...tos na ambincia contempornea do interesse global pelos saberes ind-genas (Ramos, 2000; vila, 2004; 2007). Essa dinmica de identifica-o e diferenciao um dos aspectos que torna praticamente insolvela questo da propriedade e titularidade dos conhecimentos mehim, tan-todoswajakasquantodosguardieseguardisdaagrobiodiver-sidade, com a qual se depararam Unifesp e Embrapa.A fim de contribuir com debate em torno da propriedade intelectualdos conhecimentos tradicionais, veremos como essas duas experincias,ao elegerem distintos interlocutores indgenas (wajakas e agricultores/as), trilhavam por distintos caminhos por entre a trama sociocosmol-gica dos saberes mehim. Partiremos da categoria de regime de conheci-mento que, segundo Carneiro da Cunha (2009: 364), define o que /oque pode ser conhecimento, suas subdivises, seus ramos, especialida-des, suas formas particulares de produo, apropriao, circulao e va-lidao e os direitos e deveres gerados por ele. Os regimes amerndios deconhecimento se aproximam ao menos em duas caractersticas gerais, asaber: 1) os conhecimentos tm uma origem externa, de onde ento soapreendidos, roubados ou furtados (e os J so particularmente conhe-cidos por isso); e 2) o conhecimento se fundamenta na experincia dire-ta, isto , nas percepes captadas pelos sentidos, sejam eles olfativos,visuais, auditivos. Com os Krah no diferente. Neste artigo iremosnos debruar especificamente sobre trs ramos de conhecimento Krah os conhecimentos rituais, os conhecimentos xamnicos e os conheci-mentos agrcolas. Se os dois ltimos se justificam exatamente por teremsido o foco dos dois projetos recentes envolvendo o acesso aos recursosgenticos Krah com conhecimentos tradicionais associados, o primei-ro, por sua vez, se justifica por conter a mensagem-cdigo que sintetizaasformasmehimdeproduzir(apreender)efazercircularsaberes.Comecemos, portanto, por ele.08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 258REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2012, V. 55 N 1.- 259 -Os rituais como estratgia de circulao de conhecimentosPara tratar dos regimes de conhecimentos rituais, devemos comear, ain-daquesucintamente,comabrevehistriadeummachadodepedrasemi-lunar Kjre que ensinou os cantos aos Krah. o heri Harttquem nos conduzir na caminhada em busca das evidncias da noomehim de propriedade intelectual na seara do conhecimento ritual.6Hartt vivia distante em sua aldeia. Naquele tempo, os Mehim mais novosiam pra caada mas voltavam sem nada. S matavam bicho pequeno: peba,tatu,quati.Nochegavamcomcarne.OndeHarttviviatinhacarne.Tinhacaititu,tinhaporco,tinhatodacaaeerafcildeagentematar.Um dos rapazes que havia sado para uma caada no mato se desgarroudos mentuaj [jovens caadores] e l pelas tantas, longe, ouviu uma cantigade Hartt... ao longe. Ele pensou: ser que verdade?. Mas no fez nada,ouviu tudo de longe; ele escutava, mas no respondia. Dizem que ele erawajaka. Um dia resolveu procurar aquele que cantava, depois de tanto suaaldeia acus-lo de feitiaria e de mentiroso. Foi at onde estava Hartt efalou com ele. Hartt escutou e depois reuniu todo seu povo. Rapidamen-te os mentuaj se ajuntaram para ouvir a voz de Hartt. Ele falou: o wajakaquer saber dos lugares que eu canto, que eu conheo. Logo, um grandegrupodementuajseprontificouair.SaramacaminharpeloCerradorumoaop-do-cu.Andaramporumlongocaminhoentremeadoporparadas de Hartt para ensinar seus cantos e mostrar os lugares, os bichose as plantas que conhecia. Foi revelando como cantar e como coletar meldas abelhas e a caar: paca, porco, rato, morcego. Hartt ensinava demons-trandoasdiferenasentreosseres,seucomportamentoepensamento.O caminho de ida tambm reservou muitos perigos. rvores que expelemfogo e que matam, pntanos alagadios, fortes ventanias e enormes jaca-08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 259- 260 -JLIO CSAR BORGES & FERNANDO NIEMEYER. CANTOS, CURAS E ALIMENTOS...rs. Mas o wajaka, se transformando em animal, conseguia ver o modo desuper-los e foi seguindo Hartt e seus mentuaj. Hartt ento disse que jestavam chegando ao Khoikwakhrat, o p-do-cu.7 Andaram e arrancharamnum lugar. De tarde, jatob cantou. Era de tardezinha e o Jatob cantousua cantiga. Os mentuaj acharam que era gente e comearam a comentarum com o outro. Hartt lhes advertiu: Calma a. Silncio! Agora ns en-tramos na terra em que todos os bichos e at os paus cantam. No mehim,no. o jatob que est l cantando. Alguns ainda comentavam baixinhoe Hartt lhes advertiu novamente: Silncio! Quando bicho ou pau cantaassim, vocs no respondam; fica s ouvindo direito pra saber cantar quan-do a gente voltar. Vocs tm que escutar o que o bicho t cantando. Eouviram a cantiga de novo. Escutaram, pegaram a cantiga do Jatob e fo-ramcaminhando.A,omambiracantou.Umdosrapazesfalouassim:Que bicho esse a? Hartt: Ora, voc no est escutando? mambira,t dizendo que est andando, que j saiu do buraco e j est procurandoformiga, cupim ou abelha pra comer. E veio ento uma arara preta, pou-sou l no pau e tambm cantou. J estava escurecendo. Hartt ensinou/traduziu o que a arara preta cantava: Ela canta sobre o medo que sentiudurante o dia de algum bicho lhe pegar. Agora anoiteceu, agora ela j estbem tranquila. No esto escutando direitinho, no? Todos os bichos can-taram. Agora, ns vamos l no Kjre, l na ponta onde tem o Machado-Cantor, disse Hartt. Foram, caminharam. Arrancharam perto de ondeficava o Kjre. Anoiteceu. Kjre comeou a cantar e cantou at de manh.Cantava cantiga muito bonita. Agora vocs vo ficar. Vou l saber do donodo Kjre. Se ele me der um a gente leva; se no arrumar, tambm no temproblema. Vocs escutaram. Kjre muito respeitado. Ele canta desse jei-to. O povo ficou esperando. Ele chegou l e o dono do Kjre estava emp. Dizem, os antigos, que ento Kjre falou: Por onde voc andou sumi-do? Mas voc sempre lembrou de mim, e ento c voc chegou. Aqui eu te08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 260REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2012, V. 55 N 1.- 261 -esperava. E Hartt: eu cheguei aqui, onde est voc, que pra voc mearrumar um Kjre. O dono do Kjre ficou a pensar e depois falou: Possote arrumar, mas no vou te dar agora no; s amanh de manh que vou tedar, ainda vou cantar at de manh. Mas quando voc voltar pra sua al-deia, o Kjre no pode ficar s guardado, dependurado. A, anoiteceu eele comeou a cantar de novo. Cantou at de manh. A, ele foi. T bom.Voc quer, ento vou te dar um. Jogou um bem no peito dele e ele pegou.Olha, o seguinte: quem for usar, seja uma mulher, no pode por a moem gordura, no pode por a mo em mel, nem em semeao ou caa nopode ter a mo breada. Tem que ser uma pessoa da mo asseada e que noseja ciumenta. Tem que saber ouvir, no pode maldizer nem brigar. Temque dormir pouco. Hartt ouviu, voltou e mostrou o Machado para osmentuaj, que se admiraram: bonito, muito bonito; , bonito. Disse-ram: Agora vamos embora. Hartt: No vamos embora hoje no. Va-mos passar o dia e a noite aqui. Se ele falar alguma coisa, a gente devolve.Se no, ele mata a gente, a gente morre. Qualquer coisa, a gente devolve.Passaram o dia l; anoiteceu. Hartt foi falar com o dono do Kjre. Ele sfalou que j estava com saudades, mas que no tinha problema nenhum,que podiam sim levar o Kjre. Foi o que povo ouviu de Hartt. Pegaramos cantos do Kjre e a, viajaram, viajaram, viajaram e anoiteceu. Um delesfalou: eu, que escutei direitinho, j vou comear. Hartt disse: No, nofaz isso no. O rapaz falou: Por que no, se j trouxemos? Eu vou come-ar. Hartt: No faz isso, no. No foi assim que ele nos ensinou. Esperachegar porque a um de vocs vai ficar com ele. Rapaz: No, vou fazer sduas cantigas. Pegou o Kjre e comeou a cantar com ele. Naquele instan-te, o guariba respondeu l do mato: voc no sabe de nada; primeiro deveaprender as cantigas. O guariba enfrentou o rapaz porque este no sabiade nada. Hartt, ento, disse: eu falei. Quando a gente chegar, vocs po-dem cantar, mas desde que seja do jeito que escutaram; bem direitinho.08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 261- 262 -JLIO CSAR BORGES & FERNANDO NIEMEYER. CANTOS, CURAS E ALIMENTOS...Mas aqui, no. Aqui no pode. Aqui, s pra escutar. A rapaziada se ca-lou nesse mesmo instante. Na volta, tinha o Kjre mas no o que comer.Todo mundo ficou com fome. Chegaram num lugar que parecia uma ca-poeira. Me escutem bem. No vo mexer nesse inhame aqui. Vou caar oinhame mesmo, o que a gente come. Nesse a no pode mexer; no esseano.DoisrapazesacompanharamHartt,foramlarrancaramoinhame,moquearam,comerameviajaram.Harttdissequeiamcortarcaminho por dentro pra chegar mais rpido. Viajaram e, aps muita priva-o no caminho de volta, chegaram aldeia com o Kjre e seus cantos.A narrativa de Hartt tem vrios nveis articulados numa estruturalgicasubjacentequecontmamensagem-cdigodaapropriaodoconhecimento de outrem (cf. Lvi-Strauss, 1970). Nesse sentido, Harttpeemrelevoaaudioenquantocapacidadecorpreaindispensvelpara aquisio de saberes relativos esfera cerimonial o aprendizadodos cantos tanto quanto daqueles de uso cotidiano e necessrios se-gurana alimentar a coleta, a caa. Descreve, em sua estrutura, o modusoperandi ideal da transmisso de tais saberes que outrora se realizava emexpedies de caa e coleta inseridas em grandes rituais de iniciao, taiscomo o Ketwaj (Melatti, 1978). Descreve, tambm, as diferenas sig-nificativas nos ciclos das estaes: a fartura de alimentos da seca e a es-cassez da estao chuvosa (Carneiro da Cunha, 1986: 39). Todo o per-curso se presta a aquisio de saberes sob a conduo de Hartt, aqueleque sabia cantar e aconselhar. Aos Mehim, ele ensina as artes e os saberesnecessrios no apenas sobrevivncia no Cerrado, mas sobretudo aobem-viver: a coleta, a caa, a agricultura, os cantos e sua integrao. Porisso, ensina tambm a atitude cognitiva a partir da qual se adquire co-nhecimentos.oouvirqueoperaaaberturaepistemolgicanainterao com Outro: os homens mais velhos, os bichos, as plantas, ospssaros. O mito de Hartt evidencia a centralidade da audio tanto08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 262REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2012, V. 55 N 1.- 263 -para o conhecer/compreender, quanto para a prpria esttica mehim doexistir. Hartt ensina os mentuaj, portanto, a saber conhecer.O heri mitolgico era, ele mesmo, um grande inkrere (cantor) queprocedeu pelo exemplo ficou a ouvir o canto do Kjre. O jovem queosacompanhava,displicente,foiadvertidopeloguariba-cantor:vocno sabe de nada; primeiro deve aprender as cantigas. Hartt arrematou:Quando a gente chegar, vocs podem cantar, mas desde que seja do jeitoque escutaram; bem direitinho. Mas aqui, no. Aqui no pode. Aqui, spra escutar. Desde esse tempo, o valor moral da audio inscrito nocorpodaspessoas.Osindivduosdosexomasculinousavamfuraroslbulos auriculares para insero de botoques circulares (kj), que prin-cipiavam com pedaos de canajuba e depois eram substitudos pelos demadeira, cada vez mais largos (Melatti, 1978: 68-69). O kj ajudava amarcar a transio da pessoa de krair (menino) para mentuaj (rapaz),etapa na qual participam mais intensamente da vida ritual da aldeia oque inclui sadas para expedio de caa, participao nas festas e audi-o de cantos e palavras dos mhacpackre em torno da fogueira. ComosugereSeeger(1981:230),aalteraofsicadasorelhasatravsdosbotoques pode ser vista como nfase social no ouvir enquanto facul-dade moral e cognitiva associada ao compreender-conhecer.Comobommhacpackre,Harttaconselhouosmaisnovos.Mhacpackre designa os homens experientes e sabedores que conformamo que,na literatura Timbira, ficou conhecido como o Conselho dosSbios (Crocker & Crocker, 2009). Mhacpackre significa aqueles queabrem os ouvidos do outro.Vejo o ritual [Canela] de furar as orelhas masculinas como uma aberturasimblica para esses garotos mais velhos receberem informaes dos seusancios e se tornarem obedientes a eles. [...] A informao (conselho) en-tra na cabea pelos buracos das orelhas; que buracos bons da orelha, gran-08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 263- 264 -JLIO CSAR BORGES & FERNANDO NIEMEYER. CANTOS, CURAS E ALIMENTOS...des e bem abertos conduzem construo de conhecimento e obedin-cia; e que buracos de orelha no abertos (os virgens) levam estupidez e falta de obedincia. (Crocker e Crocker, 2009: 106)Esta interpretao sobre os Canela se aplica aos Krah, muito embo-ra hoje em dia raramente sejam vistos homens usando botoques auri-culares, em que pese muitos deles, principalmente os mais velhos, te-rem os lbulos alargados.8 O que queremos ressaltar aqui que aquelequecantaaquelequeensinaeaconselha.oqueregistraMelatti(1978: 79) sobre Antnio Pereira, saudoso inkrere da aldeia Pedra Bran-ca: Antnio Pereira dirigiu-se casa de Alosio para consol-lo pois estavatriste por conta da morte de seu filho. Aconselhou-o a voltar a participar davidapblica:seufilhomorrera,masestaestradaamesmapratodos. parte o fato de Hartt relacionar a audio ao conhecer-compreender,sua saga corrobora a teoria mehim da produo (apropriao) e circula-o do conhecimento.O postulado geral que os cantos pertenciam a agencialidades no-humanas ao Machado-Cantor, aos pssaros, aos macacos, s plantas que, sendo seus verdadeiros donos, habitavam domnios exteriores aosda sociedade mehim. Seus conhecimentos foram acessados pelos herisancestrais que souberam reconhecer as nuances de linguagem desta infi-nidade de agentes externos; reconheceram e valoraram, a ponto de tra-zerem tais conhecimentos para a coletividade mehim. Tal concepo dequeossaberesrituaiseoscantosforamapre(e)ndidosjuntosaagencialidades externas extensamente difundido nas narrativas krah.Nelas vemos como os conhecimentos foram tomados, roubados, heroi-camenteadquiridos,ousimplesmenteensinadosporoutrosentesoupovos,fossemeleshumanosouno.assimqueapre(e)nderamseusamjikin(rituais),cujarealizaooquemaisosmobilizaealegra:oTepjarkwarfoiapanhadopelondioquefoiengolidopelasucurijue08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 264REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2012, V. 55 N 1.- 265 -depois cuspido embaixo dgua, onde observou como peixes, lontras eoutros animais faziam sua festa; a festa de Ytypin, pelo mehim que foi roa e surpreendeu as plantas cultivadas fazendo sua festa; o Pembcahcfoi trazido pelo mehim que foi ao cu e viu a festa que faziam os gavieseosurubus,eassimpordiante.Aovoltarparaaaldeia,essesvriosmehim ensinaram sobre como fazer amjikin, os papis rituais e os can-tos de cada uma deles. O mesmo se aplica aos gneros de cantigas mehim:as cantigas de animais, de Kupti, de Kupkryakrore, e as cantigas de(krrepahamnar.9O exemplo de Hartt ilustra o que podemos chamar de no-propri-edade circulante. Ou seja, se certo que bens imateriais como cantos econhecimentosrituaispossuemseusdonos-mestresnummundodemltiplos domnios, o mestre (um cantador ou um personagem ritual)apareceanocomoproprietrioindividualdeumsaber,mascomoagente que faz mediaes com a alteridade plural (cf. Fausto, 2008). Nomomento em que externaliza seu conhecimento, como num canto, eleo permite circular, i.e., permite potencialmente sua (re)apropriao poraqueles que o escutam. Existe uma categoria que condensa essa perspec-tiva mehim: o verbo apakin, que pode ser traduzido como pegar aquiloque se gosta ou, simplesmente, furtar. Sempre que indagados sobre oaprendizado das cantigas, os mhacpackre e inkrere o utilizam para expli-car o procedimento de apropriao individual (pelo cantor) de um bemde domnio pblico de um Outro (por exemplo, os cantos):Tem aquele que de fora, de outra aldeia. Ele fica estudando pra pegaraquilo que se est cantando; ele pega e guarda no kr [mente, memria].Aquele que est interessado, est guardando, furtando, assim diz o mehim apakin quer dizer: est furtando, est pegando, est gravando. Isso da,tem muita histria de antigamente, dos velhos, tem muita mesmo.08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 265- 266 -JLIO CSAR BORGES & FERNANDO NIEMEYER. CANTOS, CURAS E ALIMENTOS...O trecho acima de uma fala do finado cantor Ba, da aldeia SerraGrande.10 Ba, que morou em vrias aldeias e cantou em outras tantas,se referia circulao de cantigas entre os krin (aldeias) e, mais do queisso, relao tridica cantor A festa cantor B que garante a prpriacirculao. O sistema prev que, idealmente, pelo menos um cantor defora de outra aldeia seja convidado e se faa presente no amjikin.Com o cantor de fora, vir um conjunto de cantigas que potencial-mente sero furtadas pelos cantores locais. Mas a recproca verdadei-ra e nos casos em que se viaja para outra aldeia para visitar parente e/ou fazer festa aquele que souber prestar ateno e gravar as letras nokr poder trazer para seu povo novas cantigas, que se incorporaro aopatrimnio comum que o animar nos dias de festa. O que queremosenfatizar aqui que traduo literal dada por Ba para apakin, furtar,deixa a descoberto aspectos importantes da concepo mehim acerca dapropriedade intelectual. A categoria apakin surge como chave explicativapara o processo de produo do conhecimento ritual por meio de umaapropriao (um furto) que tem por fim a circulao de tais saberes. Elarevelaummodusoperandi,apropsito,quenorestritoaosKrah,mas vivenciada em outras sociedades J. Em Seeger (1993), encontra-mos nos Sui (que se autodenominam Knsedj) um exemplo etnogrficoelucidativo do que estamos querendo dizer acerca dos Krah. Vejamos.A histria da sociedade sui, como eles a constroem em seus mitos, ca-racterizadapelaaquisiodecoisasdesejveis,tomadasdeseresquesosempre virtualmente uma mistura de humanos e animais. Em seus mitos,a sociedade sui estabelecida atravs das aes de indivduos (que des-cobrem alguma coisa) e de grupos de homens que obtm algo de uma fon-te menos-que-humana. A sociedade construda tomando-se coisas de se-respoderosos,muitasvezesanimaisousemelhantesaanimais.(Seeger,1993: 437)08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 266REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2012, V. 55 N 1.- 267 -O autor desenvolve sua argumentao em torno de um episdio ocor-rido durante a visita de Karl von den Stein ao Xingu, onde esteve comos suis entre os dias 3 e 6 de setembro de 1884. Os suis furtaram-nosem grande escala, queixou-se o naturalista no curto relato que fez da suavisita a estes ndios J do Xingu (Stein, 1940 apud Seeger, 1993: 435-436). O que poderia ser tomado como esteretipo banal, para Seegera pista que conduz compreenso do sentido sui da histria. Os mitosdocontadequefoifurtandoqueosSuiobtiveramofogojuntoona; com o rato, pegaram o milho; os nomes pessoais foram furtadosde ndios inimigos parecidos com eles, mas que eram canibais; as can-es foram aprendidas por suis em vias de metamorfose em veado ouqueixada.Deixando de ver os mitos do ponto de vista sui, e tomando a tica dasonas,ratoseoutrossemelhantes,essashistriasseriamdiferentes.Elascontariam como os animais encontraram um membro particular da socie-dade sui, como o trataram bem e deram comida, e como perderam possesvaliosas para um grupo de homens. Em outras palavras, dessa perspectiva,a sociedade sui foi contruda atravs do roubo. (Seeger, 1993: 439)Vejamos como o mhacpackre Ba desenvolve o conceito de apakin,11aoacionaracategoriaparaexplicaroprocessosociocosmolgicodeaprendizado dos cantos. Ba citou o exemplo da apropriao dos cantosde cupti por um inkrere que morava dentro de um cupinzeiro. Cuptitoda semana discursava e cantava dentro de um enorme cupinzeiro. Umdia, um mehim saiu pra caar e ouviu cantigas que vinham de l de den-tro; no seguiu mais viagem. Ficou escondido, cavou um buraco e ficoul, escondido e ouvindo... ouvindo e furtando os cantos e mais os sabe-res proferidos nos discursos de cupti. Toda semana o mehim, a pretextode caar, ia ouvir e furtar suas cantigas e os saberes proferidos por cupti.08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 267- 268 -JLIO CSAR BORGES & FERNANDO NIEMEYER. CANTOS, CURAS E ALIMENTOS...At que um dia seu cunhado desconfiou. Pra onde que t indo assim,todo dia, todo dia?. que estou caando, respondeu. No adiantou.Em pouco tempo o cunhado descobriu. Ah, voc t ouvindo uma pessoacantando dentro do cupim. De tanto insistir, o mehim deixou seu cu-nhado o acompanhar. O cunhado teria dito: Eu vou acompanhar voc,pra eu aprender tambm. Foram at o cupinzeiro, onde o cupti discursae canta. O cunhado fez um buraco para acompanhar e pegar as palavrase os sons de cupti mas, inquieto, interrompeu cupti com seu barulho.Cupti no mais cantou. O mehim que foi primeiro apre(e)ndeu as can-tigas de cupti porque soube ouvir e, com isso, soube furtar seus cantos.Apakin. Pegou os cantos e trouxe para seu povo. Segundo o velho Ba:pegou as cantigas bonitas que se canta at os dias de hoje, no K e no Wyty.E foi desta forma que os Krah apre(e)nderam e continuam a apr(e)n-der os cantos que conformam este que um dos gneros de cantosdos Krah: cupti.Podemos dizer que os cantos so um tipo de bem imaterial sobre oqualapropriedadecirculanteou,antes,umano-propriedade,j que a princpio nada se cria, tudo se furta. Aqui, como alhures entreos J,toda produo via de regra uma aquisio, o resultado de uma troca,mais ou menos violenta (roubo), mais ou menos cordata, e de onde estausente a ideia de uma criao ex nihilo... Sujeitos (individuais ou coleti-vos)seconstituemcomotaispormeiodacirculaodecoisasquenin-gum criou. (Coelho de Souza, 2005)Essa no-propriedade circulante se deixa ser vista nos momentos v-vidos da experincia ritual, quando ento o cantor executa performancescuja eficcia depende de ter apre(e)ndido bem direitinho as cantigasque, ao final das contas, pertencem aos bichos, s plantas, aos mecar e a08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 268REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2012, V. 55 N 1.- 269 -tantos Outros. Por outro lado, o cantor sabe que na sua plateia seja noWyty, no K ou Krinkap estar virtualmente presente algum que, seatento aos conselhos dos mhacpackre, furtar suas cantigas e, com isso,garantir sua circulao. Furto aqui no subtrao, j que aquele quefoifurtadonoperdeoquesefurtou.,antes,circulao:essano-propriedade faz render e perdurar a vida ritual e, com ela, o repertriopblico de saberes veiculados pelas cantigas.As formas xamnicas de conhecer,validar e circular conhecimentosHartt deflagrou sua expedio instigado por um wajaka, um curador(xam). A essa altura, Tyrkr outro heri apropriador j tinha subidoaoscus,ondepegouosconhecimentosxamnicosjuntoaoGrandeGavio e seu squito Urubus: a cura, a faculdade de ver alm e a de en-trar em contato com mltiplos car das plantas, dos bichos e dos mor-tos, estes que so puro car. Furtou e trouxe para a aldeia uma prticaqueexigepoderesextracotidianoseacapacidadedetrnsitoentreomundo dos vivos e o mundo dos espritos. Cabe notar que a experinciade Tyrkr se inicia quando ele adormece em sua roa e uma formiga en-tra em sua orelha, que comea a inchar. com a orelha inchada que oheri passa a adquirir uma srie de conhecimentos.12De acordo com Melatti (1970: 72-73), o problema do aprendiza-do dos wajaka envolve o reviver do mito de Tyrkr, uma via de acessosubjetiva estruturada que promove a transformao de um indivduoem xam. Tal processo consiste numa experincia solitria e individual(no sentido de que nenhum outro ndio participa do processo), onde omehim estabelece definitivamente uma relao com o car, esprito ouduplo de algum ente do universo que tenha movimento: plantas, peixes,08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 269- 270 -JLIO CSAR BORGES & FERNANDO NIEMEYER. CANTOS, CURAS E ALIMENTOS...aves, abelhas etc. O primeiro contato acontece sempre quando o mehimest doente ou quando est sozinho pelo Cerrado, normalmente umacombinao das duas coisas. Este ente introduz uma substncia mgica(hur) no corpo do futuro wajaka, que deve aceit-la para que se efetivea transformao. atravs do hur que ele passa a ver o invisvel, escutaro inaudvel e dialogar com mecar que, por essa via, podem lhes indicarplantas com eficcia para a cura de determinadas molstias (Azanha,2005, grifo nosso). O wajaka passa a viver ento num estado limiar en-tre o mundo dos vivos e o dos mecar,o que pressupe uma srie deprivaes e restries alimentares, que passam a fazer parte de sua vidaparasempre.OwajakaDomingosCrat,porexemplo,recebeuseuspoderesdoveado-mateiroe,duranteoaprendizado,comiaapenasamesma comida que ele, isto , folha amarga, como as de sucupira, ba-tata-doce e inhame. Hoje em dia, no come mais a carne deste animalsob pena de no saber curar (Lima, 2010: 98). Donos-mestres dos co-nhecimentos de cura (cf. Fausto, 2008), tais agencialidades externas sosempre consultadas quando se necessita de aprender novos remdios.Os wajaka so, portanto, aqueles que trazem para a aldeia na me-diaocomagentesno-humanoscertosconhecimentosquesoausados positivamente em benefcio da coletividade.13 Dentre seus pode-res de cura, podemos incluir tirar feitio, j que o feitio frequente-menteassociadocausadeumasriedemales.Porconseguinte,osxams tambm podem, potencialmente, usar seus poderes negativamen-te,comofeiticeiro(ki),isto,parabotarfeitioquandoosaplicapara causar danos e a morte. O ki tambm sabe pegar conhecimentosno mato, mas ele os utiliza em interesse prprio para causar malefciosaos outros. Com o feiticeiro no h troca possvel; se ele recebe algo emretribuio ao acmulo de atos praticados contra as pessoas e a socieda-de, sua prpria morte (Melatti, 1970; Schultz, 1976b). diferena do08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 270REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2012, V. 55 N 1.- 271 -ki, o curador ajuda a manter os vnculos de reciprocidade e faz circulara no-propriedade de seus conhecimentos, no momento em que os apli-ca. Na medida da dubiedade dos poderes xamnicos um wajaka estsempre sujeito a ser acusado de ki. Entendemos porque um dos inte-resses primordiais dos Mehim no projeto da Unifesp estava em compro-var,porumaespciedeauditoriaexterna,aeficciadosremdiosdowajaka. Segundo seu ponto de vista, este seu projeto possibilitaria sa-ber a verdade dos wajaka e, por tabela, a sociedade poderia exercer umcontrole mais efetivo sobre eles (Azanha, 2005: 8).A priori, qualquer krah pode vir um dia a se tornar um wajaka, masisso algo pouco comum, e os wajaka so reconhecidos como detento-res de valiosos conhecimentos. Sendo altamente especializados e diver-sificados, j que produzidos nas mltiplas relaes com entes especfi-cos,taisconhecimentosdemandampagamentoparaquesejamaplicados. Seja para curar doena ou tirar feitio, necessrio pagarpelo servio de um wajaka.14 O pagamento pode variar entre um porco,um gado, uma espingarda ou mesmo dinheiro. O preo est relacio-nadocomotipoeadificuldadedoservioquesedemandaafazer.Mas s efetivado quando a cura bem-sucedida. E seu sucesso emcurar deriva de ele ser dono de certas capacidades cognitivas e mo-rais. Reside em seu estado liminar de identificao e diferenciao anteo concerto de coletivos que habitam o Cosmos. Como modelo de pes-soa magnificada capaz de ao eficaz sobre o mundo, o wajaka opera amediaocomosverdadeirosdonosdossaberesteraputicos(bichos,plantas, espritos dos mortos) e a coletividade qual pertence e pela qualtrabalha a dos Mehim, que tm a mesma carne/corpo. Como mos-trouAzanha(2005:5),oquealgumdomina(conhecimento),en-quantohabilidade,redundasempreembenefciodosoutroseoseuprestgiotantomaiorquantomaisestesoutrossesatisfazemcomsuas habilidades.08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 271- 272 -JLIO CSAR BORGES & FERNANDO NIEMEYER. CANTOS, CURAS E ALIMENTOS... diferena do inkrere, quando o wajaka aplica seu conhecimento,ele no passvel de ser transmitido, apreendido ou furtado. Isso repre-sentaria uma traio, uma quebra do contrato estabelecido com o carnomomentodaentregadohur(Azanha,2005).Oconhecimentono se transmite de pessoa a pessoa, pois trata-se, antes, de um podersaber. Ou seja, necessrio passar pelo processo intempestivo e solitriode transformao por agentes externos. Por outro lado, tal qual no regi-me de conhecimento ritual, a abordagem da existncia de uma proprie-dade intelectual relacionada aos conhecimentos xamnicos exige o des-locamentodanfaseparaumesquemarelacionalrecurso/dono/coletivo.SoprecisamenteosconhecimentossobreasplantasqueoswajakautilizamemsuascurasqueapesquisadaUnifesppretendiaacessar, negociando com eles, contudo, nos termos jurdicos da propri-edade intelectual moldada no individualismo ocidental. De quem se-ria esta propriedade? Do xam? De uma suposta coletividade de xams?Dos entes no-humanos com quem eles se relacionam? Da aldeia ondehabita? Do povo krah como um todo? Dos Timbira? No. Tais conhe-cimentos especializados seriam, como props vila (2007: 129), pro-priedade da relao estabelecida entre um curador e o car que lhe d ospoderes de viso e cura das doenas. Sendo fruto de uma relao, queimpe ao xam uma srie de constrangimentos fsicos que ele suportaem beneficio da coletividade, a no-propriedade tambm circula no re-gime de conhecimento xamnico.Produo e circulao dos conhecimentos agrcolasPara se tornar um cantor, preciso antes saber conhecer (isto , saber ou-vir e furtar, guardando no kr o que se escuta, tal como proferiu Hartt)e para se tornar um wajaka preciso antes poder saber, isto , ter aberta08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 272REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2012, V. 55 N 1.- 273 -uma via subjetiva de dilogo com outras agencialidades (tal como acon-teceu com Tyrkr). Entre o saber conhecer e poder saber, reside a capaci-dade de trazer para o coletivo mehim outras agencialidades. O regimede conhecimento relacionado s plantas cultivadas, por sua vez, perten-ceaumaordemcompletamentedistintaemboratambmtenhaumaorigem externa. Eles vieram de Caxekwyj, a Estrela-mulher. Mas o en-contro de Caxekwyj com os Mehim no se deu no espao exterior al-deia,comonoscasosdeHartteTyrkr.Aocontrrio,eladesceudocu, em forma de r, justamente no ptio (c), local pblico por exce-lncia. Foi na aldeia que ela ensinou aos mehim sobre as plantas cultiva-das, as formas de cultivo e de preparo do alimento. E, se verdade queela estabelece uma relao particular com um ndio especfico, a narra-tiva deixa claro que seus conhecimentos se dirigiam a toda a aldeia. Vaino ptio e avisa para todo mundo que isso [milho] bom. Vocs esto scomendo pau puba e isso no presta, teria dito ela ao marido.15 Em ne-nhum momento a narrativa parece indicar uma apropriao individualdos conhecimentos sobre as plantas cultivadas, mas sim que eles foramincorporados pela coletividade assim que constatado que isso era bom.Desde ento a agricultura passou a fazer parte do mundo krah.Do ponto de vista da produo econmica, podemos dizer que a agri-cultura mehim se estrutura a partir do grupo domstico unidade rela-tivamente independente e autnoma, com livre acesso s terras cultiv-veis que objetivam seu sustento. Com uma diviso de trabalho por sexoe por idade, a autoridade do krtumj (sogro; marido mais antigo) bemdefinida. As crianas no so chamadas a realizar nenhuma sorte de tra-balho, ainda que se faam presentes nas roas numa frequncia conside-rvel, onde acompanham os trabalhos dos parentes, vendo e ouvindo osmais velhos. Os jovens solteiros pouco a pouco vo tomando parte nostrabalhosderoa,mas,emgeral,notrabalhammuito.16Aindaas-sim, no dia-a-dia dos trabalhos que os conhecimentos agrcolas desde08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 273- 274 -JLIO CSAR BORGES & FERNANDO NIEMEYER. CANTOS, CURAS E ALIMENTOS...cedovosendoincorporadospelosmaisnovos.fundamentalmentequando contraem matrimnio que a roa passa a ser uma atividade anualimprescindvel para um jovem casal. Como os Krah seguem a regra dauxorilocalidade, o homem, ao casar, troca de casa e, consequentemente,passaaproduzirnasroasdogrupodomsticodasuaesposa.Assim,tudo o que aprendeu nas roas do grupo domstico de seus genitores onde cresceu vendo a forma de trabalho e aprendendo tambm o queproduz a beleza de uma roa ele leva para o grupo domstico ondepassa a habitar, comumente em outra aldeia. Assim, forma-se uma redecomplexaondeosconhecimentosnuncacessamdecircular,especial-menteatravsdestacirculaomasculinaentreosgruposdomsticos(Niemeyer, 2011). preciso considerar que, alm dos conhecimentos objetivos as tc-nicas de plantio e colheita, os ciclos das plantas, o controle de pragasetc. , a atividade produtiva tem uma dimenso subjetiva fundamentalque, seguindo o que disse Overing (1991) sobre os Piaroa da bacia doOrinoco, podemos situar no campo da esttica. O que a autora chamoude conhecimento produtivo ou esttico, est implicado na (re)produo daprpria sociedade imagem do belo. Voltando s razes do dualismoJ-Timbira,temosqueastrocasdesubstnciasqueoperamnadadeproduo/consumo, levada a cabo pelos grupos domsticos, no apenasmarcam as relaes entres parentes, como as produzem. Lembremos queos Krah chamam a si mesmos mehim: corpo, (mesma) carne, mes-masubstncia.FenmenoamplamentedistribudopelaAmaznia,aproduo fsica de indivduos se insere em um contexto voltado para aproduo social de pessoas (cf. Seeger et al., 1987).Se o grupo domstico tm o direito exclusivo de uso sobre a roa e asplantas que ele cultiva,17 o mesmo no se pode dizer dos conhecimentosque os produzem. Eles so circulantes j que circulam junto com amobilidade masculina subjacente estrutura social e coletivos uma08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 274REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2012, V. 55 N 1.- 275 -vez que so parte constitutiva dos mecanismos subjetivos de (re)produ-o social desta coletividade. No nosso caso, pois, o conhecimento pro-dutivo/esttico no apenas para produzir batata ou milho ou inhame,mas para produzir parentes, e este , ademais, um dos aspectos mais sig-nificativosdosprocessosderesilinciadosistemaagrcolakrah(cf.Niemeyer, 2011). Na trilha deste raciocnio, uma roa bonita para umkrah(isto,umaroadiversa,limpa,ecomsementesdeantiga-mente) produz gente bonita porque gera comida verdadeira. A estticaprodutiva se relaciona diretamente ao gosto pela diversidade nos roa-dos,obsessoemnoperderassementesdosnossosantepassados(mpaketej)eautonomiadosgruposdomsticos.Devemosteremconta tambm que a atividade agrcola produz aquilo que mais fcil oumais necessariamente se compartilha: o alimento, que entra como bemprivilegiado na rede de trocas e na cadeia de reciprocidades. As ddivase a generosidade para com os parentes tambm devem ser compreendi-das como uma das finalidades primordiais da atividade produtiva, assimcomo a produo de alimento para os amijkin. Produo/consumo/cir-culao aparecem como partes complementares da (re)produo social.Para se tornar um agricultor no preciso antes passar por nenhumprocesso de aquisio da capacidade de conhecer, como o caso entreos inkrere, e nem preciso antes poder saber, como ocorre com os wajaka.Conhecimento de roa simplesmente se sabe. Como voc sabe que estamandiocadiferentedestaoutra?perguntaopesquisadordiantededuas plantas aparentemente idnticas. A gente conhece, costuma ser aresposta. Se indagados sobre a origem de algum conhecimento, a res-postanosindicarCaxekwyj,entidadequerepresentaaherenaco-mummaterial(asplantasemsi)eimaterial(osconhecimentosparacultiv-las) de tudo que envolve o que podemos chamar de agriculturatradicional krah.1808_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 275- 276 -JLIO CSAR BORGES & FERNANDO NIEMEYER. CANTOS, CURAS E ALIMENTOS...Interregno: a esttica nos regimes de conhecimento mehimAntesdeconcluirmos,sigamosumpoucomaisocaminhoapontadopela discusso precedente. Ele parece conduzir, ao nos desviar da noode criao/autoria individual, problemtica da reciprocidade (Mauss,1974 [1923-24]; vila, 2007; Coelho de Souza, 2002). Os regimes deconhecimentokrahpressupemacirculaodeddivasdinamizadapela performance de certas categorias de pessoas. Por exemplo, o inkrereno extrai seu prestgio por ter a autoria dos cantos, mas sim por ter acapacidade de trazer um conjunto e quanto maior esse conjunto, mai-oroprestgiodevozesexterioresparaointeriordokrin.Eleoperacomo mediador da forma timbira com agencialidades no-humanasque tm l fora o seu mundo; l vivenciam o cogito como experincia.Existo,logoconheo,diriaumanimalouumarvore,arbustooumesmoasestrelasouespritosdosmortos.CogitoqueosMehim,emsuas constantes e dinmicas trocas com alteridades mltiplas, vivenciamno seu cotidiano. O cantor oferece aldeia a ddiva indispensvel paraobomviveroamijkin,aalegriaeafestaque,alis,sosinnimos(Nimuendaj, 1946; Melatti, 1978; Azanha, 1984). De fato, o amijkinproduz o ambiente no qual os Mehim vivenciam o mundo sob a estticae a episteme dos cantos. O inkrere a pessoa que, ao saber execut-los,oferece-os comunidade da aldeia e , por isso, recompensado. Se elerecebe algo por sua performance (corte de pano, carne, mianga), maispor sua capacidade de execut-los do que por direitos autorais sobre suasuposta propriedade intelectual, a saber, os cantos. Essa noo de pro-priedade no faz sentido para os Mehim; no faz porque os cantos noso do cantor. So dos bichos, das rvores, das estrelas, dos espritos dosmortos. O inkrere aquele que sabe pegar os cantos e traz-los para aexperincia comunal do amijkin. Ele operador de redes de reciproci-dades diversas por entre as quais os cantos (no-propriedade) circulam.1908_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 276REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2012, V. 55 N 1.- 277 -O xam e o cantor foram para fora do seu mundo (seja a aldeia dosurubus, o p- do-cu ou outra aldeia timbira) e trouxeram algo de novopara sua coletividade. Ao contrrio, os conhecimentos dos agricultoresvieram do cu diretamente para dentro da aldeia. Caxekwyj no chegouem qualquer lugar; ela desceu no ptio. Se a figura do xam e do cantadorsotradicionalmenteproblemticosnaAmaznia,porqueaumavertente individualizada da pessoa pode surgir (cf. Seeger et al., 1987).O agricultor e os conhecimentos que ele carrega trazem por sua vez amarca da coletividade. A aplicao do conhecimento produtivo e estti-co, levado a cabo pelos agricultores organizados a partir da unidade dosgrupos domsticos, forma uma rede implicada na fabricao de corpose,logo,naproduodomehim.Aproduodebatatas,mandiocaemilho imediatamente a (re)produo desta coletividade na forma decorpos. As figuras do xam e do cantador diferem substancialmente dado agricultor pelo fato de seus conhecimentos, em relao aos daqueles,apresentaremparaosKrahumdomniomenosestabelecido.Isto,por melhor que seja o agricultor, ele no reconhecido internamentecomo detentor, enquanto indivduo, de um conhecimento valioso so-bre o acesso do qual poderia, inclusive, incidir algum pagamento. Seh propriedade aqui, ela est relacionada ao objeto e no ao saber. Agri-cultores podem trocar sementes de cabaa por um feixe de manivas demandioca, ou podem trocar um saco de acar por um punhado de se-mentes de fava. Se nestas transaes circulam tambm conhecimentos,sua propriedade no acionada enquanto um bem.O prprio movimento dos mundos biofsicos, humano e cosmol-gicos depende da circulao dos cantos, das curas, dos alimentos e pes-soas. A circulao da no-propriedade s uma maneira de determinarrelaes,constitu-lascomorelaesespecficas,comodeassimposicionar-se (isto constituir-se) como sujeito em relao a um outroespecfico, em um momento especfico (Coelho de Souza, 2005: 14).08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 277- 278 -JLIO CSAR BORGES & FERNANDO NIEMEYER. CANTOS, CURAS E ALIMENTOS...Se os saberes associados aos cantos, s curas e aos alimentos no perten-cem a ningum em especfico (a algum que diga: ei, sou proprietriodisso), porque, enquanto ddiva, as coisas preexistem, e os indiv-duos e os coletivos que as possuem em um dado momento so o efeitodasrelaesespecficas,particularizadas,poressacirculao(Coelhode Souza, 2005).ConclusesPor fim, voltemos aos dois projetos de etnopesquisa que recentementeacessaram conhecimentos krah. Por princpio, acessar um conhecimen-to reconhecer seu valor. Vimos que nos dois casos, ainda que de for-masdiferentes,estavalorizaoexternadosconhecimentoskrahen-contracorrespondentesemsuacosmologia.Valorizaroserviodowajaka como um conhecimento relevante para as questes de sade, osKrah sempre fizeram (inclusive pagando caro por isso). Da mesma for-ma, vimos que o conhecimento produtivo est menos relacionado sub-sistncia (como se poderia supor) do que prpria existncia da comu-nidade enquanto tal j que parte indissocivel da fabricao de genteda mesma carne/corpo. Se produtivo e esttico so aqui quase sinnimos,a beleza que os Krah procuram produzir em suas roas se expressa numprofundo gosto pela diversidade e numa quase obsesso em manter assementes de antigamente. So estas que, tal como o milho phypej (li-teralmente: milho bom), se usam em resguardos tanto para o bom rendi-mento da colheita quanto para o crescimento sadio de um filho. exa-tamente o fruto destes valores (roas mega-diversas e conservao demateriais genticos) que deu origem parceria Embrapa-Krah cujoponto de partida foi a histrica comitiva mehim que foi buscar nas c-08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 278REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2012, V. 55 N 1.- 279 -maras frias da empresa, em Braslia, uma variedade do milho bom quehavia se extinguido de suas roas.Pelo lado Krah, entendemos este ato como parte do mais legtimointeresse nas sementes de antigamente e na beleza de suas roas (deseu povo, por conseguinte). Ora, mas o tal milho que dizem phypejfora coletado em roas Xavante!,20 objetaro alguns. Mas para os Krahisto nunca foi uma questo relevante.A incorporao de um bem externo, neste caso de um outro povo,corresponde sua cosmoprxis, assim como as grandes expedies paraconsegui-los. Como conta a narrativa de Caxekwyj, os krinxr [ndiosdeoutrasetnias]carregaramasmaioresespigaseficaramsasespigasmenorzinhas para os Mehim.21 O episdio recente conhecido como re-torno do milho tradicional pode ser entendido pelos Mehim como umareconquista de algo perdido no tempo mtico. Mais do que um simplesretorno,estamospoisdiantedeumprocessode(re)apropriaoeressignificao que corresponde exatamente s formas nativas de consti-tuio do que poderamos chamar de sua cultura (Carneiro da Cunha,2009). Do ladocup da histria, os Krah passaram a ser conhecidoscomo guardies da agrobiodiversidade atravs de seus prprios siste-mas tradicionais de cultivo. E de mundo, poderamos acrescentar. Ataqui, portanto, temos mais encontros do que desencontros.A coisa comea a mudar quando tentamos pensar a questo em ter-mos de acesso aos conhecimentos tradicionais e dos decorrentes di-reitos de propriedade intelectual, como prev nossa legislao. Passe-mos,pois,aosmal-entendidos. Vimosqueoswajaka,assimcomoosinkrere,soportadoresnosdeconhecimentos,masessencialmentede poderes e capacidades de conhecer estas que lhes abrem o acesso acertos saberes e lhes conferem certos direitos e prerrogativas. Os conhe-cimentos no so deles, mas por um processo especfico de aprendiza-08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 279- 280 -JLIO CSAR BORGES & FERNANDO NIEMEYER. CANTOS, CURAS E ALIMENTOS...do, os wajaka e os inkrere se tornaram seus donos-mestres, mediadores.Vimos tambm que nada nos permite dizer que sejam seus proprietri-os. Se vila procurou compreender o conflito com a Unifesp por meiodapolticainternakrahexpressanoafloramentodeumadivisoprimeva entre subgrupos Timbira amalgamados sob o etnnimo Krah,o que pretendemos mostrar aqui, seguindo o que disse Azanha (2005), que h um mal-entendido mais profundo contido justamente na in-solvelquestodapropriedadeintelectual.Afinal,dequemsoosconhecimentos do wajaka?, questionaram os Krah. Se as solues queencontraram para o dilema podem ser entendidas como polticas, o mal-entendido conceitual: no h propriedade. Por princpio, os conheci-mentos xamnicos, agrcolas e rituais no tm proprietrios. Assim, fa-ria mais sentido falar em no-propriedade de conhecimentos que existempara circular. Tais conhecimentos, assim como os cantos, no perten-cem a indivduos ou grupos de indivduos pertencem a uma comple-xarededeagenteshumanoseno-humanos.Sobensimateriaisdasmltiplas relaes/vinculaes (Caill, 2002: 143).Quantoaosconhecimentosassociadosagrobiodiversidade,eleschegaramcoletividadeindgenaporintermdiodeumaestrelaquedesceu no ptio da aldeia e se transformou numa bonita mulher. Hoje,os Mehim se relacionam diariamente com Caxekwyj atravs de suas ro-as e de seu alimento. O paparuto (kwrkup), por exemplo, o alimentoritual por excelncia, foi a primeira receita que a Mulher-Estrela ensi-nou aos Mehim, logo que lhes apresentou o milho. Hoje paparutos sotrocados, oferecidos, distribudos em inmeras situaes cerimoniais obrigatoriamente em muitas delas. Os conhecimentos que envolvem aproduo, o consumo e a circulao de alimentos so, pois, por princ-pio universais e coletivos: eles produzem e fazem circular as substnciasque fabricam a comunidade imagem do belo, no movimento inces-sante de devir mehim. Alm de conhecimentos, estamos falando aqui de08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 280REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2012, V. 55 N 1.- 281 -valores, tais como a generosidade (manifesta nas trocas), a autonomia(manifesta na independncia dos grupos domsticos) e a beleza (mani-festa em seus corpos). Poderamos falar em propriedade de valores as-sociados esttica mehim do existir? Num esforo desmedido de encai-xarconceitos,poderamosnomximodizerqueoconhecimentoprodutivo de propriedade do povo Krah como um todo, j que parte indissocivel de sua prpria reproduo. Mas no vemos nisso ne-nhum avano terico ou prtico, mas, ao contrrio, tal formulao nosparece nublar as verdadeiras categorias de pensamento krah.Neste desencontro cognitivo reside algo das vicissitudes dos projetosque vimos discutindo. As atividades de etnopesquisa da Unifesp foraminterrompidas porque a instituio e o Estado brasileiro se viram diantede uma questo que se mostrou insolvel (de quem o conhecimentodo wajaka?). Por outro lado, a universidade assumiu uma postura im-passvel:noapoiarfinanceiramenteasatividadesautnomasdoswajaka, tal como propuseram os Krah como repartio de benefcios(cf. vila, 2004). O projeto da Embrapa restringiu seu escopo pesqui-sasobreasplantascultivadasjuntoaosguardieseguardisdaagrobiodiversidade. Tornandopblicoquenopretendiaacessarco-nhecimentos sobre plantas e propriedades medicinais, a empresa imedi-atamentesaideumcampoparticularmentepovoadodedonos-controladores (nos termos de Fausto, 2008). Isso faz com que as questesde propriedade intelectual sobre os conhecimentos da agrobiodiversi-dade que a Embrapa acessa no sejam, do ponto de vista Krah, umaquesto relevante. Neste sentido, a repartio de benefcios que compeo projeto aparece para os Mehim como o prprio projeto.Eles definitivamente no concebem a parceria Embrapa-Krah a par-tir do acesso aos seus conhecimentos tradicionais. No compartilhamda ideia de que eles, como um todo (um povo), so detentores de deter-minados conhecimentos imateriais que se constituem, para os brancos,08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 281- 282 -JLIO CSAR BORGES & FERNANDO NIEMEYER. CANTOS, CURAS E ALIMENTOS...como uma riqueza. Talvez no compartilhem nem do fato de que elesso um todo. O complicador do projeto da Unifesp parece estar justa-mente no fato de acessarem um conhecimento de mltiplos domniosmediados por indivduos especficos, com todo um sistema estabeleci-do de pagamentos pelo seu acesso.22Os dois projetos diferem essencialmente pelo fato de acessarem co-nhecimentos que se encontram, internamente, sob regimes muito dife-rentes. Decorre da que a agencialidade mehim se manifestou de formasdistintas. O projeto da Embrapa tido pelos Krah como um projetode segurana alimentar para eles, e no como de acesso aos seus impor-tantes conhecimentos, que produzem uma incrvel diversidade que con-tribui enquanto parte de uma rede para a segurana alimentar dahumanidade. J no caso da Unifesp, a questo da propriedade do co-nhecimento foi compreendida e trabalhada nos seguintes termos: es-to vindo aqui pegar o conhecimento dos wajaka, esto reconhecen-do (como ns reconhecemos) que eles tm valor. E o pagamento queexigiram foi justamente que eles bancassem os servios do wajaka paraqualquer Krah que precisasse. Como receberam a resposta de que talprocedimentoseriainconcebvel,oscaciquesewajakareuniram-seedecidiram que o projeto s poderia continuar se a Unifesp pagasse umaindenizao de R$ 5 milhes por danos morais e mais R$ 20 milhes attulo de taxa de bioprospeco. , wajaka caro, diria um krah.Notas1In memoriam do amigo Thiago vila e do mhacpackre Ba.2Respectivamente, doutorando em Antropologia Social no PPGAS/UnB e mestreem Antropologia Social pelo PPGAS/Unicamp. Os autores agradecem as contri-buies feitas pelos antroplogos do grupo de pesquisa sobre Propriedade Intelec-08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 282REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2012, V. 55 N 1.- 283 -tual e Conhecimentos Tradicionais e tambm por Alcida Rita Ramos, Jos Pimen-ta e Luis Cayn. Por certo, eventuais omisses e incorrees do texto final so to-das dos autores.3Krah um etnnimo forjado no contato com os brancos (cup) para designardeterminadocoletivotimbira.JuntocomosCanela-Ramkokamekr,Canela-Apaniekr, Krikati, Pkoby, Gavies e Apinaj, compartilham a forma timbira(Azanha, 1984): organizao social em vrios pares de metade (Wakmeje e Katamje,p.ex., entre os Krah), corridas de toras, residncia uxorilocal. Quanto ao planodasaldeias,elastmformacircularcomumptiocentral(k),doqualpartemcaminhos planos (pr`ycarm) at o crculo das casas (krinkap). Periodicamente umadas casas da periferia transfigurada em ambiente pblico, uma espcie de ptiono qual entoado certo gnero de cantos a Casa de Wyty. Essa disposio espaci-al, sob a forma timbira, expressa a concepo mehim acerca da produo, apro-priao e circulao de sujeitos individuais e coletivos e seus bens por entre oscaminhos percorridos na vida cotidiana e ritual.4Cf. tb. Nimuendaj (1946).5Para uma anlise pormenorizada das estratgias polticas dos Krah diante destesdois projetos, consultar vila (2004).6Esta verso foi narrada por Krat, mhacpackre hotxu da Aldeia Serra Grande, emportugus, numa roda de prosa durante a VIII Feira Krah de Sementes Tradici-onais, em setembro de 2010. Foi posteriormente editada pelos autores. Num even-to cuja pretenso fazer circular sementes e saberes, a escolha de Krat pelo mitode Hartt nos parece significativa.7Este o ponto de contato entre os trs nveis do universo. Sua localizao o leste,nas alturas do oriente, onde o patamar celestial toca a terra e a terra toca o mun-do subterrneo. H outra narrativa que se refere ao Khoikwakhrat como uma re-gio de muita luz, para a qual se dirigiram os ndios que fugiram de uma grandeescurido provocada por um eclipse solar (Schultz, 1950: 159). Nos tempos pri-mordiais, fora moradia de um pica-pau que ficava a perfur-lo. O pica-pau entotinha sede e voava para a gua; quando voltava, o p-do-cu j est reconstitudointeiramente, ento volta a pic-lo at o meio (dia), quando novamente tem sede etodo o processo se repete, indefinidamente (Melatti, 1978: 96; Borges, 2004).8Alm dos Krah e dos Canela, encontramos exemplos do ouvir enquanto capaci-dade sensorial associada ao aconselhamento e ao compreender/conhecer entre ou-08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 283- 284 -JLIO CSAR BORGES & FERNANDO NIEMEYER. CANTOS, CURAS E ALIMENTOS...tros J do Norte, por exemplo, os Sui (Seeger, 1980; 1981) e os Xikrin (Cohn,2000).9O que chamamos de gnero de cantigas refere-se distino feita pelos prpriosMehim entre os cantos quanto ao local onde devem ser entoados (ptio, caminhoradial ou crculo das casas), ao momento do dia em que so performados, aos mo-vimentos corporais do inkrer e s respectivas origens mticas. Assim, os cnticosde ptio teriam tido origem numa festa na qual se fizeram presentes vrios bichos;so realizados pelo cantor com seu marac e por um grupo de mulheres (hcrepoj)que, dispostas em fila, executam leves movimentos com os joelhos e os antebraos.J aqueles entoados nos caminhos radiais da aldeia foram pegos com cupti (umndio de outra nao que morava dentro de um cupinzeiro); cupkryakrore, canti-gas do tatu rabo-de-couro e que so entoadas no ptio, com marac, ou nos cami-nhosdaaldeia,e(krrepahamnar,cantigasdocantorsemvergonhaquesoperformadas no caminho circular, diante das casas (cf. Melatti, 1982: 34; Schultz,1950: 138-143). Notemos que as cantigas do caminho radial, cupti, e do ptio,cupkryakrore, so designados por palavras cujo prefixo o termo cup, substan-tivoquedesignaooutro,oestrangeiro,tantoindgenano-timbiraquantobranco. No perodo anterior ao contato (final do sculo XIX), cup referia-se aosgrupos indgenas que da forma timbira no apresentavam nada de reconhecvel(Azanha, 1984).10Registrado por Jlio Csar Borges durante trabalho de campo realizado, nesta al-deia, no final do ms de agosto de 2007. Nesse perodo, o finado mhacpackre Baanimou as festas de terminao do Wyty e de Khjgaju, nas quais aparecem asmetades cerimoniais Hk (Gavio) e Krkrc (Irara).11Em entrevista gravada durante o trabalho de campo j mencionado.12Resumidamente, aps a formiga entrar em sua orelha, Tyrkr passa a se relacionarcom vrios tipos de pssaros, que tiram a formiga, lhe do carne crua para comere o levam para o cu. Neste plano, um Gavio lhe ensina os saberes da cura; nocu, presenciou a festa de Pembcahc (ritual de iniciao masculino). Na volta paraaldeia, o primeiro wajaka passa ento a testar, com sucesso, seus poderes.13O wajaka no o nico que se utiliza de plantas como remdio. A maioria doskrahs adultos tem conhecimento sobre o uso de plantas com finalidades terapu-ticas. um tipo de conhecimento notadamente distinto daquele dos wajaka, e osindivduos que se destacam neste ramo so conhecidos como entendidos de re-08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 284REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2012, V. 55 N 1.- 285 -mdios. Conforme analogia nativa [...] os entendidos em remdios s conhecem osremdio, no conseguem ver as doenas. como o farmacutico e o mdico, o wajaka o mdico, e o entendido, o farmacutico (Rodrigues, 2001 apud vila, 2004: 23;cf. tb. Melatti, 1970; Schultz, 1976a, 1976b). Ao contrrio do wajaka, os conhe-cimentos de um entendido se constroem por meio de um processo contnuo deexperimentao direta e/ou so transmitidos de um entendido para um aprendiz.Bonsentendidostambmtmseussaberesconsideravelmentevalorizadose,como tudo na sociedade krah, um tratamento com um deles tambm exige seupagamento, mas os valores no so to altos como o dos wajaka. A pesquisa daUnifesp selecionou sete wajakas e um entendido, dentre os mais conceituados,para compor seu conjunto de indivduos pesquisados (Rodrigues, 2001 apud vila,2004: 27).14estetermoque,emportugus,osKrahutilizamparadesignaroatodacontraddiva pela cura promovida pelos especialistas em dor de barriga, dores lom-bares, dores de cabea, doenas de crianas, picadas de cobra etc. (cf. vila, 2004;2007).15OstrechosdanarrativadeCaxekwyjaquipresentesreferem-seversoqueRaimundo Hapuhhi contou Fernando Niemeyer na aldeia Morro-do-Boi emnovembro de 2009. A verso na ntegra consta em Niemeyer, 2011.16Para maiores detalhes sobre a diviso de trabalho por sexo e por idade, ver Melatti,1970.17Assim diz-se Capri y pr (roa do Capri) onde y aparece como marcador de possealienvel, isto , um direito de propriedade adquirido social e economicamente(cf. Rodrigues, 1992).18CabedestacarqueosKrahestabelecemumadistinoentreasplantasdeCaxekwyj e as plantas dos cup que, grosso modo, representa a diferenciao entreaquelas que cultivam desde os tempos imemoriais e aquelas que foram introduzidasrecentemente, como o milho hbrido.19Tais redes funcionam como caminhos (pr`y), fluxos que levam e trazem os cantos eos cdigos epistemolgicos subjacentes. Ao percorrer estes caminhos rumo ori-gem dos conhecimentos, percebemos que eles acabam por formar redes. Assim, osMehimapre(e)nderamaFestadaBatata(Jtjpin)comgente-abbora,gente-amendoim, gente-cro em sua roa. Por sua vez, estes legumes s eram cultivadosporque assimelesapre(e)nderamcomaEstrela-mulher,Caxekwyj.Esehojeos08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 285- 286 -JLIO CSAR BORGES & FERNANDO NIEMEYER. CANTOS, CURAS E ALIMENTOS...krah cantam em todos estes rituais, porque eles apre(e)nderam sobre a capaci-dade de adquirir estes conhecimentos (saber conhecer) com Hartt e com o Ma-chado-Cantor aps a expedio ao p-do-cu.20Em finais da dcada de 1970, a Embrapa realizou uma srie de expedies de co-letadegermoplasmademilhoemcomunidadesindgenasetradicionais,totalizando 427 amostras coletadas. A poltica em voga era ento a de reunir umagrande variedade de material gentico para conservao off-farm, formando umvariadoediversobancodesementessobcontroledoEstado.OBrasilCentralentrou na rota destas expedies: entre os Xavante foi coletada a variedade de mi-lho que posteriormente os Krah buscaram em Braslia (cf. vila, 2004).21Isso porque, conta a narrativa, o primeiro p de milho, ao contrrio de um p demilho comum, era de madeira dura, era um p s, que tinha de ser derrubadono machado. Dois jovens krah foram ento buscar um machado em outra aldeiapara derrub-lo. Porm, no caminho, encontram um velho que comia uma mucura(animal com a propriedade de envelhecer rapidamente quem dele se alimenta, porisso s os velhos o fazem). Com fome, e todavia sob a advertncia do velho, osjovens comem com ele a mucura e ficam velhos instantaneamente. A funo me-diadora da mucura est ligada demora para voltarem ao p de milho, como setodas as coisas futuras j tivessem sua contrapartida (Lvi-Strauss, 2004 [1964]:217). Seu aspecto negativo est justamente no fato dos krinxr terem ficado comas maiores espigas (Niemeyer, 2011).22Cf. vila (2004) para uma anlise deste paradoxo.Referncias bibliogrficasVILA, Thiago2004 No do jeito que Eles quer, do jeito que ns quer: os Krah e a biodiversidade.Dissertao, UnB.2007 Propriedades e reciprocidades: etnografando o acesso aos conhecimentos tra-dicionais indgenas. 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CANTOS, CURAS E ALIMENTOS...ABSTRACT: This article proposes a comprehensive approach to systems ofknowledgeoftheindigenouspeopleKrah.Likethedrawingoftangledpaths(pr`y)thatconnectthevillages,mehimthinkingcanbeseenasanetwork that connects people, animals, plants, personal names, privileges,rituals, spirits (mecar), dead people and many Others. The aim of this articleis to capture concepts and practices that endow specificity to some of thesepaths as systems of knowledge that, in an interethnic field, make us closerto the Krah notion of what we have been calling intellectual property. Infact, we intend to show that a notion of ownership of knowledge, as oursociety understands it, does not correspond to native forms of ownership,transmission and validation of knowledge, and that generates unique effectswhen in a scene of interethnic negotiations these two systems are set tointeract. We will look for ways of production and circulation of agricultural,shamanicandritualknowledge,andthesensitivecodesunderlyingtheirestablishment. Finally, we will verify how the indigenous agency behaves inacomparisonbetweentworesearchprojectsthathaverecentlysoughttoaccess such knowledge - that is considered traditional and the cognitivemismatches generated in these interactions.KEY-WORDS:Traditionalknowledge,Krah,intellectualproperty,knowledge regimes.Recebido em maio de 2011. Aceito em maro de 2012.08_RA_Borges&Niemeyer.pmd 06/11/2012, 18:10 290