Nem pastores... Sayão

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Nem pastoras, nem pastores O debate acerca da legitimidade do pastorado feminino perde importância diante do ensino do Novo Testamento sobre a liderança cristã Por Luiz Sayão Recentemente, a questão do ministério feminino nas igrejas evangélicas veio à tona no cenário religioso brasileiro. Artigos e reportagens têm se multiplicado, tanto no contexto evangélico como no ambiente secular. Como avaliar a questão? Trata-se de um desvio ou uma evolução? O pastorado feminino é um problema ou a grande solução para a igreja? Parece difícil lidar adequadamente com a questão sem reconhecer o distanciamento acentuado entre a perspectiva predominante em nossos dias sobre o pastorado e o enfoque neotestamentário sobre o tema. E a visão geral tem sido prejudicada, já que os que tratam do assunto geralmente são apenas "contra" ou "a favor" do pastorado feminino. A maioria dos estudiosos do Novo Testamento reconhecerá que bispos, presbíteros e pastores são termos intercambiáveis na eclesiologia da igreja do primeiro século (Atos 20.28). Aquela igreja tinha apóstolos, bispos (pastores) e diáconos como funções reconhecidas de modo particular na comunidade, conforme os textos de I Timóteo 5.22 e Tito 1.5. Apesar das evidências de que esses oficiais eram formalmente reconhecidos pela imposição de mãos, isso não recebe muita ênfase no Novo Testamento. Mas, quem era o pastor do Novo Testamento? Qual era sua função? Mesmo que o termo "pastor" mereça menor atenção nas epístolas, onde predomina o uso da palavra "presbítero", fica claro, em passagens como a de Hebreus 13.17 ou I Pedro 5.1, que os líderes das igrejas do Cristianismo primitivo tinham de cuidar, pastorear o rebanho de Deus. Além disso, esse pastor tinha a responsabilidade de ensinar; portanto o pastor- mestre deveria ser aquele que ensinava e orientava o povo de Deus. Já os termos "bispo" e "presbítero" trazem consigo a ideia de liderança e de autoridade. Vários textos deixam isso ainda mais claro, como I Timóteo 3.4,5 e Hebreus 13.17. Portanto, ensino, liderança e pastoreio parece resumir o ministério do pastor neotestamentário. Todavia, quando pensamos na função pastoral, algumas ênfases do Novo Testamento parecem ter perdido força em nossa tradição. Uma delas é quanto à liderança pluralizada da igreja primitiva. Não havia a ideia de uma autoridade tão centralizada — tanto, que fala-se em "presbíteros da igreja". Esse é um padrão neotestamentário muito importante, pois reconhece a ação do Espírito na comunidade e divide o poder. Fica claro que a igreja não pode ter a concentração de poder e de autoridade num único indivíduo. Além disso, o pastor neotestamentário, de fato, representa a comunidade. A autoridade não está nele, nem dele procede; era a igreja que elegia e decidia as questões, conforme Atos 6.3-5. Assim, a autoridade do líder procedia da comunidade e dependia de sua fidelidade ao ensino revelado nas Escrituras e em Cristo, ou seja, não vinha do líder em si. Por isso, era preciso tomar cuidado com "lobos" e líderes falsos (Atos 20.29 e Judas 4). Diferentemente da ideia de um "santo" homem, um sacerdote especial, ou um "dono da igreja", o pastor do Novo Testamento é mais descrito como um técnico de uma equipe esportiva. Ele é uma pessoa comum, que serve a Deus e à igreja. Sua função principal parece ser a descrita em Efésios 4.12 – a preparação dos santos para o ministério. Tal descrição distancia-se de uma mistificação encontradiça em nossos dias.

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  • Nem pastoras, nem pastoresO debate acerca da legitimidade do pastorado feminino perde importncia diante

    do ensino do Novo Testamento sobre a liderana crist

    Por Luiz Sayo

    Recentemente, a questo do ministrio feminino nas igrejas evanglicas veio tona no cenrio religioso brasileiro. Artigos e reportagens tm se multiplicado, tanto no contexto evanglico como no ambiente secular. Como avaliar a questo? Trata-se de um desvio ou uma evoluo? O pastorado feminino um problema ou a grande soluo para a igreja? Parece difcil lidar adequadamente com a questo sem reconhecer o distanciamento acentuado entre a perspectiva predominante em nossos dias sobre o pastorado e o enfoque neotestamentrio sobre o tema. E a viso geral tem sido prejudicada, j que os que tratam do assunto geralmente so apenas "contra" ou "a favor" do pastorado feminino.

    A maioria dos estudiosos do Novo Testamento reconhecer que bispos, presbteros e pastores so termos intercambiveis na eclesiologia da igreja do primeiro sculo (Atos 20.28). Aquela igreja tinha apstolos, bispos (pastores) e diconos como funes reconhecidas de modo particular na comunidade, conforme os textos de I Timteo 5.22 e Tito 1.5. Apesar das evidncias de que esses oficiais eram formalmente reconhecidos pela imposio de mos, isso no recebe muita nfase no Novo Testamento.

    Mas, quem era o pastor do Novo Testamento? Qual era sua funo? Mesmo que o termo "pastor" merea menor ateno nas epstolas, onde predomina o uso da palavra "presbtero", fica claro, em passagens como a de Hebreus 13.17 ou I Pedro 5.1, que os lderes das igrejas do Cristianismo primitivo tinham de cuidar, pastorear o rebanho de Deus. Alm disso, esse pastor tinha a responsabilidade de ensinar; portanto o pastor-mestre deveria ser aquele que ensinava e orientava o povo de Deus. J os termos "bispo" e "presbtero" trazem consigo a ideia de liderana e de autoridade. Vrios textos deixam isso ainda mais claro, como I Timteo 3.4,5 e Hebreus 13.17. Portanto, ensino, liderana e pastoreio parece resumir o ministrio do pastor neotestamentrio.

    Todavia, quando pensamos na funo pastoral, algumas nfases do Novo Testamento parecem ter perdido fora em nossa tradio. Uma delas quanto liderana pluralizada da igreja primitiva. No havia a ideia de uma autoridade to centralizada tanto, que fala-se em "presbteros da igreja". Esse um padro neotestamentrio muito importante, pois reconhece a ao do Esprito na comunidade e divide o poder. Fica claro que a igreja no pode ter a concentrao de poder e de autoridade num nico indivduo. Alm disso, o pastor neotestamentrio, de fato, representa a comunidade. A autoridade no est nele, nem dele procede; era a igreja que elegia e decidia as questes, conforme Atos 6.3-5. Assim, a autoridade do lder procedia da comunidade e dependia de sua fidelidade ao ensino revelado nas Escrituras e em Cristo, ou seja, no vinha do lder em si. Por isso, era preciso tomar cuidado com "lobos" e lderes falsos (Atos 20.29 e Judas 4).

    Diferentemente da ideia de um "santo" homem, um sacerdote especial, ou um "dono da igreja", o pastor do Novo Testamento mais descrito como um tcnico de uma equipe esportiva. Ele uma pessoa comum, que serve a Deus e igreja. Sua funo principal parece ser a descrita em Efsios 4.12 a preparao dos santos para o ministrio. Tal descrio distancia-se de uma mistificao encontradia em nossos dias.

  • Outra surpreendente constatao no Novo Testamento que no h praticamente meno ideia de um chamado pastoral, algo to enfatizado hoje. O texto de I Timteo 3.1 enfatiza a deciso do indivduo, e no um chamado particular: "Se algum deseja ser bispo, deseja uma nobre funo". De fato, o Novo Testamento usa o termo chamado para todos os cristos, enfatizando o pertencimento a Cristo e ao seu povo, para serem santos, servindo a Deus, como em Romanos 1.6,7 e 8.28; I Corntios 1.2 e 24; e Efsios 4.1 e 4. H um ntido contraste entre a nfase de quem quer servir por amor a Cristo e ao Evangelho e o sacerdotalismo quase mistificado em nossos dias. Muitos dos pastores atuais sentem-se distanciados das pessoas comuns, membros de uma classe diferenciada. No assim no Novo Testamento.

    Outro aspecto fundamental do pastorado da igreja primitiva o tom voltado para o carter e as virtudes do bispo-pastor-presbtero. Em vez de concentrar a ateno em suas capacidades intelectuais, como fazem, notadamente, as igrejas histricas de hoje, ou em um potencial carismtico, como a prtica dominante nas denominaes pentecostais, o enfoque bblico na postura e no comportamento pastoral. O texto de I Timteo 3, assim com o de Tito 1, muito claro. Ali, as caractersticas enumeradas so a capacidade de ensino, o domnio prprio, o controle sobre a prpria ira, o desapego ao dinheiro, a amabilidade, a fidelidade doutrina e uma vida irrepreensvel. Alm disso, o pastor deve ser amigo do bem, rejeitar o orgulho e mostrar justia e uma vida consagrada. Portanto, o pastor do Novo Testamento algum comum, que representa a comunidade, tem a fidelidade do seu ensino como fonte de autoridade e que deve servir, cuidar dos outros e exercer a liderana de maneira compartilhada.

    Valor da mulher

    Em relao existncia de mulheres no pastorado, a primeira grande questo como se lida com o texto bblico. Geralmente, com uma lgica muito sistemtica e uma abordagem que ignora a riqueza e a dialtica de certas tenses neotestamentrias, chegamos a concluses precipitadas. A verdade que o Novo Testamento valoriza muito o ministrio feminino e, ao mesmo tempo, o limita. Dentro da lgica hebraica, no de nada estranho que Jesus no tenha escolhido nenhuma apstola - mas que, na hora da ressurreio, a proclamao mais importante da histria da teologia tenha sido um privilgio feminino. Quem poderia esperar que o mais teolgico dos quatro evangelhos fosse, no seu desfecho, trazer o testemunho apaixonado da ressurreio de uma mulher como Maria Madalena? Era risco demais para uma possvel apologtica, e qualquer religioso da poca rejeitaria esse testemunho. O mesmo tipo de lgica encontrado no Antigo Testamento. O primognito o filho especial, mas Deus age, muitas vezes, atravs do filho mais novo.

    Portanto, contra todos que refreiam o ministrio feminino, o Novo Testamento faz questo de enfatizar a importncia das mulheres, principalmente nos textos de Lucas. O livro de Atos dos Apstolos e as cartas de Paulo muitas vezes apontado como machista mencionam com naturalidade Priscila, Ldia, Febe, Evdia, Sntique e Ninfa, entre outras mulheres, sem falar das profetizas. Alguns chegam a sugerir que a "senhora eleita" citada em II Joo poderia ser uma pastora da igreja local. Portanto, no h dvida de que a teologia do Novo Testamento, em geral, quer dar mulher um lugar de honra, em contraste com o paganismo e o judasmo da poca. Isso fica claro no ensino e na postura de Jesus e dos apstolos.

    Todavia, para os adeptos de um igualitarismo pleno, o Novo Testamento bastante incmodo em vrios textos. H uma clara nfase em algum tipo de submisso feminina,

  • tanto em casa como na igreja. Uma simples busca da palavra "mulheres" vai mostrar que a maior parte das ocorrncias fala em submisso caso de I Corntios 14.34; Efsios 5.22; Colossenses 3.18; I Timteo 2.8-15 e I Pedro 3.1. E a simples argumentao contempornea contra o valor desses textos de preocupar, j que, geralmente, so apenas de natureza sociolgica e chegam a desmerecer Paulo (e Pedro). Parece, de fato, que se desconsidera a autoridade dos textos bblicos. Para apimentar ainda mais a discusso, o texto-chave, I Timteo2.8 fundamenta a limitao feminina em argumentos teolgicos (criao e queda), e no em aspectos culturais ou sociais.

    O melhor argumento em favor de um igualitarismo pleno entre homens e mulheres seria comparar as limitaes femininas escravido. Assim como a escravido acaba por ser rejeitada pela comunidade crist como decorrncia da antropologia neotestamentria, as mulheres deveriam ser plenamente igualadas aos homens. Mas, deve se reconhecer que a maneira como o Novo Testamento trata do assunto diferente: no h argumentao teolgica semelhante no caso da escravido. Apesar disso, deve-se considerar que todos esses textos tm um contexto especfico, e que ele foram escritos em funo de situaes peculiares. importante dar ateno ao ensino teolgico do texto, sem deixar de ver os elementos contextuais que o cercam. O fato que h, no Novo Testamento, uma nfase de que homens e mulheres so interdependentes e complementares. Chega a ser interessante o texto difcil de I Timteo 2.15: Entretanto a mulher ser salva dando luz filhos - se elas permanecerem na f, no amor e na santidade, com bom senso". A ideia que a mulher ser restaurada (salva) a uma posio de honra pelo fato de que, apesar de o homem ter sido criado primeiro, todo ser humano procede de uma mulher. A maternidade confere certa igualdade mulher aqui, enfatizando essa mutualidade.

    Servos e servas de Cristo

    Diante das Sagradas Escrituras, podemos dizer que as mulheres podem e devem ter parte no ministrio pastoral, no sentido de participar do cuidado e do ensino da igreja (Tito 2.3-5 e Atos 18.26). Todavia, elas no devem ser pastoras, no sentido de liderana ltima teolgica da igreja. Numa igreja neotestamentria, as mulheres devem ser encorajadas a participar de funes pastorais, sem serem a liderana ltima. , inclusive, importante que elas faam parte de uma equipe pastoral, para que exeram funes mais adequadas, como o aconselhamento e o cuidado de outras mulheres. No entanto, importante ressaltar que a configurao da liderana da igreja no to rgida no NovoTestamento. Por isso, necessrio ter sensibilidade ao contexto. Se, num certo sentido, uma ministra da igreja devemos entender que uma coisa s-lo na Sucia, e outra, ser pastora no Paquisto. Uma coisa a mulher de um pastor ser pastora; outra, bem distinta, ser pastora com marido no envolvido na obra de Deus ou at mesmo solteira. preciso ter bom senso e pertinncia.

    No importante ter ttulos no Novo Testamento. A questo do pastorado feminino vlida e importante, mas perifrica na teologia neotementria. de cortar o corao ver divises e conflitos de origem feminista ou machista na Igreja do Senhor. Cada igreja local deve ponderar os dois lados da questo e decidir localmente. O problema que, hoje, ser pastor ou pastora virou coisa de ttulo, cargo importante, funo superior. H uma luta por poder. Se deixssemos Atenas e Roma e fssemos para Belm, entenderamos tudo. A verdade, devo confessar, que pessoalmente tenho inveja das mulheres, pois elas receberam a recomendao mais sublime do Novo Testamento: a de serem submissas, a qualidade mais importante para quem quer ser semelhante a Jesus.

  • Na verdade, isso vale para todos, conforme Efsios 5.21. Submisso a essncia de ser cristo. O caminho do ministrio para baixo, uma descida, e no uma questo de subir, tornar-se importante. Pastores que amam a Jesus e a gloriosa salvao deveriam sonhar em entregar tudo que possuem (ttulos, cargos, nome, posio, honra) aos ps do Senhor.

    Podemos discordar e questionar acerca de tudo, mas sem nunca deixar de submeter-nos Palavra, nem de amar os irmos. Portanto, o ,sentido do debate atual no deveria ser sobre a legitimidade do oficio de pastores ou pastoras, mas sim, se estamos dispostos a sermos servos (escravos) de Jesus Cristo. No dessa maneira que o prprio apstolo Paulo se definiu em Romanos 1.1?

    Luiz Sayo hebrasta, telogo e diretor do Seminrio Teolgico Batista do Sul do Brasil, no Rio de Janeiro

    Artigo publicado na revista Cristianismo Hoje Abril/Maio-2014