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NHECOLÂNDIA: UM TRIÂNGULO DE LINHAS TORTAS MARCANDO OS LIMITES DOS PANTANAIS. ILSYANE R. KMITTA 1 Na assertiva de Hobsbawm (1998), tudo o que pertence ou depende do homem, servindo, exprimindo e demonstrando sua presença, sua ideologia, sua atividade, seus gestos, sua maneira de viver e de ser, é história. O homem é, portanto, o artífice da história e também do tempo na história, ou seja, o homem e suas práticas sociais são fontes para o trabalho dos historiadores. A pertinência da afirmação do referido autor, vem ao encontro do fato de que entendemos a História como uma constante construção, e, é importante a veiculação de várias ferramentas de pesquisas e os textos memorialistas devem fazer e compor o acervo de fontes, com suas particularidades e especificidades, sem perder as características de fontes com as quais os historiadores estão habituados a trabalhar e, concatenado a esse aspecto, não podemos deixar de lado a importância da leitura dos memorialistas, ainda mais quando a proposta está vinculada a historiografia regional. Assim, o levantamento, identificação e análise das fontes como dos viajantes, dos memorialistas e das fontes orais e/ou narrativas, permitem conhecer historicamente as estratégias humanas construídas para a sobrevivência em áreas singulares, como os pantanais que são de suma importância para a compreensão das relações entre homem e natureza neste conjunto único de ecossistemas. Partindo da ótica de análise exposta, encontramos na introdução da primeira edição de “Pantanal – gente, tradição e história”, o relato da “descoberta” do que era o Pantanal, mais especificamente da sub-região da Nhecolândia. O autor, Augusto César Proença, trata de forma romanceada dos vários aspectos da região pantaneira, abordando as origens geológicas, as origens humanas, a formação dos grandes latifúndios e a formação dessa sub-região 2 . 1 Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados PPGH/UFGD; Professora do curso de História da UEMS unidade Amambai, MS. 2 Pesquisadores da Embrapa Pantanal, como SILVA & ABDOM (1998), descrevem a delimitação do Pantanal e suas sub-regiões considerando alguns aspectos fisiomorfológicos e geopolíticos. Assim, definem a localização das sub-regiões do Pantanal em relação aos municípios que as compõem: 1. Sub-região de Cáceres: agrega as áreas dos municípios de Cáceres e Lambari D’Oeste; 2. Sub-região de Poconé: agrega as áreas dos municípios de Cáceres, Poconé, Nossa Senhora do Livramento, Barão de Melgaço e Santo Antônio do Leverger; 3. Sub-região de Barão de Melgaço: agrega as áreas dos municípios de Itiquira, Barão de Melgaço e Santo Antônio do Leverger; 4. Sub-região do Paraguai: localiza-se no oeste do Pantanal e agrega as áreas dos municípios de Poconé, Corumbá e Ladário; 5. Sub-região do Paiaguás: agrega área dos municípios de Sonora, Coxim e Corumbá; 6. Sub-região de Nhecolândia: agrega as áreas dos municípios de Rio Verde de Mato Grosso, Aquidauana e Corumbá; 7. Sub-região do Abobral: agrega as áreas dos municípios de Aquidauana e Corumbá; 8. Sub-região de Aquidauana: localiza-se

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NHECOLÂNDIA: UM TRIÂNGULO DE LINHAS TORTAS MARCANDO OS

LIMITES DOS PANTANAIS.

ILSYANE R. KMITTA1

Na assertiva de Hobsbawm (1998), tudo o que pertence ou depende do homem,

servindo, exprimindo e demonstrando sua presença, sua ideologia, sua atividade, seus gestos,

sua maneira de viver e de ser, é história. O homem é, portanto, o artífice da história e também

do tempo na história, ou seja, o homem e suas práticas sociais são fontes para o trabalho dos

historiadores. A pertinência da afirmação do referido autor, vem ao encontro do fato de que

entendemos a História como uma constante construção, e, é importante a veiculação de várias

ferramentas de pesquisas e os textos memorialistas devem fazer e compor o acervo de fontes,

com suas particularidades e especificidades, sem perder as características de fontes com as quais

os historiadores estão habituados a trabalhar e, concatenado a esse aspecto, não podemos deixar

de lado a importância da leitura dos memorialistas, ainda mais quando a proposta está vinculada

a historiografia regional. Assim, o levantamento, identificação e análise das fontes como dos

viajantes, dos memorialistas e das fontes orais e/ou narrativas, permitem conhecer

historicamente as estratégias humanas construídas para a sobrevivência em áreas singulares,

como os pantanais que são de suma importância para a compreensão das relações entre homem

e natureza neste conjunto único de ecossistemas.

Partindo da ótica de análise exposta, encontramos na introdução da primeira edição de

“Pantanal – gente, tradição e história”, o relato da “descoberta” do que era o Pantanal, mais

especificamente da sub-região da Nhecolândia. O autor, Augusto César Proença, trata de forma

romanceada dos vários aspectos da região pantaneira, abordando as origens geológicas, as

origens humanas, a formação dos grandes latifúndios e a formação dessa sub-região2.

1 Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados –

PPGH/UFGD; Professora do curso de História da UEMS – unidade Amambai, MS. 2 Pesquisadores da Embrapa Pantanal, como SILVA & ABDOM (1998), descrevem a delimitação do Pantanal e

suas sub-regiões considerando alguns aspectos fisiomorfológicos e geopolíticos. Assim, definem a localização das

sub-regiões do Pantanal em relação aos municípios que as compõem: 1. Sub-região de Cáceres: agrega as áreas

dos municípios de Cáceres e Lambari D’Oeste; 2. Sub-região de Poconé: agrega as áreas dos municípios de

Cáceres, Poconé, Nossa Senhora do Livramento, Barão de Melgaço e Santo Antônio do Leverger; 3. Sub-região

de Barão de Melgaço: agrega as áreas dos municípios de Itiquira, Barão de Melgaço e Santo Antônio do Leverger;

4. Sub-região do Paraguai: localiza-se no oeste do Pantanal e agrega as áreas dos municípios de Poconé, Corumbá

e Ladário; 5. Sub-região do Paiaguás: agrega área dos municípios de Sonora, Coxim e Corumbá; 6. Sub-região de

Nhecolândia: agrega as áreas dos municípios de Rio Verde de Mato Grosso, Aquidauana e Corumbá; 7. Sub-região

do Abobral: agrega as áreas dos municípios de Aquidauana e Corumbá; 8. Sub-região de Aquidauana: localiza-se

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Apontamentos esses que nos permitem analisar como se deu a construção de uma memória

pioneira associada a constituição de um grande latifúndio que nominou uma sub-região.

Suas primeiras indagações recaiam sobre as enchentes, cujos comentários faziam crer

que eram sempre danosas e traziam perdas para os fazendeiros; que as enchentes eram a “traição

dos rios”. Questionamentos que envolviam ainda as diferenças que existiam nos campos, das

características especificas de cada um dos pantanais. Tais indagações cessaram quando, com

posse de um mapa, o autor ainda garoto, localiza o que era a sub-região da Nhecolândia e,

partindo dessa imagem, ele entendeu o que era o Pantanal como um todo. Em suas palavras:

Eu pude ver então onde se situava a nossa fazenda e observar o triângulo mal feito,

entre os rios Negro e Taquari, que se juntavam com as águas do grosso Paraguai.

Era um triângulo cheio de linhas tortas, traçadas a nanquim, simbolizando os limites

das inúmeras fazendas existentes na época: enormes algumas, outras menores;

porém, todas grandes (PROENÇA: 1992: 9).

Logo na infância, o menino percebeu que o que tinha diante dos olhos era muito mais

que um mapa. O que tinha diante de si era a representação cartografada de uma história de

gestação perenal. Compreendeu que “o Pantanal da Nhecolândia não passava de uma grande

família”, que se reuniu, através dos tempos para traçar o mapa que estava diante de seus olhos,

e na sua “cabeça de menino” cessaram as perguntas. Mas, cessando as indagações do menino,

nasce a determinação do homem, a certeza de que era seu dever escrever a “história dessa gente

e desse Pantanal” e foi assim que decidiu registrar a história do Pantanal exótico que viu, que

sentiu e que vibrou em seu sangue. Desse modo, foi buscar na trajetória dos mortos a

reconstrução da memória do “mundo que construíram”, das lendas, dos causos. E salienta:

Buscarei nas curvas dos rios os sussurros dos homens que um dia tombaram por

desilusão, desanimo ou força. Dos homens que fizeram uma história, legaram uma

tradição, um mapa, e souberam respeitar uma grandeza (PROENÇA, 1992:10).

Tal qual fez Proença, fizeram também muitos outros “homens de descendência

pioneira”. Para tanto, foi preciso apenas juntar o dito valente-desbravador-pioneiro, o cavalo e

o boi, sem esquecer aqui do vaqueiro - os indígenas e o negro escravo oriundo das minas e das

plantações de cana, que acompanhou o desbravador na busca e posse de terras e na lida das

somente no município de Aquidauana; 9. Sub-região de Miranda: agrega as áreas dos municípios de Aquidauana,

Bodoquena e Miranda; 10. Sub-região do Nabileque: agrega as áreas dos municípios de Corumbá, Porto Murtinho

e Miranda; 11. Sub-região de Porto Murtinho: localiza-se somente no município de Porto Murtinho. Essa área

fisiográfica é composta por 15 municípios, sendo 6 (seis) no estado do Mato Grosso ocupando 34,27% da área do

Pantanal; e 9 (nove), no estado do Mato Grosso do Sul ocupando 65,73% da área do Pantanal. Corumbá (44,31%),

Poconé (10,01%), Cáceres (9,44%) e Aquidauana (9,31%) são os municípios que mais contribuem para a formação

da área do Pantanal (SILVA & ABDON, 1998, p. 1706-1707)

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fazendas. Embora sejam exaltados pelos memorialistas3, os desbravadores, em sua grande

maioria eram aqueles que inicialmente partiram em busca de riqueza, a procura de terras para

se estabelecer e fazer fortuna. As justificativas recaíram sobre o fato que o pioneiro,

recebendo qualidades predominantes dessas etnias, ele se formou forte; de um lado,

adquiriu o misticismo, a humildade, a desconfiança e a paciência dos nativos; do

outro, o ardor, a coragem e a ambição do mameluco, para poder se embrenhar num

lugar inóspito e vencer os obstáculos que se lhe apresentavam pela frente. Dessa

mestiçagem se formou o pioneiro que desceu do Norte para povoar o Sul (PROENÇA,

1992: 55).

E conforme escreveu Corrêa Filho (1955), na medida em que a atividade mineradora

entrava em declínio, emergiu um grupo com interesses econômicos e políticos que partilhavam

o poder, e entre os integrantes desse grupo, muitos “coronéis” que estreitavam laços,

fortaleciam ainda mais seus poderes políticos e consolidavam uma diferenciação na estrutura

social, e nesse contexto entram os fazendeiros do Pantanal, sendo que

nos primeiros anos de ocupação, os desbravadores que conquistassem as terras

tinham o direito de requisitar como sesmaria uma única área medindo até três léguas

de comprimento por uma de largura ou, em escala atual 13.068 há. Raros, porém,

foram os ocupantes que se contentaram com esses limites. Aproveitando-se de

vantagens dispostas nas legislações fundiárias e protegidos pelas distancias dos

centros de poder, constantemente acrescentavam ás suas posses originais outras

terras que lhes eram concedidas pelos governantes regionais em nome da coroa

(BANDUCCI JR, 2007: 34).

Embora sejam exaltados pelos memorialistas, os desbravadores, em sua grande maioria

eram aqueles que inicialmente partiram em busca de riqueza, a procura de terras para se

estabelecer e fazer fortuna. As justificativas recaiam sobre o fato que o pioneiro,

ele se formou forte; de um lado, adquiriu o misticismo, a humildade, a desconfiança

e a paciência dos nativos; do outro, o ardor, a coragem e a ambição do mameluco,

para poder se embrenhar num lugar inóspito e vencer os obstáculos que se lhe

apresentavam pela frente. Dessa mestiçagem se formou o pioneiro que desceu do

Norte para povoar o Sul (PROENÇA, 1992: 55).

A partir dessa pequena introdução é possível perceber que a demarcação de

territorialidades, onde a posse da terra foi o ponto de partida para a construção de uma complexa

rede de poder e representações, que incluía o exercício de autoritarismo e violência. Incluía

também a construção de uma ideia, de uma identidade, de uma natureza, de uma paisagem, de

um Pantanal adaptável aos moldes da memória e de fácil enquadramento, que cultivasse em seu

3 Ao falar sobre as obras memorialistas na historiografia do MT-MS, Osvaldo Zorzato assinala que “no conjunto

compõe um estoque de lembranças, isto é, a memória que se quer preservar. Constrói-se um quadro de referências

sem um viés interpretativo ou diálogo com outras construções historiográficas, a não ser como fonte de

informações e mais para justificar do que para explicar” (1998: 10).

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interior elementos que auxiliaram numa bricolagem que une luta, sacrifícios, resignação,

coragem, uma pitada de valentia e uma grande porção de oportunismo coadunando com a

constituição de uma história, de um lugar e que perpetuando o heroísmo, livrou-o de qualquer

atributo que desabonasse a conduta dos precursores.

Adentrando aos pantanais, a posse das terras extrapolava qualquer norma estabelecida

e favorecia a aquisição e formação de grandes propriedades. Foi assim que coube a apropriação

de terras a famílias como Pereira Leite, Costa Marques, Metelo, Gomes da Silva, Rondon, Alves

Ribeiro e muitas outras, iniciando os latifúndios em terras pantaneiras, ou seja, foi assim que se

iniciou a ocupação dos pantanais, cuja justificativa estava calcada no sacrifício e no legado para

as futuras gerações que não hesitariam em comercializar essas mesmas terras, trazendo para o

Pantanal, o outro, o estranho, o alheio, aquele ao qual chamam de “os que vêm de fora”, sem,

contudo deixar cair no esquecimento a memória do pioneirismo.

E, em conformidade com Renato Ribeiro, foi

Através desses pioneiros – que souberam enfrentar as hostilidades do meio ambiente

selvagem, feras, cobras, mosquitos, doenças, falta de estradas, enchentes e até mesmo

a Guerra do Paraguai – o Pantanal foi sendo adentrado, foi-se povoando cada vez

mais até tornar-se um grande curral farto de bois, com uma produção barata,

enriquecendo assim nosso erário com os seus impostos (RIBEIRO, 1984: 20).

Desdobramentos de um discurso que justificava a lapidação de um pseudo-paraíso

constantemente revisitado e povoado pelo espírito pioneiro do passado, do bandeirante

desassombrado que deixou seu legado expresso nas palavras do bispo diocesano Dom Ladislau

Paz, que em visita ao Museu Regional do Mato Grosso em 02 de fevereiro de 1960, faz no livro

de visitas o registro de suas impressões sobre o que chamou de obra de brasilidade,

manifestando sua simpatia e admiração por figuras extraordinárias, dignas de ser imitada pela

juventude como exemplos de virtudes bandeirantes. Entre tais figuras estava “Nheco Gomes da

Silva, varão impoluto, destemido, desbravador do Pantanal, que parecia pairar no recinto como

a convidar os jovens visitantes a imitar-lhe as virtudes de bandeirante desassombrado e

continuar sua tarefa altamente altruísta a favor da prosperidade” e que juntamente com ele,

seguiram muitos outros que fizeram do Pantanal, de Corumbá “um corcel indômito” que

aguardava o início de uma vitoriosa corrida. É nessa exaltação de pioneirismo que se assenta

uma memória, cuja glória é/pode ser questionável, escondendo o forjar de uma identidade

alicerçada no poderio político e fundiário.

Segundo Corrêa Filho, o crescimento e organização das fazendas, como iniciado pela

Jacobina, principiavam com a aquisição “da primeira sesmaria que servisse de núcleo, em torno

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dela seriam requeridas as terras contíguas, até que perfizessem o conjunto grandioso”

(1955:20). Em seguida,

A facilidade na aquisição, por título gratuito, de glebas imensas, cujas divisas os

vizinhos longínquos respeitavam, por não lhes minguar terreno bruto, à disposição

de quem o pretendesse fecundar pelo trabalho, transbordamento periódico dos rios,

que tornavam por alguns meses inabitáveis amplas e várzeas submersas, explicam,

mais do que a ambição de domínio ilimitado, a formação dos latifúndios, afeiçoada

as peculiaridades regionais. Equivaliam, sem dúvida, a prova de força do poderio

dos seus mantenedores (CORRÊA FILHO, 1955: 21).

É nesse compasso que se dá a formação dos grandes latifúndios nos pantanais, cujo

governo interno, dispensava ou mesmo afastava gradualmente o governo oficial, cabendo ao

proprietário governar o seu vasto domínio com supremacia e influência econômica e política.

E a Fazenda Jacobina foi a precursora desse molde e era de lá que “irradiava a gente aventureira,

que tomou conta de grande porção do Pantanal, no Taquari, Paraguai e Negro, onde se

afazendou o genro de João Pereira Leite, de nome Joaquim José da Silva4, menino-diabo, em

moço barão de Vila Maria” (CORREA FILHO, 1955: 22)

Para as décadas finais do século XIX, consta o registro das seguintes fazendas:

Palmeiras com 106.025 hectares (despacho de 03 de dezembro de 1894); Rio Negro com

118.905 hectares (despacho de 03 de setembro de 1893); Firme com 176.853 hectares

(despacho de 27 de julho de 1899); Taboco com 344.923 hectares (despacho de 24 abril de

1899); Rio Branco com 384.292 hectares (despacho de 22 junho de 1901) que circundavam e

ocupavam as quatro mais importantes zonas e/ou sub-regiões do Pantanal, ou seja: Nhecolândia,

Paiaguás, Nabileque e Abobral. Longe estava tais extensões de terras das doações e medições

iniciais das sesmarias, o que se convencionou afirmar é que estava em jogo o povoamento e

ocupação de extensas áreas, onde numa mesma propriedade fazia-se necessário uma grande

quantidade de terras, pois parte das mesmas ficava submersa pelas águas das cheias por um

período de quatro meses. O que não se cogitou foi o fato de que estas terras nas mãos de um

4 Joaquim José da Silva – o barão de Vila Maria – ocupou no século 19, as terras localizadas entre os rios Taquari,

Paraguai e o Negro, marcando a história da ocupação do Pantanal sul-mato-grossense. Proprietário de gado, terras

e trabalhadores escravizados, destacou-se no cenário político e social, ocupando cargos importantes na cidade de

Corumbá como juiz de paz e vereador. Como outros proprietários das terras provincianas de Mato Grosso, o barão

serviu-se da mão-de-obra cativa para cultivar em sua principal fazenda, a Piraputangas, os alimentos necessários

ao abastecimento da vila de Albuquerque e Santa Cruz de Corumbá. Figura emblemática, o barão foi pioneiro na

formação dos latifúndios do sul de Mato Grosso ao fundar no Pantanal a histórica Fazenda Firme, transformada

por seu filho Nheco, no mais importante centro pecuarista regional. [...] A imagem de Joaquim José Gomes da

Silva foi descrita como herói de guerra, como desbravador ou pioneiro e como o fazendeiro lavrador que no distrito

de Albuquerque legou aos pantaneiros a ocupação de uma das mais lendárias regiões do Pantanal – a Nhecolândia

(CANCIAN, E.; BRAZIL, M. C. O Barão de Vila Maria: poder, história agrária e memória em Mato Grosso. In:

BORGES, F.T. de Miranda; PERARO, Maria Adenir; COSTA, Viviane G. da S.. (Org.). Trajetórias de Vidas na

História. 1 ed. Cuiabá: EDUFMT, 2009, v. 1, p. 93-116).

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único proprietário mantinha o território impenetrável, privilegiando um grupo muito restrito de

povoadores.

Após a Guerra do Paraguai, em meados de 1879, Joaquim Eugênio Gomes da Silva – o

Nheco5, inicia a reconstrução da fazenda, de cujo núcleo - a Fazenda Firme, se estendiam os

intermináveis campos, de solo arenoso, onde a vegetação renovada anualmente pelas águas,

fazia multiplicar o rebanho. Onde aguadas, lagoas, baias, vazantes e corixos armazenavam água

e o sal necessário para manutenção do gado, cercado por carandás, bocaiuvas, babaçu e demais

palmeiras.

Em obra memorialística, José de Barros Neto descreve que o Pantanal da Nhecolândia

é assim como o Éden; não há o que tirar nem por. É a origem de tudo, é a felicidade,

o amor, é Deus... é onde ainda se encontra a solidão em meio a tantos seres; é onde

ainda se pode acreditar nos vivos que nos rodeiam; é onde ainda o homem se sente

pequenino ante o Ser Supremo e, humildemente submete-se ante a grandiosidade da

natureza (1979:19-20).

É também nas memórias de José de Barros Netto, que encontramos o registro da

primeira “grande” enchente datada de 1879, na Fazenda Manga, localizada à esquerda do rio

Paraguai, considerada a área mais alagável na região de Corumbá. Segundo seus relatos, sendo

totalmente inundada, a Fazenda Manga, adentra “sertão” em busca de terra firme onde o

“Nheco” funda a Fazenda “Firme”, origem da Nhecolândia6, numa área de 600 léguas

quadradas de campos naturais dos pantanais com limites ao norte pelo rio Taquari, ao sul pelo

rio Negro, ao poente pelos rios Taquari e Paraguai e ao nascente por uma linha imaginária

ligando os rios Taquari e Negro, separativa dos municípios de Corumbá, Coxim e Rio Verde.

Esse autor descreve a Nhecolândia como

sertão bravio era a Nhecolândia [...] onde reinavam as onças pintadas e pardas, a

“boca de sapo”, a sucuri e a cascavel, fauna riquíssima, dispersa entre miríades de

lagoas vazantes, cerrados e baixadas. Pastagem abundante e farta, quase isenta de

pestes, era verdadeiramente salubre. O gado bovino encontrou uma região como se

5Joaquim Eugenio Gomes da Silva, alcunha de NHECO, nascido em São Luiz de Cáceres, filho do Barão de Vila

Maria. Nheco figura como um dos pioneiros desbravadores da região dos pantanais, cuja saga se inicia com o

retorno a Fazenda Manga e posterior a reconstrução da fazenda Firme em 1880, culminando com a Nhecolândia,

sub-região do Pantanal que recebe esse nome em homenagem ao pioneiro desbravador. 6 A título de conhecimento no Mapeamento das unidades de paisagem das sub-regiões da Nhecolândia, realizado

pela Embrapa Pantanal, “observou-se a ocorrência de áreas savânicas sazonalmente inundáveis (41%), áreas

savânicas não inundáveis (16%), áreas de campo sazonalmente inundáveis (15%) e áreas florestais não inundáveis

(10%)”. A região é, portanto, constituída por aproximadamente 60% de vegetação de savanas que são formadas

por estratos de vegetação arbustiva e herbácea. A análise do mapa permitiu constatar que a maioria das savanas

está localizada em áreas sazonalmente inundáveis, onde a dinâmica de inundação varia em função da intensidade

e distribuição das chuvas (2011: 7). As principais áreas de pastagens na sub-região da Nhecolândia compreenderam

as áreas savânicas sazonalmente inundáveis (41%) e as áreas de campo sazonalmente inundáveis (15%), porém, o

uso dessas áreas para pastejo depende do grau de inundação (2011:10).

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fosse seu verdadeiro habitat e os primeiros homens conheceram o Eldorado para a

criação (BARROS NETTO, 1979: 36).

Resumidamente podemos dizer que a sub-região da Nhecolândia, compreendendo

19,5% da planície pantaneira, agrega áreas dos municípios de Rio Verde de Mato Grosso,

Aquidauana e Corumbá, constituindo-se uma área de 600 léguas quadradas, o que corresponde,

em unidades de medidas atuais a 21.609 km2 (ou mais de 5 vezes a área do município de

Dourados, MS). Geometricamente a área em questão, está associada a um triângulo isósceles

com base de 50 léguas e altura relativa a essa base de 25 léguas e tomadas as medidas em

unidades do sistema métrico decimal, teríamos um triângulo com um lado de 300 km e dois

lados com 212 km cada um; outro comparativo que pode ser feito é com unidade agrária de área

– 600 léguas quadradas corresponde a 2.160.900 hectares e ainda é possível dizer que essa área

é a terça parte do atual município de Corumbá, MS, ou quase a área do atual Estado do Sergipe

(21.915 km2). A Nhecolândia ocupava 0,25% do território brasileiro e em sua grande maioria

as fazendas tinham entre 4 a 5 léguas. Ficou conhecida como o ELDORADO DA PECUÁRIA,

pois possui características ambientais, ideias para criação bovina, sendo terras planas, de modo

geral de baixa fertilidade e arenosas; precipitações concentradas nos meses de outubro a março

com índices que variam, em média, de 1.000 a 3.000 mm anuais e a enchente de rios não tem

influência sobre a pecuária, enchente apenas nas proximidades. As fazendas são em sua grande

maioria interioranas, as pastagens são abundantes e as chuvas locais afetam as pastagens

(espécies resistentes – capim-arroz, capim-felpudo localizados nos brejos e lugares mais

fundos).

Trata-se de uma região promissora e cortada por muitas vazantes com centenas de lagoas

– baías, cerrados, caponais, matas leves e salinas, cujo solo arenoso propício para a plantação

de pastagens (brachiárias, pangola, costela e tio Pedro) possui terras de aluvião que fornecem

uma vegetação rica em suplementação mineral. Aliado a esse fato, o rio Taquari constitui-se

como um marco divisório entre as sub-regiões da Nhecolândia e Paiaguás que por sua vez, se

constituem nas sub-regiões de impacto ambiental mais incisivo.

Segundo Figueiredo (1994), nas décadas finais do século XIX, os conhecimentos que

margeavam a criação e a manutenção do rebanho bovino eram muito rudimentares, em campos

indivisos com pastagens brutas, cujo trabalho básico consistia em reunir o gado bravio, conduzir

as vaquejadas, separar, castrar e marcar. Nos barreiros, o gado encontrava o sal necessário

lambendo e comendo barro, bebendo água, em períodos de longas secas, em contrapartida o

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pisoteio compactava o solo intensivamente, dificultando a absorção da água. Consta nos

registros, para esse período, a reorganização da fazenda Firme – próxima ao encontro dos rios

Taquari e Negro – logo passou a absorver várias áreas ao seu entorno. A Nhecolândia, composta

por parentes e pessoas do relacionamento e da confiança dos proprietários, os quais

desenvolvendo laços de “boa vizinhança”, que consistiam em nada mais que o domínio da terra

e da mão de obra empregada. Mesmo dispondo de pouco ou nenhum recurso financeiro, tinham

a possibilidade de acercar-se de pequenos lotes perfazendo no conjunto uma grande área, que

inicialmente serviu para constituir capital juntamente com os recursos advindos do próprio

desbravamento.

Em conformidade com Banducci (2007), além de contar com a ajuda de parentes vindos

do norte de Mato Grosso, Nheco contava também “com a força de trabalhadores de origem

diversa [indígenas da região, negros e mestiços do Norte e do Centro Sul pantaneiro]”, e nesse

sistema de compadrio, consolidou-se a produção bovina “sob o domínio pastoril e sob o

controle de basicamente duas famílias: os Gomes da Silva e os Barros, cujos descendentes

detêm até hoje, a posse de parte considerável das terras do local” (2007: 17).

Encontramos apontamentos a esse respeito em Virgílio Corrêa Filho ao escrever sobre

a Nhecolândia e seus pioneiros, no que tange ao poder pecuniário dos mesmos e a possibilidade

da aquisição das terras. Condição essa que, nas palavras do autor, “pouco a pouco, porém foram

melhorando as circunstâncias, à medida que se povoava a região, com parentes e amigos do

pioneiro, que lhe atendiam aos insistentes convites para se fixarem nos promissores campos

vizinhos” (1955: 27), constituindo o que Alves denomina de “a grande obra histórica de um

conjunto de pioneiros” (2004: 35). Aspectos encontrados em manuscritos e apontamentos de

José de Barros, revelam a estruturação política e a aquisição de propriedades pelos pantanais,

como forma de estabelecer e de ordenar a exploração agropastoril por seus descendentes e

agregados.

Em paralelo a esses acontecimentos, o rebanho bovino aumentava consideravelmente

inviabilizando o avanço e a apropriação de novas áreas na composição da Nhecolândia, ou seja,

enquanto os rebanhos ainda não somavam um número significativo e a criação de bovinos se

dava no molde extensivo, os pioneiros e seus descendentes avançavam para outras áreas, e na

medida em que foi aumentando o rebanho, diminuiu-se a disponibilidade das áreas para

ocupação. Desse modo, aumenta-se a produção do rebanho e diminui-se a reprodução das

propriedades, inviabilizando novas posses. Por sua vez, os descendentes buscavam campos de

formação como direito, medicina e agronomia, fazendo das cidades seu ambiente e exercendo

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funções administrativas e públicas, mantendo vínculos familiares e fortalecendo vínculos

políticos e econômicos, favorecendo o trânsito de interesses e de ideologias do grupo envolvido.

E nas fazendas, passou-se a utilizar a mão de obra contratada sazonalmente, quando nos picos

do trabalho com o rebanho, produzindo relações sociais e de trabalho diferenciadas e mesmo

de estranhamento entre empregado e o agora patrão, que não conta mais com a confiança de

seus parentes e agregados.

Criam-se associações como o Centro de Criadores da Nhecolândia que estabelece

normas e regras – como a lei seca – para a convivência e a permanência dos empregados nas

fazendas, com isso aprimora-se e se permite a manutenção da unidade e a progressiva

autonomia entre os criadores da região, compreendida entre os rios Taquari, limites de Corumbá

com Coxim, Negro, Miranda e Paraguai. Entre os investimentos do Centro de Criadores,

constava a construção de regos d’água, escavações em busca de água em períodos de secas

(1936-1938), a construção de pontes como forma de manter o “desbravamento” sem o custeio

do município de Corumbá e do estado de Mato Grosso, mantendo assim o “progresso material

e a moral” da Nhecolândia, revelando inflexões discutíveis e tangenciando o mérito de suas

intenções e de poder.

Verificamos a ocupação das áreas inundáveis por aventureiros em busca de riquezas

como couro e penas, e com entusiasmo, chegavam mais criadores para ocupar novas áreas onde

“a qualidade e a imensidão daquela terra, palco de guerra” era propícia para a atividade pastoril,

com recursos naturais vistos como inesgotáveis e provenientes de suas inundações tão benéficas

para investimentos agropastoris. Gradativamente, as transformações operadas no meio

ambiente se processaram através da formação e introdução de espécies alheias ao ambiente;

pela introdução e cruzamento de raças como o zebu, pela exploração da madeira, pelo

desmatamento, pela comercialização de penas, peles e couros, pela exportação de espécies da

fauna e flora – plantas ornamentais, em escala acelerada.

Consta nos estudos de Alves (2004) que foi a partir das primeiras décadas do século

XX, que na Nhecolândia passou a se utilizar, além das trincheiras de taquara, os cercamentos

dos campos para amealhar o gado a uma venda mais sistemática como forma de aumentar o

capital, coincidindo com a compra do primeiro automóvel em 1925 para a fazenda.

Curiosamente, nos relatos de José de Barros consta uma viagem que fez de caminhão saindo da

sua fazenda até Corumbá em outubro de 1937, onde registra ter observado ao longo do caminho,

vestígios de uma grande estiagem e a travessia do gado às margens do rio Paraguai para não

morrerem de sede, pois muitas aguadas e baías estavam secando e em janeiro de 1938, no

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registro de suas lembranças, escreve “continua a escassez de chuvas torrenciais; as que aqui

caem são de manga e intervaladas de grande calor” (1987: 88). Faz constar o primeiro registro

de uma estiagem prolongada que permitiu o tráfego de caminhão e automóvel, o que aponta

para a abertura de estradas – um elemento modificador da paisagem pantaneira – cuja finalidade

não seja apenas uso de carros de boi e condução de boiadas.

As inundações, por um lado, atuavam como limitadoras, mas, por outro lado,

possibilitavam o cultivo de forragens e de pastagens usadas como suplemento alimentar do

rebanho no período das chuvas – das enchentes, que renovavam pastagens e abasteciam rios,

córregos e baías garantindo a saciedade do rebanho e aguçando ainda mais a avidez pela

pecuária. Com a abertura de novas áreas, a ação do desmatamento cresce nas cordilheiras onde

predomina a savana florestada característica específica das sub-regiões da Nhecolândia, de

Corumbá e de Aquidauana. Alargando os campos de pastagens e, consequentemente, a área de

espraiamento das águas, inundando áreas até então inalcançadas pelas águas. As cordilheiras,

também conhecidas como terra firme, são como microrrelevos, uma espécie de duna eólica,

geralmente dispostos em aproximadamente 4 (quatro) metros ou mais acima do leito de várzeas

e rios e de aproximadamente 2 (dois) metros ou mais acima do solo dos campos. A vegetação

das cordilheiras consistia em compactos bosques de novateiros, figueiras, jenipapos e

ingazeiros alinhados com ligeiras elevações arenosas acompanhando os rios e os corixos que

atuando como fluxo de água intermitente, alimentavam os rios e lagoas no período das cheias.

A vegetação atuava como reguladora, ou seja, nas cheias impedia o espraiar das águas e na seca

como fator atenuante do vento, evitando os danos da erosão eólica, além de ser um viveiro

natural de aves. Com o desmatamento e com a implantação de pastagens cultivadas que se

adaptam melhor nas cordilheiras por se tratar de solo mais arenoso, ocorre um desequilíbrio

que dificulta a manutenção do sistema ecológico e hidrológico causando uma sobrecarga nas

cordilheiras.

O que o autor chama de alteamento gradativo das terras está associado ao processo de

erosão que acumula finas camadas de detritos transportados pelas inundações provenientes da

devastação das áreas. Acrescenta ainda, ao longo de suas ponderações, que a facilidade na

aquisição de terras favoreceu a formação de extensas propriedades – vencendo o temor pelas

ações e investidas dos indígenas – mantendo um trabalho em conjunto cujo objetivo era saber,

persuadir e conduzir homens capazes de povoar e de implantar atividades agropastoris, fato

evidenciado por José de Barros em Lembranças. Identificamos a fazenda Jacobina e a sub-

região da Nhecolândia como exemplos de dois grandes latifúndios comandados por uma forma

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de administração praticamente senhoril decorrente das condições geográficas e econômicas de

um governo particular que dispensava a assistência em âmbito social, ou seja, a produção

agrícola, a pecuária, a extração de madeira e a caça. Alambiques, teares, alfaiates, carpinteiros

fornecendo o necessário para a manutenção e o controle dos empregados e suas famílias,

mantendo a propriedade em contínuo e pleno funcionamento, evitando qualquer interferência

exterior ao sistema ali existente.

A desagregação de muitos latifúndios, incluindo a Nhecolândia tem seu início nos anos

1970, com a valorização das terras e com o aumento da densidade demográfica. Muitos

iniciaram o processo de desagregação das terras com a morte dos “seus pioneiros”, cujos

herdeiros não manifestaram vontade na continuidade dos trabalhos e passaram a atuar apenas

como gerentes e administradores. Trata-se de profissionais, fazendeiros e investidores para os

quais o desmatamento era necessário e a extinção de espécies nativas estava associada à

expansão e à limpeza das áreas para agricultura e para a pecuária; aos índices de investimento,

produção e retorno; à invasão biológica nociva às espécies nativas; às pastagens artificiais; à

limitação dos recursos naturais; à introdução de plantas e animais exóticos; à caça por diversão;

às queimadas que aos poucos destruíram os habitats naturais, levando à extinção e ao

decréscimo de muitas espécies. Essa era a forma de “engrandecer o Pantanal”.

Segundo Queiroz, em muitos casos, a manutenção dos domínios herdados estava

concatenada com as políticas territoriais, onde “o domínio do território constituiu para essas

classes uma importante fonte de legitimação de seu domínio sobre a sociedade, e o dogma da

unidade e da integridade serviu frequentemente de pretexto para o esmagamento de movimentos

contestatórios [...]” (2003: 21). Proeza semelhante ocorreu no Campo dos Descalvados, quando

a política nacionalista implantada por Vargas no Estado Novo, impulsiona e favorece o

desmembramento de latifúndios que se desdobram em dezenas de fazendas administradas por

diferentes pessoas, transferindo efetivamente a posse para terceiros, mas mantendo o quadro

original praticamente inalterado, eliminando um latifúndio incômodo e improdutivo em sua

totalidade, que resulta em dezenas de fazendas produtivas e aptas a receberem investimentos e

recursos governamentais, para explorar a capacidade das pastagens com a multiplicidade de

cercas formando múltiplos cercados para abrigarem os rebanhos (Revista Brasil Oeste, 1964-

1965).

Como consequência da redução das áreas florestadas, ocorrem mudanças e/ou alterações

nos ciclos hidrológicos que vão afetar diretamente o equilíbrio do meio ambiente, resultando

em imensas áreas de pastagens que dobraram seu tamanho entre os anos de 1970-1990. É o

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caso do Pantanal do Paiaguás e da Nhecolândia, que atingem uma área de 246.740 ha de área

desmatada para formação de pastagens (SILVA et al., 1992). Foi também na fazenda Guanandi

na sub-região da Nhecolândia, que foi implantado o primeiro curral australiano, um cercado

redondo com subdivisões, capaz de abrigar uma boiada de 3 (três) mil cabeças, facilitando a

classificação do rebanho, sendo o modelo adotado por muitos pecuaristas.

Nos discursos proferidos por memorialistas e pioneiros não se acrescenta o fato de que

agropecuária é responsável, em grande parte, pelo desmatamento e pelo assoreamento de rios

como o Taquari – integra a Bacia do Alto Paraguai com uma extensão de 28.000 km² – que, em

virtude da rápida expansão da agricultura e da pecuária, desordenadamente foi reconfigurando

as paisagens pantaneiras com um processo de erosão ímpar a partir dos anos de 1970. O

resultado dessa ação é uma área de inundação permanente de aproximadamente 11.000 km². É

justamente em decorrência do assoreamento que ocorre a inundação permanente, agravando

ainda mais os impactos ambientais nas margens e adjacências do rio Taquari, onde os

arrombados comprometem o curso das águas, rompendo e rasgando suas margens, o que gera

graves efeitos na sucessão vegetal e da ictiofauna causando um deserto aquático, expulsando

em grande número as populações ribeirinhas rumo às cidades, o que resulta no acréscimo da

população periférica. Em função do assoreamento, o extravasamento do rio invade áreas e

expulsa pequenos criadores e sitiantes, como também fazendeiros que buscam se acercar de

mais áreas provocando mais mudanças econômicas e socioambientais.

Gradativamente se construiu uma história de luta e tenacidade justificando parte da

história pantaneira ou, conforme escreve Rondon (1972) na epígrafe do seu livro “Recursos

Econômicos do Mato Grosso”:

Através das páginas deste livro o leitor vai receber as mensagens dos sertões de Mato

Grosso. O mensageiro, é um dos seus filhos, que para receber as notícias a transmitir

palmilhou sertões – a pé, a cavalo, em carro-de-boi, em canoa, em jeep, e até em

jangada. Venha, os nossos sertões têm muito o que lhe oferecer, inclusive a felicidade.

Os aspectos descritos por Rondon abrangem a economia, englobando aspectos da

geografia física e econômica, bem como humana, apresentando o potencial do Estado e sem

qualquer nuance de esquecimento, de seu povo valente e pioneiro que pacientemente espera a

colaboração de brasileiros dispostos a ocupar suas terras, prepará-las e convenientemente entrar

nos dias vindouros de progresso e desenvolvimento, cujos recursos naturais desempenham

papel essencial. Os mesmos recursos que atraíram os “bravos bandeirantes” que construíram o

Pantanal tal qual o encontramos na historiografia memorialista. Trata-se da oferta do pacote

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completo, com a descrição dos meios de transportes utilizados e de quebra, incluindo a

felicidade.

A junção de tais elementos permitiu estabelecer laços políticos e econômicos essenciais

para a construção ou quiçá, aqui ousamos dizer a “invenção de um espaço singular” - o Pantanal,

de um paraíso às avessas cuja valoração está centrada na posse da terra e comercialização da

natureza. Colocando o agronegócio na rota da competitividade dos grandes mercados

consumidores, intensificando e ampliando a conversão de áreas florestadas em pastagens,

gerando consequências ambientais negativas, dificultou-se a permanência de pequenos

produtores, pescadores e sitiantes, além dos demais grupos – como dos trabalhadores nas

fazendas - que se viram ameaçados e fragilizados. Ações que provocaram alterações na

percepção e sensibilidade do homem para com a natureza e suas interferências nas estratégias

adotadas para permanência na planície inundável. Cenário esse, onde as perspectivas de

progresso e civilidade, do agenciamento de recursos à geração de lucros, centrava-se na

substituição e modificação dos ecossistemas, na simplificação dos objetivos e interesses frente

aos inequívocos do atraso.

A natureza pantaneira passou a ser meramente um recurso disponível, passível de

exploração, perpetuando práticas como o desmatamento e queimadas, impactando

violentamente a cadeia hídrica e os ecossistemas da planície inundável, bem como marcando

seus limites e instaurando territorialidades. Aspectos encontrados em manuscritos e

apontamentos de José de Barros, revelam a estruturação política e a aquisição de propriedades

pelos pantanais como forma de estabelecer e de ordenar a exploração agropastoril por seus

descendentes e agregados. Encontramos também, apontamentos a esse respeito em Virgílio

Corrêa Filho, ao escrever sobre a Nhecolândia e seus pioneiros no que tange ao poder pecuniário

dos mesmos e a possibilidade da aquisição das terras. Mesmo dispondo de pouco ou nenhum

capital tinham a possibilidade de acercar-se de pequenos lotes perfazendo no conjunto uma

grande área, que inicialmente serviu para constituir capital juntamente com os recursos

advindos do próprio desbravamento.

Assim, compreender as realidades históricas implica em entender que o lugar integra

contextos mais amplos que por sua vez, englobam as condições econômicas, políticas, culturais,

sociais e das condições vividas por seus habitantes.

Referências Bibliográficas

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