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O título deste artigo contrapõe duas metáfo- ras. A primeira é muito conhecida, pois foi utiliza- da por Max Weber (1951, 1958) para caracterizar as religiões orientais como casos radicais de encanta- mento em que, apesar das diversas condições que a China e a Índia antigas disporiam para desenvol- ver uma economia racional de tipo capitalista, ja- mais poderiam espontaneamente chegar a ela, em decorrência de obstáculos religiosos intransponí- veis. A segunda delas é de minha lavra, mas inspi- rada em Peter Berger que, em texto recente, par- cialmente publicado em português, declara existir [...] uma subcultura internacional composta por pessoas de educação superior no modelo ociden- tal, em particular no campo das humanidades e das ciências sociais, que é de fato secularizada. Essa subcultura é o vetor principal de crenças e valores progressistas e iluministas. Embora sejam relativamente pouco numerosos, são muito in- fluentes, pois controlam as instituições que defi- nem “oficialmente” a realidade, principalmente o sistema educacional, os meios de comunicação de massa e os níveis mais altos do sistema legal (2001, pp.16-17). A realidade que no título declaro não repro- duzir nenhuma nem outra das situações metafóri- cas é, em termos genéricos, a sociedade brasileira e, mais especificamente, o campo religioso brasi- leiro contemporâneo. Mas este será meu ponto de chegada, ao final da exposição. Pretendo discutir, de início, algumas interpre- tações da sociologia da religião de Max Weber, se- guramente o autor clássico que exerce a maior in- fluência não só na sociologia contemporânea, mas nas ciências sociais em geral (Souza, 2000). Entre as alternativas possíveis, escolhi dois autores que me parecem mais expressivos na área da sociolo- NEM “JARDIM ENCANTADO”, NEM “CLUBE DOS INTELECTUAIS DESENCANTADOS” Lísias Nogueira Negrão Artigo recebido em março/2005 Aprovado em julho/2005 RBCS Vol. 20 nº. 59 outubro/2005

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critica sociologia da religião

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O título deste artigo contrapõe duas metáfo-ras. A primeira é muito conhecida, pois foi utiliza-da por Max Weber (1951, 1958) para caracterizar asreligiões orientais como casos radicais de encanta-mento em que, apesar das diversas condições quea China e a Índia antigas disporiam para desenvol-ver uma economia racional de tipo capitalista, ja-mais poderiam espontaneamente chegar a ela, emdecorrência de obstáculos religiosos intransponí-veis. A segunda delas é de minha lavra, mas inspi-rada em Peter Berger que, em texto recente, par-cialmente publicado em português, declara existir

[...] uma subcultura internacional composta porpessoas de educação superior no modelo ociden-tal, em particular no campo das humanidades edas ciências sociais, que é de fato secularizada.Essa subcultura é o vetor principal de crenças e

valores progressistas e iluministas. Embora sejamrelativamente pouco numerosos, são muito in-fluentes, pois controlam as instituições que defi-nem “oficialmente” a realidade, principalmente osistema educacional, os meios de comunicaçãode massa e os níveis mais altos do sistema legal(2001, pp.16-17).

A realidade que no título declaro não repro-duzir nenhuma nem outra das situações metafóri-cas é, em termos genéricos, a sociedade brasileirae, mais especificamente, o campo religioso brasi-leiro contemporâneo. Mas este será meu ponto dechegada, ao final da exposição.

Pretendo discutir, de início, algumas interpre-tações da sociologia da religião de Max Weber, se-guramente o autor clássico que exerce a maior in-fluência não só na sociologia contemporânea, masnas ciências sociais em geral (Souza, 2000). Entreas alternativas possíveis, escolhi dois autores queme parecem mais expressivos na área da sociolo-

NEM “JARDIM ENCANTADO”, NEM“CLUBE DOS INTELECTUAISDESENCANTADOS”

Lísias Nogueira Negrão

Artigo recebido em março/2005Aprovado em julho/2005

RBCS Vol. 20 nº. 59 outubro/2005

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gia da religião e que podem ser considerados qua-se “clássicos”: Pierre Bourdieu (1974) e Peter Ber-ger (1971, 2001). Como complemento da discus-são, introduzi um autor brasileiro, Antônio FlávioPierucci (1988, 2001, 2003), que vem se empe-nhando na sistematização teórica e na clarificaçãode conceitos weberianos.

O primeiro deles não é propriamente um so-ciólogo da religião, mas um teórico da cultura.Sua escolha, não obstante sua obra exígua na áreade meu interesse, decorre da qualidade de seutrabalho e de sua criatividade conceitual: a noçãode campos diferenciados de relações sociais, ge-nericamente por ele utilizada em suas análises,conduziu, em sua aplicação às relações religiosas,ao conceito de campo religioso, largamente utili-zado pela sociologia da religião, mesmo em con-textos teóricos distanciados da referência inicial.

Quanto a Peter Berger, já estamos diante deum assumido sociólogo da religião, autor de vá-rios outros livros além do citado, nesta área de es-tudos, embora um tanto discriminado pela intelec-tualidade brasileira, antes por motivos ideológicos– é protestante, liberal e foi assessor para assuntosreligiosos do ex-presidente Nixon – que propria-mente acadêmicos. Vai além da proposta de Bour-dieu porque não se limitou a rever as teorias clás-sicas da religião, como este, mas aplicou sua teoriana análise empírica, no caso das religiões norte-americanas contemporâneas.

A seleção de ambos justifica-se também poralguns traços comuns presentes em suas análise,entre os quais menciono três:

1. São autores teoricamente ecléticos, que partemde pressupostos das três tradições clássicas,dos três “círculos mágicos”. Bourdieu (1974)afirma levar a sério tanto a concepção durkhei-miana da origem social da religião, quanto aafirmação marxista da realidade das classes so-ciais e sua influência sobre a religião e, ain-da, a idéia weberiana da ação religiosamen-te orientada. Berger (1971) radicaliza tal posiçãoem sua “dialética do social”, ao afirmar queapenas juntas as posições weberiana – a reali-dade social constituída de significações huma-nas – e durkheimiana – a objetividade do so-cial contrastante com a esfera individual – sãocorretas e capazes de captar adequadamente a

realidade empírica. Também Marx não está au-sente, implícito em sua afirmação de que estarealidade é um produto coletivo da ação hu-mana, o que para ele seria um pressuposto daantropologia marxista. Trata-se, portanto, desínteses teóricas tecidas com sutileza e criativi-dade e não de “amálgamas grosseiras” ou de“simples bricolages”.

2. Por outro lado, ambos admitem a existência decerta analogia entre os fenômenos religiosos eos econômicos. Bourdieu assume que o cam-po religioso foi precedido por uma situação deautoconsumo, em que os próprios consumido-res dos bens religiosos eram os seus produto-res. Expropriados pelos sacerdotes, que pas-sam a deter o monopólio legítimo da gestãodesses bens, transformam-se em leigos, estra-nhos ao sagrado, porém dotados de um habi-tus religioso que os faz sentir a necessidade deconsumi-los. Já em Berger, há a distinção en-tre uma situação de monopólio religioso, emque se tem apenas uma religião institucionali-zada, protegida pelo Estado, ao qual conferelegitimidade por lhe atribuir origem divina. Aomonopólio se contrapõe o mercado religioso,característico das sociedades modernas, plura-listas do ponto de vista religioso. As diferentesigrejas ou agências religiosas competem entresi, agora diante de um Estado neutro e assegu-rador da livre concorrência pela preferênciados leigos-consumidores.

3. Nem sempre são fiéis a Weber. Ao incorporara perspectiva weberiana, partem dele e deseus conceitos para, no avançar de suas refle-xões, dele se distanciarem a ponto de implí-cita ou explicitamente renunciarem às suasproposições fundamentais. Permanecem os con-ceitos, mas agora como rótulos despidos deseus conteúdos explicativos.

Minhas análises centrar-se-ão neste últimoponto, pois que a proposta, no momento, é justa-mente demonstrar que, apesar das intenções teó-ricas sintéticas, Weber não é realmente integradoàs interpretações dos autores, nelas aparecendode forma secundária, desligado de suas intençõesoriginais.

Em seu estudo, Bourdieu parte de um pres-suposto weberiano, o do “trabalho religioso”, exer-

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cido pelos protagonistas do sagrado – sacerdote,profeta e feiticeiro – em luta desigual, devido aomonopólio da legitimidade detido pelo primeirodeles, quanto à ministração dos serviços religio-sos. Pondera que o próprio Weber considerava talidéia um aspecto secundário em sua obra, postoque, argumenta Bourdieu, estaria mais preocupa-do em demonstrar a capacidade criativa das idéiasreligiosas ante o materialismo histórico. Esta já éuma suposição em si discutível, conforme desdehá muito considera Gabriel Cohn, especialista emsociologia weberiana que, diante de afirmaçõescomo esta, advertia seus alunos do Curso de Ciên-cias Sociais da USP para o fato de que o pensa-mento de um sociólogo deste porte não poderiaser considerado tributário do pensamento de ou-tro, mas se sustentaria por ele próprio. Mas, mes-mo assim, entre restrições críticas, Bourdieu exal-ta o valor do conceito de trabalho religioso, poispor meio dele

Weber nos fornece o meio de escapar à alternati-va simplista de que são produto suas análisesmais duvidosas, ou seja, à oposição entre a ilusãoda autonomia do discurso mítico ou religioso e ateoria que torna este discurso o reflexo direto daestrutura social (1974, p. 32).

Embora partindo de Weber, Bourdieu dele sedistancia em um ponto essencial: na avaliação do pa-pel da intersubjetividade na mudança histórica. Con-sidera a análise weberiana dos protagonistas da açãoreligiosa problemática pelo seu caráter típíco-ideal ea critica pela pobreza histórica de suas generaliza-ções. Propõe-se a corrigir (!) o esquema relacionalentre especialistas e leigos elaborado por Weber,passando a entendê-las não mais como relações in-tersubjetivas e pessoais como sustentava este, mascomo relações objetivas entre posições estruturais,que comporia um sistema dotado de lógica e dinâ-mica próprias. Não só estruturado, mas também es-truturante, tal sistema seria independente das subje-tividades envolvidas.

Ao assim proceder, perde ele totalmente asintenções originais de Weber, que teve sua moti-vação para fazer sociologia justamente na rejeiçãoàs idéias de objetividade, coerção do social sobreo subjetivo, desconsiderando inclusive a possibi-lidade de haver papéis sociais institucionalizados

ou mesmo ação coletiva. Esta aproximação deBourdieu à perspectiva durkheimiana consolida-se em sua crítica à teoria do carisma de Weber,central na explicação das mudanças sociais paraeste autor. Tal crítica incide em quatro pontos in-terrelacionados: no caráter natural/sobrenaturalque Weber atribuía ao carisma; na especificidadereligiosa deste; na ausência de remissão da buscade salvação à desigualdade social; e na atuaçãodemiúrgica do líder carismático.

Quanto ao primeiro ponto, Bourdieu deve tercomo referência a afirmação de início feita por We-ber, de que

O Carisma pode ser – e só neste caso merece talnome com pleno sentido – um dom que o obje-to ou a pessoa possuem por natureza e que nãose pode conseguir de forma alguma. Ou pode edeve ser criado artificialmente no objeto ou napessoa mediante qualquer meio extraordinário(1971, pp. 328-329, grifo meu, trad. minha).

Este texto tem que ser interpretado não comoum posicionamento pessoal de Weber, uma crençareligiosa sua. Afinal, não foi ele mesmo quem afir-mou não ter “ouvido religiosamente musical”? Deveser entendida dentro do contexto da metodologiade sua sociologia compreensiva, que recomendapartir-se do sentido atribuído pelos agentes. São es-tes que concebem o carisma desta forma, comoalgo inato, ou então, que possa ser criado median-te rituais mágicos. Isso apenas para salientar que aaquisição do carisma não é um ato voluntário, ape-sar de todo o empenho do pretenso líder em osten-tá-lo, mas que depende do referendo coletivo.Além disso, esta questão da essência e da origemdo fenômeno religioso fora por Weber afastadacomo sociologicamente irrelevante ou inoportuna,já no início de suas análises sobre a comunidade re-ligiosa na obra Economia e sociedade.

A segunda característica da teoria do carismacriticada por Bourdieu, relativa à especificidade reli-giosa atribuída por Weber à mensagem profética,deve também ser remetida aos posicionamentos teó-rico-metodológicos do autor clássico, no caso, à fugade explicações baseadas em monismos determinísti-cos. As determinações entre as diferentes esferas davida social existem, mas suas direções nunca são pre-visíveis, pois que variáveis histórica e espacialmente

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A mensagem religiosa ética pode, e freqüentementeestá, reconhece ele, perpassada por interesses políti-cos e econômicos, embora, como afirmações radicaisde valores, reflitam sobretudo interesses ideais. Mas éjustamente o trabalho religioso exercido pelo prota-gonista do sagrado (paradoxalmente concepção tãoexaltada por Bourdieu), no caso o profeta, que lheconfere sua essência religiosa. Como expressão radi-cal de valor, o autêntico carisma, que somente existeem estado puro no momento de sua manifestaçãoinicial, é o oposto de toda racionalidade econômicaou burocrática, não visa o lucro e ignora as regras. Afonte do poder político e da qualificação administra-tiva é exclusivamente carismática.

Se, para Bourdieu, Weber não qualificava oprofetismo como sendo movimento de caráter po-lítico e econômico, seria justamente porque nãolevaria em conta a realidade das classes sociais di-ferenciadas, segundo o modelo explicativo mar-xista. Isto fica muito claro quando critica a noçãoweberiana de teodicéia:

Se a religião cumpre funções sociais, tornando-se,portanto, passível de análise sociológica, tal sedeve ao fato de que os leigos não esperam da re-ligião apenas justificações capazes de livrá-los daangústia existencial da contingência e da solidão,da miséria biológica, da doença, do sofrimentoou da morte. Contam com ela para que lhes for-neça justificações de existir como de fato existem,ou seja, com todas as propriedades que lhe sãosocialmente inerentes [...]. Assim, as teodicéiassão sempre sociodicéias (1974, pp.48-49).

Mesmo refutando o materialismo históricocomo teoria explicativa dos fenômenos da desigual-dade social, Weber sempre incluiu a relação classesocial/tipo de religião em suas análises, como afini-dades eletivas: a magia como característica do cam-pesinato; entre as classes médias citadinas (no caso,artesãos e comerciantes) e as profecias éticas; entrea burguesia e o proletariado e a indiferença religio-sa, embora a primeira tenha se identificado ao pro-testantismo ascético em suas origens e o segundo,em casos de ameaças de expoliação, tenha aderidoa religiões salvacionistas. Por outro lado, no casodas teodicéias também se preocupou em relacioná-las às condições sociais de seus agentes, tal comoaparece na dicotomia teodicéia da felicidade, dos ri-cos e felizes demandando por legitimação, e a do

sofrimento, dos pobres e infelizes demandando porsalvação. Mesmo no caso do hinduísmo, Weber re-laciona o sistema de castas à que seria a mais efi-ciente teodicéia jamais produzida pela humanidade,a doutrina do Karma.

Por fim, a questão do caráter extraordináriodo líder carismático, enfaticamente criticada porBourdieu. Na abordagem sociológica, não podendotal caráter provir da natureza ou do transcendente,embora, para ele, Weber assim o considerasse, de-veria provir necessariamente da sociedade. Mas,como em sua leitura do autor clássico, tal fonte so-cial não fosse considerada, seria ela então umainexplicável “criação ex-nihilo” (1974, p. 73). Parafugir desses pretensos equívocos da teoria weberia-na do carisma, Bourdieu propõe considerar o pro-feta não como homem excepcional, mas como ohomem das situações excepcionais. Colocação essaque de novo acrescenta apenas ênfase à perspecti-va de Weber, que já se referira à estrutura carismá-tica como sendo nascida do entusiasmo de situa-ções extraordinárias, em épocas de grandesatribulações de ordem psíquica, econômica, políti-ca ou religiosa.

Diria que somente uma interpretação em quese rompa com qualquer continuidade entre o indi-víduo e seu contexto social, visto estrutural ou con-junturalmente, poderia desconectar o profeta de seutempo, de sua época, de sua situação. Para Webero profetismo é um tipo de relação e de dominaçãosocial calcada na emotividade. O líder só o é por-que tem liderados seguidores que acreditam emsuas virtudes excepcionais e em suas mensagens. Aanálise weberiana, calcada na intersubjetividade ésim, análise sociológica, evoluindo da ação indivi-dual, passando pela relação até chegar ao planodas institucionalizações e suas rupturas.

Porém não é esta a percepção de Bourdieu:

Para romper com esta definição, é preciso conside-rar a relação entre o profeta e os discípulos leigoscomo um caso particular da relação que se estabe-lece, segundo Durkheim, entre um grupo e seussímbolos religiosos: o emblema não é apenas umsigno que exprime “o sentimento que a sociedadetem de si mesma”; ele “constitui” este sentimento.Da mesma forma que o emblema, a fala e a pessoado profeta simbolizam as relações coletivas porquecontribuíram para constituí-las (1974, p.92).

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O profeta como emblema do social, assimcomo o totem seria o emblema do clã. Puro Dur-kheim! De Weber nada restou, a não ser a desqua-lificação de suas interpretações. Em tese relativa-mente recente, Pierucci assim referiu-se ao textodo autor:

Aquele compêndio sistemático de sociologia dareligião publicado em Economia e Sociedade, oqual Bourdieu sistematizou ainda mais, e esque-matizou, dando-lhe um plus inesperado de ope-racionalidade (2003, p. 16).

Ainda que isso possa ser, em parte, verda-deiro, tal operacionalização custou muito caro:nada menos o que nele há, especificamente, desociologia compreensiva.

Passemos ao outro autor, Peter Berger.Berger entende a religião como uma forma

de atribuição de significado à vida natural e socialque exerce função nomizadora. Na ausência deinstintos sociais, os homens sentem-se compeli-dos a criar uma ordem significativa, por ele desig-nada pela palavra “nomos”, extensão do cosmossagrado e absoluto, fora do qual existe apenas ocaos, os terrores da anomia.

Quando se dá por estabelecido o nomos comopróprio da “natureza das coisas”, entendido cos-mológica ou antropologicamente, se lhe dota deuma estabilidade que deriva de fontes mais pode-rosas do que os esforços históricos dos seres hu-manos. É este o ponto em que a religião entrasignificativamente em nossa exposição. A religiãoé a empresa humana mediante a qual se estabe-lece um cosmos sagrado. Para dizê-lo de outramaneira, a religião é a cosmicização de um modosagrado (1971, p. 40, trad. minha).

Mas a religião é também uma forma de alie-nação, pois por meio dela a sociedade oculta seucaráter de construção humana. Como tal, sua or-dem é relativa e precária, uma vez que pode sertransformada por um ato de vontade ou decisão.Reconhecer-se como produto humano não permi-tiria que fosse legitimada e aceita pelas novas ge-rações. Daí a ocultação, necessária à sua reprodu-ção ordenada no tempo, obtida através daremissão a um cosmos sagrado. A religião, na me-dida em que produz a perda da consciência de

que o mundo humano é um mundo socialmentecriado e mantido, constitui-se no agente privile-giado da falsa consciência e da alienação. Embo-ra use estes últimos termos, sua análise nada temde marxista, pois o que se oculta não é a domi-nação de classe, mas o caráter social da constru-ção da sociedade. Esta é vista por Berger comouma totalidade indivisa, cuja transmissão se dáentre gerações. A questão em pauta é a da ordem,de sua transmissão e manutenção. Mais próximade Durkheim que de Marx ou mesmo de Weber.

No entanto, em Berger a temática weberianado sentido e da orientação normativa da ação estãoclaramente presentes. No capítulo 5, denominado“O Processo de secularização”, o autor procura con-textualizar a sociologia da religião de Weber, me-diante sua interpretação geral do processo de racio-nalização característico do Ocidente, do papel daprofecia ética, especialmente do judaísmo e do pro-testantismo no desencantamento do mundo e, porfim, da secularização no mundo moderno, que abreespaço ao pluralismo religioso contemporâneo.Suas análises reproduzem sinteticamente as inter-pretações weberianas, com alguma imprecisão, con-tudo, no que se refere aos conceitos de desencanta-mento do mundo e de secularização. Diversamentede Bourdieu, a influência da metodologia e da pers-pectiva weberiana de análise dos fenômenos religio-sos permaneceu grande no livro de Berger, mesmoque dela tenha se afastado em textos posteriores.

Mais recentemente, Berger (2001), impres-sionado com o que chamou de ressurgência dasreligiões nas últimas décadas do século passado,passou a defender a discutível idéia da dessecula-rização. Neste novo trabalho continua a atrapalhá-lo sua falta de clareza conceitual, principalmenteno que se refere à própria secularização. Suspen-do essa discussão, no momento, para retomá-lamais adiante, a propósito das considerações dossociólogos da religião, inclusive brasileiros, sobreas transformações que se deram no campo reli-gioso na atualidade, sobretudo no Brasil.

Em meados do século XX as análises webe-rianas relativas ao desencantamento do mundo eà secularização crescente no mundo contemporâ-neo pareciam ter sido confirmadas. Não que We-ber adotasse uma perspectiva evolucionista delongo alcance, que pressuporia a morte da reli-gião em uma sociedade moderna totalmente ra-

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cionalizada pela ciência, pela tecnologia e pelocálculo. Não. Weber considerava que na moderni-dade a religião preservaria seu espaço, mas queseria extraditada da esfera pública para a privada.Naquela predominaria um Estado secularizado,legitimado pelo direito racional e burocraticamen-te administrado. Isso não quer dizer que tais ten-dências o agradassem: sua metáfora da “jaula deaço” (sempre discutida se dele mesmo ou de seutradutor para o inglês, Talcot Parsons) e seus la-mentos de que a sociedade moderna, burocráticae sufocante da criatividade individual seria “à pro-va de fuga”, revelam-no bem. Mas nesta socieda-de a religião deveria persistir, isto é, continuarsendo uma de suas esferas, porém não mais como poder de antes, restrita ao universo da indivi-dualidade e da família. Partindo dessas considera-ções e mantendo seu espírito, considera Berger:

Tal religiosidade privada, por mais “real” que pare-ça ao indivíduo que a adota, já não pode cumprir afunção clássica da religião – a de construir um mun-do comum no interior do qual toda a vida social re-cebe um significado supremo que une a todos. Pelocontrário, esta religiosidade limita-se a domínios es-pecíficos da vida social, que efetivamente podemestar segregados dos setores secularizados da socie-dade moderna. Os valores próprios da religiosidadeprivada são tipicamente alheios a outros contextosinstitucionais que não sejam da esfera privada [...].A religião manifesta-se como retórica pública e vir-tude privada. Em outras palavras, até onde a reli-gião é comum, carece de “realidade” (1971, pp. 164-165, trad. minha).

Nas décadas de 1960 e 1970, em âmbito inter-nacional, o que também repercutiu no Brasil, o de-sencantamento e a secularização emergiram de for-ma contundente: falava-se no exílio do sagrado(para o refúgio de grupos comunitários), em “reli-gião invisível” (Luckman) e em “Eclipse do sagra-do” (Acquaviva). Vivia-se o período da “crise das ins-tituições religiosas produtoras de sentido”, dasigrejas vazias, da crise de vocações religiosas parao sacerdócio, da perda da influência das autorida-des religiosas e, no Brasil, do abandono da IgrejaCatólica por parte de padres que se engajavam emmovimentos políticos.

Nas últimas décadas do século XX, paralela-mente à expansão globalizadora ocidental, de um

lado, e à falência das experiências do socialismoreal, de outro, ressurgem as religiões no cenáriomundial. O Papa João Paulo II recompôs a autori-dade da Igreja centralizada em Roma e ganhouprojeção, inclusive como vulto político de relevân-cia internacional. Os seminários voltam a ter umpúblico maior de pessoas com vocação religiosa ea Igreja deixa-se revitalizar por movimentos leigos,porém controlados de perto. No mundo todo, masespecialmente na América Latina, tem-se o queBerger chama de “explosão evangélica” que, jun-tamente com a “explosão islâmica”, passa a ser aforça motriz da religiosidade em contraponto à se-cularização: “A contra-secularização é um fenôme-no ao menos tão importante no mundo contempo-râneo quanto a secularização” (Berger, 2001, p.13). Seria a “revanche de Deus”, conforme radica-lizava Kepel (1991), expressão que se tornou sim-bólica do retorno do “Deus exilado”.

Essas religiões ressurgentes, chama a atençãoBerger, são conservadoras e com forte apelo funda-mentalista, características que, segundo o autor, as-seguram ou renovam as certezas solapadas pela mo-dernidade, sobretudo das classes menos favorecidas– não pertencentes às elites intelectualizadas –, quetêm mais dificuldade em lidar com o relativismo e ainsegurança presentes na sociedade contemporâ-nea. Como, normalmente, aqueles que se interes-sam pela segurança do absoluto não têm mentalida-de secularizada, as religiões que buscam não são asque internalizaram racionalizações mais elaboradas.Voltaremos a essas questões mais adiante, após aná-lise dessa ressurgência religiosa no Brasil.

Antonio Flávio Pierucci, em artigo publicadoem 1998 e em tese de livre docência defendidaem 2001 e publicada em 2003, aprofundou a aná-lise e a discussão de dois conceitos essenciais àcompreensão da sociologia da religião em Weber –secularização e desencantamento do mundo. Sãoambos, artigo e tese, produtos de cuidadosa e pa-ciente pesquisa sobre os textos weberianos e deprofícuo diálogo com outros comentadores. Seuobjetivo foi não só esclarecer os conceitos, me-diante sua localização nos escritos do autor, comotambém elucidar o contexto em que foram em-pregados, ordená-los cronologicamente e, enfim,realizar sua exegese.

Pierucci encontrou o termo secularização emoito passagens da sociologia do direito (Economia

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e sociedade, cap. VII, parte 2, tomo 1), distinguin-do os seguintes empregos: expropriação dos benseclesiásticos; destradicionalização; racionalizaçãoformal das leis, do pensamento jurídico e do po-der; surgimento do direito natural como uma esfe-ra diferenciada de valor; dessacralização do pen-samento; e desencantamento. Conclui o autor que,neste contexto da sociologia jurídica e da burocra-tização do Estado, aparece genericamente “o sen-tido forte de secularização como decadência dopoder hierocrático” (1998, p. 61, grifo do autor).

Fora desse contexto, o autor constatou a utili-zação do termo, em todas as suas variações grama-ticais, apenas cinco vezes, três em A ética protestan-te e o espírito do capitalismo e duas no ensaio sobreas seitas protestantes norte-americanas. Nessas pas-sagens o termo parece ter aplicações mais variadas:apego ao material pelos protestantes, na ótica cató-lica; ideologização do senso comum pelos holande-ses, em que a identificação entre pobreza e crençaem Deus se transmuta em identificação entre traba-lho e baixos salários; confisco das propriedades daIgreja no século VIII por Carlos Martel; e substitui-ção da afiliação a seitas protestantes por associa-ções civis a que se adentram por votação, como ga-rantia de confiabilidade para homens de negócio. Ouso rarefeito e variado do conceito de secularizaçãonas demais obras de Weber, em face de sua univo-cidade e abundância relativa em sua sociologia ju-rídica, leva Pierucci a concluir que esta constituiriaseu núcleo duro e monossêmico.

Quanto ao conceito de desencantamento demundo, Pierucci compulsou dezessete textos ao lon-go da obra weberiana escrita entre os anos de 1913e 1920, aos quais denominou “passos”. O conceitonão é unívoco, pois desdobra-se em dois tipos: de-sencantamento do mundo pela religião e pela ciên-cia. O primeiro refere-se ao processo de desmagifi-cação procedida pela religião ética, iniciado pelosprofetas pré-exílicos israelitas e que alcançou seuápice com a emergência do protestantismo ascéticoracionalizado; o segundo, pelo desenvolvimento daciência, do cálculo e da tecnologia, que relegaram areligião ao âmbito do irracional e a destituíram desua proeminência na vida social.

Examinando os conteúdos do conceito, Pie-rucci chega à seguinte contabilidade: em 13 dos 17“passos” considerados, o desencantamento domundo significa desmagificação – o termo apare-

ce isolado por nove vezes, e em quatro é acompa-nhado pelo significado perda de sentido. Nos qua-tro “passos” restantes, aparece apenas a expressãoperda de sentido, o que não é nada desprezível, jáque seu uso pôde ser constatado oito vezes, isola-da ou em combinação com “desmagificação”. Por-tanto, esses dois sentidos juntos constituem, segun-do o autor, o núcleo da significação do conceito.

O uso do termo em Weber de fato não é unívo-co, lá isso é verdade. Ele muda: dependendo daquestão em tela – e não do transcurso dos anosdo autor, atenção! – ele se expande e se retrai,fica mais forte ou mais fraco, mas nem por issochega a se pôr como desbragadamente polissêmi-co. É isso que pretendo deixar bem demonstradoaqui: não é hiperpolissêmico e muito menos con-traditório (Pierucci, 2001, p. 35).

Na fuga à polissemia, em si louvável, contu-do o autor projeta-se na direção contrária, rumoao estreitamento do conceito além do que, talvez,o próprio Weber pretendeu. Digo isso a partir daleitura atenta dos 17 “passos” pinçados pelo ana-lista, de sua contextualização bibliográfica e doscomentários pertinentes realizados sobre eles.Meu ponto de partida será o primeiro “passo”,onde parece haver um equívoco de leitura porparte de Pierucci. Vamos a ele:

A ação orientada segundo representações mágicas,por exemplo, tem muitas vezes um caráter subjeti-vamente muito mais racional com relação a fins doque qualquer comportamento “religioso” não má-gico, posto que a religiosidade, à medida queavança o desencantamento do mundo, se vê obri-gada a aceitar referências de sentido cada vez maissubjetivamente irracionais com relação a fins (refe-rências “de convicção” ou místicas, por exemplo)(Weber, “Sobre algumas categorias da sociologiacompreensiva”, p. 47, apud Pierucci, 2003, p. 16).

Neste texto Weber inverte, como bem o per-cebe Pierucci, sua tradicional oposição entre ma-gia e religião, considerando esta irracional diantedaquela. O que aqui está sendo discutido por We-ber é justamente a distinção entre formas alterna-tivas de acesso ao supra sensível. Não é sem mo-tivo, portanto, que Pierucci elabore uma excelenteanálise sobre a questão, chamando a atenção para

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o que Weber enfatiza a esse propósito ao longo deseus escritos e omite no texto citado: o caráter sis-temático e racional da profecia cosmogônica dian-te do caráter parcelar da manipulação mágica. Ofato de esta dicotomia entre o carisma mágico e ocarisma religioso ter sido focada pelo próprio We-ber mostra que o desencantamento de mundo aque ele se refere no “passo 1” é aquele realizadopela religião, e não pela ciência. Tanto é assimque suas referências às expressões tidas, neste tex-to, como mais irracionais, em face da magia noque se refere aos seus fins, são as profecias éticas(de convicção) ou místicas, e não as intrinseca-mente racionais, como seriam no caso do “desen-deusamento” da religião pela ciência. São irracio-nais quanto aos fins por se tratar de valoresincapazes de serem cientificamente verificados ouvalidados, e por remeter a um imaginário absolu-tamente transcendente. No entanto, são capazesde orientar comportamentos, estes sim, muito maisracionalizados do que os dos rituais mágicos.

Se minha leitura está correta, o significadodo desencantamento não é a perda de sentido,como pretende Pierucci (2003, p. 47), mas justa-mente o seu contrário – ganho de sentido! Sendoo mundo desencantado pela religião, esta, ao mes-mo tempo em que desmagifica, confere sentido aomundo, mesmo que apelando a valores subjetiva-mente irracionais e remetendo ao transcendente.Contrariamente à religião profética, racionalizadae eticizada, a magia não pode conferir sentidoscosmológicos mais amplos por ser deles despro-vida; seus sentidos são imediatos e parciais,como bem afirma o próprio Pierucci:

Magia não porta racionalidade teórica, nem sistê-mica, mas prática. Não prático-ética, mas prático-técnica. Uma racionalidade subjetivamente signi-ficativa apenas se encarada de modo avulso,desconexo, desconjuntado. Uma racionalidadeelementar, não sistêmica. Os atos mágicos não seperfilam numa seqüência significativa, não se or-denam num plexo homogêneo de sentido, nãosão capazes de travejar coerentemente uma con-duta de vida. Não “fazem sentido”, um sentidoque arregimente a vida de sua dispersão constitu-tiva (2003, p. 80, grifos do autor).

Tal caráter evidentemente antimágico do de-sencantamento religioso do mundo não anula mas,

ao contrário, constitui seu poder de conferição desentido de vida eticamente racionalizada. Creioque essa mesma leitura possa ser estendida à inter-pretação de Pierucci relativa ao “passo 3”, a saber:

Quanto mais o intelectualismo repele a crença namagia, e com isso os processos do mundo ficamdesencantados, perdem seu sentido mágico e do-ravante apenas “são” e “acontecem” mas não “sig-nificam” mais nada, tanto mais urgentemente re-sulta a exigência, em relação ao mundo e à“conduta de vida” como um todo, de que sejampostos em uma ordem significativa e “plena desentido” (Weber, Economia e sociedade, apud Pie-rucci, 2003, p. 48).

Não há dúvida alguma de que, no texto, a ên-fase na desmagificação está dada, conforme Pie-rucci registra. No entanto, o agente da desmagifica-ção no contexto do pensamento weberiano não é aciência, mas a religião. O que se perde é o “sentidomágico”, que, como sabemos, tem uma racionalida-de apenas embrionária e prática. O intelectualismoque repele a magia é o dos profetas éticos, dotadosda “cultura intelectual de sua época”, conforme as-severa Weber, não o dos cientistas afeitos ao cálcu-lo e à racionalidade instrumental. Somente aquelesprofetas é que podem apresentar o mundo emuma ordem significativa, conferindo-lhe sentido, jáque para os cientistas, afeitos ao “espírito de suaépoca”, isto seria impossível. Portanto, mais umavez temos ganho e não perda de sentido, contra-riamente ao que supõe Pierucci.

Não poderia ser de outra maneira. Não sóporque quem desmagifica é a profecia ética, mastambém porque não se pode desmagificar sem ofe-recer uma visão de mundo coerente, sistêmica ecosmicizante como alternativa dentro do campo re-ligioso. Desmagifica-se ao mesmo tempo e me-diante a plena conferição de sentido capaz de in-tegrar história, biografia e natureza. E quem podefazer isso é somente a profecia ética, não a ciência,reitero. Da mesma forma afirmo que não só nessesdois “passos” a idéia de ganho está implícita ou ex-plicitamente presente, mas em todos os outros oitoem que a desmagificação seja referida. Haveriaapenas perda de sentido nos casos em que Weberse refere ao desencantamento de mundo pela ciên-cia, sobretudo nos textos de A ciência como voca-ção (“passos” 7 a 12). Aí, sim, aparece claramente

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a questão da perda de sentido, pois esta é a voca-ção da ciência, qual seja, a de remeter a religião aocampo do irracional e de afirmar a carência de sen-tido vinculada a origens e fins últimos.

Embora Pierucci insista em vincular à des-magificação a perda de sentido, no que se refereao conceito de desencantamento de mundo we-beriano, ele próprio termina por reconhecer quenão se pode, dentro do universo religioso, desma-gificar sem conferir sentido. É apenas no contex-to da expansão da ciência moderna que se pode-ria encontrar um desencantamento ao mesmotempo desmagificador e despojado de sentido:

É deveras intrigante observar como a noção de umsentido metafísico que transforma o mundo emcosmos ordenado, quando considerado do pontode vista do desencantamento de mundo, tem emWeber uma dupla entrada e, mais importante, umadupla direção. O judaísmo profético, quando de-sencanta o mundo, confere-lhe um sentido ho-mogêneo, tal como explica Weber, longamente,no final da seção de Economia e sociedade dedi-cada ao profeta; em compensação, a ciência em-pírica moderna, quando desencanta o mundo, re-tira-lhe o sentido, transformando este mundonum mero mecanismo causal, em cosmos da cau-salidade natural, conforme dito e repetido n’Aciência como vocação e na Consideração inter-mediária.[...] Pode-se desencantar o mundo orde-nando-o sob um sentido que unifica, como fez aprofecia ético-metafísica, e pode-se desencantá-loestilhaçando este sentido unitário, como tem feitoa ciência empírico-matemática (2003, p. 185, gri-fos do autor).

Reconhece, portanto, que a conferição desentido é concomitante à desmagificação, no casodo desencantamento religioso, admitindo inclusi-ve que

Aqui, sim, talvez caiba pensar em plurivocidadedo desencantamento, mais ou menos na direçãoapontada por Ricoeur, para evitar que o conceitose torne vítima de uma univocidade acanhada(Idem, p. 183).

Mas, mesmo assim, insiste:

Talvez, digo eu, e vou logo acrescentando: con-tanto que não seja para dissipar em metaforiza-

ções e inconsistências sem qualquer serventiatécnico-científica esse núcleo duro do conceitoque na sociologia tardia de Weber alberga o tem-po todo uma plurivocidade binária concomitantee não estratificada (Idem, ibidem).

Tal reconhecimento, que vem atenuar a tendênciaa uma excessiva restrição do conteúdo sociológicodo conceito weberiano de desencantamento, po-deria, ainda, ser mais bem explicitado quanto àssuas especificidades: se em sua primeira formapode ser entendido como desmagificação, não o éna segunda forma. Neste caso corresponderia a umoutro processo, pois é preciso supor que, no casodo Ocidente moderno, analisado por Weber, a re-ligião atacada pelos fundamentos da racionalidadetécnico-científica já havia se expurgado dos com-ponentes mágicos mais evidentes. Diante da ma-gia, afirmava-se racionalizada ritual e doutrinaria-mente. É a essência da crença ético-religiosa que écontestada pela ciência emergente, a qual se tornaforma de saber hegemônica, ou seja, é antes “de-sendeusamento” que desmagificação. E é justa-mente por remover a crença em deuses que afastao sentido conferido pela religião, relegada à irra-cionalidade. Mas a religião ética, ao mesmo tempoem que resiste à modernidade, tentando se preser-var, de certa forma preparou-lhe o caminho, aomoldar mentalidades desencantadas e racionaliza-das, com ela eletivamente afinadas.

Infelizmente este reconhecimento, por partede Pierucci, do caráter conferidor de sentido e nãoseu anulador, contido no processo de desencanta-mento do mundo pela religião, não teve maioresconseqüências em sua análise, pois continuou aclassificar os textos weberianos (“os passos”, referi-dos anteriormente) como oscilando entre significa-dos contraditórios de desmagificação e ausência desentido. A constatação não altera sua contabilidadenem matiza a diversidade dos conteúdos/sentidoscompulsados. Insiste, portanto, na contradição aum só tempo lógica e teórica entre desmagificaçãoe perda de sentido no contexto do desencantamen-to de mundo propriamente dito.

Retomemos esta seqüência histórica entre osdois momentos do amplo processo de desencan-tamento de mundo captado por Weber. Ater-me-eiaos dois conceitos focalizados, desencantamento esecularização. Em sua busca dos sentidos de am-

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bos os conceitos, tal como os entendia Weber, Pie-rucci aproxima-se de suas obras, seleciona e ana-lisa os textos em que foram utilizados, relacionan-do-os entre si e com o horizonte mais amplo deWeber: a racionalidade característica do Ocidente.Trabalho paciente, criterioso e produtivo, apesarda discutível superposição acima exposta, no pri-meiro dos conceitos, entre desmagificação e per-da de sentido. Nesta exposição irei apenas ao es-sencial para a análise que, a partir deles, pretendefocalizar suas implicações relativas à realidade re-ligiosa brasileira.

Há um longo e contínuo processo de raciona-lização na civilização ocidental, cujo destino último(“o destino do nosso tempo”) seria o surgimentoda ciência e seu progresso ininterrupto. Neste pro-cesso, podem-se observar dois momentos cruciais.O primeiro é o célebre desencantamento do mun-do. Corresponde ao fim de uma etapa da vida dahumanidade em que a magia seria a forma predo-minante de crença, instrumentalizada para fins uti-litários e econômicos. Apesar de ter a sua raciona-lidade específica, fixada pela tradição, incentivavapráticas sociais descontínuas e isoladas, que ini-biam a exploração e a incorporação mais eficienteda natureza. Com o aparecimento da religião éticapor meio das profecias, a mensagem religiosa ra-cionaliza, metodiza e moraliza as relações, desma-gificando o universo de crenças. Este seria o senti-do principal do termo desencantamento percebidopor Pierucci nos textos de Weber. Seria, portanto,a atuação da religião sobre a magia, embora estanão tenha sido eliminada de todo, persistindo sub-missa e enfraquecida em certas simbioses com aprópria religião. No fundo, seria a descosmicizaçãodo sagrado, que deixa de ser imanente e se trans-cendentaliza, abrindo caminho para a atuação ra-cional do homem no mundo. Processo longo, quese inicia com os profetas judaicos, retroage com ocatolicismo e chega a seu ápice com o protestan-tismo ascético. Com ele a vida humana individuale social ganha um sentido capaz de explicá-la emsua totalidade.

O segundo momento seria o da seculariza-ção. A racionalização avança, sendo agora a vezda ciência, mas também da tecnologia e do cálcu-lo atuarem sobre a religião, restringindo seu cam-po de ação dentro da sociedade. Não mais tendoinfluência sobre o Estado, que se legitima pelo di-

reito racional, resta-lhe o estreito espaço da sub-jetividade. Na modernidade, o novo agente racio-nalizador não a provê de um novo sentido, maselimina os já existentes. A secularização seria umprocesso que se dá no plano estrutural da vida so-cial. Sociedade secularizada é aquela em que a re-ligião permanece, repetindo agora Berger, “comoretórica pública e virtude privada”.

Armado do aparato conceitual weberiano,Pierucci opôs-se às interpretações que viam naressurgência das religiões a queda de mais um pa-radigma sociológico, o da secularização. Não serefere ele a Berger, que se enquadraria muito bementre seus adversários teóricos, uma vez que re-jeitou a teoria da secularização e passou a usar ostermos dessecularização e contra-secularização. Emverdade, esta crítica poderia ter sido feita. Mencio-nei anteriormente que Berger faz certa confusão en-tre os conceitos de desencantamento e seculariza-ção, não os distinguindo como racionalização,respectivamente, dentro do campo religioso (queatua sobre as mentalidades) e dentro do campocientífico (fenômeno socioestrutural). Em decor-rência disso, o autor norte-americano consideraque a secularização pode se dar não apenas noplano da sociedade, mas também na esfera dacultura e da subjetividade.

As baterias de Pierucci voltaram-se contraaqueles a quem designa “sociólogos religiosos dareligião”, pois, de alguma forma, não apenas acre-ditariam como se regozijariam da dessecularização.Suas críticas recaíram em várias direções, a saber:• Trariam a idéia de um Weber ao mesmo tem-

po evolucionista e profético, no sentido deque teria previsto o fim das religiões nomundo moderno.

• A religião jamais tornará a retomar sua rele-vância social, pois a ciência seria, segundoWeber, “o destino de nosso tempo”.

• O ressurgimento das religiões no mundocontemporâneo é um produto da seculariza-ção – somente esta poderia gerar o pluralis-mo religioso.

• Fatos empíricos tais como o crescimento dasantigas religiões julgadas estagnadas ou oaparecimento de novas religiões, grupos re-ligiosos e de uma religiosidade difusa e in-forme, nada significariam de especial. De-monstrariam apenas o surgimento de

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“comunidades emocionais” sem maior rele-vância social.

• A persistência da crença em Deus por parteda grande maioria das pessoas também nadasignifica. São apenas dados empíricos.

Fui um dos agraciados com o (des)qualifica-tivo de “sociólogo religioso da religião”. Tive, emduas oportunidades, uma pequena citação trans-crita por ele, como exemplar desta minha filiação,no artigo sobre secularização e em sua tese. Re-meto-me a essa citação para, a partir dela, escla-recer minhas concepções.

Vale ouvir o que tem sido dito por aqui mesmo, noBrasil. Cito como exemplo significativo a formula-ção de um pesquisador da USP, altamente presti-giado nos meios brasileiros de sociologia da reli-gião, apenas para ter por onde acessar esta grandeonda formada pelos defensores do reencantamen-to do mundo: “As análises de Weber foram válidaspara um período encerrado da história do Ociden-te: o apogeu da racionalidade num mundo desen-cantado, em que o sagrado se exilou. Mais recen-temente vivemos o período do chamado ‘retornodo sagrado’ ou ‘revanche de Deus’, em que estemundo, de alguma forma, se reencanta. Mesmo seconsiderarmos a realidade do terceiro mundo emgeral e do Brasil em particular, em que o sagradopersistiu, é inegável que a religião aí se revitalizou,paralelamente ao reencantamento primeiro mun-dista” (Pierucci, 1998, pp. 46-47).

Este texto foi escrito há quase dez anos, umsimples comentário que me pediram pra redigirpara a apresentação de seminário sobre misticis-mo e novas religiões. Nele eu aceito a idéia dereencantamento das religiões no mundo moder-no, baseado em minhas leituras sobre a realidadereligiosa mundial. Mas o período encerrado dahistória a que me referia não era o da racionalida-de desencantada, da ciência, ou da modernidade,mas o do seu apogeu, que teria se dado em mea-dos do século XX. Após isso, não só teria se dado,então, a grande ressurgência da religião, mas aprópria ciência vinha sendo contestada pelo nãocumprimento da totalidade de suas promessas epelos efeitos colaterais danosos que seu desen-volvimento, sobretudo o tecnologicamente aplica-do, causaram.

Nessa passagem específica, vale dizer, ape-nas uso o termo desencantamento de forma adje-tivada (“mundo desencantado”), para qualificar talperíodo. Utilizei-me da expressão “reencantamen-to” por duas vezes, justamente porque a ressur-gência religiosa se daria no plano das realidadesculturais e das subjetividades, o que não implicaem dessecularização, ou seja, retomada da in-fluência da religião no plano socioestrutural. Nãosignificava, também, nenhum reconhecimento ouinsinuação relativa ao fim do paradigma da secula-rização, embora a concisão do texto pudesse per-mitir tal interpretação. Ao final, menciono a persis-tência do sagrado, no caso brasileiro. Com issoquis dizer que houve, no Brasil, uma persistênciado encantamento. Defendo essa posição com baseem análises da realidade religiosa brasileira desdea época colonial até o Brasil contemporâneo. Rea-firmo a impropriedade de se entender o desencan-tamento estritamente como desmagificação. O de-sencantamento em Weber é visto como processoque implica na “desmagificação da atitude ou damentalidade religiosa” (Idem, p. 43). Como pro-cesso, pode refluir (caso do catolicismo em rela-ção ao judaísmo) ou intensificar-se e chegar aoseu ápice (caso do protestantismo ascético). Masé um processo que transcorre na esfera da subje-tividade; nas palavras de Pierucci, trata-se de inci-dências no plano da atitude e da mentalidade,nada tendo a ver com secularização, se não comouma forma inicial de racionalização que lhe pre-para o campo:

Não é preciso conhecer muito de sociologia deWeber para daí deduzir, seguindo as regras bási-cas de seu pensamento, que não há racionaliza-ção possível da conduta de vida – e é isto que nofundo interessa a Weber como indagação socioló-gica significativa – sem que se quebre, não só ofeitiço, mas o poder do feitiço sobre a mente daspessoas (Idem, p. 56).

Na formação da sociedade brasileira nada hou-ve de semelhante à ética protestante, no campo re-ligioso, desde seus primórdios. O país foi inicial-mente povoado por aldeões portugueses edegredados que trouxeram consigo seus santos edemônios, seu culto às almas. Formou-se a partirdaí um catolicismo popular acentuadamente mági-

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co, voltado ao controle dos males deste mundo,centrado no ato devocional. Trata-se do conhecido“catolicismo rústico”, componente essencial da“cultura rústica” tal como a caracterizaram AntonioCandido de Mello e Souza (1972), Maria Isaura Pe-reira de Queiroz (1965, 1968) e Duglas TeixeiraMonteiro (1974). Conviveu aqui com religiões afro-brasileiras e indígenas, com as quais trocou deuses,crenças e rituais, formando uma mentalidade reli-giosa híbrida e sincrética, densamente mágica e en-cantada. Não se quebrou o feitiço, nem sua influên-cia sobre a mentalidade popular.

Ao longo dos períodos colonial e imperial ede quase todo o republicano, delgadas camadaspopulacionais urbanas litorâneas, sobre as quaisatuaram sobretudo ordens religiosas afinadas como projeto de romanização do catolicismo no Brasil,permaneceram mais próximas a um catolicismo or-todoxo, romanizado. Hoje, apesar de religião ain-da majoritária, a maior parte dos católicos é formal,despossuída de habitus religioso, sendo que pro-vavelmente um terço deles (conforme apontam osresultados de minhas pesquisas atuais) freqüentamoutros grupos religiosos, têm crenças e práticasnão católicas, sobretudo mágicas. Isto para não fa-lar na Renovação Carismática, movimento leigo aomesmo tempo incentivado e controlado pela hie-rarquia. Apesar de fiel à Igreja e ao sacerdócio, eembora seja um movimento basicamente formadopor pessoas de classe média, sua religiosidade ébastante emotiva, incluindo elementos mágicos emseus cultos, voltados às curas e à solução de pro-blemas pessoais de natureza diversa. Uma espéciede pentecostalismo católico.

Weber tinha acabado de redigir a Ética protes-tante, quando o protestantismo de conversão se fir-mava e começava a crescer entre nós. Embora comalgum potencial ético e racionalizador, tratava-se deformas pentecostais (inicialmente a Assembléia deDeus e a Congregação Cristã) centradas nas mani-festações de dons miraculosos do espírito; mais tar-de, em meados do século XX, surgem as igrejasfundadas por pastores brasileiros como O Brasilpara Cristo e Deus é Amor. São as únicas igrejasprotestantes que realmente se desenvolveram,plenas de emotividade e encantadas pelas mani-festações do Espírito Santo, e vêm se desdobran-do em “ondas” até o presente – as igrejas neopen-tecostais fundadas a partir da década de 1970,

podem ser consideradas a última manifestaçãodessa natureza (IURD, Internacional da Graça deDeus, Renascer em Cristo, entre outras).1

É em plena época da consolidação do Esta-do republicano modernizante e do surto de urba-nização e industrialização a partir dos anos de1930 que os grupos pentecostais iniciam seu per-curso para se tornar religiões de massa, rivalizan-do com o catolicismo popular. Além deles, váriasmodalidades de cultos afrobrasileiros, tais comoumbanda, candomblé, batuque e outros, fixaram-se sobretudo no cenário urbano, onde adquiriramuma importância cultural maior que o número deseus adeptos faria supor. Religiões mágicas, en-cantadas, portanto. Juntas compuseram todas elasum campo religioso amplo e popular, no Brasildo século XX urbano e rural.

Insisto que não houve, de forma significativa,nada semelhante à mensagem profética racionaliza-dora neste contexto religioso prenhe de encanta-mento. Os grupos protestantes históricos (batistas,presbiterianos metodistas), potenciais herdeiros daracionalidade e da ascese puritana tradicional, sãominoritários, crescendo apenas vegetativamente, anão ser quando também se pentecostalizam e, por-tanto, aderem à milagrosa manifestação do Espírito(Mendonça, 1984; Mendonça e Velasques Filho,1990). Por outro lado, os pentecostais em geral as-similaram uma doutrina de origem norte-america-na, a Teologia da Prosperidade, que nada tem aver com a metodização da prática econômica leva-da a efeito pela ética protestante tradicional. Vol-ta-se ao consumo, à fruição dos bens deste mun-do, ao gasto irresponsável (Mariano, 1999). Osmaiores grupos religiosos brasileiros, inclusive oscatólicos – lembre-se de que Weber considerou osurgimento do catolicismo um retrocesso no pro-cesso de desencantamento – permanecem comsua mentalidade encantada, buscando e partici-pando de rituais mágicos. A afirmação do mistério,a crença no milagre e a prática da magia conti-nuam encantando o cotidiano da grande maioriados religiosos brasileiros, avessos às fidelidadesreligiosas e à racionalização do comportamento.

Sendo a racionalização mediante o desen-cantamento – isto é, a desmagificação – um passoteoricamente prévio porém historicamente nãoefetivado no Brasil, mas antecedente necessário àposterior racionalização secularizante na análise

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weberiana referente à emergência do capitalismono mundo ocidental, como teria se dado a secula-rização no Brasil? Esta é a questão pertinente, pois,não obstante a permanência do encantamento noplano das mentalidades, o Brasil é, de fato, secu-larizado: existe a separação entre Igreja e Estado,a administração realiza-se a partir de códigos le-gais e órgãos executivos seculares, sem nenhumainfluência decisiva por parte de grupos religiosos.A ciência, a tecnologia e o cálculo racional presi-dem às atividades produtivas.

Minha hipótese para explicar tal descompas-so é de que nossa modernização racionalizante éextra-religiosa. Sem contar com a racionalizaçãoprévia da desmagificação/desencantamento, a mo-dernidade foi introduzida com maiores esforçospelos seus agentes, em especial o Estado. Talvezem razão disso, em alguns episódios da Repúblicanascente – refiro-me a Canudos e ao Contestado –ela tenha sido conseguida por meio da força dasarmas e do poder bélico do exército. Mas o Estadotambém soube agir de maneira mais sutil, porexemplo com a massificação dos rudimentos da ra-cionalidade – leitura, escrita, matemática elemen-tar, procedimentos do conhecimento científico – ecom a crescente universalização do sistema educa-cional de ensino básico. O Estado e seus aliadosprivados – tais como grupos de produtores de bense serviços, nacionais e estrangeiros, mecanismosde comunicação de massa –, em esforço conjunto,tiveram êxito em construir uma nação secularizada,de economia fundada na racionalidade instrumen-tal capitalista. Mas tal racionalidade é relativa, umavez que lhe falta o fundamento das mentalidadesdesencantadas, mesmo que religiosas. Não seria,talvez, esta a razão pela qual as classes médias emesmo as elites instruídas e bem postas profissio-nalmente, desempenhando funções ligadas à tec-nologia de ponta, se sintam no Brasil atraídas poresoterismos, por discursos da Nova Era, por filoso-fias religiosas de origem oriental?2

Creio que esta interpretação de nossa perma-nência num estado de semi-encantamento e secu-larização relativa não esteja em desacordo com ateoria weberiana. Desde logo porque desencanta-mento e secularização são processos que, emborabusquem a racionalidade, são reversíveis. Se hou-ve momentos históricos em que tais processos sederam de maneira plena e absoluta – vale lembrar

o desenvolvimento inicial do protestantismo ascé-tico e o mundo secularizado contemporâneo deWeber, há também casos de retrocesso, resistên-cias e impasses.

A sociedade brasileira, com sua religiosidadeque permanece em parte encantada pois que reni-tentemente mágica, é um caso particular da realida-de em que a generalidade típico-ideal do métodoweberiano não é capaz de abarcar plenamente. Eisso nenhuma surpresa deveria causar, pois, é sabi-do, ou deveria sê-lo, que os tipos ideais não são finsem si mesmos, são instrumentais. Devem ser cons-truídos com base na realidade, mas não a esgotamnem a substituem. E a realidade concreta, à qual otipo é usado como instrumento heurístico, não ne-cessita reproduzi-lo, pode dele distanciar-se, diferir,pois não são tipos empíricos, nem muito menos deabrangência universal. Cada sociedade, cada mo-mento histórico, tem a sua fisionomia própria, quecabe ao pesquisador captar.

Os referenciais weberianos, seus conceitos tí-pico-ideais, sua interpretação quanto ao processode racionalização crescente da civilização ociden-tal não podem ser usados de maneira fundamen-talista. Com efeito, isso descaracterizaria seu méto-do e significaria a perda da concretude histórica àqual Weber objetivava alcançar. Proceder assim se-ria recair no mesmo erro já cometido em relaçãoa Marx, isto é, deixar que os resultados de suaanálise, tidos como paradigmáticos, prevalecessemsobre sua metodologia e suas intenções. Que We-ber continue a ser o instigante autor que semprefoi e que não se crie, em nome de uma supostaortodoxia teórico-conceitual, uma esterilização dacriatividade e da imaginação sociológicas.

Notas

1 Entre outros autores, ver Souza (1969) e Campos(1997).

2 Trata-se de uma hipótese a ser considerada, embo-

ra o mesmo fenômeno atinja, em certa medida, a

Europa ocidental, conforme chama a atenção Cecí-

lia Mariz (2001).

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NEM “JARDIM ENCANTADO”,NEM “CLUBE DOS INTELECTUAISDESENCANTADOS”

Lísias Nogueira Negrão

Palavras-chaveSociologia da religião; Max We-ber; Desencantamento de mun-do; Secularização; Campo reli-gioso brasileiro.

Este artigo parte da retomada dasprincipais concepções da sociolo-gia da religião de Max Weber, rea-firmando sua excepcional impor-tância para a compreensão dosfenômenos religiosos, seja em suadinâmica própria, seja em suas ar-ticulações com outras dimensõesda vida social. Procuramos acom-panhar de maneira crítica algumasdas leituras que têm sido realiza-das de sua obra por sociólogoscontemporâneos na França (PierreBourdieu), nos Estados Unidos(Peter Berger) e no Brasil (FlávioPierucci), autores que, tentandosuperá-la ou resgatando sua au-tenticidade, chegam a resultadosbastante controversos. Finalmen-te, e a propósito desta última lei-tura, introduzimos algumas refle-xões sobre a realidade religiosabrasileira e sobre o alcance dosprocessos de desencantamento domundo e de secularização nessecontexto social.

NEITHER “ENCHANTED GAR-DEN” NOR “DISENCHANTEDINTELLECTUALS CLUB”

Lísias Nogueira Negrão

KeywordsSociology of Religion; MaxWeber; World disenchantment;Secularization; Brazilian reli-gious field.

I review the main concepts ofMax Weber’s Sociology of religionto reaffirm their sheer importanceto understand religious phenome-na, both in their own dynamicsand in their links with otherdimensions of social life. Then Iturn myself to the task of followup in a critical vein some of thereadings of Weber done by con-temporary sociologists in France(Pierre Bourdieu), in the UnitedStates (Peter Berger), and inBrazil (Flavio Pierucci). Thougharriving at controversial results,they are fine attempts to super-sede Weber’s work but keep thisthough alive. In the final part ofthe article, I change criticism intoproposition trying to understandthe scope of processes of worlddisenchantment and seculariza-tion in the Brazilian context.

NI “JARDIN ENCHANTÉ”, NI “CLUB DES INTELLECTUELSDÉSENCHANTÉS”

Lísias Nogueira Negrão

Mots-clésSociologie de la religion; Max We-ber; Désenchantement du monde;Sécularisation; Champs de la re-ligion au Brésil.

Cet article analyse la relecturedes principaux concepts de la so-ciologie de la religion de MaxWeber, et réaffirme son importan-ce exceptionnelle pour la com-préhension des phénomènes reli-gieux, soit dans le cadre de sapropre dynamique, soit par rap-port à son articulation avec d’au-tres aspects de la vie sociale.L’auteur propose, ensuite, l’étudede quelques interprétations del’œuvre de Weber par des socio-logues contemporains: Pierre Bour-dieu (France), Peter Berger (État-Unis) et Flávio Pierucci (Brésil).En tentant de surpasser le con-cept de Weber et de récupérerson authenticité, ils arrivent à desrésultats controversés. Finale-ment – et à partir de cette derniè-re lecture de son œuvre – l’auteurpropose quelques réflexions surla réalité religieuse brésilienne et,dans un contexte social, de la por-tée des processus de désenchante-ment du monde et de la séculari-sation.