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“UM CANTO LIBERTÁRIO” CONTRA “O PRECONCEITO RACIAL”: UM DESFILE DA NENÊ DE VILA MATILDE E DO PARAÍSO DO TUIUTI E O COMBATE AO RACISMO EM SALA DE AULA. EMERSON PORTO FERREIRA 1 Resumo O seguinte artigo tem como proposta articular dois desfiles e sambas de duas escolas de samba, uma de São Paulo e outra do Rio de Janeiro, como fonte histórica para a discussão de racismo e desigualdade social, e as proximidades entre o carnaval e o discurso histórico, a serem debatidos em sala de aula. A seguinte apresentação é um desdobramento da pesquisa de mestrado na PUC-SP, no Programa de Educação: História, Política, Sociedade, sobre os sambas afro-brasileiros da Nenê de Vila Matilde, como um recurso para mediação ao ensino de história em sala de aula na discussão da Lei 10.639/03. Entendemos que a música, e aqui a música popular, seja um importante campo a ser explorado no ensino de história devido ao seu caráter imaginativo e simbólico, existente em suas letras e na sua produção. No caso da escola de samba, o próprio desfile e sua simbologia são fortes representações de uma prática de “ouviver” ouvir e viver, que atingem a escuta na emoção, na intelectualidade. Trazemos a discussão dois desfiles: o da Nenê de Vila Matilde, escola da Zona Leste de São Paulo, de 2013 sobre a busca de igualdade tendo como ponto de partida a Revolta dos Búzios, e a busca de direitos dos diversos movimentos sociais no Brasil; e o samba da Paraiso do Tuiuti de 2018, escola do morro de São Cristóvão, que abordou a problemática do trabalho escravo e das permanências de tal prática em nossa sociedade, que se refletem no atual contexto de golpe e de retiradas de direitos do atual (des) governo brasileiro. Sendo assim, os dois sambas se complementam em suas narrativas, uma vez que a busca da liberdade é um canto libertário a ser buscado, para a quebra do cativeiro social ainda enfrentado pelo negro em sociedade. Os dois desfiles agem como uma força que transita entre o conhecimento acadêmico e o escolar, como um conhecimento de um grupo de origem negra, na produção de um currículo transgressor, para abordar, alertar e denunciar o racismo em sala de aula. Palavras-Chave: Escola de Samba, samba enredo, racismo, ensino de história. 1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Mestre em Educação, financiamento CNPq.

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“UM CANTO LIBERTÁRIO” CONTRA “O PRECONCEITO RACIAL”: UM DESFILE

DA NENÊ DE VILA MATILDE E DO PARAÍSO DO TUIUTI E O COMBATE AO

RACISMO EM SALA DE AULA.

EMERSON PORTO FERREIRA1

Resumo

O seguinte artigo tem como proposta articular dois desfiles e sambas de duas escolas de

samba, uma de São Paulo e outra do Rio de Janeiro, como fonte histórica para a discussão de

racismo e desigualdade social, e as proximidades entre o carnaval e o discurso histórico, a

serem debatidos em sala de aula. A seguinte apresentação é um desdobramento da pesquisa de

mestrado na PUC-SP, no Programa de Educação: História, Política, Sociedade, sobre os

sambas afro-brasileiros da Nenê de Vila Matilde, como um recurso para mediação ao ensino

de história em sala de aula na discussão da Lei 10.639/03. Entendemos que a música, e aqui a

música popular, seja um importante campo a ser explorado no ensino de história devido ao

seu caráter imaginativo e simbólico, existente em suas letras e na sua produção. No caso da

escola de samba, o próprio desfile e sua simbologia são fortes representações de uma prática

de “ouviver” ouvir e viver, que atingem a escuta na emoção, na intelectualidade. Trazemos a

discussão dois desfiles: o da Nenê de Vila Matilde, escola da Zona Leste de São Paulo, de

2013 sobre a busca de igualdade tendo como ponto de partida a Revolta dos Búzios, e a busca

de direitos dos diversos movimentos sociais no Brasil; e o samba da Paraiso do Tuiuti de

2018, escola do morro de São Cristóvão, que abordou a problemática do trabalho escravo e

das permanências de tal prática em nossa sociedade, que se refletem no atual contexto de

golpe e de retiradas de direitos do atual (des) governo brasileiro. Sendo assim, os dois sambas

se complementam em suas narrativas, uma vez que a busca da liberdade é um canto libertário

a ser buscado, para a quebra do cativeiro social ainda enfrentado pelo negro em sociedade. Os

dois desfiles agem como uma força que transita entre o conhecimento acadêmico e o escolar,

como um conhecimento de um grupo de origem negra, na produção de um currículo

transgressor, para abordar, alertar e denunciar o racismo em sala de aula.

Palavras-Chave: Escola de Samba, samba enredo, racismo, ensino de história.

1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Mestre em Educação, financiamento CNPq.

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O quilombo do Rio encontra o quilombo de “Sampa”.

O ano de 2018 gerou no mundo do carnaval um ponto de reflexão e de virada no modo

como enxergar as apresentações das escolas de samba no sambódromo. Isso aconteceu devido

a um desfile despretensioso na madrugada de domingo para segunda, quando uma escola

pouco tradicional do morro do São Cristovão botou literalmente o dedo na ferida da atual

situação de caos intencional gerado pelo (des) governo do atual presidente do Brasil, no

desfile, retratado como o vampirão.

Um pouco mais distante no tempo, no ano de 2013, no sambódromo do Anhembi, uma

escola da Zona Leste de São Paulo, no bairro da Vila Matilde, questionava em seu desfile o

ideal de igualdade pelas diferenças, onde, tal enredo tinha como eixo narrativo a Revolta dos

Búzios, ocorrida na cidade de Salvador, no ano de 1798. Tal enredo versava que tal revolta

ocorrida no período colonial, promovida por negros em sua grande maioria, era um modo de

propagar os ideais de igualdade dentro da sociedade brasileira.

Duas realidades distintas. Dois governos políticos distintos. Porém duas realidades

iguais: a de questionamento da ordem existente dentro da desigual e racista sociedade

brasileira, sociedade essa, feita para funcionar dentro desta lógica estrutural de punir o

“outro”. De punir o diferente.

A escola do Rio de Janeiro é o Paraíso do Tuiuti. A Tuiuti foi fundada no ano de 1952,

encabeçada pelos sambistas Nelson Forró e Júlio Mattos. A agremiação é fruto do Bloco dos

Brotinhos, que possuía dentro da comunidade do morro de São Cristovão uma grande

simpatia, diferente da escola de samba do bairro, a Paraíso das Baianas que não possuía

grande atenção do povo. Sendo assim se juntou a organização da escola de samba com a

espontaneidade do bloco, o que fez gerar o Paraíso do Tuiuti. O morro do São Cristovão é

vizinho do morro do Chapéu Mangueira, onde se encontra uma das potências do samba a

Estação Primeira de Mangueira, escola que é madrinha da Tuiuti.

Já a escola de São Paulo, diferente da Tuiuti, possui em sua fundação certo

pioneirismo dentro da cidade de São Paulo. A Nenê é a segunda escola de samba fundada na

cidade, e a primeira a ser fundada na Zona Leste. A escola nasce no ano de 1949, a partir das

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diversas rodas de tiririca (espécie de capoeira) e de pernadas na região da Vila Matilde e Vila

Esperança. Assim no dia primeiro de janeiro de 1949, no cartório surgiu a escola e o seu

nome: uma alusão ao jovem que versava com um pandeiro do lado de fora, o Seu Nenê. E de

lá pra cá a escola colocou sob o signo da negritude sua principal identidade, conquistando ao

longo de sua história 11 títulos no grupo especial. A escola ainda é uma das pioneiras na

temática africana no carnaval de São Paulo, além de ser apadrinhada pela Portela.

E aqui retorno ao objetivo desse artigo: mostrar por meio de dois sambas enredos, a

possibilidade do uso do samba como recurso didático no combate ao racismo em sala de aula.

No seu desfile, a Tuiuti colocou na passarela o seu Quilombo Tuiuti, afirmando que a escola

de samba é um símbolo de resistência da negritude dentro da sociedade urbana. Já a Nenê não

só em 2013, mas ao longo de seus diversos enredos colocou em seu codinome a alcunha de

Quilombo do Samba, codinome esse ao qual a escola é conhecida no mundo do carnaval.

O quilombo Tuiuti, com o quilombo do Samba. Uma escola do Rio de Janeiro, outra

de São Paulo. O ano de 2018, com o ano de 2013. Duas realidades distintas que versam sobre

praticamente um mesmo princípio: o de igualdade e respeito à diferença, bem como o fim da

exploração e fim dos direitos, principalmente dos negros. Ao longo desse artigo iremos

refletir sobre a importância dessa quebra tecnicista e racista que o currículo caminha, em uma

clara construção na objetificação do “outro”, e a importância da descolonização do currículo.

Em um segundo momento, pontuaremos a importância que o samba enredo pode possuir

dentro do campo do ensino de história, onde, colocaremos aspectos do simbólico e do

imaginativo que o samba possui, além de seu caráter de resistência. E ao fim colocaremos a

exposição dos dois sambas em uma análise de seus sujeitos, conteúdo e dimensão estética que

possuem. É o quilombo de lá, ensinando com o quilombo de cá, em um recurso de afirmação

da negritude.

“Lutar e acreditar”: a busca pela descolonização e ao enegrecimento do currículo.

Raça é um conceito do século XIX empregado pelas nações europeias durante o

neocolonialismo, para demonstrar a superioridade do branco perante o negro. Entender o

sentido de raça esbarra, também, na forma em que respondemos a tal afirmação. Ainda no

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século XXI, o termo raça permanece em uso por conta do sistema racista em que estamos

inseridos, no qual o branco possui privilégios e é socialmente aceito, em contrapartida a uma

visão estrutural a qual o negro é posto de uma forma pejorativa, estereotipada e negativada.

Assim sendo, o combate ao racismo engloba diferentes atores e diversas ações que são

colocadas dentro do cotidiano. Por isso mesmo que o termo raça é resignificado dentro da

afirmação da negritude. Para Nilma Lino Gomes (2005), o termo raça é usado e empregado

como meio de maior proximidade com a condição social do negro. Trata-se de um termo

político e social e não simplesmente uma determinação entre superior e inferior. Maria

Vannuchi (2017) pontua muito bem que a luta antirracista perpassa por meio de uma

visualidade de que existe algo bom e outro ruim, em que se criam assim binarismos sociais.

O racismo é um modo de entrelaçar sentimentos comuns, que nem sempre estão juntos com

respeito ao outro. Como Vannuchi (2017, p.60) comenta:

Cada cultura cria seus limites, mas, na impossibilidade de eliminar as

moções agressivas, as direciona para “fora” do grupo. A imagem do

“estrangeiro” como inimigo, modo de defesa das coletividades, criado para

reforçar a reunião entre pares.

Pensando em nossa sociedade, seria utópico achar que essas bipartições se dissolvam.

Nossa realidade social não foi construída dentro de uma lógica em que o negro estivesse

inserido. Frantz Fanon (1968) em Condenados da Terra irá apontar que a grande arma dos

colonizadores era a imposição de uma configuração de inferioridade perante o outro. É a

construção de uma multicultura que não inclui o diferente, apenas aceita a sua existência, sem

abrir mão de uma cultura, de uma identidade e de uma representação superior. E, assim,

chegamos à mestiçagem brasileira.

Em Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade

negra, Kabengele Munanga (1999) aponta que o discurso da mestiçagem ganha corpo, no

Brasil, no fim do século XIX. Na Europa, a visão sobre o assunto vem acompanhada de um

forte discurso de raça, no qual a mistura entre os homens de cores diferentes não era algo

positivo ao conceito de nação. O discurso da mestiçagem é mais um modo de impor

hierarquias de superioridade e uma classificação para o outro.

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E é nessa construção que se coloca a construção de um “outro”: aquele indivíduo que

não existe, ao qual está longe de minha realidade, distanciado do meu tempo, em que não

posso me identificar com sua cultura e realidade. Uma persistência da mesmidade, como

Carlos Skliar (2003) aponta, onde este outro ainda permanece em uma construção colonial de

sua existência, em uma espacialidade da criação de um não lugar, que aparece na

“distribuição do outro no espaço da mesmidade e num espaço outro, sobre a negação e

afirmação dos espaços” (SKLIAR, 2003, p.103), um reflexo da sociedade brasileira, que

tolera excluindo. As zonas espaciais não se encontram somente no território, mas, também em

aspectos de nomeação e de jogar fora o indesejável que foi nomeado.

É nesse contexto que a Lei 10.639/03, que altera a LDB, coloca a obrigatoriedade de

um ensino da cultura e história afro-brasileira e africana. Tal Lei acentua a importância de

uma readequação do currículo que deveria a partir de então se voltar para este “outro” que foi

apagado dentro da construção do ensino. E nesse caso, a atuação do movimento negro foi

fundamental para que se quebrasse tal paradigma. Descolonizar o currículo é o que desde

2003 se tenta na desgastante e complicada luta da implementação da Lei federal.

Uma educação voltada para o reconhecimento, assim como para a formação de

atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos (GOMES, 2005) em respeito à cultura de

matriz africana. Na afirmação e empoderamento da identidade negra, em um processo de

construção pessoal e social e elaborada individual e socialmente de forma diversa. Nesse

ponto, é pensar de uma forma intercultural de ver a diferença, passando longe de uma visão

colonizada do multicultural, onde, se aceita “outro” sempre com a prerrogativa de um, porém.

É a quebra de uma homogeneização, e a busca pela construção de redes interculturais, na

mescla de diferenças e da busca de uma alteridade que devemos promover o enegrecimento

do currículo.

Petronilha Gonçalves (2010) pontua que o currículo existente embora verse pela

diversidade, não desenvolve uma igualdade dentro da formulação e construção do processo

histórico em sala de aula. Fazer um enegrecimento seria nas palavras de Petronilha (2010, p.

41) falar a “respeito à maneira própria como os negros se expõem ao mundo, ao o receberem

em si. Por isso, enegrecer é face a face em que negros e brancos se espelham uns nos outros,

comunicam-se, sem que cada um deixe ser o que é”. É a construção de uma igualdade a partir

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da diferença, na quebra e na desconstrução de privilégios e representatividade positiva do

branco e no alijamento do negro dentro da história. Não seria o retirar o branco da história,

mas colocar de maneira positiva o negro, ocasionando um acolhimento de todos os grupos

raciais, propiciando um conhecimento compreensivo para a construção de uma sociedade

mais justa, e em uma educação que deixe de ter um sentido tecnicista, onde o aluno se torna

um investimento “bancário”.

É a busca de uma educação humanizada, que emancipe o aluno enquanto sujeito e que

desvele a lógica colonial e multicultural que ronda o nosso meio educacional e que impede o

empoderamento de jovens, crianças e adultos negros (ou não) dentro da escola. Tal Lei,

apesar de suas questões de alcance e implementação, é um forte documento que busca uma

ampliação no modo de nos relacionarmos com nossa identidade. A obrigatoriedade de

discussão da história e cultura do negro constrói uma educação em que não há um modelo

único a ser almejado, mas uma hibridação de conceitos e culturas para construção do sujeito.

É sair de uma visão da mesmidade, do mito da mestiçagem e de uma lógica de colônia e ir de

encontro ao reconhecimento de um tempo e espaços difusos e em constante mudança, sair de

um daltonismo cultural.

É a inserção de uma africanidade dentro do currículo e nas escolas, em que se

questione novas possibilidades de ver e de sentir o passado. Africanidade é o que Petronilha

define como características que sobrevivem dentro de nossa sociedade após o contexto do

sequetramento de negros da África, que mesmo após o processo de escravidão impuseram

dentro de sociedade suas cultura e participação dentro de nossa história. E isso dentro da

escola é fundamental, pois interculturaliza o contexto escolar, abrangendo os sentidos e a

identidade dos alunos, sejam negros ou não. Assim:

Estudar Africanidade Brasileiras significa tomar conhecimento, observar,

analisar um jeito peculiar de ver a vida, o mundo, o trabalho, de conviver e

de lutar pela dignidade própria, bem como pela de todos os descendentes de

africanos, mais ainda de todos os que a sociedade marginaliza. (SILVA,

2010, p. 50)

A produção de um fortalecimento às diferentes resistências dentro da construção de

uma consciência negra. É a valorização de diversas manifestações que podem ajudar o

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enriquecimento deste enegrecimento do currículo, em uma busca de uma igualdade pela

diferença. Uma luta em que o acreditar se estabelece por diversas estratégias como o samba

enredo.

“Canto a igualdade”: os sambas enredo como recurso didático.

Antes de tudo não quero supor que o samba enredo, bem como, outros ritmos musicais

seja uma maneira de acabar com o racismo, ou de salvar a implementação da Lei 10.639/03,

ou muito menos de gerar “novidades” dentro do ensino de história. A música nunca deve ser

tratada como apenas um “tapa buraco”, ou uma ilustração dentro de sala de aula. Uma

composição reflete o seu tempo, um verdadeiro documento monumento que se transforma em

uma fonte, tal como Le Goff (2013) bem formulou. Assim cada música tem uma

ocasionalidade de sua composição, possui um objetivo em específico, bem como, coloca um

documento poetificado dentro da circulação de cultura da sociedade: é “um verdadeiro retrato

de época” (DUQUE, 2017, p. 297). Por isso mesmo que a música deve ser vista como algo

que se entranhe com o conhecimento acadêmico e o escolar, compondo assim, junto à cultura

do aluno, uma nova teia de significados e de visualidades do mundo e dos sujeitos. Como

Miriam Hermeto (2012) acrescenta, “examinar as canções como fonte significa interroga-las

tanto no que se refere aos seus aspectos históricos mais gerais, quanto no que tange ao

problema que está sendo investigado” (HEMERTO, 2012, p. 29 – 30)

O samba enredo é um gênero musical especifico: foi criado para um momento que é o

desfile de uma escola de samba, sendo um dos quesitos mais importantes dentro de uma

agremiação e sendo a principal característica dentro da cultura escolar do samba. Sendo um

quesito de avaliação, o samba enredo é avaliado a partir de sua melodia e da letra do samba. A

melodia seria as diversas modulações que a composição proporciona seja para passar um

sentimento ou para facilitar o canto. Já a letra é construída a partir do conteúdo escrito da

sinopse do desfile desenvolvida pelo carnavalesco da escola, ou por enrendistas (pessoas que

escrevem em forma de texto escrito as ideias do carnavalesco).

Assim o processo de criação de um samba enredo deve ser didático para quem o ouve,

sendo uma música que deve passar para quem ver o desfile uma narração musical. Desta

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maneira o compositor de samba enredo ele exprime a sua inspiração a partir de certas regras e

normas que o carnavalesco e a equipe de carnaval desejam o que deixa o processo de criação

do compositor desafiador para expressar toda a sua criatividade. Mas, o samba enredo ao

longo das décadas ultrapassou o seu lugar de criação e se tornou um legítimo produto da

música popular, e, além disso, o seu caráter descritivo serve dentro do campo de ensino como

um suscitador de visualidades que atingem o simbólico e o imaginativo.

O samba enredo por meio de sua linguagem gera a quem ouve um enriquecimento no

modo como vemos a história, um ouviver, onde, vemos o desfile e ouvimos a sua história.

Quando o samba descreve uma revolta do século XVIII, ou questiona o processo de

escravidão ao longo da história, por meio de sua letra e melodia somos colocados em uma

dimensão estética que não estamos muitas das vezes acostumados. Assim o simbólico se

associa possibilitando recriar dimensões do espaço e do tempo por meio da linguagem que o

samba enredo possui no que Mussa e Simas (2010) pontuam como sendo um gênero escrito

musicado épico “que nasceu e se desenvolveu espontaneamente, livremente, sem ter sofrido

mínima influência de qualquer outra modalidade épica, literária ou musical, nacional ou

estrangeira” (MUSSA E SIMAS, 2010, p. 10). Ainda nessa prerrogativa a música cria elos

imaginativos naquilo que Maria de Lourdes Sekeff (2007) coloca como “uma ferramenta que

lhe propicia o exercício da espontaneidade, da criatividade, do desenvolvimento e da

formação de vínculos sociais” (SEKEFF, 2007, p. 19).

O samba enredo, assim como, qualquer outra canção popular, ou não, possui em sua

composição um poder que coloca em que ouve diversos gatilhos para localização dentro em

um espaço, naquilo que Murray Schafer (2011) aponta, onde “a música existe porque nos

eleva, transportando-nos de um estado vegetativo para uma vida vibrante” (SHAFER, 2011,

p. 283). É também uma força que quebra um pensamento linear, possibilitando assim, um

deslocamento e uma reordenação no modo como enxergamos as coisas. O que propomos aqui

como reflexão é que o samba enredo possui em sua gênese passar uma mensagem e de

produzir um conhecimento: o conhecimento do samba.

Cada obra que as escolas de samba colocam na avenida expressa a sua visualidade do

mundo existente, bem como, exprimem os contatos ocultos existentes com os movimentos

sociais. Até a década de 70, as escolas de samba tanto do Rio de Janeiro como de São Paulo

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possuíam em seu diálogo de samba enredo uma visão ainda muito passiva da história, o que

se acentua com o boom dos movimentos sociais na década em questão. Assim, o samba

enredo muda, e a própria visão do negro também.

Como podemos pesquisar na escola da Vila Matilde, a ligação com a negritude gerou

um signo de identidade que lhe é característico, propiciando diversas interpretações do negro

que foram se tornando mais críticas ao longo dos anos. Embora não tenha o mesmo peso de

identidade negra como a Nenê, a Tuiuti carrega em seu espaço de ação na comunidade em que

está inserido, o contexto de uma luta diária ao racismo e genocídio do corpo negro, o que se

reflete na força de seu samba e na imposição de seu desfile no ano de 2018.

Tanto no Rio com em “Sampa” o processo de formação do samba enredo foi uma

construção longa e de diversas resistências ao longo do tempo, em uma reinvenção do

cotidiano racista de ambas as cidades no início do século XX. Como Michel de Certeau

(1994) coloca, é uma reconfiguração de resistência, onde se “criam um espaço diferente, que

coexiste com aquela de uma experiência de ilusões” (CERTEAU, 1994, p. 78), como se existe

dentro dessa carnavalização do cotidiano uma criação utópica e imaginativa onde o negro tem

voz presente, é um rei, um herói da história e pode mudar sua narrativa.

Como Felipe Trotta (2011) bem define, “o samba acompanha a trajetória de afirmação

social das populações descendentes de escravos e sua luta por melhores condições de vida e

trabalho na sociedade brasileira”. Lógico que o samba não se isola de certos estereótipos em

seu feitio, porém, a sua narrativa possibilita que seu uso em sala de aula questione tais

estereótipos. Não existe música certa ou errada como Murray Schafer (2011) coloca. Existem

sim diversas maneiras de se colocar a música dentro de sala aula, e aqui, especificamente o

samba enredo de temática africana e afro-brasileira possui em sua característica o poder de

falar da história da escola de samba, de revelar identidades dentro de um grupo. O samba

enredo é um produto da resistência da escola de samba dentro dos núcleos urbanos da cidade:

sua quadra, sua bateria, sua comunidade, seus símbolos e cores são desde 1928, um modo de

colocar na escrita da cidade, a sua própria visão da história. E para dimensionarmos tal visão

da história que cada escola de samba possui, nos direcionaremos para os dois sambas citados

da Nenê e da Tuiuti.

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“Um canto libertário”, contra “o cativeiro social”: a Nenê a e Tuiuti dentro do combate

ao racismo.

Não sou escravo de nenhum senhor/ Meu Paraíso é meu bastião/ Meu

Tuiuti, o quilombo da favela/ É sentinela da libertação/ Irmão de olho claro

ou da Guiné/ Qual será o seu valor?/ Pobre artigo de mercado/ Senhor, eu

não tenho a sua fé, e nem tenho a sua cor /Tenho sangue avermelhado/ O

mesmo que escorre da ferida/ Mostra que a vida se lamenta por nós dois/

Mas falta em seu peito um coração/ Ao me dar a escravidão e um prato de

feijão com arroz/ Eu fui mandiga, cambinda, haussá/ Fui um Rei Egbá preso

na corrente/Sofri nos braços de um capataz/ Morri nos canaviais onde se

plantava gente/ Ê, Calunga, ê! Ê, Calunga!/ Preto Velho me contou, Preto

Velho me contou/ Onde mora a Senhora Liberdade/ Não tem ferro nem

feitor/ Amparo do Rosário ao negro Benedito/ Um grito feito pele do

tambor/ Deu no noticiário, com lágrimas escrito/ Um rito, uma luta, um

homem de cor/ E assim, quando a lei foi assinada/ Uma lua atordoada

assistiu fogos no céu/ Áurea feito o ouro da bandeira/ Fui rezar na

cachoeira contra a bondade cruel/ Meu Deus! Meu Deus!/ Se eu chorar, não

leve a mal/ Pela luz do candeeiro/ Liberte o cativeiro social. (Samba Tuiuti

2018, autoria Cláudio Russo, Moacyr Luz, Jurandir, Zezé e Aníbal).

Quando a igualdade não havia/ A revolta foi a via contra a força da

opressão / Uma voz se ergueu, outras mais então/ Movimento que surgia,

salve o povo da Bahia/ Sei que a rebeldia que trago no peito/ Tenho o

direito de eternizar/ O canto libertário que se espalha pelo ar/ Lutar,

acreditar, sonhar, ser mais Brasil/ Criar a pátria amada mãe gentil/ Há nos

búzios a mensagem de cada irmão/ No quilombo novos ares, libertação/ Em

canudos Conselheiro e a sua fé/ Cabanagem no Pará, na Nenê samba no pé/

Vai no baticum do Olodum no pelourinho/ Um só coração, um só caminho/

Canto a igualdade, levo a união/ Venço toda a discriminação/ Sonhei que a

terra é do agricultor/ Cidadão encontrou o abrigo do lar/ Eu vi a força

unificando a luta sindical/ Mulheres defendendo um ideal/ De volta ao seu

lugar, a zona leste incendeia/ O anhembí vai levantar, a minha vila tem

sangue na veia/ Chegou, Chegou no templo do samba/ O gueto da gente, a

mais querida/ No coração matildense, Nenê é minha águia, minha vida.

(Samba Nenê 2013, autoria Cláudio Russo, J. Velloso, Ney do Cavaco,

Marquinhos e Dr, Medina)

Como apontamos ao longo deste artigo entender a construção de um samba enredo

perpassa diretamente pela história da agremiação e pela dimensão dada a escolha do enredo

do ano. No caso do enredo de temática africana, essa ligação está diretamente ligada com a

formação rítmica do samba enredo, mas, além disso, o enredo de temática africana possui

dentro de cada escola de samba um pertencimento diferente.

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No caso da Tuiuti ao longo de seus 66 anos a escola apresentou nove sambas enredos

com a temática negra, ou com o eixo principal dentro da temática, enquanto que a Nenê

colocou na avenida vinte e dois sambas de temática africana. E dentro desta temática temos

ainda subtemáticas que se apresentam na religiosidade, personagens e heróis, cidades,

municípios e países, histórico e de construção abstrata. Na Tuiuti esses subtemas se

sobressaem entre enredos abstratos, de personagens e históricos. Já na Nenê, temos a presença

na sua maioria de temas abstratos, heróis e personagens e históricos. Os sambas que aqui

iremos abordar das duas agremiações tramitam no campo do histórico.

Entender a temática é fundamental, pois nos coloca em frente ao pensamento político e

social que a escola carrega dentro de seu percurso dentro da construção do cotidiano da

cidade, naquilo que Monique Augras (1992) coloca como sendo um meio de construção da

memória da escola, em que o samba enredo “sintetiza todo um processo de produção típico do

imaginário popular, onde transparecem tanto o ethos do grupo, como seus códigos de

representação e os mecanismos utilizados para assegurar a sua sobrevivência” (AUGRAS,

1992, 08). Por isso mesmo que o samba enredo de 2013 da Nenê, bem como, seus outros

sambas possuem uma presença de cunho político e da construção ao longo dos anos de um

discurso firme de identidade, que faz parte do pertencimento da escola como um todo, como

uma rede de significados que a escola produziu dentro do signo da negritude. Já na Tuiuti o

samba de 2018 não representa um discurso que se constrói dentro da escola como um símbolo

de identidade. Não que a Tuiuti não seja uma produtora de resistência, já que toda a escola de

samba possui na sua constituição a resistência de um ritmo e manifestação marginalizados,

mas, esse discurso que permeia a escola desde o ano de 2016 é muito mais fruto da influência

do carnavalesco (Jack Vasconcelos), que dos seus enredos do passado.

E aqui vale um destaque que dentro dessa construção de enredo e até mesmo do samba

enredo, o carnavalesco se torna uma figura fundamental, pois é esse profissional que vai

realizar a pesquisa do enredo e todo o seu desenvolvimento, sendo assim, uma escola com um

discurso forte de negritude gera no carnavalesco sua adaptação a esse cenário; agora, em uma

escola com uma identidade não tão definida, o posicionamento do carnavalesco possui

influência grande dentro do processo da construção da identidade de uma escola. Por isso

mesmo, que a escola de samba ela é um organismo vivo dentro das teias sociais da cidade, o

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que faz que ela ao longo do tempo absorva os diferentes posicionamentos dos movimentos

sociais e da política em sua volta.

Agora nos voltando aos samba enredos aqui propostos, eles refletem em muito o

tempo político e social vigente. No ano entre 2012 e 2013 o clima político brasileiro passava

desde um otimismo pela economia, até uma busca de mudanças no campo social,

principalmente dos movimentos sociais. Já na nossa atualidade, temos um governo fruto de

um golpe político que avança medidas autoritárias e na construção da perca de direitos

trabalhistas e de minorias, e de um sucateamento da educação e da indústria de base.

Para desvelarmos um samba enredo temos que observar também no seu discurso, a sua

temática, o seu sujeito e o que está escrito, isso possibilita que façamos um mapeamento para

organizarmos uma sequência didática ou até mesmo possibilitar a sua isenção dentro do

tempo histórico.

O tema de ambos os sambas passam pelo subtema histórico da história do passado

negro. Os dois samba tem algo interessante que é o colocar o negro e a sua luta como eixo de

discurso, desta forma, o samba da Nenê tem um discurso voltado para luta da igualdade tendo

como ponto de partida a Revolta dos Búzios. Já na Tuiuti, o discurso existente é o de

contestação da realidade da escravidão seja no passado ou no presente. E o tempo histórico é

importante, pois em 2013 temos um samba que aposta em uma solução para a desigualdade,

que é a própria história de resistência da Nenê, enquanto que no ano de 2018, o samba da

Tuiuti possui um tom ácido em sua crítica e em um futuro que possui uma solução

desacreditada.

E nesse ponto chegamos ao sujeito existente. No samba da Nenê, intitulado Da revolta

dos Búzios a igualdade. Nenê canta a igualdade, de autoria de Claudio Russo, J. Velloso, Ney

do Cavaco, Marquinhos e Dr. Medina, o sujeito existente é em primeira pessoa e consciente

do que está sendo narrado, tal sujeito é o matildense que conhecedor do passado de luta pela

igualdade dentro do samba, visita a Bahia colonial e passa pela história do Brasil visualizando

os diversos movimentos sociais e históricos que espelharam um futuro sólido em que ser

diferente é ser igual. Na Tuiuti, o samba intitulado Meu Deus, meu Deus, está extinta a

escravidão?, de autoria de Cláudio Russo, Moacyr Luz, Jurandir, Zezé e Aníbal, temos um

sujeito na primeira pessoa, mas que é cético quanto ao seu passado, narrando e conhecendo

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muito bem como a escravidão se tornou uma estrutura importante para a construção de um

passado racista, e que no presente, tal escravidão renasce por meio de uma institucionalização

de uma realidade de trabalho degradante e de perca de direitos, em um pensamento neoliberal.

E tudo isso se reflete da letra existente. No samba da Nenê a letra é de enaltecimento

dos diversos movimentos existentes, assim palavras como venço, força, sonhei, igualdade,

lutar se tornam basilares para que se crie uma paisagem sonora voltada para a construção ao

ouvinte de um poema de resistência. E a letra do samba da Nenê é voltada para uma visão

explicativa e descritiva sempre enaltecendo a busca da igualdade e dos direitos, reservando

inclusive, um trecho grande de referência a Revolta dos Búzios. Já no samba da Tuiuti temos

a presença de palavras de contestação e de ordem para construção de um verdadeiro poema

sobre o passado escravista. E sendo em primeira pessoa, o tom do samba enredo é de

melancolia e descritivo conforme vai avançando, no início se apresenta um diálogo entre o

escravizado e quem escraviza, e vamos passando até o fim em uma consciência que seu lugar

na sociedade não é o de serem escravo e cativo de uma realidade social. Uma curiosidade

desses dois sambas é que o compositor principal de ambos é o sambista Cláudio Russo, um

expoente da nova geração de compositores do samba carioca, e se formos analisar bem os

sambas meio que se completam, o que mostra que a construção da visualidade de resistência

possui aspectos do compositor, e o intérprete dos dois sambas tem um cantor em comum, o

Celsinho Mody, que na Tuiuti cantou ao lado de Grazzi Brasil e de Nino do Milênio, e na

Nenê cantou solo.

O que devemos visualizar em um contexto geral, é que o samba da Nenê é menos

crítico que o samba da Tuiuti, que apresenta palavras e um discurso que dimensionam o

ouvinte a se sensibilizar com um passado que permanece no presenta. Porém, o samba da

Nenê tem um caráter didático grande por colocar de maneira direta o que se pretende

aprender, como no trecho:

Quando a igualdade não havia/ A revolta foi a via contra a força da

opressão/ Uma voz se ergueu, outras mais então/ Movimento que surgia,

salve o povo da Bahia/ Sei que a rebeldia que trago no peito/ Tenho o

direito de eternizar/ O canto libertário que se espalha pelo ar (Samba Nenê

de Vila Matilde 2013, autoria e Cláudio Russo, J. Velloso, Ney do Cavaco,

Marquinhos e Dr. Medina)

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Nesse trecho inicial temos o tempo histórico que o samba inicia a localidade, o que se

almejava e de certa maneira, os ecos que se espalham pelo ar. Além disso, temos a associação

com a ideia de resistência dos quilombos, sem escolher um em especifico, a Revolta de

Canudos, pela busca de terra na Bahia e a Cabanagem, que foi uma resistência no atual Pará,

em que se instaurou o primeiro núcleo politico de origem popular, e em ambos os casos a

presença do negro foi direta dentro da construção desses movimentos. E um pouco adiante

temos a participação especial do Olodum dentro da revitalização do centro histórico de

Salvador e no combate ao racismo. E em seguida temos o combate de outras lutas como o

feminismo, a busca de direitos do trabalhador, de moradia, reforma agraria e LGBTQI+,

movimentos esses que assim como os ocorridos ao longo da história lutam pela igualdade e

do reconhecimento da diferença, mas esse discurso só existe por partir da luta dos negros

dentro da Bahia colonial.

Já no samba da Tuiuti, temos um questionamento em uma nova roupagem ao samba

da Unidos de Lucas do ano de 1969, intitulado Sublime Pergaminho, onde, a escravidão é

posta como extinta. Isso mostra como o samba se articula diretamente aos movimentos

sociais, já que 50 anos depois temos uma nova visualidade do assunto.

No samba da Tuiuti, temos outro tipo de narrativa que é um diálogo que surge a partir

da pergunta de quem escraviza para o escravizado irmão de olho claro ou da Guiné/ Qual

será o seu valor? Pobre artigo de mercado em uma alusão aos diferentes tipos de escravidão

na história, dos gregos e romanos, dos eslavos até os negros escravizados. E continua com o

narrador explicando como foi e como acontece a sua luta contra o cativeiro senhor eu não

tenho a sua fé, e nem tenho sua cor/ Tenho sangue avermelhado/ O mesmo que escorre da

ferida/ Mostra que a vida se lamenta por nós dois/ Mas falta em seu peito um coração/ Ao me

dar a escravidão e um prato de feijão com arroz, nesse início podemos perceber que a busca

do samba é explicar a escravidão como algo “comum” na história e em diversas raças e etnias,

de forma crítica.

Mas logo em seguida esse tom se volta para o continente africano e para a realidade da

escravidão no Brasil, e na importância que a agricultura teve no fortalecimento e na morte de

diversos africanos que para cá vieram, como no trecho morri nos canaviais onde se plantavam

gente, e logo em seguida mostra como que esses negros escravizados foram importantes

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dentro da construção da identidade e história brasileira. E no fim se mostra de maneira bem

crítica a respeito do processo de abolição e de como tudo isso não passou de uma farsa, ou

uma bondade cruel que colocou o negro dentro da realidade racista e higienista do Brasil, nos

trazendo para atualidade, onde o cativeiro ele não é mais na agricultura, nas minas ou nas

casas grandes, mas que agora são cativeiros sociais, de exploração do trabalho e da perda de

direitos mínimos para um trabalho justo. E no refrão de baixo do samba temos o

questionamento que a luta não acabou, só mudou os personagens.

Assim, como podemos perceber os dois sambas apresentam um recurso didático

potente dentro de sala de aula, podendo inclusive um ser cruzado com o outro. As temáticas

dentro da história do Brasil são as mais diversas, desde o processo de escravidão no Brasil e

em África, ou na transição do Império para república, ou nas revoltas coloniais contra a Coroa

Portuguesa, ou mesmo na discussão da contemporaneidade na busca de uma sociedade

intercultural e de respeito às diferenças e na luta antirracista em nossa sociedade. Além da

história podemos versar com outras linguagens existentes como a poesia de Carolina de Jesus,

os movimentos musicais como o Rap, Hip Hop e Funk, com a geografia e os deslocamentos

dentro da urbanização, com a literatura a partir do samba enredo como poema ou da gramática

nas construções das palavras e de sua métrica.

O “Gueto do Samba” e o “Quilombo da Favela”: pontos para refletir.

Ao longo desse artigo a ideia principal é a de mostrar como o samba enredo no geral

pode construir e desconstruir a realidade colonial e pejorativa do “outro” dentro da sociedade.

A implementação da Lei 10.639/03 esbarra em fatores dos mais variados, e um deles, é na

construção de materiais que sirvam como recurso didático a sua prática docente. Explicar a

história do Brasil e colocando o negro como agente de sua história, e de como sua história é

de luta e resistência é essencial para que construamos um enegrecimento do currículo.

A escola de samba ao longo de sua existência acredita, dentro da carnavalização do

cotidiano, que devemos tentar mostrar o passado por meio de uma linguagem que poetifique o

cotidiano, e que mostre a história por outro olhar. Tanto a Nenê de Vila Matilde como o

Paraíso do Tuiuti coloca em seus sambas outro olhar ao negro, uma nova interpretação de seu

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passado, mas acima de tudo, o inclui dentro de uma narrativa positiva para a sociedade.

Cantar venço toda a discriminação ou não sou escravo de nenhum senhor é colocar dentro de

sala de aula uma linguagem do conhecimento cotidiano, em uma afirmação da raça.

Como defendo em minha dissertação o uso do samba se torna uma utopia dentro das

diversas atrocidades que vivemos na atualidade. Porém, assim como as escolas de samba,

acredito que esse grito e esse sonho devam permanecer sempre à frente, e em circulação. E

me parece que o ambiente escolar e seus personagens principais, os estudantes, sejam o

principal motor para a permanência desse canto libertário, contra o cativeiro social.

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