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A Tradição Oral no Romance Terra Sonâmbula... – Avelino, Santos & Luna
Revista Diálogos – n.° 18 – Set. / Out. – 2017 25
A TRADIÇÃO ORAL NO ROMANCE TERRA SONÂMBULA, DE
MIA COUTO
d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n18p25
Fabiana Avelino – UPE1
Deividy Ferreira dos Santos – UPE2
Jairo Nogueira Luna - UPE3
Resumo: O presente trabalho pretende analisar a tradição oral no
romance Terra Sonâmbula, de Mia Couto. A tradição oral se apresenta
no romance como método fundamental para adentrar a herança de
conhecimento de toda uma sociedade, pacientemente transmitida de boca
1 Graduada em Letras – habilitação em Língua Portuguesa e suas Literaturas (UPE).
Desde a graduação, vem desenvolvendo estudos voltados para a obra do escritor
moçambicano Mia Couto, em especial atenção as seguintes temáticas: construção de
identidade(s), Literatura e Memória, Literatura e Sociedade, Tradição oral e as
interfaces entre Brasil e África. Participou, no ano de 2016, do grupo de estudo
“DISCENS”, na Universidade de Pernambuco, campus Garanhuns. Atualmente, é
Professora de Língua Portuguesa, na Escola Municipal Vereador Eliel Peixoto de Melo,
no município de Vila Neves – Jucati/PE. Endereço eletrônico:
2 Graduado em Letras – habilitação em Língua Portuguesa e suas Literaturas (UPE). Foi
bolsista do PIBIC/CNPq, PIBID/CAPES e Monitoria/PFAUPE. Atualmente, é Tutor,
no Departamento de Letras do Núcleo de Ensino à Distância, no curso de pós-graduação
em Ensino de Língua Portuguesa e suas Literaturas, pela Universidade de Pernambuco
(NEAD/UPE/UAB) – Bolsista CAPES; é Professor Mediador de Língua Portuguesa, no
Programa Novo Mais Educação, no município de Jucati/PE; integra, também, a Equipe
Técnica da Revista de Estudos Linguísticos, Literários, Culturais e da
Contemporaneidade (UPE/Garanhuns) e presta consultoria à Itinerários: Revista de
Literatura (UNESP/São Paulo). Endereço eletrônico: [email protected]
3 Prof. Dr. Em Letras (USP, 2003), pós-doutorado em Literatura Brasileira (USP,2011).
Professor Adjunto da Universidade de Pernambuco, campus Garanhuns.
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e ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. Assim, buscamos,
neste estudo, compreender a maneira como o escritor Mia Couto trata a
questão da tradição oral na narrativa, e consequentemente a importância
da oralidade para a cultura moçambicana, como também o estilo de
escrita do escritor. Para atingir esse objetivo, no que concerne ao aporte
teórico-metodológico, nosso trabalho conta com estudos de
pesquisadores brasileiros que são referências no Brasil em estudar a obra
coutiniana, o que mostra a importância e a necessidade de se estudar a
obra do autor moçambicano, até pelas plurissignificações existentes em
suas narrativas.
Palavras-chave: Tradição Oral. Mia Couto. Romance. Terra
Sonâmbula.
Abstract: The present work intends to analyze the oral tradition in the
novel Terra Sonâmbula, by Mia Couto. The oral tradition presents itself
in the novel as a fundamental method to enter the heritage of knowledge
of an entire society, patiently transmitted from mouth to ear, from teacher
to pupil, throughout the centuries. Thus, we seek in this study to
understand the way in which the writer Mia Couto deals with oral
tradition in the narrative, and consequently the importance of orality to
Mozambican culture, as well as the writing style of the writer. In order to
reach this objective, as far as the theoretical-methodological contribution
is concerned, our work counts on studies of Brazilian researchers who
are references in Brazil to study the Coutinho work, which shows the
importance and necessity of studying the work of the Mozambican
author, Even by the plurissignifications existing in their narratives.
Keywords: Oral Tradition. Mia Couto. Romance. Terra Sonâmbula.
Introdução
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No referido trabalho, analisaremos a questão da Tradição Oral na
obra de Mia Couto, em particular no romance Terra Sonâmbula. Nesse
sentido, fizemos uma análise sob o que concerne a tradição oral, como
ela é vivenciada em Moçambique e consequentemente como Mia Couto,
adotando o romance, gênero de origem europeia, consegue fazer dele
uma expressão africana, pondo em xeque a preponderância dos saberes
centrais em meio aos conflitos que dominavam Moçambique.
O conceito de literatura oral surge, pela primeira vez, na obra
“Littératura orale de la Haute Bretagne”, publicado em 1881, por Paul
Sébillot. Seu uso vem exatamente sublinhar essas “obras” que passaram
de geração em geração pelo exercício da repetição e pelo esforço da arte
e da memória. A oralidade permaneceu durante séculos, valendo-se de
veículo para a transmissão dos conhecimentos e das informações de uma
comunidade, formando-se, assim, um corpus que Rosa chama de
“tradição cultural dinâmica” (ROSA, 1994, p. 140), para expressar a
memória coletiva e individual.
A oralidade é também uma herança que se desenvolve na
“consciência dos povos”, que, gradativamente, descobre outros recursos
para manter mais informações e ampliar cada vez mais a memória.
Notamos aqui a forte ligação entre oralidade e memória. Segundo Rosa,
estudioso português, a memória é quem comanda tudo, sendo ao mesmo
tempo “repositório e veículo” da cultura (ROSA, 1994, p. 140). Sua
contribuição, no seio de uma comunidade cultural, garante a
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comunicação e a continuidade, por serem transmitidos de gerações para
gerações. Rupturas e perdas também fazem parte do mecanismo da
memória. Há uma predominância daquilo que é mais forte; daquilo que
é mais importante, necessário, validado, usual, na medida em que tantas
outras contribuições podem cair no esquecimento. Esse é um
procedimento normal da memória. E a escrita, de algum modo,
complementa essa operação. A coexistência das duas formas – oral e
escrita – vai criar uma ação de interlocução, de influência, de
comunicação entre as formas. Os pressupostos são diferentes, as estéticas
são diversas, mas as trocas são constantes.
Mia Couto: um ser de fronteira
Filho de portugueses que emigraram para Moçambique em
meados do século XX, Antônio Emílio Leite Couto – mais conhecido por
Mia Couto – nasceu em 05 de julho de 1955, na cidade da Beira, segunda
cidade mais populosa de Moçambique. Filho de poeta, suas narrativas
unem a prosa e a poesia. Desde cedo apresentou o gosto pela escrita,
vindo a publicar seus primeiros poemas no Jornal Notícias da Beira, aos
14 anos. Iniciou seus estudos no curso de Medicina, abandonando-o três
anos depois para se tornar um dos membros da Frente de Libertação de
Moçambique (FRELIMO). A partir de 1974, enveredou pelo jornalismo,
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passando após a independência (1975), a exercer a carreira jornalística,
período que durou cerca de 10 anos.
Em seguida, abandonou o jornalismo e passou a cursar Biologia.
Mia Couto exerce a profissão de biólogo, situação que lhe proporcionou
o contato com diferentes povos e experiências que influenciaram em
certa medida seu modelo de escrita. Atualmente, além de professor
universitário, também dedica tempo a pesquisas acerca de impactos
ambientais de seu país. Além de ser considerado um dos escritores mais
importantes de Moçambique, é o escritor moçambicano mais traduzido e
divulgado no exterior, e um dos autores estrangeiros mais vendidos em
Portugal. É possuidor de uma literatura com sinais de resistência cultural
e sentimento nacional. As suas obras são traduzidas e publicadas em 24
países. Poeta, contista e romancista, Mia Couto tem mais de meio milhão
de exemplares vendidos e traduzidos em diversas línguas, como alemão,
castelhano, francês, inglês, italiano, neerlandês, norueguês e sueco, fato
que lhe proporciona um lugar de destaque na literatura moçambicana.
Acerca dessas questões levantadas, vejamos o que Oliveira (2009)
destaca no que concerne à obra de Mia Couto:
[...] [a] sua obra, além de ser traduzida para diversos
idiomas é, ela própria, tradutora da história e da cultura
moçambicana para o mundo. A obra de Mia Couto, em seu
conjunto, é uma constante viagem pelas paisagens e lugares
de Moçambique, atravessando também os múltiplos
tempos de que eles são feitos. A viagem é uma metáfora
rica e possível para captar e compor literariamente os nós
dos encontros e desencontros desses espaços e tempos, bem
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como as insondáveis identidades moçambicanas que nesses
nós vivem. Autor de muitas histórias abensonhadas, de
várias brincriações com a língua portuguesa e outras
interinvenções, Mia Couto modela a língua portuguesa
expandindo-a em toda a sua plasticidade verbal. A escrita
de Mia Couto forma imagens em tamanha profusão que
reproduz a movência oral (OLIVEIRA, 2009, p. 1).
Alguns de seus livros foram adaptados para o cinema, caso de O
último voo do flamingo, Terra sonâmbula e Um rio chamado tempo, uma
casa chamada terra. Além disso, o autor moçambicano tem recebido
vários prêmios nacionais e internacionais, por vários dos seus livros e
pelo conjunto da sua obra literária, sendo assim, é, também, Membro da
Academia Brasileira de Letras, e sua escrita é comparada a de Gabriel
Garcia Márquez, Guimarães Rosa e Jorge Amado.
Terra Sonâmbula (1992), objeto de análise neste trabalho, é seu
primeiro romance e lhe concebeu várias premiações. A obra foi
considerada pela crítica um dos doze melhores livros africanos do século
XX. E é, ainda hoje, o mais conhecido, talvez por ter revelado ao mundo
literário a alta qualidade de sua escrita. Em 1999, o autor recebeu o
prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007 o Prêmio
União Latina, por júri internacional que distinguiu Mia Couto, primeiro
africano a receber tal prêmio.
[...] pela originalidade e o poder criativo de uma escrita
marcada por uma euforia vocabular que parte da realidade
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de seu país – e em particular do rico imaginário das
populações rurais – para exaltar o poder da vida e a alegria
de viver, mesmo se por vezes, nas condições extremamente
dramáticas (JORNAL DE LETRAS, 2007, p. 4).
Como se percebe a partir da referida citação, adotando o
romance, gênero originalmente europeu, Mia Couto consegue fazer dele,
em suas obras literárias, uma expressão africana sem perder sua
característica de ser uma forma literária nacional. Assim como muitos
escritores africanos, Mia Couto utiliza-se da língua do colonizador
apoiado numa visão local, para produzir uma literatura que comtemple
um lugar híbrido de intelectual, ou seja: “Vive a contradição inevitável,
expressa nos seus textos, de ocupar um lugar híbrido de intelectual,
publicando numa língua originalmente do colonizador, mas assumida,
por razões políticas, como a língua oficial do colonizado e da literatura”
(FONSECA; CURY, 2008, p. 14).
Desse modo, podemos localizar a escrita literária de Mia Couto
em um lugar de fronteira entre a tradição europeia e o saber local. O
escritor parece corroborar com isso em sua afirmação: “escolhemos uma
escrita de fronteira, uma nação feita de mestiçagens e sínteses” (COUTO
apud ANGIUS, 1998, p. 17). Em seu depoimento referente a essa
condição de “ser de fronteira”, Mia Couto deixa claro a necessidade de
se produzir uma escrita que misture o seu lado português com a sua
individualidade africana.
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Sou um escritor africano de raça branca. Este seria o
primeiro traço de uma apresentação de mim mesmo.
Escolho estas condições – a de africano e a de descendente
de europeus – para definir logo à partida a condição de
potencial conflito de culturas que transporto. Que se vai
“resolvendo” por mestiçagens sucessivas, assimilações,
trocas permanentes. Como outros brancos nascidos e
criados em África, sou um ser de fronteira. [...] Para
melhor sublinhar minha condição periférica, eu deveria
acrescentar: sou um escritor branco, africano e de língua
portuguesa. Porque o idioma estabelece o meu território
preferencial de mestiçagem, o lugar de reinvenção de mim.
Necessito inscrever na língua do meu lado português a
marca da minha individualidade africana (COUTO apud
SECCO, 2002, p. 264).
Nesse sentido, Mia Couto utiliza-se da língua do colonizador para
recriar através da sua literatura, uma cultura local. Literatura essa, rica
em neologismos, provérbios, mitos e sonhos que figuravam em um
universo híbrido permeado pela tradição do povo moçambicano e dos
povos que para ali emigraram. Tendo em vista que Moçambique
caracterizava-se por um cenário permeado por guerras e devastações,
onde a miséria e a fome eram uma constante no país, a literatura
coutiniana emprega-se da imaginação, da metáfora do sonho e da ficção
não só para quebrar a visão estereotipada de Moçambique, mas para
promover aos leitores de suas obras uma nova perspectiva, onde o sonho
e a esperança se mantivessem vivos.
Tradição Oral em Moçambique
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Tendo em vista que a população moçambicana, até meados da
década de 80, era de origem predominantemente ágrafa e com índices de
analfabetismo crescente, a tradição oral assume-se como principal meio
de comunicação e perpetuação dos valores ancestrais moçambicanos.
Segundo Chagas (2011), recorrer à tradição sempre foi uma das temáticas
de maior relevância para a “construção” da literatura de Moçambique. A
tradição é a base para a construção da história de uma nação. Mitos e
ritos, crenças e lendas se incorporam à vida de um povo, criando suas leis
e regendo seus costumes.
Em Moçambique, política e literatura eram interligadas, uma vez
que se tratava de uma literatura revolucionária e de caráter nacionalista
tendo em vista a independência proclamada recentemente (1975) e a
guerra que assolava o país. Surge a partir de então Mia Couto, com uma
escrita de cunho surrealista e considerada “pouco crítica” ao que confere
à realidade Moçambicana. A obra singular de Mia Couto manifesta “uma
conflitualidade dialógica na tematização das tradições e seu confronto
com a modernidade” (LEITE, 2003, p. 45). No entanto, “apesar de
parecer mais preocupada com “valores ancestrais”, a narrativa do escritor
também remete a história política do país, uma vez que contempla a
dizimação da cultura por meio do colonizador, bem como da guerra civil,
posteriormente” (CHAGAS, 2011, p. 96).
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Nesse périplo, adota-se então, a língua do colonizador, ou seja, a
língua portuguesa para difundir sua literatura. Como o próprio Mia Couto
afirmou sobre José Craveirinha: “O poeta escreve Moçambique através
da língua portuguesa”. Por esse motivo, o escritor sente a necessidade de
produzir uma narrativa que situe o leitor, em sua maioria não-africano,
do lugar da literatura numa sociedade com alto índice de analfabetismo.
Todavia, fugindo da estética atual da literatura Moçambicana, Mia Couto
incorpora em suas obras a tradição oral, onde presente e passado estão
em constante transição, valendo-se da memória para articular seus textos.
A oralidade diz respeito à cultura ágrafa, tem a ver com o
passado que se apresenta no presente, por meio de
experiências vividas pelos ancestrais, ou de experiências
passadas que podem ser revividas a partir do encontro de
gerações, do contato afetivo, sensorial. As histórias, por
exemplo, são contadas em rodas, em família, em reuniões
coletivas. Elas também, mais que diversão, tem a finalidade
de transmitir os valores e conhecimentos acumulados para
as futuras gerações (MIRANDA; AMBRÓSIO, 2014, p.
127).
O ato de contar, em Moçambique, encontra-se embutido na
tradição oral. Assim, reitera o escritor que, segundo a tradição, os
contadores têm formas de abertura e fechamento dos rituais de contação.
De acordo com Fonseca e Cury (2008), as estórias estariam numa caixa,
num outro espaço, de onde só poderiam ser retiradas e socializadas por
alguém que soubesse cumprir tais rituais. Uma vez compartilhadas, as
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estórias teriam de voltar para o lugar de origem. “Quando não se fecha
uma história, a multidão fica contaminada pela doença de sonhar”
(FONSECA; CURY, 2008, p. 17). Porém, na escrita de Mia Couto
também ele mistura seu locus de enunciação, a palavra escrita, ao
contador, só que nunca fechando suas narrativas, assumindo
radicalmente o lugar da fronteira e da força do sonhar de sua literatura.
Ou seja, o ato de contar assume nas narrativas de Couto um espaço no
qual as possibilidades de reinvenção da memória são variadas e o sonho
é o mentor capaz de dá vazão a uma série de outras estórias, ou seja, não
se limita.
Abordar a realidade africana no momento atual é um grande
desafio, tendo em vista a complexidade de culturas, tradições e tempos
diferentes que ora se cruzam, ora se chocam em Moçambique. Esse
processo de reconhecimento cultural é repetitivo e demorado, uma vez
que “nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos
africanos terá validade, a menos que se apoie nessa herança de
conhecimentos de toda a espécie, pacientemente transmitidos de boca e
ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos” (HAMPATÉ BÂ,
1982, p. 181), que é a tradição oral.
Estudos apontam que ainda hoje, a oralidade é um elemento
cultural fundamental para o povo moçambicano. Tal afirmativa tem
fundamentação não só pelo fato de haver ainda um grande número de
pessoas sem acesso à escola, mas, sobretudo como uma forma histórica
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de resistência, uma maneira de preservar e reafirmar a cultura ancestral
desvalorizada pelo colonizador. Observamos, então, na ficção desse
autor, a rememoração do passado como ferramenta de reconstrução da
história vivida, através de uma literatura que funciona como artefato de
denúncia e insatisfação do presente.
Tendo em vista à situação atual de Moçambique, a insatisfação da
sociedade africana talvez fosse pelo fato de não poder expressar-se ao
mundo com uma língua nativa, uma língua que viesse a contribuir, nas
palavras de Cavacas (2006, p. 45) “para a memória em construção,
memória comum que respeite o chão dos antepassados, o solo sagrado da
pátria moçambicana” Observamos nas narrativas de Mia Couto, que
esses elementos da realidade social moçambicana, são transformados
dentro de sua literatura em componentes estéticos, enaltecendo, assim, a
persistência na preservação dos valores da tradição cultural.
Segundo Fonseca e Cury (2008), a oralidade é vista por Mia
Couto, como um sistema de pensamento fornecedor de conhecimento e
saberes rearticuláveis, isto é, utiliza-se da sua experiência como escritor
de teatro, jornalista e também sua profissão como biólogo, para conhecer
a singularidade de diferentes regiões do seu país, principalmente as áreas
não-urbanizadas, que lhe abrem um leque de oportunidades de entrar em
contato com as parcelas rurais, aquelas que aderem aos costumes, crenças
e ritos antigos, advindos da época anterior a colonização, viés que
corroborou para o aprimoramento do saber comunicar-se com os de sua
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terra. Nessa mesma direção, Inocência Mata (2011) menciona que a
artesania de Mia Couto recria, dentre outros, os embates entre a língua
portuguesa, o idioma hegemônico do passado colonial e do presente, e as
diversas línguas autóctones moçambicanas, tendo em vista a “fundação
de uma nova geografia linguística, uma nova ideologia para pensar e
dizer o país” (MATA, apud DAVERNI, 2011, p. 14).
Traços da tradição oral no romance Terra Sonâmbula, de Mia Couto
Primeiro romance escrito por Mia Couto, Terra Sonâmbula,
publicado em 1992, é um livro errante, que conta duas histórias
simultâneas. A primeira, narrada por Muidinga e Tuahir, retirantes que
seguem viajem em uma “estrada morta” em busca de refúgio. E a
segunda, protagonizada por Kindzu, narrativa que se inicia quando as
personagens encontram ao lado de um dos corpos vítima dos bandos, uma
mala com cadernos e começam a leitura.
É pela voz do narrador que o leitor toma conhecimento da
interação entre dois mundos aparentemente distintos: o mundo real e o
mundo mítico. O narrador relata os efeitos da guerra e da destruição do
país, mas também enfatiza a capacidade de as personagens sonharem e
desejarem que Moçambique volte a ser aquele do passado de seus
ancestrais, onde a paz e a harmonia reverberavam. Por exemplo, a fala de
Tuahir para o jovem Muidinga indica o cenário de destroços causados
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pela guerra, mas também acena com a esperança de que novos tempos
virão: “– Vamos, com a certeza. E essa guerra vai acabar. A estrada já
vai-se encher de gente, caminhões. Como no tempo de antigamente”
(COUTO, 2007, p. 130).
Notamos nesta citação, a presença da sabedoria do velho ao
repassar seu conhecimento sobre as tradições para o mais jovem.
Analisando o contexto histórico da tradição moçambicana, podemos
associá-la a tradição oral, e, consequentemente, a figura do “velho”, cuja
principal função é transmitir oralmente, as demais gerações, a cultura e a
sabedoria popular vividas no seio de cada comunidade. O papel social e
identitário da tradição é constantemente apresentado no romance através
das personagens de velhos: Tuahir, Taímo e o conselho dos anciães da
terra de Kindzu. Inicialmente, os mais velhos detêm o papel de guias de
toda a comunidade que conseguem explicar o inexplicável e asseverar a
ordem do mundo em que vivem.
De fato, no primeiro caderno, intitulado “O tempo em que o
mundo tinha a nossa idade” (um título significativo que aponta para um
tempo mítico, um tempo de origens), Kindzu relata como o seu pai,
Taímo, costumava sonhar e depois contar essas visões noturnas a toda a
família. O jovem rapaz às vezes tinha dúvidas “sobre a verdade daquelas
visões do velho, estorinhador como ele era” (COUTO, 2008, p. 18), mas
apesar de tudo este ritual doméstico de escutar as “notícias do futuro por
via dos antepassados”, metonimicamente representava o processo de
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transmissão de sabedoria popular ao longo das gerações. Como afirma
Kindzu: “Nesses anos ainda tudo tinha sentido: a razão deste mundo
estava num outro mundo inexplicável. Os mais velhos faziam a ponte
entre esses dois mundos” (p. 18).
Entretanto, já na primeira narrativa do livro, esses papéis se
invertem. Ao encontrar a mala com os ditos cadernos de Kindzu, o jovem
Muidinga compartilha através da leitura, as aventuras narradas pelo
personagem/narrador Kindzu, para o velho Tuahir, seu companheiro de
viagem. Fonseca e Cury (2007) chamam atenção para um fato curioso a
respeito da prática dessas leituras e da relação entre o leitor e o seu
ouvinte. A tradição reza que os mais velhos detêm a sabedoria e a
transmitem para os mais novos. Há, nesse caso, uma inversão de papéis,
pois é o jovem que ler para o velho, tendo em vista que Tuahir não
aprendera a ler. O velho que a princípio não dera importância àqueles
escritos, e por vezes até se chateia com a leitura do miúdo, acaba sendo
conquistado pelas aventuras de Kindzu, tornando-se um ávido leitor-
ouvinte.
-Sabe, miúdo, o que vamos fazer? Você me ler mais desses
escritos.
-Mas ler agora, com esse escuro?
-Acendes o fogo lá fora.
-Mas, com a chuva, a lenha toda se molhou.
-Então vamos acender o fogo dentro do
machimbombo.Juntamos coisa de arder lá mesmo.
-Podemos, tio? Não Há problema?
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-Problema é deixar este escuro entrar na cabeça da gente.
Não podemos dançar nem rir. Então vamos para dentro
desses cadernos. Lá podemos cantar, divertir (COUTO,
1992, p. 136).
A figura de Muidinga representa a aspiração de uma identidade
que a nação moçambicana vivencia no período irrompido pela guerra e
que, no romance, o caminho trilhado pelas personagens propõe que esse
problema só poderá ser resolvido no respeito ao passado, à memória. Não
significa uma volta ao passado, mas remete ao que foi feito da cultura
original em meio ao caos instaurado em decorrência da colonização e da
guerra.
Na história de Kindzu, também ocorre uma busca de
esclarecimento dos acontecimentos desambientes que o rodeiam. Quando
Kindzu consulta os sábios antes de partir de sua aldeia, em busca de se
tornar um Naparama – espécie de guerrilheiro mágico, que lutava contra
os fazedores de guerra – ele percebe quão desequilibrada a guerra e o
período de colonização tornaram a vida em Moçambique. A guerra civil
virtualmente aniquila o universo de sabedoria dos mais velhos. As
histórias que iam aprendendo com os antepassados já não servem de
resposta neste cenário de morte e destruição. Kindzu os compara com um
bando de crianças desorientadas, invertendo os valores hierárquicos
atribuídos à velhice e à juventude: “Palavraram muita coisa sobre o
estado de saúde do falecido, mas eu já não lhes prestava atenção. Aquele
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grupo de idosos, de repente, me pareceu estar perdido também. Já não
eram sábios, mas crianças desorientadas” (p. 30).
Nesse sentido, os mais velhos da terra não conseguem ajudar
Kindzu, não porque a tradição em si mesma tenha perdido o seu valor na
realidade contemporânea, mas porque esses velhos sábios são incapazes
de procurar novas coordenadas num mundo onde a guerra destruiu as
bússolas. Nesse sentido, a guerra e os conflitos culturais embutidos na
desordem que a colonização instalara, abalou os alicerces das tradições e
a sabedoria dos antigos. Em uma entrevista concedida ao jornal O Estado
de São Paulo, em 2007, Mia Couto discorre sobre essa realidade pouco
vista:
Numa sociedade oral, os mais velhos são guardiães de
valores, de saberes. Mas é preciso não mistificar. Existem
culturas africanas diversas e, em cada uma, o lugar e o
papel dos velhos é diverso. O continente africano é
facilmente entendido por via de mistificações e
estereótipos. Um deles é a romantização da natural
generosidade e do respeito que as comunidades nutrem
pelos idosos. Isso nem sempre sucede e a miséria está
desnaturando essa solidariedade onde ela existia antes (p.
27).
Mesmo em meio a tanta indefinição e incerteza, Kindzu revela-
se um incansável sonhador em busca de um lugar onde ainda imperem a
paz e a esperança: “Eu ouvia os anciãos e ainda duvidava: não restaria,
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ao menos, um lugarzinho onde eu me encontrasse em privado sossego?
Um sítio que a guerra tivesse esquecido?...” (COUTO, 1992, p. 32). Esse
embate entre as tradições, os costumes, o novo, e o estrangeiro é expresso
no choque entre as línguas, como percebemos na fala de Kindzu: “Esses
fantasmas nos falavam em nossas línguas indígenas. Mas nós já só
sabíamos sonhar em português” (COUTO, 1992, p. 103). Essa
confluência de línguas, modos de vida diversos faz nascer em Kindzu o
anseio de reencontrar um lugar que substitua as suas origens “Farida
queria sair da África, eu queria encontrar outro continente dentro de
África” (COUTO, 1992, p. 103).
Portanto, Marquêa (2007) discorre sobre esse sentimento de
estranhamento vivenciado por Kindzu:
As culturas africanas, na maioria ágrafas, eram e
continuam sendo ainda o canal veículo de costumes e
valores da sua tradição. A grande quantidade de línguas
existentes em Moçambique, que ultrapassa vinte, se
transformava num momento em que os próprios
moçambicanos se sentiam estrangeiros em sua própria
casa, agora abrigados sob o nome do Estadomoçambicano
e sob a língua oficial portuguesa (p. 167).
Toda a narrativa coutiniana desenrola-se nessa perspectiva,
repleta de personagens errantes, que perambulam à procura dos seus, de
si, enfim do seu país, logo que, como sentenciara o feiticeiro no último
capítulo a Kindzu, “esta guerra não foi feita para vos tirar do país, mas
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para tirar o país de dentro de vós”; “roubaram-vos tanto que nem sequer
os sonhos são vossos, nada de vossa terra vos pertence, e até o céu e o
mar serão propriedades de estranhos” (COUTO, 1992, p. 200). Nesse
seguimento, os cadernos de Kindzu representam ao longo da viajem de
Muidinga e Tuahir, uma incursão ao conhecimento ancestral e também
uma fonte de esperança em meio aos destroços causados pela guerra.
Percebemos essa intenção na fala de Kindzu ao dialogar com o fantasma
do pai:
-O que andas a fazer com um caderno, escreves o
quê?
-Nem sei, pai. Escrevo conforme vou sonhando.
-É bom assim: ensinar alguém a sonhar.
-Mas pai, o que passa com esta nossa terra?
-Você não sabe, filho. Mas enquanto os homens
dormem, a terra anda procurar.
-A procurar o quê, pai?
-É que a vida não gosta sofrer. A terra anda
procurar dentro de cada pessoa, anda juntar
sonhos. Sim, faz conta ela é uma costureira dos
sonhos (COUTO, 1992, p. 95).
Nesse sentido, ao analisar a questão da Tradição Oral no romance
Terra Sonâmbula, podemos observar que a proposta de Mia Couto ao
escrever essa narrativa, por meio de uma estória dentro de outra estória,
a de Muidinga e Kindzu, nos apresenta uma trama que aparentemente
parece fragmentária e com estórias desconexas, mas que no decorrer do
livro se completam e se explicam. O autor, por sua escrita, revela o seu
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desejo de reconstrução do homem moçambicano, não pela volta ao
passado, mas por remeter a ele produzindo um confronto entre passado e
presente, e consequentemente um caminho para o futuro. Tomando as
palavras de Marquêa (2007, p. 51): “Nesse sentido, a literatura de Mia
Couto não seria o resgate do passado, nem o lamento de suas soluções,
mas o passado seria um motivo que faria da memória de Moçambique
uma edificação poética que não distanciada da guerra e da destruição
pode propor seu reverso”.
Em meio a uma sociedade destruída por guerras e devastações,
caracterizada por uma ruptura com os saberes ancestrais e uma
desintegração identitária constante, a literatura de Mia Couto representa-
se como um espaço de refúgio, onde a idealização de um mundo novo
possa ser instaurado. Utilizando-se de artefatos poéticos, para dar vazão
a indivíduos marginalizados e denunciar o descaso e abandono
vivenciado em Moçambique, é possível perceber a predominância de
aspectos que buscam abordar a riqueza que a tradição oral constitui na
história do povo moçambicano – temática presente não só em Terra
Sonâmbula, mas em todas as obras de Mia Couto.
Referências
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UFMG, 1998.
COUTO, Mia. Terra sonâmbula. Lisboa: Caminho, 1992.
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