Nelson Mandela

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HANS GEDDA/CORBIS Este suplemento faz parte integrante do PÚBLICO e não pode ser vendido separadamente MANDELA “Está nas vossas mãos fazer do mundo um lugar melhor” “Eu prezo muito a minha liberdade mas prezo ainda mais a vossa” “Eu só sou um ser humano se tu fores um ser humano. Eu só sou um ser humano se for humano contigo”

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Edição especial do Jornal Público, dia 06.12.13.

Transcript of Nelson Mandela

Page 1: Nelson Mandela

HANS GEDDA/CORBIS

Este suplemento faz parte integrante do PÚBLICO e não pode ser vendido separadamente

MANDELA“Está nas vossas mãos fazer do mundo um lugar melhor”

“Eu prezo muito a minha liberdade mas prezo ainda mais a vossa”

“Eu só sou um ser humano se tu fores um ser humano. Eu só sou um ser humano se for humano contigo”

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MANDELA 1918-2013

“O nosso querido Nelson Mandela deixou-nos”

Onosso querido Nelson

Rol ihlahla Mandela,

Presidente fundador da

nossa nação democrática,

deixou-nos. Partiu pacifi -

camente. Este é um mo-

mento de profunda tristeza. A nossa

nação perdeu o seu melhor fi lho”,

anunciou o Presidente da África do

Sul, Jacob Zuma, na declaração te-

levisiva em que comunicou ao país

— e ao mundo — a morte do herói e

símbolo da paz, justiça e reconci-

liação nacional, aos 95 anos.

Mandela, que há meses estava

em estado crítico na sequência de

uma infecção pulmonar, morreu

tranquilamente às 20h50 (hora

local) na sua casa de Joanesbur-

go, informou Zuma. “Agora está a

descansar em paz”, prosseguiu o

Presidente, sublinhando que “pela

sua humildade, a sua compaixão e a

sua humanidade, Mandela ganhou

o amor de todo o país”. “E nós ví-

amos nele aquilo que procuramos

em nós próprios”.

“Sabíamos que este dia estava

a chegar, mas nada poderá dimi-

nuir o nosso doloroso e profundo

sentimento de perda”, completou

Jacob Zuma, que disse que todas as

bandeiras do país tinham sido bai-

xadas a meia-haste — e assim per-

manecerão até ao funeral do líder

histórico do Congresso Nacional

Africano (ANC) e do movimento

anti-apartheid, prémio Nobel da

Paz em 1993 e o primeiro negro a

presidir à África do Sul depois das

primeiras eleições livres e demo-

cráticas.

“A África do Sul perdeu um co-

losso, o epítome da humildade,

igualdade, justiça, paz e esperan-

ça para milhões de pessoas. A sua

vida dá-nos o exemplo e a coragem

para prosseguir a luta pelo desen-

volvimento e o progresso, para o

fi m da fome e da pobreza”, comen-

tou o seu partido, numa primeira

nota ofi cial.

Inspiração mundialO exemplo, a sabedoria e a men-

sagem de paz e tolerância que

Mandela repetiu durante a vida foi

evocada não só na sua terra natal,

mas em todo o mundo. “Eu fui um

desses inúmeros milhões que senti-

ram a inspiração do seu exemplo”,

confessou o Presidente dos EUA,

Barack Obama. Numa declaração

na Casa Branca, Obama recordou

que a sua primeira acção política,

“a primeira vez que me envolvi com

um assunto ou um movimento po-

lítico”, foi participar num protesto

contra o apartheid na África do Sul.

“Estudei as suas palavras e os seus

escritos. O dia em que foi libertado

da prisão foi uma revelação de que

grandes coisas são possíveis se nos

deixarmos guiar pela esperança e

não pelo medo. Como tanta gente

por este mundo fora, não consigo

imaginar a minha própria vida sem

o exemplo de Nelson Mandela.”

“Perdemos um dos mais infl uen-

tes, mais corajosos e profundamen-

te bons seres humanos com que di-

vidimos o nosso tempo nesta Terra.

Nelson Mandela já não nos perten-

ce. Agora ele pertence às eras da

História”, declarou Obama. “Atra-

vés da sua enorme dignidade e da

sua indomável vontade de sacrifi car

a sua própria liberdade pela liber-

dade dos outros, Madiba foi capaz

de transformar a África do Sul e de

emocionar o resto do mundo. O seu

percurso de prisioneiro a Presiden-

te é a melhor ilustração da promes-

sa de que os seres humanos e os

países podem sempre mudar para

melhor”, referiu Obama.

“Nelson Mandela alcançou, na

sua vida, mais do que se pode es-

perar de qualquer pessoa. Hoje

voltou para casa”, concluiu o pri-

meiro Presidente negro da História

dos Estados Unidos, que prometeu

continuar a fazer o possível para

“aprender” as grandes lições do lí-

der sul-africano: “Tomar decisões

guiado pelo amor e não pelo ódio;

nunca subestimar a diferença que

uma única pessoa pode fazer; con-

tinuar a sonhar com um futuro que

seja digno do seu sacrifício”.

Funeral por anunciarO primeiro-ministro britânico, Da-

vid Cameron, anunciou que em sinal

de respeito e homenagem a Nelson

Mandela, as bandeiras da sede ofi -

cial do Governo, em Downing Street,

também voarão a meia-haste. “Uma

grande luz extinguiu-se deste mun-

do. Mandela foi um herói do nosso

tempo”, escreveu Cameron na sua

conta ofi cial do Twitter.

“Mandela mudou o curso da

História do seu povo, do seu país,

do seu continente e do mundo”,

assinalou o presidente da Comis-

são Europeia, Durão Barroso. O

secretário-geral da Organização

Sul-africanos saem à rua para chorar a morte e celebrar a vida de Mandela, Madiba, Tata, o pai da nação. “Sabíamos que este dia estava a chegar”, disse Zuma

Rita Siza “O seu percurso de prisioneiro a Presidente é a melhor ilustração da promessa de que os seres humanos e os países podem sempre mudar para melhor”, disse Barack Obama

II | ESPECIAL | PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013

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Em Robben Island, uma das

prisões onde passou 27 anos

da sua vida, Nelson Mandela

esteve, nos primeiros tempos,

em isolamento. Vivia numa

cela exígua, onde não entrava

a luz do dia. Do tecto, pendia por

cima da sua cabeça uma lâmpada

constantemente ligada. Nada lhe

permitia distinguir o princípio do

fi m do dia.

Mais tarde, admitia que a

consciência do tempo a passar,

longe dos seus, tinha sido uma

das coisas a causar-lhe maior

sofrimento na prisão.

“É terrível”, disse numa das

muitas entrevistas que deu depois

de libertado, referindo-se ao peso

da inevitabilidade da morte, ainda

mais palpável na sua condição de

condenado à perpetuidade. Esse

fi m de vida, então distante, chegou

ontem e foi anunciado pelo actual

Presidente Jacob Zuma, que se

referiu a Mandela como “o maior

fi lho” da África do Sul.

Nelson Rolihlahla Mandela

sofria de problemas respiratórios

e várias vezes foi internado. Tinha

95 anos.

Estava, há longos meses, longe

dos olhares do público, como

quando esteve preso durante

quase três décadas, mas era uma

presença reconfortante, um

símbolo, uma “fi gura maior do

que a vida”, como disse dele um

analista sul-africano.

O arcebispo sul-africano

Desmond Tutu previu ser este

um momento “traumático” para

a África do Sul, o da perda de

Mandela, fi gura que descreveu

como “um ser humano fantástico”,

numa entrevista ao PÚBLICO em

Lisboa no ano passado. “Quando

vai para a prisão, é uma pessoa

No crepúsculo da vida continuou como farol da História

Educado para ser o conselheiro de um rei, nunca viveu como um aristocarata mas sim como um combatente pela liberdade que refundou um país

ObituárioAna Dias Cordeiro

zangada, revoltada, que acredita

na violência como meio de

conquistar a liberdade. Quando

sai, emerge como uma pessoa

extraordinariamente magnânima.

O sofrimento por que passou

ajudou-o a suavizar a sua posição”,

disse Tutu.

E acrescentou: “Ele acreditava

convictamente que se é líder

pelas pessoas que são lideradas

e não em benefício próprio.

Fomos incrivelmente abençoados

por termos Madiba [Mandela]

aos comandos, num momento

histórico para o nosso país.”

A morte de Mandela “é uma

perda tremenda para o país”,

afi rmou Ray Hartley, director do

jornal sul-africano “The Times” ao

PÚBLICO. “A África do Sul perderá

aquele sentimento reconfortante

de que existia este grande

unifi cador”, acrescentou, embora

notando que “os processos

políticos não serão afectados

pelo seu desaparecimento”.

Também em entrevista, Thierry

Vircoulon, investigador associado

do Institut Français des Relations

Internationales e co-autor de L’

Afrique du Sud de Jacob Zuma

(L’Harmattan) previu que, sem

Mandela, a África do Sul entraria

“num momento de recolhimento

nacional”. E realçou, numa

entrevista no ano passado sobre

o momento que viveria o país

depois do desaparecimento de

Nelson Mandela: “A nova África

do Sul não vai desaparecer com

ele, porque ele fez um excelente

trabalho enquanto pai fundador

dessa nova África do Sul” – país

arco-íris criado para não excluir

ninguém entre os seus 50 milhões

de habitantes.

No primeiro discurso como

homem livre, frente a uma

multidão na Cidade do Cabo, no

dia da sua libertação da prisão de

Victor-Verster, a 11 de Fevereiro de

1990, Mandela declarou: “Estou

aqui não como um profeta mas

como um humilde servo de vós,

o povo. (…) Ponho, por isso, os

restantes dias da minha vida nas

vossas mãos.” Nesse discurso,

falava aos sul-africanos.

Por um mundo melhorAnos depois, nas celebrações para

o seu 90º aniversário em 2008,

dirigia-se às pessoas do mundo

inteiro: “Está nas vossas mãos

fazer do mundo um lugar melhor.”

Como que em espelho desse

seu apelo universal, o Presidente

dos Estados Unidos Barack Obama

escreveu no prefácio do livro das

memórias íntimas de Mandela

Conversations with Myself (2010):

“Através das escolhas que fez,

Mandela deixou claro que não

temos de aceitar o mundo como

ele é – e que podemos contribuir

para que o mundo seja aquilo que

deveria ser.”

A sua história é evocada como

inspiração para outros e os seus

actos como exemplos a seguir.

As suas palavras sobreviverão

como lições de vida. “Ele foi

Presidente para desempenhar

um papel exemplar na unifi cação

e reconciliação do povo

profundamente dividido da

África do Sul”, disse De Klerk em

declarações feitas há três anos a

propósito do mesmo livro também

lançado em Portugal, com o título

Nelson Mandela – Arquivo Íntimo

(Editora Objectiva).

“Independentemente de

qualquer possível crítica, o homem

que emerge de Conversations with

Myself é uma eminente fi gura,

não só na história da África do Sul

mas na história do século XX”,

acrescentou Frederik W. de Klerk,

ex-líder do Partido Nacional último

Presidente branco da África do

Sul (1989-1994), que partilhou o

prémio Nobel da Paz 1993 com

Mandela depois das negociações

para o fi m do apartheid.

Nelson Mandela era desde 1998

casado com Graça Machel, ex-

primeira dama de Moçambique,

que sobre ele tece os maiores

elogios e, ao mesmo tempo,

relativiza o seu estatuto de último

dos grandes heróis, cujo legado

não se compararia a nenhum

outro. “Todo o mundo diz que

ele foi o melhor. Ele foi o que

devia ser naquelas circunstâncias

específi cas da África do Sul”,

afi rmou numa entrevista ao

PÚBLICO em Lisboa em 2010. “É

verdade que ele deu o melhor de

si próprio. Mas existirão outros

líderes, num momento histórico

diferente, capazes de enfrentar

desafi os diferentes e com um estilo

de liderança diferente.”

Porém, talvez como nenhum

outro, Mandela, líder do

Congresso Nacional Africano

(ANC, na sigla em inglês) e

primeiro Presidente negro da

África do Sul, foi elogiado e

homenageado em vida, já depois

de ser perseguido, no seu país,

como terrorista e classifi cado

como tal pela Administração dos

Estados Unidos, no passado. O

New York Times referiu-se-lhe

como o estadista “mais amado do

mundo”, em 2009, quando a ONU

determinou, por consenso dos

192 países membros, que o dia de

aniversário do ex-Presidente, 18

de Julho, seria o Dia Internacional

Nelson Mandela.

O jornal considerou que os

seus valores como pai fundador

continuariam a moldar a nação

e o seu lugar vital na consciência

dos sul-africanos permaneceria

intacto, durante muito tempo

– mesmo depois do seu

desaparecimento.

Pelo menos até ao fi m de 2010,

Mandela continuava, todos os

meses, a receber quatro mil

das Nações Unidas, Ban Ki-moon,

lembrou o líder sul-africano como

“um gigante da justiça e um homem

simples e inspirador”. “Ninguém

fez mais no nosso tempo para pro-

mover os valores e as aspirações

das Nações Unidas. Nelson Man-

dela mostrou-nos como é possível,

no nosso mundo e em cada um de

nós, acreditar, sonhar e trabalhar

pela justiça e pela humanidade”,

observou. “Ele foi capaz de tocar as

nossas vidas de uma maneira que

era profundamente pessoal.”

Milhares de sul-africanos, emo-

cionados mas já não chocados com

a notícia, saíram ontem imediata-

mente para a rua para lamentar a

morte de Mandela, e ao mesmo

tempo celebrar a vida de Madiba,

o nome tribal tradicional do seu

clã pelo qual era afectuosamente

conhecido e tratado — bem como

Tata, a palavra da língua Xhosa que

signifi ca “pai”.

Ainda não são conhecidos a data

ou pormenores sobre as cerimónias

fúnebres, embora a imprensa sul-

africana avance a hipótese de o fu-

neral não ser nos próximos dias.

ULLI MICHEL/REUTERSNelson Mandela e Winnie Mandela à saída da prisão em Fevereiro de 1990

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PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013 | ESPECIAL | III

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mensagens do mundo inteiro.

Algumas com uma homenagem

e outras a desejarem-lhe uma

reforma tranquila e feliz, informou

a Fundação Nelson Mandela em

Dezembro de 2010 que, numa

declaração enviada a jornalistas

de todo o mundo, recomendou

que limitassem os pedidos

de autógrafos, declarações,

entrevistas ou aparições públicas,

de forma a “ajudar a tornar a

reforma de Madiba [o seu nome

de clã] um período de paz e

tranquilidade”.

Em 2009, Graça Machel

lamentava a perda do brilho

no olhar do marido. Nos três

anos seguintes, o líder histórico

continuou a aparecer em

fotografi as por ocasião do seu

aniversário, com um ar cada vez

mais frágil.

Uma das últimas vezes que

Mandela compareceu num evento

público, ao lado da mulher, foi

na cerimónia de encerramento

do Mundial de Futebol em

Joanesburgo em 11 de Julho em

2010. Eram imagens de televisão.

Em 2011, eram divulgadas

fotografi as do ex-Presidente com

Michelle Obama e, mais tarde, ao

lado de Hillary Clinton, quando

a ex-secretária de Estado dos

Estados Unidos o foi visitar à

aldeia onde cresceu e onde estava

a residir, Qunu, na província do

Cabo Oriental.

Nelas, Mandela sorria, com o

mesmo sorriso digno e com que

caminhou livre depois de passar

os portões da prisão de Victor-

Verster, perto da Cidade do Cabo,

a última onde esteve depois

de Robben Island (até 1982) e

Pollsmoor.

As últimas imagens do ex-

Presidente, difundidas pela

televisão sul-africana em

Maio deste ano, indignaram

por exporem a sua extrema

fragilidade. Mostravam um

Mandela ausente, incomodado e

muito doe

Descendente do rei thembu O desejo de Mandela, expresso

na autobiografi a “Long Walk to

Freedom” (2005) – publicada

em Portugal pela editora Campo

das Letras com o título “Longo

Caminho para a Liberdade”

– era ser sepultado junto dos

seus antepassados em Qunu,

no Transkei, província do Cabo

Oriental.

Foi aqui que nasceu, em 1918,

e foi educado para ser, como o

pai falecido, conselheiro do rei

thembu, Jongintaba Dalindyebo.

Era descendente de Ngubengcuka,

que tinha antes sido o rei dos

thembu, incluídos no mais vasto

grupo linguístico dos xhosa.

Mandela descreve o rei, que foi

seu pai adoptivo e do qual teria

sido conselheiro se não tivesse

começado uma nova vida em

Joanesburgo, como “um homem

tolerante e esclarecido que tinha

alcançado o objectivo de todos os

grandes líderes: mantivera o seu

povo unido”.

Ele recebera-o quando Mandela

tinha nove anos depois da morte

do pai que fi cara desapossado

de tudo por desafi ar um

representante da administração

britânica. Sem condições para

o criar, a mãe entregou-o ao rei

e Mandela cresceu a aprender a

escutar os anciãos.

‘Madiba’ era nome do seu clã –

e era assim que frequentemente

o chamavam, por respeito.

Para muitos sul-africanos,

também era “Tata”, que signifi ca

“pai” em xhosa, ou “khulu”

que signifi ca “grandioso”. Na

clandestinidade, a partir de 1961,

era David Motsamayi, disfarçado

de motorista, cozinheiro ou

jardineiro.

Não foi conselheiro, nem rei,

mas a sua educação de aristocrata,

os estudos de advocacia, o carisma

e dedicação à luta anti-apartheid

fi zeram dele fi gura de proa do ANC

e principal ícone da libertação

da África do Sul. Não aceitou

ser libertado da prisão antes de

ver garantidos a libertação dos

outros presos políticos, o fi m do

apartheid e o levantamento do

estado de emergência no país.

“Eu prezo muito a minha

liberdade mas prezo ainda mais

a vossa”, escreveu num discurso

lido pela fi lha Zindzi, num comício

no Soweto, em 1985, dirigido aos

africanos e membros do ANC, a

partir da prisão. O discurso era

uma resposta a uma oferta do

Presidente Botha para a libertação

em condições que Mandela

recusava.

Ensinamentos umbuntuO ex-Presidente sul-africano e

Nobel da Paz sabia escutar as

pessoas, olhá-las nos olhos e

compreender as suas diferenças.

Tinha certezas sufi cientes nas

suas convicções para as poder

defender, mas também dúvidas

razoáveis “para estar aberto aos

outros e saber ouvi-los”, refere

Ebrahim Rasool, embaixador da

África do Sul nos Estados Unidos,

numa entrevista à GlobalAtlanta

no fi nal de 2010.

Era humano, caloroso, fi rme,

convincente e magnânimo,

dizem os analistas ouvidos pelo

PÚBLICO. E foi abençoado com

uma “capacidade extraordinária”

de perdoar. Vivia de acordo com

os ensinamentos e a fi losofi a de

vida umbuntu que aprendera,

ainda criança, dos anciãos na

terra onde cresceu, Qunu: “Eu só

sou um ser humano se tu fores

um ser humano. Eu só sou um ser

humano se for humano contigo.”

Soube entender o receio

dos brancos da África do Sul,

tranquilizá-los, com a garantia

de que seriam incluídos no novo

país que, pedra a pedra, ergueu.

Não confundiu as pessoas e o

regime. Pelo contrário: soube ver

a diferença entre o Governo e a

população branca que em parte

conquistou dando-lhe provas

de que não seria discriminada.

Deixou de lado os rancores,

superou a mágoa do tempo na

prisão e da humilhação sofrida

pelo povo.

Deixou a liderança do ANC e a

presidência no fi m do primeiro

mandato para deixar a via aberta

a uma nova geração de políticos.

Tentou, com isso, lançar uma

mensagem aos líderes que se

perpetuam no poder e aproveitam

a aura que a luta de libertação lhes

conferiu no passado.

A voz era suave mas as suas

palavras ecoavam como só as

palavras dos líderes universais

e respeitados ecoam, tanto

nas críticas que fez a déspotas

africanos incapazes de deixar o

poder como quando, por exemplo,

se opôs à intervenção dos Estados

Unidos no Iraque em 2003, ou

noutras circunstâncias.

“Era um político fenomenal”,

continua Ray Hartley, director

do sul-africano The Times. Para

este jornalista que cobriu os cinco

anos da Presidência de Mandela,

entre 1994 e 1999, não foi tanto o

momento da História que fez de

Mandela um herói, mas Mandela

que soube fazer História.

“O papel dele em criar

as circunstâncias foi muito

importante, porque tinha a força

de carácter e a personalidade

para chegar aos dirigentes” que

estavam do outro lado na procura

da paz. “Foi um impulso natural

para ele e não algo que se forçou a

fazer. Ele tem essa postura natural

de estadista.” E acrescenta: “Ele

é tremendamente carismático e

de forma poderosa. Teria sido um

bom político em qualquer era mas

nesta foi especialmente bom.”

Foi ao mesmo tempo um bom

líder de uma luta de libertação

e um bom Presidente, diz Ray

Hartley mesmo perante aspectos

menos felizes do seu mandato,

diz: “Quando chegou a altura de

montar instituições efi cientes de

Governo, foi um pouco mais fraco

aí. E o legado disso continua até

hoje com a corrupção no Governo

e os erros na administração.

Nesses cinco anos, muito mais

podia ter sido feito, como criar as

condições para uma administração

mais profi ssional e mais

intransigente com as más práticas

de administração e a burocracia.”

Seja como for, realça: “O que

a África do Sul precisava era de

alguém capaz de unifi car o país,

falar para todas as pessoas e ter

o respeito de toda a nação. [Uma

pessoa] que ao mesmo tempo

fosse capaz de transformar um

país em necessidade urgente

de mudança. Era a coisa mais

importante a fazer e ele foi capaz

de a fazer.”

Em 2004, com 86 anos, Mandela

anunciou a sua retirada dos actos

públicos – para além da política

que já tinha abandonado em

1999. Nessa altura, incumbiu a

Fundação Nelson Mandela, o

Nelson Mandela Children’s Fund

e a Mandela Rhodes Foundation

de continuarem, em seu nome,

o trabalho humanitário em que

se envolvera depois de deixar a

presidência e que estava muito

virado para a luta contra a sida.

Na mesma ocasião, referiu a

brincar: “Não me telefonem, eu

telefono-vos”, lembra, num artigo

de Dezembro de 2010, o jornalista

do The Sowetan Ido Lekota.

“Embora não lhe tenhamos

telefonado”, escreve o jornalista,

“a sua fi gura ‘maior do que a

vida’ continua a pairar sobre a

nossa democracia e o panorama

político” da África do Sul.

“A voz da razão” Na vida como na luta, Mandela

sempre se regeu pela dignidade.

Era um verdadeiro líder, e todos

o respeitavam como tal, lembram

alguns dos seus camaradas de luta

em excertos depoimentos, citados

pela BBC.

“Era a voz da razão dentro

do ANC”, sublinha por sua vez

o analista Thierry Vircoulon ao

PÚBLICO. “A sua infl uência é

imensa porque encarnou a aliança

entre a razão e o rigor. Mesmo

durante as mais fortes tensões da

MANDELA 1918-2013AFP

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IV | ESPECIAL | PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013

Page 5: Nelson Mandela

luta contra o apartheid e, quando

vozes dentro do ANC defendiam

uma linha política intransigente,

Mandela manteve um discurso

apaziguador e conciliador. Sempre

soube que os brancos e os negros

não tinham outra escolha se

não viverem juntos na África do

Sul”, acrescenta este especialista

francês de África, autor de vários

livros sobre a África do Sul, que

teve um cargo na embaixada

de França no país, e conheceu

Mandela. “Ele transmitia uma

impressão de grande força interior

e de grande bondade”, recorda.

A esse propósito, lembra um

traço da sua personalidade: “Para

ele, até o exercício da autoridade

devia ser desempenhado com

amabilidade. Era um Presidente

gentleman. Tinha o hábito de dizer

aos seus guarda-costas: ‘Se tiverem

de empurrar as pessoas, façam-no

com um sorriso.’”

Também o académico

Guilherme Fonseca-Statter,

investigador do Centro de Estudos

Africanos do Instituto Superior de

Ciências do Trabalho e da Empresa

(ISCTE) em Lisboa, recorda

“Mandela como um senhor com ‘S’

grande”.

Ele estudara a fundo os seus

direitos e impunha-se ao respeito

de todos, incluindo os próprios

guardas prisionais, sustenta o

académico. Para poder partilhar

com os companheiros a comida

que recebia de uma amiga na

prisão, partilhava primeiro com os

carcereiros, conta.

Da mesma forma, para

conquistar o reconhecimento dos

direitos do seu povo, os africanos,

reconheceu os direitos do próprio

povo afrikander.

“Eleito em 1994, fez uma

recepção e convidou todos os

dignitários afrikanders, muitos

deles altos representantes do

regime do apartheid, como

Botha. E foi tomar chá com a

viúva de [Hendrik] Verwoerd

que não pudera comparecer por

viver longe de Pretória. “Não

discriminou ninguém”, conta

Guilherme Fonseca-Statter.

Nem mesmo Verwoerd que

tinha sido primeiro-ministro

entre 1958 e 1966 quando o ANC

foi banido, obrigando muitos

dirigentes como Mandela a passar

à clandestinidade, e quando

se realizou o Julgamento de

Rivonia em que Mandela e outros

dirigentes do ANC enfrentaram

a pena de morte por alta traição

prisão, de negociar o fi m do

apartheid com o Governo do

Partido Nacionalista, e de ser

eleito primeiro Presidente negro

da África do Sul, dedicou-se,

depois da retirada da vida política,

e através da Fundação com o

seu nome, a uma nova causa – o

combate e a prevenção da sida

– à qual se sentia especialmente

ligado.

Em 2005, a morte do fi lho

Makgatho, vítima de sida, leva

Mandela a uma rara intervenção

pública desde o fi m do mandato

presidencial em 1999. Lança

um apelo para que se ponha fi m

ao tabu e se fale desta como de

qualquer outra doença, porque

só assim, diz, a sida deixará de ser

fatal.

Já antes tinha perdido o outro

fi lho, mais velho, Thembekile,

num desastre de carro, em 1969,

quando estava preso, e uma fi lha

pequena ainda bebé Makawize,

ambos do primeiro casamento

com Evelyn Mase, de quem se

divorciou em 1957.

Dos seis fi lhos que teve,

acompanharam-no até ao fi m

dos seus dias as três fi lhas:

Zindzi, Zenani e Makawize. E

Graça Machel, viúva do primeiro

Presidente da República de

Moçambique Samora Machel,

com quem Mandela casou em

18 de Julho de 1998, dia do

80º aniversário e que esteve

diariamente a seu lado nos últimos

dias no hospital.

Também Winnie Madizikela-

Mandela, com quem foi casado

quase 30 anos, esteve perto dele

nestes últimos tempos em que

estava doente.

Na autobiografi a, Mandela

conta que quando viu Winnie

pela primeira vez “soube que

a ia amar”. Durante os anos

em que esteve preso, era ela

a sua confi dente e, durante

muito tempo, quem melhor

o compreendia. A política, os

métodos utilizados e a visão do

rumo que devia seguir a luta

acabam por separá-los. O casal

divorcia-se em 1996.

A solidão marcou o tempo

passado na clandestinidade e, mais

tarde, os quase 30 anos na prisão,

de onde escreve em 1 de Outubro

de 1976 uma carta a Winnie em

que se lê: “Tenho momentos de

felicidade em que rio sozinho ao

pensar nas oportunidades e nos

momentos de prazer que tive na

vida.”

durante toda a vida e é algo

presente nas suas memórias em

Nelson Mandela – Arquivo Íntimo.

Mas aceitou-o como terá aceitado

a defesa que fez de o ANC recorrer

às armas que via como única

resposta possível a dar a um

regime que oprimia o seu povo.

“Nunca irei lamentar a decisão

que tomei em 1961, mas gostaria

que um dia a minha consciência

estivesse tranquila”, afi rmou

referindo-se à decisão tomada em

1961 de passar à clandestinidade

e formar o MK (Umkhonto we

Sizwe – A lança da nação) fundado

em 1961, que se tornou a ala

militar do ANC de que foi primeiro

comandante-chefe.

Sementes para a paz Da mesma forma que ousou

recorrer às armas, avançou mais

tarde sozinho, sem o ANC, no

primeiro gesto de negociar com o

Governo. Escreve várias missivas

ao ministro da Justiça, Kobie

Coetsee, que só depois de algum

tempo dão frutos.

Sem querer ser desleal para

com o ANC – que tinha como

princípio não dialogar com o

Governo enquanto o movimento

não fosse legalizado e os presos

políticos libertados – Mandela

transmite ao Governo o seu

pensamento: as negociações eram

a única saída para impedir que o

país mergulhasse numa espiral

de violência mútua que tornaria

os objectivos da luta ainda mais

difíceis de alcançar.

Quando apresenta aos

companheiros da luta na prisão

a sua intenção de avançar,

convence-os de que o importante

não seria ver quem deu o primeiro

passo para as conversações mas o

que delas viria a resultar no futuro.

Firme e persuasivo, é também

ele quem convence o adversário,

o Governo, de que não perderia

credibilidade perante o povo ao

sentar-se à mesa das negociações

com o ANC, mesmo sem este

renunciar à violência. “O povo

compreenderá”, desde que lhe

seja explicado que essa era a única

solução para a paz, diz Mandela.

Essas conversações viriam a

resultar em 1990 na sua libertação

e na dos outros presos políticos,

no fi m do apartheid e na realização

das primeiras eleições livres na

África do Sul em 1994.

Nos 23 anos que viveu depois

de ser libertado, além de concluir

a missão, iniciada ainda na

Mandela com o então Presidente De Klerk em Fevereiro de 1990, dois dias antes da sua libertação

Datas1918 Nasce em Mvezo

1942 Começa os contactos com o ANC e completa a Licenciatura em Direito

1944 Casa-se com Evelyn Mase, com quem terá 4 filhos e de quem se divorcia em 1956.

1957 Casa-se com Winnie Mandela com quem terá duas filhas e de quem se divorcia em 1996

1961 Entra na clandestinidade, adopta o nome de David Motsamayi.

1962 Deixa o país para receber treino militar e recolher apoios para o ANC. Regressa e é preso por incitamento e por sair ilegalmente do país

1964 É acusado de sabotagem e condenado a prisão perpétua no Julgamento de Rivonia juntamente com sete outros destacados activistas. Entra na cadeia de Robben Island Em sua defesa, Mandela, no duplo papel de acusado e advogado, pronuncia o célebre discurso “Speech from the dock”.

1985 Rejeita a oferta do Presidente PW Botha de o libertar se ele renunciar à violência. Só virá a aceitar a libertação se todos os outros presos políticos também o forem e se o ANC deixar de ser banido.

1990 É libertado da prisão de Victor Verster perto de Paarl e pronuncia um discurso histórico

1993 Recebe o Nobel da Paz com Frederik De Klerk

1994 Vota pela primeira vez na vida e é eleito primeiro Presidente negro da África do Sul

1998 Casa-se com a moçambicana Graça Machel

1999 Abandona a vida política e a liderança do ANC no fim do mandato como Presidente

2008 Discursa no Hyde Park, em Londres, palco das comemorações do seu 90.º aniversário

2010 Aparece naquela que se pensava ser a última vez na cerimónia de encerramento do Mundial de Futebol

2013 Morreu ontem aos 95 anos, na sua casa em Joanesburgo

contra o Estado, acabando por ser

condenados a prisão perpétua.

Morrer por um ideal Enquanto advogado, assumiu

a sua própria defesa nesse

histórico julgamento. Usou a

tribuna em nome da causa da

liberdade, dizendo que lutava

contra a dominação branca da

mesma forma que lutaria contra a

dominação negra e que acalentava

“o ideal de uma sociedade

democrática e livre” em que

todas as pessoas pudessem “viver

juntas”.

“É um ideal para cuja

concretização espero viver”,

disse. “Mas se for necessário, é

um ideal pelo qual estou disposto

a morrer.” Enfrentava então, no

Julgamento de Rivonia em 1964,

a pena capital por alta traição

contra o Estado e convencera-se

de que seria condenado à morte.

Chegara a citar Shakespeare a

esse propósito: “Aceite a morte; e

a morte e a vida serão assim mais

doces.”

Foi condenado a prisão

perpétua. E o seu nome, que

muitos sul-africanos associavam

a um perigoso terrorista, fi cou

ligado ao número de prisioneiro –

466 64.

A luta era a sua vida, admite

na autobiografi a, onde confessa

também a genuína felicidade

que sentira nos raros momentos

dedicados aos fi lhos – quando

ainda estava em liberdade – ou

quando teve nos braços a neta

recém-nascida, da sua fi lha Zindzi,

numa visita de ambas à prisão de

Robben Island.

Já em liberdade, numa entrevista

à revista “Time” em Fevereiro de

1990, disse acreditar no valor da

dedicação quase exclusiva à luta:

“Sim, valeu a pena. Ser preso por

causa das nossas convicções e

estar preparado para sofrer por

aquilo em que se acredita vale a

pena. É uma conquista para um

homem cumprir o seu dever na

terra independentemente das

consequências”, considerou.

Nunca escondeu porém a

angústia e o dilema de colocar “o

bem do povo à frente do bem da

família”. Na mesma entrevista,

questionado sobre se sentia mágoa

por ter estado preso 27 anos,

respondeu: “Sim e não.”

O difícil equilíbrio, nunca

alcançado, entre a dedicação à

família, por um lado, e à causa da

libertação, por outro, perseguiu-o

PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013 | ESPECIAL | V

Page 6: Nelson Mandela

MANDELA 1918-2013

Quando estava na prisão,

Mandela percebeu que se

tivesse frio não ia adiantar

escrever uma carta ao

director a queixar-se; a única

pessoa que lhe poderia trazer

um cobertor seria o responsável

pela secção da cela onde estava. Por

isso, precisava de dialogar com os

carcereiros.

A história foi contada pelo próprio

Mandela ao jornalista sul-africano

Allister Sparks, ex-director do Rand

Daily Mail, e mais tarde correspon-

dente dos jornais The Washington Post

e The Observer. “Mandela começou a

conhecer os carcereiros e soube que

eram muito mal pagos, não tinham

estudos, tendiam a ter difi culdades e

como era advogado ajudou-os, deu-

lhes conselhos de borla”, conta-nos

a partir da África do Sul o autor de

vários livros, como The Mind of South

Africa (1991) ou Beyond the Miracle: In-

side the New South Africa (2006). “Ga-

nhou a confi ança deles, conseguiu

saber por que é que tinham tanto me-

do dos negros sul-africanos e porque

eram tão violentos. Percebeu que eles

tinham medo: medo do número de

negros, de que a maioria negra to-

masse conta do poder e de que eles,

brancos, fossem os primeiros a per-

der o emprego e a sofrer” — e conhe-

cê-los era conhecer também muitos

outros brancos sul-africanos.

Sparks foi nomeado em 1995 por

Nelson Mandela para o conselho da

South African Broadcasting Corpora-

tion, tornou-se o director de informa-

ção da estação em 1997, e conviveu

com ele de perto. Usa a história do

cobertor para chegar ao osso do que

pensa ter sido o legado de um homem

que teve um papel decisivo no fi m de

uma segregação racial de 46 anos (de

1948 a 1994 — ofi cialmente, com as

primeiras eleições multiraciais). “A

sua contribuição para a negociação

de acordos foi esta capacidade de

perceber a psicologia daqueles con-

tra quem se estava a insurgir e depois

encontrar um meio de anular o factor

que estava a bloquear o acordo” – o

medo. E repete: “A sua importância

no movimento pelos direitos civis é

isto, tem que se entender a psicologia

do inimigo, das pessoas que estão a

oprimir-nos e perceber: porque es-

tão a oprimir-nos? Porque tendem a

tornar-se violentos?”

A “estratégia do cobertor”, cha-

memos-lhe assim, serviu-lhe então

depois nos tempos de liberdade.

Desenvolvendo a capacidade de

se colocar no lugar dos outros e de

empatizar com eles, fez “gestos sim-

ples”, segundo Sparks, cheios de

simbolismo. Nisso tornou-se “muito

habilidoso”. Por exemplo, decidiu ir

tomar chá com Betsie Schoombie, a

viúva de um dos homens por detrás

da ideologia do apartheid, Hendrik

Verwoerd, primeiro-ministro entre

1958 e 1966. “Visitou-a, e tornou o

facto público”, sublinhado que não

temia perdoá-los em nome do suces-

so da paz, mesmo depois dos 27 anos

passados na prisão, de onde não saiu

Joana Gorjão Henriques

Como a “estratégia do cobertor” fez de Mandela uma inspiração para o mundo

Os 27 anos passados na prisão em nome de uma causa, o fi m do apartheid, reservam-lhe uma admiração e lugar únicos na História. História de como “a estratégia do cobertor” o fez dialogar com o inimigo e tornar-se uma inspiração para o mundo

com rancor ou amargura em 1990.

Outro exemplo da estratégia do co-

bertor: “Chamou todos os generais

da minoria branca e disse-lhes: ‘Eu

nunca poderei derrubar-vos, mas

vocês nunca nos conseguirão matar

a todos. É melhor entendermo-nos:

eu mantenho-vos nos vossos postos

mas é preciso ter generais negros

também’.”

Mandela, o primeiro presidente

negro da África do Sul, é o homem

dos gestos. Não é apenas o jornalista

sul-africano quem nos fala deles. Ao

contrário do que aconteceu em ou-

tros casos, quando chegou ao poder

em 1994 não propôs uma política de

expulsão da minoria branca, lembra

o italiano Livio Sansone, do depar-

tamento de Antropologia e Centro

de Estudos Afro-Orientais da Uni-

versidade Federal da Bahia, a viver

no Brasil há décadas. E, mais uma

vez, soube utilizar “a política da cor”

de forma inteligente, acrescenta-nos

numa conversa por Skype a partir da

Europa. Outro momento decisivo:

quando quis manter um serviço de

segurança composto por brancos.

“O que foi simbólico: um presidente

negro andar com um monte de po-

lícias brancos… Ele era genial nesse

aspecto. Manteve os seguranças bran-

cos para mostrar que não tirava os

brancos dos cargos deles.”

Na memória de Sílvio Humberto,

economista, professor e fundador do

Instituto Steve Biko (nome de um ac-

tivista sul-africano da luta contra o

apartheid), fi cou também a perseve-

rança de um líder que demonstrou ao

mundo que era possível “equilibrar

a arte de fazer política com as agru-

ras do racismo”. “Uma das primei-

ras coisas com que o racismo acaba

é com a humanidade e fi ca difícil res-

tabelecer o diálogo com alguém que

não te considera humano. Mandela

conseguiu equilibrar as duas coisas,

fazer a transição na África do Sul e

saber o momento exacto de sair e de

não se perpetuar no poder.” O tam-

bém vereador da cidade de Salvador

repete-nos a imagem dos “gestos”:

“Ele deu uma lição de fazer política

com o seu exemplo, com o seu gesto.

É o gesto de quem tem a mão aber-

ta, e está disposto a estender a mão

ao outro em prole da África do Sul”.

E não menos importante: só saiu da

prisão quando “pôde lutar de igual

para igual, com dignidade”.

Por isso, como diz Sparks, a Áfri-

ca do Sul “adora-o”. “É um tesouro

nacional, adorado por todas as raças

no país”.

A luta armadaMas Mandela passou por diversas fa-

ses na sua vida, nem todas tão conci-

liatórias quanto a imagem que fi cou

do Nobel da Paz dos últimos anos.

Quando era novo, formou a ala mi-

litar do ANC (Spear of the Nation,

abreviado MK). Não iria conseguir

vencer uma luta por meios pacífi cos,

defendia. Gandhi tinha lançado a sua

carreira política na África do Sul, e a

sua postura era a de resistência passi-

va. “Mandela, na fase inicial, decidiu

que enquanto se está a enfrentar um

VI | ESPECIAL | PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013

Page 7: Nelson Mandela

THEMBA HADEBE/AFPMandela celebra os seus 90 anos com os netos em 2008

um homem íntegro, apesar de per-

tencer ao Partido Nacional, e “isso

deu-lhe poder”. “Teve a visão para

olhar além do imediato, e de dar um

passo em direcção ao outro lado. Não

tenho a certeza de que qualquer ou-

tro líder tenha sido capaz de dar esse

passo e de tomar os riscos que ele

tomou para convencer toda a gente.

É uma qualidade fantástica.”

Outras qualidades, como líder: ser

“muito fi rme”, diz Makhanya. Mas a

coisa mais importante: “a sua humil-

dade”. Isso vem do facto de Mandela

não se colocar no lugar de quem dá

ordens, mas de fazer a outra pessoa

sentir que era tão importante quanto

ele: “Podia relacionar-se com presi-

dentes da mesma forma que se rela-

cionava com as pessoas da rua.” De-

pois de ter saído da prisão e fazê-lo

determinado a unir o país, Mandela

não teve apenas uma liderança for-

te. Teve disponibilidade para perdo-

ar, para deixar o passado para trás,

e disse ainda aos sul-africanos que

não deviam temer a democracia,

acrescenta.

O milagre da sobrevivênciaEsta capacidade invulgar de comu-

nicação e de empatia tornou-o um

símbolo, não apenas para negros

mas para todos. Acima de tudo, diz

Makhanya, Mandela lutou pela igual-

dade e pelos direitos humanos. Daí

que este jornalista afi rme: “Mandela

não nos pertence, pertence ao mun-

do, é o nosso Mandela mas é também

o Mandela do mundo”.

Mandela é do mundo, e seria in-

fl uenciado também por outros acti-

vistas do mundo. O historiador ame-

ricano Clayborne Carson, escolhido

pela família de Martin Luther King

para editar e publicar os seus escri-

tos, reconhece nele as infl uências do

activista norte-americano no qual se

especializou. A partir da Califórnia,

Carson fala-nos da inspiração do boi-

cote de Montgomery — em 1955, Rosa

Parks recusou dar o seu lugar a um

branco no autocarro (como era a re-

gra) e desencadeou o movimento dos

direitos civis liderado por King, o que

levou ao fi m da segregação racial nos

EUA. “Na altura havia semelhanças

entre as lutas nos Estados Unidos e

na África do Sul”, lembra o também

fundador do Instituto Martin Luther

King na Universidade de Stanford, on-

de ensina. Aliás, quando foi aos EUA

Mandela quis conhecer Rosa Parks.

“Sei que fi cou muito comovido, por-

que a via como uma pessoa crucial

na luta dos afro-americanos”.

Nos anos 1980 a luta contra o

apartheid foi apoiada pelos afro-

americanos, que fi zeram protestos

à porta da embaixada sul-africana em

Washington D.C. e pressão para que

Ronald Reagan, então presidente,

adoptasse medidas contra a África

do Sul, recorda. E, curiosamente, “o

maior protesto em Stanford não foi

nos anos 1960 mas nos 1980 contra o

apartheid”, diz. “Os americanos viam

Mandela como líder, mas ele estava

na prisão. Conheceram-no melhor

depois quando saiu.”

Nos EUA Mandela é visto como al-

guém que fez uma “extensão interna-

cional dos princípios de Martin Lu-

ther King” — e esses princípios são o

de “um longo e paciente sofrimen-

to”, completa Henry Gates, famoso

especialista em estudos afro-ameri-

canos, professor na Universidade de

Harvard. Quem sabe defi nir carisma,

questiona retoricamente ao telefone

de Cambridge, EUA, quando lhe fa-

lamos das suas características como

líder. “A diferença entre King e Man-

dela é que nunca ninguém sonhou

que King iria emergir como Presiden-

te dos EUA e isto é diferente. Aqui

nos EUA a acção política era mais um

movimento moral, baseado em objec-

ção de consciência e na tentativa de

converter as cabeças e os corações

dos cidadãos; no caso de Mandela foi

um golpe, a tentativa de suplantar um

partido por outro, e por isso resisti-

ram tão violentamente.”

Mandela nunca desistiu nem capi-

tulou, diz o também autor de vários

programas de televisão. Sobreviveu

aos anos na prisão e depois “apareceu

como se fosse ontem!”, lembra entu-

siasmado. “Todos celebrámos este

homem que era um super-homem.”

Gates guarda um poster original

da primeira campanha política de

Mandela, para o qual olha todos os

dias quando acorda. Quando ele foi

libertado da prisão, levou as fi lhas

a assistir ao momento pela TV. “Na

história ocidental dos negros nada é

mais importante do que a sua sobre-

vivência e a eleição como presidente

porque é um triunfo tão grande de

uma oposição negra ao poder domi-

nante”, diz. Não é por acaso que o

professor fala em “sobrevivência”,

como se tivesse sido um milagre. Nos

EUA todos os grandes líderes do mo-

vimento dos direitos civis foram mor-

tos: J.F. Kennedy, Malcolm X, o pró-

prio Dr. King, como os americanos

lhe chamam. “Mandela sobreviveu e

dirigiu um país, é um milagre entre

os negros.”

Optimismo e cor da riquezaNão é como milagre que o sociólo-

go Éric Fassin, professor na École

Normale Supérieure de Paris e es-

pecialista em temas raciais, defi ne

o legado de Mandela. Mas quase. A

lição a tirar do papel de Mandela

como activista pelos direitos civis

resume-se numa palavra: “Optimis-

mo”. Optimismo porque transmite

a esperança, a quem está do lado

do perdedor durante anos, de que

pode um dia ganhar, diz-nos entre as

aulas em Paris: “Aquilo que parecia

ser algo que ia continuar para sem-

pre — o apartheid — acabou. Mande-

la foi libertado e depois tornou-se

presidente. A ideia de que, quando

se está a perder, o impensável pode

tornar-se viável é aplicável a todo o

tipo de movimentos sociais e todas

as situações. Pensemos no que se

passa em Israel.”

Na África do Sul, ao mesmo tempo

que se lutava pelo fi m do apartheid,

outro movimento favorecia o sepa-

ratismo negro, lembra Clayborne

Carson. O que Mandela conseguiu

foi não fazer do fi m do apartheid

“uma luta de negros contra brancos

mas de brancos e negros a ultrapas-

sarem as injustiças juntos”, algo que

lhe garante ainda admiração única.

“Mandela e o ANC eram consistentes

a defender uma África do Sul mul-

tirracial.” Carson não tem dúvidas

de que Mandela “será lembrado, ao

lado de King e de Ghandi, como um

dos três grandes nomes da liberdade

humana e dos direitos humanos do

século XX”.

Aí está, então, uma segunda razão

para Éric Fassin usar a palavra “op-

timismo”: a luta pelo fi m do apar-

theid foi uma batalha racial, mas as

expectativas eram de que iria haver

uma batalha de sangue, só que isso

não aconteceu. Moral da história:

“Nem todas as revoluções preci-

sam de se transformar em sangue

ou numa ditadura. O exemplo que

Mandela deu foi que o impensável

acontece e que a nação arco-íris até

certo ponto funcionou. Não signifi ca

que o racismo desapareceu, não sou

naïf, mas signifi ca que África do Sul

pode ultrapassar isto.”

O país após o apartheidSe a admiração pelo Mandela dos

tempos da luta na prisão contra o

apartheid é quase geral, já a sua pos-

tura enquanto presidente da África

do Sul e o seu lado conciliatório é

menos consensual.

O “grande exemplo, brutal,” de

alguém “tenaz, que falava muito

na construção e apontava para o

futuro” do Mandela da fase inicial

fi cou aquém das expectativas na fa-

se posterior para o português Nuno

Santos, sociólogo, conhecido como

rapper Chullage e à frente de duas

associações activistas, a Plataforma

Gueto e a Khapaz. Envolvido com

outros movimentos internacionais

pela igualdade racial, e leitor de

blogues de autores sul-africanos

que andam na casa dos 30 anos,

Nuno Santos fala de uma África do

Sul onde formalmente a segregação

racial acabou, mas onde na prática

continuam a existir desigualdades

entre brancos e negros. Há hoje

uma burguesia negra sul-africana,

mas “o acesso aos empregos”, por

exemplo, “continua a ser altamente

racializado”, as condições de vida

melhoraram num par de cidades

e no resto do país ainda há muitos

que precisam de andar horas para

buscar água potável e trabalham

em “condições obscenas”, exem-

plifi ca.

O sul-africano Mondli Makhanya

contextualiza: os problemas raciais

na África do Sul agora são muito di-

ferentes de há 20 anos. O que Man-

dela conseguiu durante os cinco

anos em que esteve na presidência

(1994-1999) foi “algo extraordiná-

rio”: “Mudou as condições de vida

de muita gente, havia pessoas que

não tinham electricidade, novas ca-

sas foram construídas para quem

vivia em bairros de lata, muitos pas-

saram a ter água potável”. Mas: “Há

muita coisa a fazer.” Não há separa-

ção racial nas escolas, nos bares, nos

autocarros, “as pessoas relacionam-

se umas com as outras, ultrapassou-

se a barreira da cor”, e isso deve-se,

considera, ao que Mandela fez du-

rante o seu mandato: “a reconcilia-

ção, reconstrução da nação”. A nível

económico confi rma as informações

que Nuno Santos vai recebendo da

sua rede: “A maior parte do dinhei-

ro está em mãos brancas, a classe

média é predominante branca e os

Não haverá um segundo Mandela porque ele é produto de um tempo. Foi o “sonho colectivo de muitos” porque o resto do mundo também estava empenhado em abolir o apartheid

regime que usa armas não se podem

usar meios pacífi cos”, sublinha Spa-

rks. “Mais tarde mudou a sua pers-

pectiva, embora nunca abandonasse

a estratégia militar. Enquanto esta-

va na prisão percebeu que o braço

armado que fundou podia ser um

factor importante num acordo de

negociação.”

Por outro lado, o não abdicar da lu-

ta armada foi um risco, porque pode-

ria eventualmente desencadear uma

guerra civil, lembra-nos em conver-

sa telefónica o jornalista sul-africano

Mondli Makhanya, antigo director do

The Sunday Times sul-africano.

Durante as negociações com o en-

tão presidente Frederik Willem de

Klerk, com quem chegou ao fi m do

apartheid, Mandela disse que ele era

PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013 | ESPECIAL | VII

Page 8: Nelson Mandela

pobres são negros. A maioria ainda

vê a cor da riqueza como branca, e

a cor da pobreza como negra. Isso

afecta as relações, porque as pesso-

as pensam: ‘Para que serve a liber-

dade, se não há liberdade económi-

ca?’” Para ele, “o grande desafi o de

agora é passar da reconciliação para

um equilíbrio económico.”

O herói do meioO fi lósofo alemão Hans Magnus En-

zensberger descreveu Mandela co-

mo “o herói do meio” e é assim que

Livio Sansone o gosta de ver. Porque

tanto ele como Frederik De Klerk ti-

veram “a coragem de fazer um acor-

do contra a maioria da vontade do

povo”. Havia na África do Sul quem

quisesse um ajuste de contas racial,

e ambos “fi zeram com que isso não

acontecesse. É um símbolo impor-

tante.” Depois Mandela teve ainda

a coragem de se “auto-exilar” — sair

da política — e dizer: “‘Fiz a minha

luta, agora deixo espaço para os ou-

tros’. Há poucos como ele”, conclui

Sansone.

Herança e legado de Mandela co-

mo líder activista pelos direitos civis?

A crença de que “é possível ter uma

sociedade em que a diversidade não

é considerada como problema mas

como valor, um valor que tem que

ser exercitado diariamente porque

o racismo tem muitas armadilhas e

sabemos que, às vezes, mudam-se

as leis mas não a cabeça”, diz Sílvio

Humberto. “É o que ele defendeu: se

você é educado para odiar também

pode ser educado para amar.”

Resultado de um momento ca-

tártico, ícone de um sofrimento

colectivo de centenas de anos, ele

era único, diz Sansone. Não haverá

um segundo Mandela, considera,

porque ele é produto de um tempo.

Foi, como lhe chama, “o sonho co-

lectivo de muitos”, porque o resto

do mundo também estava empe-

nhado em abolir o apartheid, “algo

muito injusto e anti-histórico”. Uma

personagem charmosa, sedutora,

meiga, Mandela é ainda “um pouco

um santo”. Não tem dúvidas: “Não

vejo no horizonte um líder tão char-

moso quanto Mandela.”

No fundo, a estratégia “do cober-

tor” pode ter sido efi caz, mas teve

menos de estratégia no sentido cíni-

co do termo, e mais de autenticida-

de. Allister Sparks lembra a singu-

laridade do sucesso de Mandela em

direcção aos opositores: “Projectava

uma personalidade muito humana

e calorosa até para os inimigos. Ele

fazia-o de forma muito honesta. Es-

ses gestos nunca pareciam falsos.”

MANDELA 1918-2013

O QUE ELES DIZEM

“Sabíamos que este dia estava a chegar. O nosso povo perdeu um pai”Jacob ZumaPresidente da África do Sul

“Mandela deixa um extraordinário legado de universalidade que perdurará por gerações”Aníbal Cavaco SilvaPresidente da República

“Ele alcançou mais do que se pode esperar de qualquer homem. Não consigo imaginar a minha vida sem o exemplo de Mandela”Barack ObamaPresidente dos EUA

“Muitos no mundo inteiro foram influenciados pela sua luta altruísta pela dignidade, igualdade e liberdade humana”

Ban Ki-moonSecretário-geral da ONU

“Mandela mudou o curso da história para a sua população, para o seu país, para o seu continente, para o mundo”Durão BarrosoPresidente da Comissão Europeia

“Um resistente excepcional, um lutador magnífico. A incarnação da nação sul-africana”François HollandePresidente de França

Não enterraremos

nas nossas vidas um

homem mais incrível

e marcante do que

Nelson Mandela. O verbo

é intencionalmente

no plural. Mandela não é da

África do Sul, é do mundo. No

século XX, ninguém como ele

simbolizou o “homem bom”.

Mandela não foi um político,

foi um homem de Estado. Não foi

calculista, foi visionário. Não foi

rancoroso, foi magnânimo. Não foi

mesquinho, foi altruísta. Não foi

arrogante, foi humilde.

Há dois mil anos, Cícero, ele

próprio um “homem bom”,

identifi cou as qualidades de um

líder: integridade, elegância,

inteligência política, coragem,

moderação e generosidade. Hoje

desvalorizamos alguns destes

atributos. Basta pensarmos como

a moderação é muitas vezes vista

como uma característica dos

fracos. Ou elegância, tida como

superfi cial. Já agora, o mestre

Cícero destacava ainda mais

dois requisitos: saber fazer a paz

com honra e acreditar que “o

compromisso é fundamental para

conseguir resolver as coisas”.

Graça Machel disse do marido,

com quem casou em 1998, que

“há uma percepção um pouco

romântica de Nelson Mandela,

todo o mundo diz que ele foi o

melhor”. É verdade, exageros

humanos. É um mito, endeusado

por todos, único a ver decretado

um dia internacional com o seu

nome pelas Nações Unidas.

Mas Mandela tem essa força:

emociona como homem,

mas também emociona como

pensador político e emociona

como homem de acção. E num

mesmo homem, isso é raro como

raro é o oxigénio fora da Terra.

Mandela é o homem dos

gestos inesquecíveis. Dos gestos

simbólicos que o tempo apagará

da memória, como quando, já

Presidente, convidou para um

chá Betsie Schoombie, viúva de

Hendrik Verwoerd, primeiro-

ministro entre 1958 e 1966 e

ideólogo do apartheid, ou de

quando decidiu manter como

segurança pessoal da presidência

os polícias brancos que herdara de

Frederik de Klerk.

Mas é acima de tudo o homem

de um gesto estrutural que os

livros de História vão contar por

muitos séculos: dialogou com

o inimigo e conseguiu com isso

mudar o regime de um país. Nos

anos 1980, o apartheid era o mais

injusto e aparentemente insolúvel

sistema político do mundo.

Mandela descreveu-o como “o

maior crime da era moderna a

seguir ao Holocausto”. Travou

a escalada de violência e evitou

a guerra civil, fez a transição na

África do Sul e, ao mesmo tempo,

não se perpetuou no poder,

mostrando a todos, dentro e fora

do país, a importância de saber

sair no momento certo.

Mandela uniu o seu saber inato

de que a “paz tem de ser feita com

honra” a um saber que aprendeu

na prisão: conseguir que o

cérebro domine o sangue. Nas

suas palavras: “A emoção dizia-

nos: ‘A minoria branca é o nosso

inimigo, nunca devemos falar

com eles.’ Mas a cabeça dizia-

nos: ‘Se não falares com eles,

o país vai explodir em chamas.

Tivemos de reconciliar esse

confl ito. Falarmos com o inimigo

foi o resultado desse domínio

da mente sobre a emoção.”

Mandela não fez a ponte com o

inimigo sozinho. O rio tem duas

margens. Do outro lado estavam

Neil Barnard, chefe dos serviços

secretos, e o Presidente Botha.

Os três deram o passo histórico

que mudou o país e deixou uma

O melhor de todos nós

Editorial

lição de reconciliação ao mundo.

Barnard e Botha souberam ler

a realidade e perceber que sem

um acordo político o país iria

devorar-se a si próprio. Mandela

soube dizer que sim ao primeiro

convite de diálogo secreto.

Barnard soube dar dignidade

ao prisioneiro com quem

secretamente falava. Mandela

soube exigir falar directamente

com Botha. O “velho crocodilo”,

símbolo mundial do racismo,

soube receber Mandela com

respeito e até graciosidade.

Mandela falou em Afrikaans no

primeiro encontro. O objectivo

das nossas vidas, sempre disse

Mandela, é “sermos melhores do

que o melhor de nós mesmos”.

Bill Clinton, o mais africano

dos Presidentes americanos e

cujos mandatos na Casa Branca

coincidiram com os de Mandela

no Tuynhuys, resumiu o que

era estar com Mandela: “Se

ele conseguiu fazer tudo isto,

enfrentar tudo isto e mesmo

assim ter um sorriso na cara e

uma canção no coração, quem

sou eu para me queixar?”

Mandela deixa um país com

futuro. Mas também um país

criticado por estar a viver um

“triste declínio”, com a economia

a perder fôlego, a corrupção a

aumentar, a desigualdade social

gritante. Deixa um desafi o às

novas gerações. Transformar a

reconciliação em prosperidade.

Ninguém sabe se vão conseguir.

Sabemos apenas que, como hoje

citamos Cícero, em 4013 citaremos

Nelson Mandela.

AFP

Mandela a caminho do seu julgamento em 1956

VIII | ESPECIAL | PÚBLICO, SEX 6 DEZ 2013