NATALY YOLANDA CAPELARI DOS...
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ - UNIOESTE
CAMPUS FOZ DO IGUAÇU
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU EM
SOCIEDADE, CULTURA E FRONTEIRAS – NÍVEL MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: SOCIEDADE, CULTURA E
FRONTEIRAS
NATALY YOLANDA CAPELARI DOS SANTOS
UM HERMENEUTA DA MORTE:
JOSÉ SARAMAGO NA LITERATURA E NA HISTÓRIA
FOZ DO IGUAÇU - PR
2019
NATALY YOLANDA CAPELARI DOS SANTOS
UM HERMENEUTA DA MORTE:
JOSÉ SARAMAGO NA LITERATURA E NA HISTÓRIA
Dissertação apresentada à Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE – para a obtenção do título de Mestre em Sociedade, Cultura e Fronteiras, junto ao Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Sociedade, Cultura e Fronteiras, nível de mestrado – área de concentração em Sociedade, Cultura e Fronteiras. Linha de pesquisa: Território, História e Memória. Orientador: Prof. Dr. José Carlos dos Santos
FOZ DO IGUAÇU - PR
2019
NATALY YOLANDA CAPELARI DOS SANTOS
UM HERMENEUTA DA MORTE:
JOSÉ SARAMAGO NA LITERATURA E NA HISTÓRIA
Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do Título de Mestre em
Sociedade, Cultura e Fronteiras e aprovada em sua forma final pelo Programa de
Pós-Graduação Interdisciplinar Strictu Sensu em Sociedade, Cultura e Fronteiras –
Nível de Mestrado, área de concentração em Sociedade, Cultura e Fronteiras, da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, campus Foz do Iguaçu.
COMISSÃO EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Rediver Guizzo
Universidade Federal da Integração Latino-Americana - UNILA
Membro efetivo (convidado)
___________________________________________________________________
Prof. Dra. Josiele Kaminski Corso Ozelame
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE
Membro efetivo (da Instituição)
___________________________________________________________________
Prof. Dr. José Carlos dos Santos
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE
Membro efetivo - Orientador
Àqueles que precisam compreender o que é
a morte antes de perder alguém.
Ao Douglas, minha inspiração, que teve que
sentir a perda mais dolorosa de sua vida,
fazendo-me refletir sobre quem eu poderia
perder e como poderia reagir. Ele foi o início
desse estudo, mas não é o fim. Amo você,
infinitamente, mãe!
AGRADECIMENTOS
A Deus, por permitir-me percorrer todo este trajeto e ter providenciado o
necessário para continuação dos estudos, e pela oportunidade de aprendizado
diário.
À UNIOESTE pelo incentivo no aperfeiçoamento e pela excelência e
qualidade dos cursos oferecidos.
À CAPES/DS pela concessão da bolsa de estudos e possibilidade de
dedicação exclusiva à pesquisa durante os dois anos de mestrado.
Ao professor José Carlos Santos, por ter aceitado a tarefa de orientar-me já
ao fim do segundo semestre e deixar-me seguir minha forma de estudos. Obrigada
pela paciência, atenção, sugestões e conversas, pelos ensinamentos e pela
excelência na orientação.
À professora Josiele Kaminski Corso Ozelame, orientadora inicial, por ter me
aproximado mais da pessoa de José Saramago e todas as suas narrativas,
despertando meu amor e admiração por esse magnífico escritor da Língua
Portuguesa.
A José Saramago (in memoriam), por ter proporcionado a esse planeta
tumultuado a possibilidade de refletir e pensar, por meio de sua literatura e da ficção.
Obrigada por mudar minha forma de ver as coisas, com as magníficas narrativas que
escreveu. O mundo perdeu muito com sua partida!
À minha mãe, Iolanda da Silva, por todo esforço, luta e renúncias que me
permitiram chegar onde estou hoje. Este trabalho surgiu pelo amor imenso que
tenho por você, mulher mais maravilhosa e forte que conheço.
À minha irmã, Danielen Naypi Capelari dos Santos, que sempre acredita em
mim e me incentiva a continuar. Tenho orgulho em ser sua irmã.
Ao meu esposo, Douglas Camargo Witcel, incentivador inconsciente deste
trabalho. Obrigada por me fazer sentir capaz de realizar todas as coisas do mundo,
por me demonstrar que sou muito boa no que faço quando eu não acredito que
possa conseguir.
À minha antiga psicóloga, Alexandra, pela ajuda em um momento difícil deste
caminho estudantil. Por ter-me demostrado que sou uma pessoa com um potencial
enorme e que não preciso da aprovação de ninguém para ser feliz. Devo minha
sanidade e força neste período a você.
Aos colegas do doutorado: Ana Carolina Acom, grata por ouvir minhas
reclamações e lamentações, por todo incentivo, conversas e sorrisos dentro e fora
da universidade, pelo conhecimento compartilhado, pela parceria nos artigos e por
todas as indicações de livro e leituras. Obrigada por Schopenhauer!; Cláudio de
Mello e Solange Portz agradeço imensamente por todo conhecimento transmitido,
por todos os sorrisos, cafés e comentários que trocamos durante todo esse período.
Obrigada por sempre terem me considerado como uma doutoranda mesmo eu não
ainda não sendo uma. Vou levar e guardar tudo o que aprendi com vocês no meu
coração.
[...] cada um de vós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe.
José Saramago
[...] é fácil entender por que a ficção nos
fascina tanto. Ela nos proporciona a
oportunidade de utilizar infinitamente nossas
faculdades para perceber o mundo e
reconstituir o passado.
Umberto Eco
SANTOS, Nataly Yolanda Capelari dos. Um hermeneuta da morte: José Saramago
na Literatura e na História. Dissertação (Mestrado Interdisciplinar em Sociedade,
Cultura e Fronteiras) - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Foz do Iguaçu,
2019.
RESUMO
As intermitências da morte (2005), de José Saramago, que ao abordar a problemática da morte, parece fornecer algumas tentativas de compreensão das questões finais, e de todas as demais suscitadas, além de sugerir uma reflexão profunda sobre a morte, falando do que é a vida, partindo de uma leitura metafórica sobre a morte transformada em personagem. Levando isso em consideração, o estudo analisa o romance de Saramago pelo viés da complexidade de Edgar Morin, considerado os contrários em suas peculiaridades, sem excluí-los, compreendendo que fazem parte de um todo maior. Transitamos, conforme a obra, pela ordem e desordem de uma vida sem morte e, consequentemente de ausências de vida e de morte. Buscamos compreender como o escritor fala sobre a morte, por meio da vida, e quais recursos se utiliza para tal, como constrói a personagem principal, reavivando em nosso imaginário o conhecimento histórico e pessoal que temos da morte para depois modificá-lo e desmistificar alguns tabus e compreensões por meio da literatura. Para isso, baseamo-nos na compreensão do tempo e do espaço do escritor, da narrativa, do leitor e do pesquisador como influenciadores e interferentes na produção literária, apoiados em Harvey, Bauman, Flory e Foucault. Também buscamos na História, com Certeau, Morin, Elias e Àries, a compreensão do que seja a morte e como ela foi representada, em um romance que fala sobre a vida. Estudamos como História e realidade são levadas para dentro da ficção, trabalhando juntas, por meio da linguagem, com Compagnon, Candido, Benjamin, Bakhtin, Ricoeur, Pesavento e Flory. Estudamos e desmembramos o romance saramaguiano a fim de compreender e identificar como José Saramago transforma-se em um hermeneuta da morte, transitando pela Literatura e pela História. PALAVRAS-CHAVE: Morte, Literatura, História, Paradigma da Complexidade, José Saramago.
SANTOS, Nataly Yolanda Capelari dos. The hermeneutic of death: José Saramago
in Literature and History. Dissertation (Interdisciplinary Master in Society, Culture and
Frontiers) - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Foz do Iguaçu, 2019.
ABSTRACT
Death at intervals (2005), by José Saramago, talks about the problem of death and tries to understand the final issues, and all the others raised. The book suggests a deep reflection about death, talking about life, starting from a metaphorical reading about death, which is transformed into a character. With this in mind, the study analyzes Saramago's novel according to Edgar Morin's Paradigm of Complexity which considers the opposites in their peculiarities, without excluding them, understanding that they are part of a larger whole. We move like the novel, by the order and disorder of a life without death and a death without life. We try to understand how the writer talks about death, through life, and what resources are used for it, how he constructs the main character, reviving in our imaginary the historical and personal knowledge we have of death for after modify it and demystify some taboos and understandings through literature. For this, we are based on the understanding of the time and space of the writer, the narrative, the reader and the researcher as influencers and interferers in the literary production, supported by Harvey, Bauman, Flory and Foucault. We also search in history for understanding what death is and how it was represented, according to Certeau, Morin, Elias and Àries. We study how history and reality are drawn into fiction, working together through language based on Compagnon, Candide, Benjamin, Bakhtin, Ricoeur, Pesavento, and Flory’s survey. We study and dismember the Saramaguian novel in order to understand and identify how José Saramago transforms into the hermeneutic of death, transiting through Literature and History. KEY WORDS: Death, Literature, History, Paradigm of Complexity, José Saramago.
SANTOS, Nataly Yolanda Capelari dos. Un hermeneuta de la muerte: José
Saramago en la Literatura y en la Historia. Disertación (Mestrado Interdisciplinar en
Sociedad, Cultura y Fronteras) - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Foz do
Iguaçu, 2019.
RESUMEN
Las intermitencias de la muerte (2005) es una obra de arte que habla acerca de la muerte y intenta que las personas razonen las cuestiones finales, además de sugerir una reflexión profunda sobre la muerte, hablando de lo que es la vida, partiendo de una lectura metafórica de la muerte que se transforma en una personaje central del libro. En el estudio se analiza la novela de José Saramago utilizando el Paradigma de la Complejidad de Edgar Morin. Ese pensamiento complejo estudia los lados contrarios en sus peculiaridades, sin excluirlos, comprendiendo que forman parte de algo mayor. Caminamos igual a la novela, por el orden y el desorden de una vida sin muerte y de vidas que no nacen porque no existen más las muertes. Buscamos comprender cómo el escritor habla de la muerte, por medio de la vida, qué recursos utiliza para eso y cómo construye el personaje principal, bajo al conocimiento histórico y personal que tenemos de la muerte, para después cambiar y desmitificar algunos tabúes y comprensiones por medio de la literatura. Para eso, nos basamos en la comprensión del tiempo y del espacio del escritor, de la novela, del lector y del investigador como influyentes en la producción literaria, apoyados en Harvey, Bauman, Flory y Foucault. También buscamos en la Historia, Sociología y Antropología, con Certeau, Morin, Elias y Ariès, la comprensión de lo qué es la muerte y como ella fue representada. Estudiamos todavía como Historia y realidad son llevadas dentro de la ficción, trabajando juntas, por el médio del lenguaje usando los conceptos de Compagnon, Candido, Benjamin, Bakhtin, Ricoeur, Pesavento y Flory. Estudiamos la novela de Saramago para comprender y identificar cómo José Saramago se transforma en un hermeneuta de la muerte, caminando por la Literatura y por la Historia. Palabras clave: Muerte, Literatura, Historia, Paradigma de la Complejidad, José Saramago.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12
1 TEMPOS E ESPAÇOS .......................................................................................... 16
1.1 Do autor: entre o moderno e o pós-moderno ...................................................... 18
1.1.1 O estilo saramaguiano...................................................................................... 27
1.2 Da narrativa ......................................................................................................... 30
1.2.1 O discurso literário ........................................................................................... 34
1.3 Do leitor ............................................................................................................... 39
1.3.1 O leitor provocado ............................................................................................ 44
1.4 Do narrador: o elo entre autor e a obra ............................................................... 47
2 LITERATURA, MORTE E HISTÓRIA .................................................................... 53
2.1 A escolha do pensamento complexo ................................................................... 54
2.2 Sobre Literatura e História ................................................................................... 59
2.2.1 A mimese: realidade e ficção ........................................................................... 62
2.3 A literatura e a morte: uma interseção no barroquismo saramaguiano ............... 65
2.4 A palavra morte: etimologia ................................................................................. 71
2.4.1 Mudanças de visões acerca da morte: uma breve descrição ........................... 72
2.4.2 Saramago e a morte ......................................................................................... 77
2.5 Morte, Literatura e História: uma interação na complexidade ............................. 78
3 A HERMENÊUTICA DA MORTE EM SARAMAGO .............................................. 80
3.1 A morte no romance: caminhos de uma protagonista ......................................... 80
3.2 A morte em evidência: uma personagem ............................................................ 87
3.3 A persona morte .................................................................................................. 98
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 104
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 108
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INTRODUÇÃO
De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos? São questionamentos que
têm movido a humanidade desde os primórdios de nossa existência. Na tentativa de
elucidar essas questões foram desenvolvidos técnicas e meios de dominar a
natureza, para compreender o mundo, o que fazemos nele e qual nosso objetivo
aqui.
Para responder a essas questões, duas palavras surgem constantemente: vida
e morte. A primeira delas nos remete a pensamentos felizes, a atitudes e
comportamentos positivos, a todas as coisas maravilhosas que podemos fazer para
desfrutar dos eventos que nos acontecem e que também envolvem as pessoas
próximas a nós. Diferentemente, a segunda palavra parece arrastar a um lado
sombrio de nossa existência, levando-nos a temer, a evitar comentar sobre o
assunto, a comportar-nos de determinada forma, emocional e fisicamente. A morte
fornece ares de tristeza, choro, falas por cochichos, roupas de cor preta, ausência
de qualquer expressão positiva, de qualquer ação que demonstre o que a vida
permite: felicidade. Tememos nossa própria morte e a de todos aqueles que
possuem um significado ou importância em nossas vidas: E se eu morresse? E se
meus pais não existissem mais? E se esposos ou filhos já tivessem nos deixado?
Por que quando vivo tenho que pensar que um dia irei morrer? Como reagiríamos
frente a esses impactos?
As primeiras perguntas nos levam, consequentemente, às segundas. E o medo
novamente impera. Como duas palavras tão distintas conseguem ser tão iguais e
uma andar na sombra ou luz da outra o tempo todo, literal e figurativamente? Como
contrários conseguem ser complementares e dependentes para que o todo exista?
Em meio a nossas leituras e releituras pelo universo literário nos deparamos
com uma obra que, ao abordar a problemática da morte, parece fornecer algumas
tentativas de compreensão das questões finais, e de todas as demais suscitadas e
descritas acima. Além disso, sugere uma reflexão profunda sobre a morte, falando
do que é a vida, por meio de uma leitura metafórica sobre a morte transformada em
personagem.
Essa leitura é permitida pelo do texto de José Saramago, publicado em 2005 e
intitulado As intermitências da morte, o qual nos conduz, entre o caminho do
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impossível e do improvável fabulado nesse romance, a uma desconstrução do
conceito de vida e de morte, transformando nosso modo de agir sobre a realidade,
fornecendo uma forma diferenciada e original de entendimento, apontada pelo autor,
a partir do enredo criado na narrativa.
Portanto, o objetivo central deste trabalho é compreender como José
Saramago contempla a morte no romance, quais recursos ele utiliza para tal e como
constrói a personagem principal, reavivando em nosso imaginário o conhecimento
histórico e pessoal que temos da morte para depois modificá-lo e desmistificar
alguns tabus e compreensões por meio da literatura.
No trajeto do descontínuo e do desconhecido, a pesquisa desenvolve-se em
um vai e vem constante entre o passado, o presente e as possibilidades do futuro;
em um movimento interdisciplinar que envolve Filosofia, História, Sociologia,
Antropologia, Literatura, Linguística e várias outras áreas do conhecimento. Não nos
prendemos a um espaço e tempo isolados ou a uma tradução mecânica da
pesquisa, mas procuramos descrevê-los em sua multiplicidade, de modo a situar e
compreender o impacto e influência de quatro grandes fatores dentro do tempo e do
espaço. Eles são julgados por nós e por autores como Antônio Candido e Antoine
Compagnon, como de suma importância para a análise e interpretação de uma obra
literária: o autor, a obra, o leitor e os fatores sociais que influenciam na composição
de uma obra literária.
Nesse percurso nossos olhares se cruzam com as ideias e visões de grandes
estudiosos, algumas vezes em concordância, outras em aceitação parcial e, ainda,
algumas refutadas em completude, mas necessárias para a compreensão de algum
aspecto que perpassa a pesquisa.
Procuramos não estabelecer capítulos divisórios entre teoria e análise, mas
seções que os mesclam no primeiro e segundo capítulos também, por meio de
comparações e interpretações do romance de José Saramago, As intermitências da
morte (2005), aliados a argumentos e justificativas que se desenrolam pela escrita e
baseados em movimentos circulares de ordem e desordem, os quais fazem parte do
pensamento adotado neste trabalho: o complexo.
A adoção do pensamento complexo, sugerido por Edgar Morin, explica-se
também pela composição da narrativa saramaguiana e pelo tema que optamos por
tratar, a morte. Tal qual o pensar complexo desenvolvido e formulado entre a ordem
e desordem (desordem – ordem - desordem / ordem – desordem – ordem), a obra
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assim se apresenta, sendo a desordem necessária para a geração de novas
compreensões e horizontes de significados promovidos pelo embate do velho e do
novo, também incididos na utilização da linguagem, como ocorre em nossa
realidade. Desta forma, os contrários não são isolados e refutados, mas são
estudados em suas particularidades e também em sua junção, possibilitando uma
visão complexa do todo.
Essa complexidade não envolve apenas a estrutura e estilística adotadas por
Saramago ao construir a obra, mas também a biografia dele, os territórios e
temporalidades que atravessam personagens estrategicamente escolhidas, a crítica
a diversos valores que estão enraizados na cultura e instituições, e nas próprias
ciências, em áreas como sociologia, filosofia, história e teologia. O desfiar da obra,
em seu conjunto, fala mais de vida que de morte; mas é uma conexão complexa que
envolve arte e vida.
O primeiro capítulo demonstrará a importância dos tempos e dos espaços. Do
tempo e espaço do autor como criador do romance, influenciado por sua história,
vivências e acontecimentos políticos, culturais e ideológicos que o definem e
interferem na produção da obra literária. Ressaltamos, entretanto, que ao abordar os
acontecimentos do período de vivência do autor o fazemos para que possamos
ampliar nossa percepção de interferências e influências vividas por José Saramago
na escrita do romance em questão.
Discorremos ainda, sobre o tempo e espaço da narrativa como produto de um
período e local específicos, mas que não se prende a eles por ser determinado pela
linguagem e por liberar seus múltiplos sentidos por meio do olhar de um leitor, o qual
também leva traços e características de seu próprio tempo, modificando seu ponto
de vista e horizonte de visão de acordo. Do mesmo modo, ainda consideramos o
tempo e espaço da narrativa como uma produção ficcional com definições e
representações diferenciadas de acordo com seu gênero literário - o romance.
Também nós, situados e alocados em tempo e espaço definido, teremos um
modo de pensar que poderia ser distinto, dependendo do local e período em que nos
encontrássemos. Este pensamento influiria e implicaria na adoção e contestação de
ideias e estudos sobre diversos assuntos, por esse motivo consideramos necessário
definir como e por que refletimos de determinado modo para estudar a morte
intermitente, de Saramago.
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José Saramago, sendo um hermeneuta da morte em As intermitências da
morte, transita entre espaços distintos, mesclando-os no universo narrativo.
Literatura e História, embora diferentes, caminham juntas na escrita desse grande
escritor, motivo pelo qual, no segundo capítulo, tratamos dessas duas áreas e de
como elas podem se relacionar.
Como a morte é o tema central do romance, podemos dizer que é a
responsável por promover o diálogo da Literatura e da História, visto que Saramago
traz todo o conhecimento histórico sobre a morte para dentro da ficção, modificando-
o por meio da linguagem e, construindo assim, a narrativa e hermenêutica da morte.
É de suma importância falar sobre a morte, sobre sua definição e construção
na história e através dela, para compreender a visão atual da morte e como a
literatura saramaguiana procura modificar isso. Os recursos linguísticos utilizados
também são estudados, com ênfase nas múltiplas vozes e no barroquismo
saramaguiano, pois estabelecem ligações importantíssimas com o todo que se
busca estudar.
O último capítulo é destinado à análise mais detalhada do romance As
intermitências da morte (2005). A narrativa é desmembrada e estudada em três
partes, conforme sugere a disposição da própria obra. A primeira delas trata da
morte de uma forma mais geral e global e é a que mais contrasta e demonstra os
conhecimentos adquiridos pelas pessoas histórica, social e culturalmente no trato
com a morte.
A segunda parte trata do aparecimento da morte e na sua construção
identitária, assolada pela solidariedade para com o ser humano e pela teimosia de
uma das personagens, que insiste em não morrer. A identidade da morte como
conhecemos e construímos é colocada em dúvida e vai sendo modificada pelo
escritor à medida que o romance avança.
Na terceira parte temos a morte em contraposição ao homem, em uma
reflexão profunda, além da modificação de padrões previamente construídos e
estabelecidos do que seja a vida, a morte e o morrer em vários planos de
pensamento, e que estão enraizados na cultura e no modo de ser de algumas
instituições.
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1 TEMPOS E ESPAÇOS
Falar sobre tempos e espaços pressupõe algo que tenha origem, mesmo que
a partir de misturas e influências, em algum lugar e período. Mesmo que não
pensemos sobre isso, involuntariamente acabamos por situar tudo o que fazemos,
elaborando uma contextualização/problematização da ideia e do assunto a ser
tratado.
Talvez porque ignoramos algum aspecto, talvez porque não queiramos refutar
outros acabamos relativizando para tornar superior. Não se trata de escolher um
lado e partir cegamente para ele, mas permitir que dois lados que se contradizem
possam operar juntos, com suas incertezas e conclusões, encontrando o quê de
cada um, que pode formar um todo complexo na junção das partes e dissolução
delas.
Quando passamos a analisar um autor e/ou uma obra é necessário, também,
compreender que a contextualização fará parte do processo. Situamos, assim, o
autor, descrevendo seu tempo e espaço, considerando possíveis influências na obra
literária buscadas em algumas características de fragmentos e rupturas que
forçaram mudanças na passagem dos séculos XX e XXI. Ressaltamos que não
aprofundaremos na explicitação dos movimentos moderno e pós-moderno, pois eles
serão tomados como complemento e influenciadores de uma forma de pensar e agir
no mundo, estampados no tempo e espaço do autor, da obra e dos leitores.
Fazendo isso estamos trazendo o mundo real para o interior da literatura ao mesmo
tempo em que, em num processo inverso, tiramos a literatura do mundo ficcional e
atualizamos a realidade.
Compreendemos o estilo, as influências e características refletidas nas obras
dos escritores. Discorremos sobre nosso papel de leitores que preenchem os
espaços de sentidos percebidos no texto, na forma como o autor compõe a
narrativa, tentando seguir por um ou outro caminho e, depois, passamos a criticar e
discutir sobre eles baseados em ideias e pensamentos construídos no tempo e no
espaço. Tudo está interligado, apesar de suas diferenças.
Já afirmava Antônio Candido que, quando estamos diante de uma obra,
podemos interpretá-la segundo
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[...] o ângulo em que nos situamos. Em primeiro lugar, os fatôres externos, que a vinculam ao tempo e se podem resumir na designação de sociais; em segundo lugar o fator individual, isso é, o autor, o homem que a intentou e realizou, e está presente no resultado; finalmente, êste resultado, o texto, contendo os elementos anteriores e outros, específicos, que os transcendem e não se deixam reduzir a eles (CANDIDO, 1969, p.36, grifos do autor).
Em outras palavras, difere-se o tempo e espaço do autor em relação ao seu
público e a sua própria obra. Cada leitor de cada época, mesmo levando em
consideração características e análises do tempo e espaço do autor, deixa sobrevir
à sua recepção do texto todo o aparato cultural, ideológico e social que este constrói
para si, também de acordo com seu tempo e espaço.
O autor, segundo Candido (1985), possui um único tempo e espaço que o
delimita e define, o qual compreende todo o período e espaços que ocupa a sua
vida. A obra, contudo, embora tenha seu tempo e espaço primeiro (sua publicação e
criação), sendo linguagem e, portanto, representação, deixa-se transformar e
reconfigurar segundo o tempo e espaço de cada leitor, em sua articulação com a
realidade (sem, contanto, deixar de seguir uma linha tênue, esta essencial, que a
identifica).
Conforme complementa Roger Chartier (2000, p. 197), é preciso considerar
os textos como o resultado de negociações travadas entre “a invenção literária e os
discursos ou práticas do mundo social” que buscam compreender as matrizes
estéticas e as condições de produção e recepção do texto, no caso a obra literária.
Assim como Candido, Chartier também demonstra a importância de considerar o
autor como produtor de uma obra, o leitor como produtor de sentidos e o próprio
texto (o conjunto da obra). Chartier cita ainda Foucault, que segue no mesmo
sentido, abordando as categoriais fundamentais do texto literário moderno: conceito
de obra, categoria de autor e o comentário.
Todos esses tempos e espaços ditos anteriormente inscrevem-se na e pela
História, implicando grandemente na criação literária. Conforme ressalta Carlos Reis
(2004), são justamente os acontecimentos históricos após a década de 20 que
contribuirão e serão impulsionadores e refletores da escrita dos autores portugueses
nascidos nos anos 20, os quais passaram e vivenciaram grandes mudanças em seu
país e no mundo (Guerras Mundiais; ditadura; revolução dos Cravos em 1974;
rupturas nas formas de pensar a realidade e, conflitos de identidades; além da
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liberdade de expressão pós-militarismo). A literatura portuguesa do fim do século XX
e, pontualmente a de José Saramago, carrega marcas da História, não de uma
história romântica (aquela que fazia todos se derreterem de amores), mas de uma
História deslocada, “visando eventos recentes, porventura mal conhecidos e
carecendo da articulação com outros gêneros, tanto ficcionais e como não ficcionais”
(REIS, 2004, p. 23).
1.1 Do autor: entre o moderno e o pós-moderno
A literatura é uma parte inalienável da cultura, sendo impossível compreendê-la fora do contexto global da cultura numa dada época. Não se pode separar a literatura do resto da cultura e, passando por cima da cultura, relacioná-la diretamente com os fatores socioeconômicos, como é prática corrente. Esses fatores influenciam a cultura e somente através desta, e junto com ela, influenciam a literatura.
Mikhail Bakhtin
O século XX tem início com um otimismo acentuado pela II Revolução
Industrial, a qual permitiu o desenvolvimento da indústria e das máquinas, a
urbanização das cidades, a ampliação dos serviços e produção em massa de bens e
produtos de consumo. Os indivíduos, agora imersos em um período de
modernização da vida, anteriormente marcada pelo trabalho manual e vivência no
campo, começam a rejeitar as formas tradicionais e fixistas de representação do
mundo. Nesse turbilhão de inovação, os campos de estudos foram se dividindo e
subdividindo, promovendo uma fragmentação nas mais diversas esferas do
conhecimento e da cultura.
David Harvey (1992), em Condição Pós-Moderna, faz um percurso e
descrição dos diversos movimentos e acontecimentos que marcaram o modernismo
e o fixaram como tal, para poder demonstrar como surgiu o movimento pós-moderno
e contra quais princípios modernos ele refutava, a partir da questão das artes. Ao
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definir o conceito de pós-modernidade, o autor afirma o que estamos tratando como
o contexto do escritor europeu da Segunda Revolução Industrial, José Saramago.
Segundo Harvey, a modernidade não envolve apenas “uma implacável
ruptura com todas e quaisquer condições históricas precedentes, como [também] é
caracterizada por um interminável processo de rupturas e fragmentações internas
inerentes” (HARVEY, 1992, p. 22). Além disso, como aponta o autor, a modernidade
adquiriu caráter perspectivista e relativista múltiplos como ideologia, para
demonstrar aquilo que “ainda considerava a verdadeira natureza de uma realidade
subjacente unificada, mas complexa” (HARVEY, 1992, p. 37-8), ou seja, o
pressuposto do projeto modernista considerava a existência de um mito de “verdade
eterna”.
Essas fragmentações e rupturas se acentuaram após as duas Guerras, pois
tanto a Europa quanto o mundo estavam destroçados e estilhaçados, procurando
formas e meios de unir os pedaços, tentando reconstruir a economia e buscar
soluções para o crescimento urbano que germinava. Além disso, o número de
mortos crescia assustadoramente com as atrocidades nucleares, nazistas, fascistas
e totalitaristas que se acentuavam ao passar do tempo.
No entremeio desses enormes combates, em 16 de novembro de 19221,
nascia José de Souza Saramago, em um povoado situado ao nordeste de Lisboa,
Portugal. Era filho de uma família pobre, de camponeses sem terras, conhecida pela
alcunha de Saramago (uma planta que servia de alimento para os pobres, em
tempos de carência).
A família mudou-se para Lisboa dois anos depois, onde o pai de Saramago –
que participou como soldado de artilharia na Grande Guerra – começou a trabalhar
como Polícia de Segurança Pública (PSP), para tentar melhorar sua situação
econômica. Além deles, também o país todo passava por dificuldades,
principalmente econômicas, agravadas pela participação de Portugal na guerra: o
preço dos produtos era alto; o aumento da circulação de moeda fez crescer a
inflação, diminuindo o poder de compra e aumentando o custo de vida. Além disso, a
divisão dos republicanos em vários partidos e a incompetência técnica do governo
1 Embora nascido em 16/11/1922, devido a uma viagem do pai, Saramago foi registrado oficialmente dois dias após. Os problemas quanto a sua identidade também ocorreram em relação ao nome. Quando o menino precisou ser matriculado em uma escola, aos sete anos de idade, descobriram que o escrivão, por conta própria, decidiu incluir a alcunha da família ao nome dele, identificando-o como José de Souza Saramago.
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frente a todos esses problemas deu início à ditadura militar salazarista, com um
golpe de Estado em 1926.
Aos treze anos, Saramago foi incorporado à Mocidade Portuguesa, um grupo
de jovens que apoiava Antônio Salazar (primeiro-ministro português que
permaneceu no poder por 36 anos e instaurou o fascismo em Portugal). Contudo,
percebendo que o ludibriavam, ao buscar sua farda, fez de propósito ficar ao fim da
fila para que se esgotassem os uniformes e não precisasse vestir um. Sobre isso,
alguns jornais afirmaram que o escritor era adepto ao movimento, caso que ele
refutou e repudiou em uma entrevista concedida ao jornal O Estado de São Paulo,
em 2008: “Poderiam me chamar de comunista que, para muitas pessoas, soa como
xingamento, e não para mim; mas jamais de fascista” (SARAMAGO, 2008, s/p.)2.
Saramago, assim, vivenciou as desolações e consequências da Primeira e
Segunda Guerras Mundiais, e um longo período ditatorial português que terminaria
em 1974 quando um movimento popular considerado democrático, denominado de
Revolução dos Cravos, nomeava presidente o General António de Spínola. Após
isso, o país passou por um grande período de agitação política e social que
culminaram em trabalhos para a promulgação de uma Constituição Democrática
instaurada em 25 de abril de 1976.
Esse pós-guerra conturbado, com cidades inteiras reduzidas a destroços e
inúmeras mortes, repressão dos pensamentos e das ações das pessoas, além do
medo e insegurança alastrados destroem a ideia moderna do progresso linear, das
verdades absolutas com conhecimento padronizado e planejamento racional. O
mundo estava em pedaços e são justamente eles, que somados à “fragmentação, a
indeterminação e a intensa desconfiança de todos os discursos universais [...]
“totalizantes” são o marco do pensamento pós-moderno” (HARVEY, 1992, p. 19).
Como salienta Fredric Jameson (1985), após a Segunda Guerra Mundial, uma
sociedade diferenciada começava a formar-se. Nela, novos tipos de consumo, ritmo
de mudanças avançadas na moda, as propagandas e as TVs permeando a
sociedade inteira, terceirização e crescimento das grandes redes de estradas
compunham alguns dos traços, conforme o autor, que iniciavam a formação de uma
2 Entrevista concedida ao Jornal O Estado de São Paulo, para Ubiratan Brasil, em 26 de
novembro de 2008. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,jose-saramago-fala-de-seu-novo-livro-a-viagem-do-elefante,283613. Acesso em: 10 jul. 2017.
21
nova ordem, caminhando para a ruptura daquela sociedade antiquada (a moderna)
com a nova (pós-moderna)
Além disso, esses traumas difíceis de absorver e representar realisticamente,
conforme demonstra Harvey, sugerem uma inclinação aos movimentos
expressionistas abstratos e sua ascensão implicou na “despolitização do
modernismo” e “ assimilação pelo establishment político e cultural como arma
ideológica na Guerra Fria” (HARVEY, 1992, p. 43). Associado também a ideologia
oficial e ao liberalismo das grandes marcas de bens de consumo, não só o
modernismo, mas a arte e cultura tornaram-se artefatos de uma elite dominante,
com poucas exceções de produções de clássicos. Todos esses fatores apontam,
então, para aquilo que Harvey nomina de males do modernismo.
De acordo com Jameson (1985), a década de 60 é um período chave onde
uma “nova ordem internacional (neocolonialismo, a Revolução Verde, a
informatização e a mídia eletrônica) não só se funda como, simultaneamente, se
conturba e é abalada por suas próprias contradições internas e pela oposição
externa” (JAMESON, 1985, p.18).
É a partir desse período que o pós-modernismo surgirá como “um movimento
determinado e deveras caótico voltado para resolver todos os supostos males do
modernismo” (HARVEY, 1992, p. 110). O movimento desconstrucionista iniciado por
Jacques Derrida também surge como poderoso estímulo aos pós-modernos.
Outro estudioso de grande influência, o canadense Stephen Hicks, em
Explicando o pós-modernismo, aponta o nome de três grandes filósofos precursores
do movimento nos anos 60 e 70: Michel Foucault, Jacques Derrida e Jean–François
Lyotard. Segundo o autor, o pós-modernismo oferece muitas possibilidades de
reflexões nas quais é possível basear pensamentos e ações, e que se concentram
em dois grandes pontos de vista – metafísico e epistemológico:
Do ponto de vista metafísico, o Pós-modernismo é antirrealista, pois afirma que é impossível falar, de alguma maneira que faça sentido, sobre uma realidade com existência independente; em vez disso, o Pós-modernismo propõe uma descrição construcionista e sociolinguística da realidade. Do ponto de vista epistemológico, ao rejeitar a noção de uma realidade com existência independente, o Pós-modernismo nega a razão ou qualquer outro método como meio de adquirir conhecimento objetivo dessa realidade. Ao substituir essa realidade por construtos sociolinguísticos, o Pós-modernismo enfatiza a subjetividade, a convencionalidade e a incomensurabilidade dessas construções (HICKS, 2011, p. 17).
22
Apesar disso tudo, Harvey e Hicks consideram que o pós-modernismo, ao
invés de se diferenciar totalmente do modernismo, acaba dando continuidade a ele,
aparecendo como uma crise do primeiro que considera o “lado fragmentário,
efêmero e caótico” (HARVEY, 1992, p.).
Jameson também sugere que, geralmente, quando há rupturas radicais entre
um período e outro, não há grandes mudanças ou mudanças completas de
conteúdo, mas sim uma reorganização de elementos já existentes. Assim as marcas
e “traços que, em período ou sistema anterior, eram secundários se tornam agora
dominantes, e traços que eram dominantes se tornam, por sua vez, secundários”
(JAMESON, 1985, p. 25).
Terry Eagleton (1998) segue na mesma linha quando aponta que
[...] dizer “pós-modernista” não significa unicamente que você abandonou de vez o modernismo, mas que percorreu à exaustão até atingir uma posição ainda profundamente marcada por ele, deve haver algo como um pré-pós-modernismo, que percorreu todo pós-modernismo e acabou mais ou menos no ponto de partida, o que de modo algum não significa que não tenha havido mudanças (EAGLETON, 1998, p. 08).
Entretanto, Eagleton critica profundamente o movimento em sua obra As
ilusões do pós-modernismo, afirmando que ele trabalha apenas com oposições
binárias e desconsidera as antíteses, sendo o próprio movimento constituído de
antíteses e formado por paradoxos. Para o autor, ao mesmo tempo em que ele
enriquece, evade; produziu obras ricas culturalmente, mas também material kish;
enfim, incentiva a crítica, porém não para tratar de suas proposições. Embora
demonstrando suas contrariedades, o autor defende um quesito principal:
“emprestou a voz aos humilhados e insultados e, ao fazê-lo, ameaçou abalar ao
extremo a autoidentidade dominante do sistema” (EAGLETON, 1998, p. 28).
Zygmunt Bauman (2001) em sua obra Modernidade Líquida estabelece as
diferenças entre o que chama de modernidade líquida ou fluída (pós-modernidade) e
modernidade pesada (modernidade). Segundo o autor, essa passagem de um
movimento a outro se inicia quando, metaforicamente, os sólidos começam a
derreter:
23
Os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos, impediam os movimentos e restringiam as expectativas. Para poder construir seriamente uma nova ordem (verdadeiramente sólida!) era necessário primeiro livrar-se do entulho com que a velha ordem sobrecarregava os construtores. (BAUMAN, 2001, p. 10).
Em outras palavras, a modernidade líquida representa uma quebra aos
padrões sólidos da modernidade em uma tentativa incessante de superação para a
liberdade, sem amarras, sem restrições, juntando aquilo que a modernidade refutava
e impedia. A definição de fluídos descrita por Bauman se encaixa e define a pós-
modernidade:
Os fluídos se movem facilmente. Eles “fluem”, escorrem”,. “esvaem-se”, “respingam”, “transbordam”, “vazam”, “inundam”, “borrifam”, “pingam”; são “filtrados”, “destilados”; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos. – contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho (BAUMAN, 2001, p. 08).
Também nos anos 60, com destaque para Thomas Kuhn, evidencia-se o
caráter deficiente da ciência como sistema de produção de verdades. Abarcando
todo esse contexto, juntamente com o pós-modernismo ou modernidade líquida,
surge um movimento que pretende discutir a limitação das ciências e o pensamento
fragmentado produzido por ela até então, pela especialização crescente das
disciplinas.
Essa especialização disciplinar iniciada com a revolução e desenvolvimento
tecnológicos supria as necessidades surgidas no século XIX e que se estendiam até
início do século XX, mas tornou-se um modelo insuficiente para solucionar
problemas e desenvolver ideias e pensamentos aplicáveis a um mundo destruído
pelas duas guerras mundiais. O desenvolvimento de um modo de apreensão da
realidade que considerasse também a sua totalidade e não apenas sua
particularidade, considerando pontos de vistas de diferentes áreas para a
compreensão daquela na qual se estava inserido, de modo a complementar e
aprofundar o conhecimento já adquirido volvia-se imprescindível e possível com a
ideia de interdisciplinaridade.
Para Raynaut (2011), o enfoque interdisciplinar
24
[...] consiste em tentar restituir, ainda que de maneira parcial, o caráter de totalidade, de complexidade e de hibridação do mundo real, dentro do qual e sobre o qual todos pretendemos atuar. Como dito anteriormente, se muitas fronteiras e limites são hoje questionados é justamente por não serem intrínsecos à realidade do mundo e se revelarem, cada vez mais, ligados a representações construídas dessa realidade (RAYNAUT, 2011, p. 84)3.
O autor, contudo, refuta algumas vertentes interdisciplinares que buscam a
totalidade da realidade na exclusão da especialização disciplinar. Para ele, é
justamente da especificidade disciplinar que se torna possível dialogar com outros
conhecimentos complementares a partir de pontos de vistas que diferem, mas que
no diálogo e do debate convergem para uma possibilidade mais complexa e total do
que se pretende estudar.
Em um estudo por nós realizado sobre Literatura e Interdisciplinaridade4, ao
evidenciarmos o surgimento desse movimento, apontamos a relação e
fundamentação da interdisciplinaridade nos princípios do tetraedro de Michel Paty,
com destaque à crítica de Thomas Kuhn, a qual rompe com a visão de ciência, na
década de 60, como produtora autônoma de verdades. Nesse artigo chegamos às
considerações de que a interdisciplinaridade surge a partir da crise da ciência em
abarcar todo o conhecimento existe, e controlá-lo. Em busca de alternativas para
uma forma de compreensão da realidade que abarcasse as transformações
ocorridas, a proposta interdisciplinar pautou-se em um trabalho conjunto entre
pesquisadores de diferentes áreas, por meio do diálogo entre suas disciplinas.
Esse diálogo entre disciplinas, na perspectiva de Flickinger (2011), não
contribuiria apenas para ver e perceber o que ocorre dentro das outras disciplinas,
mas sim, em paralelo, tornaria cada pesquisador mais especialista em sua própria
disciplina ao mesmo tempo em que contribuiria para a compreensão e visão da outra
área para algo mais totalizante, abrindo o “leque” de conhecimentos.
3 As representações construídas da realidade a que Raynaut se refere são as mesmas que
consideraremos mais a frente ao discorrer sobre a realidade e a ficção, sua representação ou forma de demonstrar um conhecimento particular do mundo. 4 O artigo mencionado corresponde a estudos realizados e publicados na revista espanhola Contribuciones a las Ciencias Sociales. Nele o objetivo foi compreender e refletir sobre a interdisciplinaridade e a literatura, para a redação da dissertação e posterior complemento. Como o foco da dissertação não consiste apenas na compreensão do significado de interdisciplinaridade, não nos dedicaremos exclusivamente a esse tema, mas esclarecemos que é necessário abordar sobre o assunto, visto que todo o estudo se inter-relaciona com variadas áreas.
25
O tetraedro de Paty, proposto pelo filósofo Michel Paty, surge como uma das
possibilidades de se expressar as interações e dinâmicas entre as ciências, onde
cada vértice, representando uma área do conhecimento se inter-relaciona e se
enriquece no contato com os demais vértices. De acordo com Vera Portocarrero
(1994), o tetraedro sugere uma possibilidade para pensar a dinâmica e as interações
entre as áreas do conhecimento, pois acentua que
[...] cada uma daquelas áreas de conhecimento, representada pelos vértices do tetraedro, se relaciona e se enriquece no contato com as outras, mas sempre de maneira peculiar e assimétrica. O tetraedro, eclético, preserva os espaços de cada disciplina e ressalta a riqueza de sua combinatória (PORTOCARRERO, 1994, p. 07).
Pensar interdisciplinarmente, de acordo com nossas considerações no artigo
mencionado acima, remete a uma reflexão sobre o papel do sujeito que habita em
uma “cultura dinâmica que se modifica constantemente, na própria dinâmica do estar
do universo”5 sendo esse próprio ser humano alguém que vive em constante
transformação, agindo e interferindo no meio e no mundo para compreendê-lo e,
consequentemente, viver nele.
Em suma, toda a confusão e consequências das guerras, militarismo,
fascismo e revoluções modernistas e embates epistemológicos entre modernos/pós-
modernos foram sentidos e pensados por Saramago, visto que este cresceu em
meio a todos esses percalços. Portanto, embora não se julgue pós-moderno6 e
tampouco goste que lhe atribuam pertencimentos estéticos, seu estilo e as formas
com que organiza suas ideias demonstram várias características e influências de
todo esse período, e todas essas contradições e contrariedades são observadas e
transpassadas por sua escrita e narrativa. Assim, como o intuito da pesquisa não é
discutir se Saramago era ou não pós-moderno, mas sim que demonstrar que, de
acordo com nossa rápida conclusão, houve um tempo e espaço biográficos que
possibilitaram o tetraedro de Paty, no qual Saramago estava no vértice.
5 Estudos realizados e publicados na revista espanhola Contribuciones a las Ciencias
Sociales. 6 Embora os escritos de Saramago demonstrem muitas características pós-modernas, conforme explicitaremos, ele sempre rejeitou essa classificação, pois não concordava com algumas ideias trazidas com essa vertente.
26
Imagem 1 – Tetraedro
Fonte: elaborado pelo autor
Nesse sentido, sendo um autor que vivenciou grandes mazelas mundiais,
bem como grandes conquistas e revoluções, estava no entremeio da ordem e
desordem históricas e, após essas, participava de um grupo de pessoas que
buscava uma nova organização mais completa e complexa da realidade, no caso de
Saramago, primeiramente pela via jornalística e depois literária.
Várias vivências e experiências saramaguianas ajudam a explicar as
características de seu discurso e narrativa literários, bem como suas preocupações
sociais e posições ideológicas (como o muito bem recordado fato, na página 22, da
acusação recusada do escritor português de fascista). Além disso, a posição
marxista do autor é bastante perceptível e característica na formulação e exposição
de seu imaginário. De acordo com Reis,
[o] trajeto literário de José Saramago apresenta-nos, entretanto, algumas peculiaridades, com incidência em temas, estratégias discursivas e atitudes ideológicas de clara inserção pós-modernista [...] A isto deve juntar-se que, em determinada fase da sua vida profissional e literária, Saramago foi uma personalidade ativamente envolvida na vida pública portuguesa, desenvolvendo, depois de 1974, uma militância política intensamente solidarizada com as conquistas da revolução do 25 de Abril; a partir de finais de 1975, esbate-se essa atividade (sem que o escritor tenha abandonado as suas vinculações ideológicas marxistas) e acentua-se o trabalho do romancista (REIS, 2004, p. 36-7).
Modernismo
José Saramago
Pós- Modernismo
27
Além disso, podemos afirmar que Harvey, Bauman, Hicks, Flickinger e vários
outros autores oportunizam considerar a biografia de Saramago, da forma como foi
demonstrada, com um marco temporal e espacial de grande importância para
compreender a produção dos significados de seus textos. A interseção ou o
intertextual produzem sentidos “naturalmente” na transmissão do autor. É esta
produção, quando se trata de refletir sobre a obra e sua autoria, que na estética
precisa ser levada em consideração.
1.1.1 O estilo saramaguiano
Não distingo entre a aura da música e a aura da palavra. Falar não é mais do que fazer música. Escrevo como se fala. E direciono-me mais para a natureza do que para a sofisticação. Vim do povo e sei como ele sente e pensa. São histórias que se conta e ouve que coloco em meus romances.
José Saramago
Ao tratarmos sobre o estilo do autor, procuramos inicialmente definir o que,
exatamente, entendemos e tratamos por estilo e qual a importância dada a ele,
neste trabalho. O estilo ao qual nos referimos diz respeito ao modo como José
Saramago arranja a sua escrita; aquilo que compõe uma espécie de padrão
diferenciador dos demais autores e que torna uma obra sua reconhecível pela forma
como está organizada e composta.
Compagnon considera que o estilo possui uma ambiguidade em sua
utilização moderna. Ao mesmo tempo, denota a individualidade de uma obra (o que
a identifica sendo de determinado autor) e, designa também, um grupo (escola,
gênero, período e procedimentos): “a noção de estilo designa, então, um valor
dominante e um princípio de unidade, um “traço familiar”, característico de uma
comunidade no conjunto de suas manifestações simbólicas” (COMPAGNON, 1999,
p.172).
28
O estilo do autor, além disso, influencia na forma com que o romance é
produzido e a leitura realizada, sendo o saramaguiano um dos mais diferenciados e,
por certas vezes, considerado muito complicado para leitores iniciantes, os quais
podem acabar desistindo da leitura se não o compreenderem. Isso se deve ao fato
de as obras do fim do século XX e início do século XXI publicadas pelo escritor
português serem marcadas por um padrão caracterizado pela ausência de
parágrafos e travessões entre os diálogos das personagens, o pensamento do
narrador ou sua própria narração dos acontecimentos. Somados a pouca presença,
às vezes quase ausência, de diversos sinais de pontuação (como o ponto final, as
aspas e os dois pontos) e a várias palavras comumente utilizadas em Portugal, mas
em desuso no Brasil, podem tornar a leitura um pouco mais difícil. Eis um exemplo
clássico:
Na sua primeira manifestação o rumor também poderia ter saído com toda a naturalidade de uma agência de enterros e trasladações, Pelos vistos ninguém parece estar disposto a morrer no primeiro dia do ano, ou de um hospital, Aquele tipo da cama vinte e sete não ata nem desata, ou do porta-voz da polícia de trânsito, É um autêntico mistério que, tendo havido tantos acidentes na estrada, não haja ao menos um morto para exemplo. o boato, cuja fonte primigénia nunca foi descoberta, sem que, por outro lado, à luz do que viria a suceder depois, isso importasse muito, não tardou a chegar aos jornais, à rádio e à televisão, e fez espevitar imediatamente as orelhas a directores, adjuntos e chefes de redacção, pessoas não só preparadas para farejar à distância os grandes acontecimentos da história do mundo como treinadas no sentido de os tornar ainda maiores sempre que tal convenha (SARAMAGO, 2005, p. 06).
Ler Saramago é um exercício de concentração, reflexão e crítica que difere de
outras leituras comuns. Até que o leitor perceba que as falas entre uma personagem
e outra são demarcadas por início de frase com letra maiúscula (o que não é regra),
precedida por vírgula e, que ele precisa volta e meia reduzir o ritmo da leitura,
retroagindo em alguns momentos e iniciando novamente, confundirá as falas das
personagens e poderá perder uma informação ou ideia importantíssima para
compreender a história. A mudança de pontuação parece provocar o leitor a não
respirar, a não perder a sequência da narrativa.
Essa ausência de parágrafos, aspas e travessões também sugere, conforme
afirmava Saramago (2010), e é perceptível na leitura, uma espécie de narração da
história, como se estivéssemos ouvindo uma voz contando a história do país no qual
29
ninguém mais morre, soando como um narrador presente. A pretensão do escritor é
justamente essa, que durante a leitura, possamos sentir à frente alguém que conta
um romance sobre a morte.
A falta de pontuação permite que a leitura seja mais rápida, com pausas
menores, se assemelhando à fala em tempo real, à oralidade. Além disso, essa voz
que conta, também canta como se estivesse compondo uma sonata (como a sonata
2, de Chopin). Ela também se assemelha também ao ritmo da vida: rápido e em
crescimento durante o nascimento e a infância, reduzindo o ritmo na medida em que
vai passando o tempo. Tudo isso sentido na voz de um escritor que, em suma, não
só escreve, mas conta uma história, seguindo um ritmo musical.
Outra marca também é bem perceptível em Saramago, principalmente nos
ensaios7 e na prosa (Ensaio sobre a lucidez, Ensaio sobre a cegueira e As
intermitências da morte), que é a ausência de nomes próprios. As personagens são
definidas mediante alguma característica física ou pelo papel social que ocupam na
história. Nos ensaios aparecem: a rapariga dos óculos escuros, o velho da venda, o
cão das lágrimas, o médico, o comissário de polícia, o primeiro-ministro. Nas
intermitências temos o violoncelista, a gadanha, o cardeal e o filósofo. Inclusive a
morte, personagem principal, perde sua característica identitária, propositalmente,
devido à sua exigência de ser tratada apenas como morte, e não Morte, negando o
nome próprio e sugerindo a existência de várias mortes menores, condicionadas à
matriarca de todas: esta sim Morte, ideias que serão retomadas no último capítulo.
Um elemento de suma importância e que não pode ser esquecido ao
analisarmos o estilo é que o Saramago tem um estilo que dá ao narrador a voz do
autor. Então, ele não seria um tipo de escritor que tiraria sua autoridade de autor
frente a um narrador. A responsabilidade é do próprio autor.. Saramago o faz por
meio da utilização de sinonímias, alegorias, metáforas, provérbios, parábolas e
7 Segundo, Reis (2007, p.04) os títulos das obras de Saramago funcionam como “afirmação
de paradigma discursivo, ou até, nalguns casos, como explícita regência de género”. É aí,
conforme o autor, que os romances surgem com o nome de outros gêneros, fazendo uma
“alusão paradigmática”, mas não uma submissão a eles. Essa mudança traz uma subversão
dos gêneros como se fosse uma reformulação, uma “nova” forma de fazer um ensaio, por
exemplo, modificando a história oficial a qual se refere.
30
interferências do narrador (heterodiegético, com ares homodiegéticos). Faz parte do
estilo saramaguiano, ainda, o modo como ele conta o romance e se insere nele, bem
como o leitor (os quais trataremos abaixo). Todos esses elementos, em conjunto,
constituem e marcam a habilidade diferenciada deste grande autor, em contar
histórias.
1.2 Da narrativa
vamos falar da vida de hoje através da morte: do funcionamento dos políticos, dos anciãos amontoados nas casas de repouso, do egoísmo, da sensualidade... Se algum talento tenho, é o de transformar o impossível em algo que pode parecer provável.
José Saramago
As intermitências da morte, romance publicado em 2005, por José Saramago
é a narrativa que aqui nos compete analisar e nos chamou atenção para sua forma
diferenciada ao abordar um tema tão complexo e assustador para muitos, por tratar
da morte.
O título inicial da obra, como afirma Saramago (2010), seria O sorriso da
morte, contudo, ao lembrar-se que o que a morte lhe dizia era intermitente, lembrou-
se do romance de Proust, À la recherche du temps perdu, e passou a pensar se, ao
invés do amor ser intermitente, a morte assim o fosse.
Ainda de acordo com o escritor português, pode-se dizer que sua obra divide-
se em três grandes momentos que são conduzidos cada qual a um ritmo narrativo
diferenciado. O primeiro trata de uma visualização mais geral sob um plano social e
pessoal, sobre a ausência da morte, a possibilidade da vida eterna; o segundo
anuncia o regresso da morte e sua tentativa em fornecer tempo suficiente para que
os humanos de um país não nomeado pudessem se despedir dos entes e
organizarem suas vidas, uma preparação para a morte; o último é consequência e
preparado pelo segundo momento para uma relação pessoal da morte com um
indivíduo que teima em não morrer.
31
Os ritmos sugeridos por Saramago e que condizem ao compasso musical são
percebidos na narrativa quando passamos da leitura de uma história corrida e geral
(o allegro), para um compasso médio, quando a morte reaparece e passa a fornecer
sete dias para os moribundos se prepararem para sua própria morte (andante) e
dirige-se ao fim calmamente, como uma marcha fúnebre da morte (largo) quando
aborda a morte e sua relação com um violoncelista8.
Percebemos uma aproximação destes ritmos também com a famosa Sonata
número 2 de Fryderyk Chopin, conhecida em seu terceiro movimento por Marcha
Fúnebre e muito tocada em velórios ou funerais. Segundo Rui Pereira (2016), Doutor
em musicologia e coordenador da Orquestra Sinfônica do Porto, em Portugal, a
Sonata divide-se em quatro andamentos. O primeiro deles se inicia por um Grave e
desenvolve-se em dois temas, um demonstrando uma “alucinante e impetuosa
cavalgada” e o segundo, um “lirismo intenso”. Se comparados à narrativa de
Saramago, eles sugerem tal qual o romance, um turbilhão de emoções,
possibilidades e problemas na “cavalgada” para a imortalidade e a tentativa de
encontrar uma solução para a volta da morte.
O segundo movimento, chamado de Scherzo tem, segundo o musicólogo,
ritmos iniciais empolgantes que se contrastam com um trio mais lento, seguindo o
estilo de uma valsa lânguida (como no momento no qual a morte decide retornar às
atividades, preparando o leitor para a relação da morte com o violoncelista). Da
languidez passa-se à marcha fúnebre, lenta e dramática, fazendo com que sua
repetição, crie uma atmosfera de tristeza e dor (assemelhando-se ao momento em
que a morte não sabe como agir, traduzindo uma escrita mais calma, vagarosa,
como se preparasse o leitor para o grande fim). Após isso, retorna ao seu curso
implacável com um presto, tocado a uma grande velocidade (o qual também
associamos à narrativa, no momento em que a morte se personifica): “quase uma
provocação que dura pouco mais de um minuto como se fosse uma ilusão à
insignificância da vida perante a morte” (PEREIRA, 2016, s/p).
A narrativa confronta, assim, a partir da construção ficcional assemelhada ao
ritmo musical (talvez por isso, a relação entre um violoncelista e a morte), a questão
da existência, da antítese vida/morte e se, em nosso âmago profundo, não somos
8 Allegro, Andante e Largo são os três principais ritmos que conduzem uma produção
musical. De origem italiana, o primeiro refere-se a um ritmo rápido e, geralmente, grave; o segundo assemelha-se uma caminhada em ritmo moderado; e o terceiro a uma marcha lenta, sugerindo melancolia e tristeza.
32
nós os vivos que andam mortos por dentro, esquecendo nossa existência atual a tal
ponto que nada mais nos importa. O cenário composto atinge o plano do absurdo e
do impossível, contudo realizável, pois Saramago, ao considerar um país no qual
ninguém mais morre faz com que nós, leitores, possamos refletir acerca de um tema
que está tão presente e constante em nossas vidas, mas foi banalizado de tal forma
que não se pensa tampouco se fala mais sobre, talvez pelo incessante medo de não
conhecermos o que vem depois, talvez porque isso não nos afete mais.
Somos levados a pensar o caráter corrompido e inegável das mais diversas
esferas da vida humana quando possuem suas ideologias postas em xeque.
Repensamos e reavivamos nossa memória sobre as questões centrais dessas
instâncias e o que elas nos fazem acreditar, além de sermos expostos a constante
luta dessas classes por dominar uma resposta. A história se aproxima e atualiza a
realidade, inclusive as marcas verbais utilizadas (somos; pensamos; reavivamos)
demonstram espacialidades e temporalidades que a própria cultura demarca em
nós.
Além disso, no romance, um grupo interdisciplinar é chamado para resolver a
questão da falta de morte, colocando-nos a frente do debate contemporâneo sobre a
necessidade constante de se reformular os modos de pensar e considerar os
diferentes pontos de vista, refletindo um pouco o caráter pós-moderno e moderno
que quer ver o todo; a multiplicidade de pontos de vista que divergem, mas
trabalham juntos em busca de uma solução para o todo complexo que a morte
representa:
Igualmente informa que uma nutrida comissão interdisciplinar, incluindo representantes das diversas religiões em vigor e filósofos das diversas escolas em actividade, que nestes assuntos sempre têm uma palavra a dizer, está encarregada da delicada tarefa de reflectir sobre o que virá a ser um futuro sem morte, ao mesmo tempo que tentará elaborar uma previsão plausível dos novos problemas que a sociedade terá de enfrentar, o principal dos quais alguns resumiriam nesta cruel pergunta, Que vamos fazer com os velhos, se já não está aí a morte para lhes cortar o excesso de veleidades macróbias. (SARAMAGO, 2005, p. 22).
Saramago traz à tona nossas memórias sobre os mais variados assuntos e,
trazendo-as, acabamos por atualizá-las e incorporá-las à nossa compreensão da
narrativa, e reflexão de nossos valores que são criticados na obra. Além disso, essa
imagem da morte que todos temos em comum, talvez com algumas figurações
33
diferentes, mas em essência são as mesmas, foram construídas historicamente
desde nosso nascimento e antes de nós.
Contudo, José Saramago modifica essa identidade constantemente pela
figura da própria morte que se torna personagem na narrativa. Essa mutação de
identidade acontece também em nossa realidade e é tema de variadas pesquisas
sobre identidade. A morte personagem modifica quem ela é em busca de uma
essência. Ela adquire diferentes papéis até encontrar um que se adeque ao que ela
busca.
Bauman (2005), ao falar sobre a crise de identidade que toma conta do
mundo líquido moderno, aponta que o “pertencer” e o “identificar-se” não são
questões sólidas e imutáveis, “não são garantidos para toda a vida, são bastante
negociáveis e revogáveis”, portanto qualquer decisão tomada pelo indivíduo, o modo
como ele age ou se relaciona são fatores “cruciais” e determinantes para que ele se
considere pertencente a um grupo ou como possuidor de uma certa identidade.
Embora o filósofo trate de questões reais, nos atrevemos a considerá-las também
dentro da ficção, visto que ela também mimetiza a realidade e as ações humanas,
transpostas em personagens. Assim, mesmo utilizando uma personagem o que
autor pretende é tratar de questões que acontecem no mundo real.
No caso da personagem morte, ela incialmente adquire uma identidade má,
destruidora e assoladora de vidas, contudo, as várias ações e pensamentos da
personagem vão demonstrando que essa identidade foi um construto dos outros e
não corresponde ao que ela é, pois não lhe foi dado escolhas de ser outra coisa,
apenas morte.
Mal informados sobre a natureza profunda da morte, cujo outro nome é fatalidade, os jornais têm-se excedido em furiosos ataques contra ela, acusando-a de impiedosa. cruel. tirana, malvada, sanguinária, vampira, imperatriz do mal, drácula de saias, inimiga do género humano, desleal, assassina, traidora, serial killer outra vez (SARAMAGO, 2005, p. 123).
Isso é tão forte na narrativa, e a mudança tão impactante, que o leitor é
levado a concordar com alguns pensamentos e passa a sentir pena da morte. A
figura incialmente criada de uma criatura má, que mata sem remorsos é questionada
nas ações, e é modificada gradativamente na mente do leitor até a morte ser
personificada e transformar-se em uma mulher:
34
A morte conhece tudo a nosso respeito, e talvez por isso seja triste. se é certo que nunca sorri, é só porque lhe faltam os lábios, e esta lição anatómica nos diz que, ao contrário do que os vivos julgam, o sorriso não é uma questão de dentes. Há quem diga, com humor menos macabro que de mau gosto, que ela leva afivelada uma espécie de sorriso permanente, mas isso não é verdade, o que ela traz à vista é um esgar de sofrimento, porque a recordação do tempo em que tinha boca, e a boca língua, e a língua saliva, a persegue continuamente (SARAMAGO, 2005, p. 136).
Essas crises de identidade se dão a perceber na narrativa onde se cruzam
vários pontos de vistas que oscilam entre uma identidade e outra e entre todas ao
mesmo tempo, tanto a partir do narrador que se torna também escritor e
personagem, quanto das personagens que assumem diferentes vozes, e dos leitores
que se projetam e identificam com uma ou várias delas.
O narrador desconstrói as verdades absolutas e permite que o leitor considere
diferentes verdades, sob diferentes nuances. A obra está escrita e cabe ao leitor,
com toda sua bagagem, anseios, fantasias e questionamentos, durante a leitura
organizar e ressignificar tudo isso, mediante a linguagem disposta e a compreensão
que faz dela a partir do contexto, do estilo e das disposições do autor.
1.2.1 O discurso literário
A arte “dialógica” tem acesso a um terceiro estado, acima do verdadeiro e do falso, do bem e do mal assim como no segundo, sem que por isso se reduza a ele: cada idéia é a idéia de alguém, situa-se em relação a uma voz que a carrega e a um horizonte a que visa.
Tzvetan Todorov
De acordo com Mikhail Bakhtin (1997), independentemente das variações das
esferas da atividade humana, todas se ligam pela utilização da língua, a qual possui
diversos modos de uso e aplicações que produzem tipos relativamente estáveis de
enunciados, os quais ele denomina de gêneros do discurso. Esses enunciados,
contudo, não podem ser considerados apenas no plano linguístico ou lógico, como
35
se fossem neutros e isentos de ideologias e marcações (como faziam os linguistas
do formalismo), já que envolvem interações entre sujeitos e, deste modo, trazem
marcas de discursos de outros sujeitos.
Igualmente, também, a literatura, sendo língua escrita e um gênero discursivo
complexo, carregado de sentidos, polifonias e intertextualidades, não pode nem
deve ser considerada e estudada mediante uma análise exclusivamente linear e
textual, já que traz intrinsecamente ao seu gênero, enunciados de outros sujeitos.
Assim,
O autor de uma obra literária (de um romance) cria um produto verbal que é um todo único (um enunciado). Porém ele a cria com enunciados heterogêneos, com enunciados do outro, a bem dizer. E até o discurso direto do autor é, conscientemente, preenchido de palavras do outro. O dizer indireto, a relação com sua própria língua concebida como uma das línguas possíveis (e não como se a sua língua fosse a única língua incondicionalmente possível) (BAKHTIN, 1997, p. 343).
O romance, então, é produto do estilo de um autor e representa também sua
individualidade e seu pensamento, e todos os enunciados ideológicos dos discursos
dos outros se integraram ao seu no decorrer de seu crescimento e evolução.
Consequentemente, um estudo do romance sem compreender o tempo e espaço do
autor torna-se inútil.
Bakhtin (1997) já salientava que sem palavras não há língua e, sem língua,
não há discurso dialógico. Uma relação dialógica, segundo o estudioso, só se
estabelece entre categorias ou coisas lógicas, pressupondo uma língua, mas sem
existir no sistema de uma, pois conjetura um diálogo na comunicação verbal, seja
entre um locutor e um ouvinte, ou entre um autor, sua obra e seu leitor.
A relação dialógica é uma relação (de sentido) que se estabelece entre enunciados na comunicação verbal. Dois enunciados quaisquer, se justapostos no plano do sentido (não como objeto ou exemplo lingüístico), entabularão uma relação dialógica. Porém, esta é uma forma particular de dialogicidade não intencional (por exemplo, a reunião de diversos enunciados emanantes de diferentes cientistas e pensadores ao se pronunciarem, em várias épocas, sobre um dado problema) (BAKHTIN, 1997, p. 345-6).
36
Ainda como aponta o autor acima, quando se sabe tudo que uma palavra
pode ser ou significar, ela se separa e se coisifica, deixa de ser dialógica, uma vez
que uma relação dialógica pressupõe confronto de muitas vozes e
uma relação específica de sentido cujos elementos constitutivos só podem ser enunciados completos (ou considerados completos, ou ainda potencialmente completos) por trás dos quais está (e pelos quais se expressa) um sujeito real ou potencial, o autor do determinado enunciado (BAKHTIN, 1997, p. 353).
Não apenas os diálogos dos interlocutores carregam marcas de discursos de
outros sujeitos, mas também o texto de discurso. Segundo Bakhtin o dialogismo se
desdobra em duas partes: a primeira (tratada acima) equivale, então, ao diálogo
entre os falantes (escrito ou oral); e, a outra, no diálogo entre textos do discurso – a
intertextualidade.
A partir de observações dos estudos de Bakhtin, Kristeva (2005) define três
dimensões que estão sempre em diálogo (o sujeito da escritura, o destinatário e os
textos exteriores) para o espaço do texto, no qual serão realizadas diversas
observações semióticas e poéticas:
[...] no universo discursivo do livro, o destinatário está incluído apenas enquanto discurso. Funde-se, portanto, com aquele outro discurso em relação ao qual o escritor escreve seu próprio texto, de modo que o eixo horizontal (sujeito-destinatário) e o eixo vertical (texto-contexto) coincidem para revelar um fato maior: a palavra (o texto)é um cruzamento de palavras (dê textos, onde se lê, pelo menos, uma outra palavra (texto)(KRISTEVA, 2005, p.68).
Em outras palavras, quando um enunciado pertencente a um contexto é
deslocado para outro contexto, acontece uma atualização e/ou alteração dos
sentidos desse enunciado, dependendo da intenção e de como é utilizado. A
compreensão em maior ou menor grau dependerá do conhecimento que os leitores
possuem desses velhos enunciados, da relação espaço-tempo, agora do leitor.
Esses intertextos podem aparecer de forma implícita ou explícita, como
apontam as autoras. Quando aparecem do primeiro modo, o enunciado recortado de
outro contexto aparece como citação ou fazendo referência à fonte, quando do
segundo, apenas o enunciado surge, pressupondo que o leitor/ouvinte já saiba a
37
qual contexto este enunciado se refere. Em ambos os casos, entretanto, é
imprescindível que o sujeito compreenda os enunciados ou discursos.
Conforme Suely Flory (1997),
A intertextualidade realiza-se no interior do texto ficcional, pelo aproveitamento, transformação e incorporação de alusões, montagens, citações, referências, imitações, paródias, reproduções de outros textos, inseridos no próprio discurso, que revelam o “velho” de um novo ângulo, ou sob uma nova perspectiva, conservando-se um sentimento de “penhora” quer perdura no texto (FLORY, 1997, p. 41).
Alfredo Bosi (1988) reafirma a forma como pensamos e discorremos acima,
acerca do isolamento de um enunciado ou de um discurso sem considerar seu
contexto e suas potencialidades, contudo também não nega a importância de um
pequeno isolamento em busca de pistas. Mais uma vez os contrários são
necessários para a continuidade e desenvolvimento desse trabalho.
Nenhum elemento linguístico traz, em si mesmo, um poder de inteligibilidade para a compreensão de um texto. O máximo que uma observação isolada nos fornece é a abertura de pistas que o círculo hermenêutico irá percorrer, mediante o recurso a outros indícios ministrados pelo contexto (BOSI, 1988, p.282).
Para que haja a compreensão, ainda, é necessário interpretar o que se lê ou
que se ouve. Interpretar é a base da construção e atualização dos sentidos de um
texto, de um discurso, de um gênero discursivo. Em Umberto Eco (2005), interpretar
é explicar por que as palavras são uma coisa e não outra num rol possível de
compreensão, limitados à forma como o texto está organizado e, pressupondo, no
caso da escrita, um leitor-modelo.
Para explicitar melhor seu pensamento, o autor fala sobre intenção do texto.
Para ele, e para nós também, um texto é criado pensando em um leitor-modelo, mas
não apenas ele pode formular infinitas conjeturas acerca de determinado texto,
sendo o texto “um objeto que a interpretação constrói no decorrer do esforço circular
de validar-se com base no que acaba sendo seu resultado” (ECO, 2005, p.75-6).
Portanto é a coerência do próprio texto, formulada pelo autor – seu estilo-, que
definirá os limites possíveis da interpretação realizada pelo leitor.
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Entretanto, acreditamos que esses limites servem para permitir uma
interpretação mais aproximada ao pensamento do autor, já que ele molda as linhas
que o leitor precisa seguir, mas não pode nem consegue garantir que o leitor fará
interpretações que em nada se aproximam à pretendida. Ao mesmo tempo, estes
mesmos limites significam tudo quanto de histórico repercute no autor no momento
em que organiza seu escrito, focando em um leitor ideal.
Retornando a Bakhtin, o discurso dialógico é essencialmente polifônico e,
portanto, um romance polifônico é um romance em formação e transformação, no
qual as personagens não se desenvolvem em processos conclusos e fechados ou
acabados, mas são o contrário: inconclusas e em constante processo de evolução.
Esta perspectiva em Bakhtin é apontada por Bezerra quando afirma que:
Na ótica da polifonia, as personagens que povoam o universo romanesco estão em permanente evolução. O dialogismo e a polifonia estão vinculadas à natureza ampla e multifacetada do universo romanesco, ao seu povoamento por um grande número de personagens, à capacidade do romancista para recriar a riqueza dos seres e caracteres humanos traduzida na multiplicidade de vozes da vida social, cultural e ideológica representada (BEZERRA, 2005, p. 191-2).
No romance polifônico a personagem torna-se autoconsciente, assim como
no dialogismo o homem é um ser inacabado e aberto, que se constitui mediante
interações comunicacionais. Segundo Bezerra, o autor, neste caso, é quem rege as
vozes que aparecem no texto, as modifica, transforma e cria, contudo elas se
manifestam de modo autônomo e consciente. Ainda,
[...] é pelo diálogo que as personagens se comunicam entre si, com o outro, se abrem para ele, revelam suas personalidades, suas opiniões e ideais, mostram-se sujeitos de sua visão de mundo, sujeitos esses cuja imagem o autor do romance polifônico constrói de sua posição distanciada, dando-lhes o máximo de autonomia, sem lhes definir a consciência à revelia deles, deixando que eles mesmos se definam no diálogo com outros sujeitos-consciências, pois os sente a seu lado e à sua frente dialogando com ele (BEZERRA, 2005, p. 196).
Podemos inferir, então, que o romance saramaguiano compõe-se pelo
discurso dialógico e polifônico, no qual o autor-narrador não controla as
personagens, mas lhes confere autonomia para expressarem sua individualidade
39
dentro da intriga. No excerto abaixo, extraído dAs intermitências da morte, são
perceptíveis as vozes do espírito que paira sobre as águas e do aprendiz de filósofo
que possuem total autonomia para travar seu diálogo. O narrador retoma apenas
depois de finalizada a conversa dos dois:
[...] o bicho-da-seda não morreu, dentro do casulo não ficou nenhum cadáver depois de a borboleta ter saído, tu o disseste, um nasceu da morte do outro, Chama-se metamorfose, toda a gente sabe de que se trata, disse condescendente o aprendiz de filósofo, Aí está uma palavra que soa bem, cheia de promessas e certezas, dizes metamorfose e segues adiante, parece que não vês que as palavras são rótulos que se pegam às cousas, não são as cousas, nunca saberás como são as cousas, nem sequer que nomes são na realidade os seus, porque os nomes que lhes deste não são mais do que isso, os nomes que lhes deste, Qual de nós dois é o filósofo, Nem eu nem tu, tu não passas de um aprendiz de filosofia, e eu apenas sou o espírito que paira sobre a água do aquário (SARAMAGO, 2005, p. 68).
Além disso, a obra conta com uma interseção de grandes textos e vários
nomes da nossa realidade para fornecer uma credibilidade e veracidade maior à sua
história com tons de impossibilidades possíveis. Quem julgará isso e somará ou
transferirá à obra seus conhecimentos e vários possíveis significados é o leitor,
considerado como um coautor no texto não só de Saramago, como de outros
escritores.
1.3 Do leitor
os leitores são viajantes; circulam nas terras alheias, nômades caçando por conta própria através dos campos que não escreveram, arrebatando os bens do Egito para usufruí-lo.
Michel de Certeau
Em Saramago e em suas narrativas, o leitor é uma das chaves para a
compreensão, interpretação e estabelecimento de grande parte do sentido suscitado
em suas obras. Ele é chamado e retomado em diversos momentos da história para
participar e produzir sentido através do escrito. O próprio escritor tem afirmado e
40
ressaltado em diversas entrevistas que escreve de um modo que o leitor saiba que o
que está lendo é uma ficção e, portanto, participe dela:
O leitor se transforma, no ato mesmo de sua leitura, em um elemento a mais dessa ficção. Ler é participar, neste caso. O leitor possui uma consciência tão completa como a do próprio autor ou a do narrador de que tudo quanto se narra é fabulação. Portanto, não vale a pena convencer o leitor do contrário e, para que o seu prazer seja maior, o autor lhe mostra os truques da construção da sua narrativa. Para mim, isto é uma convicção: se o leitor está consciente dos elementos com que o autor constrói a ficção, o prazer de ler é muito maior” (SARAMAGO, 2010, p. 326).
O leitor não possui, pois, um espaço e tempo delimitados e acabados ideais
para a compreensão da narrativa, mas é seu espaço e seu tempo, bem como toda
sua bagagem de conhecimento e vida que definirá e limitará as produções de
sentido que este conseguirá mediante a leitura da obra. Isso se evidencia quando se
ressalta que o leitor, sendo um ser humano, não é um ser neutro, sem consciência,
sem conhecimento, sem pensamento, porém, totalmente ideológico, social e
psicológico que carrega traços e características absorvidos durante sua existência e
história que conhece e da qual toma uma posição ou outra.
Flory (1997) discorre sobre a importância do leitor romanesco, a partir da
Estética da Recepção. Ela analisa o papel catalisador que tem o leitor em dois
escritores portugueses contemporâneos: José Saramago e David Mourão-Ferreira.
Para a escritora, o leitor confirma ou não, durante a leitura, hipóteses formuladas
previamente e torna-se imprescindível para decodificar a mensagem do texto, por
esse motivo não se deve excluí-lo. Portanto, é necessário que se vá mais além e
estude os processos interativos e dinâmicos da participação do leitor.
Não nos ateremos aqui a tratar da estética da recepção, pois não é o foco
desta pesquisa. Basta-nos abordá-la e explicitar o importante papel do leitor como
construtor do sentido da obra, visto que é o que Saramago faz constantemente em
todas suas narrativas, chamando o leitor a interagir com ele próprio, autor-narrador,
com as personagens e com o próprio romance.
A recorrente e constante preocupação saramaguiana de passar o que pensa
através da sua escrita e fazer o leitor se questionar e refletir sobre os mais variados
acontecimentos é bem clara e perceptível em sua narrativa. Nesta forma de propor a
recepção, ele também convida o leitor e a própria literatura a não ser um sujeito
41
plural, mas importar-se com seu mundo, comentar sobre ele, reorganizá-lo, se
possível. Este é um diálogo estabelecido entre autor e leitor; é um conteúdo de
estética que Saramago tem um modo típico de transmitir.
Dizemos que o autor fala porque, como demonstra seu próprio estilo,
construído na ausência quase que total de paragrafações, travessões e pontuação
geral, ele constrói uma escrita que se assemelha ao discurso oral, com a intenção
de fazer com que o leitor sinta como se estivesse cara a cara com o narrador ou com
as personagens e se ouvisse deles próprios a história.
A repórter ficou a tal ponto excitada com o que tinha acabado de ouvir que, sem atender a protestos nem súplicas, Ó minha senhora, por favor, não posso, tenho de ir à farmácia, o avô está lá à espera do remédio, empurrou o homem para dentro do carro da reportagem, Venha, venha comigo, o seu avô já não precisa de remédios, gritou, e logo mandou arrancar para o estúdio da televisão, onde nesse preciso momento tudo estava a preparar-se para um debate entre três especialistas em fenómenos paranormais, a saber, dois bruxos conceituados e uma famosa vidente, convocados a toda a pressa para analisarem e darem a sua opinião sobre o que já começava a ser chamado por alguns graciosos, desses que nada respeitam, a greve da morte (SARAMAGO, 2005, p. 07).
A leitura, então, corre e flui em diversos momentos como um rio que não tem
barreiras e carrega tudo pela frente e, como disse o próprio autor: “o leitor dos meus
livros deverá ler como se estivesse a ouvir dentro da sua cabeça uma voz dizendo o
que está escrito” (SARAMAGO, 2010, p. 238).
Saramago parece, assim, estar sugerindo aquilo que analisa Certeau (1998),
ao considerar a leitura como um ato de liberdade, tratando também da mudança no
ato de ler que, no mundo contemporâneo, afasta o corpo e permite maior autonomia
e passeios:
A autonomia do olho suspende as cumplicidades do corpo com o texto; ela o desvincula do lugar escrito; faz do escrito um objeto e aumenta as possibilidades que o sujeito tem de circular. Assim como o avião permite independência crescente em face das coerções exercidas pela organização do solo, as técnicas de leitura dinâmica obtêm, diminuindo as paradas da vista, uma aceleração das travessias, uma autonomia maior em relação às determinações do texto (CERTEAU, 1998, p. 272).
42
Assim, o leitor que lê, com os olhos, como se ouvisse alguém a narrar uma
história em sua memória, se desprende e circula mais livremente pela narrativa, de
modo que, também ajudado pelo estilo saramaguiano, possui maior autonomia para
as possíveis significações e visões que possa atingir. Fazendo isso também, o
escritor traz o universo ficcional para mais perto da realidade do leitor, como se
aquilo fosse possível e estivesse a acontecer em sua frente.
Certeau (1998) afirma que o leitor é um sujeito que pode passar pelos mais
diversos bosques a procura do que precisa, de modo que nessas leituras ressuscita
textos e histórias adormecidas de sua realidade e o permite habitar lugares dos
quais ele não é dono. Isso tudo é permitido pela forma com que o escritor organiza o
texto.
Ao estabelecer uma narrativa que compõe um todo organizado, mas que
nesse todo apresenta as fragmentações das personagens, uma pluralidade de vozes
e significações, faz com que o leitor passeie pela narrativa e atribua sentido ao que
ele encontra de acordo com sua bagagem sócio-histórica.
Esses vazios do texto, segundo Flory, “são tematizados em diálogos
interrompidos, em fragmentação sintagmática, em segmentação temporal” (FLORY,
1997, p. 37), e é justamente isso que Saramago faz, a todo o momento, na narrativa.
A história é repleta de espaços vazios, com vários diálogos que se confundem pela
mudança repentina de pontos de vista.
O narrador assume diferentes focos e em diversos momentos também,
chama ele próprio ao leitor para refletir sobre o mesmo assunto ou talvez, retornar
de suas considerações para algo em específico. Nesse caso, o narrador se torna
onipresente e de certo modo, o próprio Saramago, ao reconhecer que não explicou
nada sobre o que a morte estaria a fazer todo esse tempo, fornecendo apenas
explicações dos resultados de a morte ter sumido:
Reconhecemos humildemente que têm faltado explicações, estas e decerto muitas mais, confessamos que não estamos em condições de as dar a contento de quem no-las requer, salvo se, abusando da credulidade do leitor e saltando por cima do respeito que se deve à lógica dos sucessos, juntássemos novas irrealidades à congénita irrealidade da fábula, compreendemos sem custo que tais faltas prejudicam seriamente a sua credibilidade (SARAMAGO, 2005, p. 132).
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Flory (1997) explica que essas mudanças permitem que o leitor desloque seu
ponto de vista sobre os diversos fatores expostos, de modo que ele é projetado
dentro do texto pelas próprias estruturas de apelo do texto. Assim o leitor é chamado
para dentro da obra, para compreender como e porque a narrativa acontece desta
ou daquela maneira.
Esta chamada ao leitor para participar do romance, nós percebemos nas
próprias palavras de José Saramago, quando em uma entrevista concedida a César
Antonio Molina9, se coloca como narrador onisciente e onipresente que se dispõe a
controlar tudo o que acontece na narrativa quanto as ilusões que são geradas na
cabeça do próprio leitor a partir disso, contudo, ele não pode garantir que consiga
fazer isso sempre. O leitor tem liberdade como coautor, mas essa liberdade se
restringe ao conteúdo interpretativo da obra. Ele não pode falar sobre, por exemplo,
o significado do branco se toda a obra gira em torno da morte. Isso se deve ao fato,
segundo o escritor, de este escrever como se estivesse falando, por esse motivo as
interrupções, os espaços vazios, as digressões e as mudanças de foco que
retornam mais a frente na narrativa, fazendo com que, ao fim dela, o leitor tenha a
ideia de uma história completa, total e coerente.
Há também a clareza do autor em relação à possibilidade de controle do
leitor. Sabe muito bem Saramago que no entremeio das narrativas do texto, ao usar
personagens de um cotidiano partilhado entre o seu e o do leitor, haverá as
inferências do leitor. O padre, a filha do velho e a morte, por exemplo, são
personagens desta vida partilhada e Saramago parece não desejar excluir ou fazer
convergir para uma única representação senão despertar no leitor sentidos outros e
possibilidades.
Desta forma, temos em As intermitências da morte: a) um escritor que,
segundo ele mesmo, não escreve apenas para contar histórias: “cada romance meu
é o lugar de uma reflexão sobre determinado aspecto da vida que me preocupa.
Invento histórias para exprimir preocupações, interrogações” (SARAMAGO, 2010, p.
247); b) uma obra que se torna um lugar para refletir sobre a antítese da vida/morte,
permitindo que o público pense sobre o que significa morrer, viver, estar na vida ou
ser um morto-vivo e que como aponta o escritor “Diz aquilo que todos já sabemos:
9César Antonio Molina é escritor e ex-ministro da cultura da Espanha. Licenciado em Direito e Doutor em Ciências da Informação. Foi diretor do Instituto Cervantes em 2004 e em 2005, nomeado pelo governo da França Caballero de las Artes y las Letras.
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que temos que morrer. Mas talvez mostre, com mais clareza, que temos que morrer
para viver. Se não a vida seria insuportável” (SARAMAGO, 2010, p. 315); c) um
leitor que tanto “escreve o livro quanto lhe penetra sentido, o interroga”
(SARAMAGO, 2010, p. 326); e d) um pensamento ou ideia que permeará toda a
tríade (autor, obra, leitor), o qual demarcado por condições culturais, político e
ideológicas, também será responsável por permear o significado pretendido com o
texto para o público.
Em síntese, tanto a produção do texto quanto sua recepção estão vinculadas
às condições de tempo e espaço. O autor que cria um texto situa-se num local e em
um período determinado e sofre influências destes, bem como do seu passado,
transmitido pela memória e pela cultura dos grupos que pertence. Portanto, também
sua forma de raciocinar, mesmo que ultrapasse o modo de pensamento de seu
tempo, ainda sim carrega características do momento que os produziu.
Tudo isso, consequentemente, também se traduzirá no texto como produto da
criatividade e elaboração humana como forma de representação da realidade. Esse
texto, no caso a obra, por conseguinte terá impacto e recepções diferenciadas de
acordo com o tempo e o espaço em que é recebida. Justamente por isso, leitores de
obras escritas no passado podem encontrar diferentes sentidos (mas sempre
seguindo uma linha lógica que conduz a interpretação) de acordo com a forma com
que apreendem e pensam a realidade da qual fazem parte.
1.3.1 O leitor provocado
O leitor é o produtor de jardins que miniaturizam e congregam um mundo.
Michel de Certeau
Em Saramago, notamos que o autor busca, pela voz do narrador que
conscientiza o leitor acerca da ficção, provocar este último sobre os temas que
aborda por meio da alegoria principal do romance: a morte, e tudo que gira em seu
entorno. Na tentativa de provocação e busca da participação do leitor voltamos à
hermenêutica da obra literária e às questões da intenção do texto, de interpretação,
45
de Literatura e História. Não é possível tratarmos dessas duas figuras fundamentais
de qualquer diálogo (interlocutor e destinatário) como neutras e imparciais, sem
considerar que interferem e agem sobre o texto, tornando-se simultaneamente, na
obra saramaguiana, autor-narrador e leitor coautor.
Assim, temos inicialmente, um narrador heterodiegético onisciente que
durante vários momentos em toda a narrativa cede a voz e a focalização aos
personagens que vão surgindo, como se provocasse o leitor a participar das
discussões das personagens sobre os temas que aborda no romance. Esse primeiro
momento compreende a parte 1 da obra, onde as relações sociais e humanas são
criticadas em caráter geral, por meio da possibilidade da vida eterna e,
posteriormente, da impossibilidade de uma imortalidade.
Pelo contrário, um deles, conceituado integrante do sector católico, disse, Tem razão, senhor filósofo, é para isso mesmo que nós existimos, para que as pessoas levem toda a vida com o medo pendurado ao pescoço e, chegada a sua hora, acolham a morte como uma libertação, o paraíso, Paraíso ou inferno, ou cousa nenhuma, o que se passe depois da morte importa-nos muito menos que o que geralmente se crê, a religião, senhor filósofo, é um assunto da terra, não tem nada que ver com o céu, Não foi o que nos habituaram a ouvir, Algo teríamos que dizer para tornar atractiva a mercadoria, Isso quer dizer que em realidade não acreditam na vida eterna, Fazemos de conta (SARAMAGO, 2005, p. 28-9, grifos nossos).
Esse narrador se expressa mediante um discurso dialógico, o qual pressupõe
a presença de um outro. Esse outro é assumido pelo leitor, e de múltiplas vozes
destacadas na fala das diferentes personagens. Nas vozes dessas personagens - as
quais possuem uma autoridade de quem fala, de onde fala e para quem fala - são
tecidas as críticas das instâncias sociais dependentes da morte e para as quais a
morte era um mau negócio (igreja, governo, asilos, hospitais, funerárias) ou para as
quais a ausência de morte se transformava em um fardo pesado, evidenciando a
condição humana, no caso das famílias dos moribundos. Ao confrontar filosofia e
teologia, dando voz aos personagens, Saramago torna a narrativa terrena,
acentuando-a no solo da história. Dialoga com a cultura europeia e os valores
formadores da sociabilidade de uma sociedade da qual faz parte.
Em um segundo momento o narrador desvela a figura mais imponente da
narrativa, essa figura desprezada e jogada às margens pela História, a morte,
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caracterizada como sendo do sexo feminino (o que representará uma metáfora mais
tarde) devido à flexão substantiva, apresentando sua trajetória (jamais pensada até
então, desta forma, por que, afinal, quem alguma vez pensou em existir uma história
para a morte? Ou a morte como uma personagem que se personifica em mulher?) e
construindo um rol de possibilidades nos espaços obscuros que a própria História
deixou sobre ela.
A morte, em todos os seus traços, atributos e características, era, inconfundivelmente, uma mulher. A esta mesma conclusão, como decerto estareis lembrados, já o eminente grafólogo que estudou o primeiro manuscrito da morte havia chegado quando se referiu a uma autora e não a um autor, mas isso talvez tenha sido consequência do simples hábito, dado que, à exceção de alguns idiomas, poucos, em que, não se sabe porquê, se preferiu optar pelo género masculino, ou neutro, a morte sempre foi uma pessoa do sexo feminino (SARAMAGO, 2005, p. 125, grifos nossos).
É importante ainda ressaltar que atribuição de um sexo para a morte pode ser
uma tentativa irônica, de Saramago, em atribuir mais poder à mulher quando
menciona o fato de alguns idiomas optarem pela neutralidade ou masculinidade do
termo morte. A morte, além de compor um assunto de trato minoritário, já que é um
tabu atualmente, como mulher seria relegada ainda mais às margens da sociedade.
A morte mulher, assim, pode sugerir uma tentativa de demonstrar o poder feminino
não só de controle e governo das situações, mas também de sensualidade e
sentimentos, talvez o gênero que consiga aliar razão e emoção (já que os filósofos,
o cardeal, o primeiro-ministro e todos os agentes masculinos não tenham
conseguido na narrativa).
Por representar um “nós” que incute a presença de múltiplas vozes, portanto,
expressando um coletivo, esse narrador saramaguiano torna-se mais complexo e
mais rico que outros tipos de narradores. O excerto abaixo demonstra uma fala do
narrador que se inclui na narrativa por meio do pronome nós, explanando como
pensa e por que deixa ou não deixa informações sobre a narrativa à cargo do leitor:
É assim a vida, vai dando com uma mão até que chega o dia em que tira tudo com a outra. Que importam pouco a este relato os parentescos de uns tantos camponeses que o mais provável é não voltarem a aparecer nele, melhor que ninguém o sabemos, mas pareceu-nos que não estaria bem, mesmo de um estrito ponto de vista técnico-narrativo, despachar em duas rápidas linhas precisamente aquelas pessoas que irão ser protagonistas de um dos
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mais dramáticos lances ocorridos nesta, embora certa, inverídica história sobre as intermitências da morte (SARAMAGO, 2005, p. 33, grifos nossos).
Essa voz que conta a história e não se permite identificar, tampouco
reconhecer, assim como suas personagens, desprovidas de uma identidade
promovida pelo nome próprio, permite implicitamente a possibilidade de projeção e
identificação do leitor. O autor-narrador também não se mostra na imparcialidade,
mas opina e interfere na história apresentando o modo como ele mesmo pensa,
transformando o modo que o leitor pensa mediante o apelo à emoção. Ele atualiza o
sentido do velho quando o aponta no entremeio da intriga que verbaliza pela escrita.
1.4 Do narrador: o elo entre o autor e a obra
O narrador será também, inesperadamente, alguém que assume um falar coletivo, que dirá nós em vez de eu.
José Saramago
Na escrita de Saramago consideramos o narrador como aquele que utiliza a
voz do autor quando lhe convém, já que o autor é aquele que cria o narrador e sabe
tudo quanto se passa com o todo da obra, ultrapassando o fim do texto nesse
sistema fechado pela capa de um livro. O autor é quem escreve o texto, quem o cria.
Não só ele está presente em sua criação literária, mas transparecem múltiplas
vozes, as quais jogam umas com as outras constantemente e as quais demonstram,
em cada texto, um modo de pensar que se modifica ou não a partir das experiências
que o autor tem como o seu mundo real.
Conhecemos aquele narrador que se comporta de modo imparcial, que vai dizendo escrupulosamente o que acontece, conservando sempre a sua subjetividade fora dos conflitos de cuja expressão formal é veiculo. Há, porém, outro tipo de narrador, mais complexo, que não tem uma voz única, um narrador que o leitor irá reconhecendo como constante ao longo da narrativa, mas que algumas vezes lhe dará a estranha impressão de ser outro. O narrador será também, inesperadamente, alguém que assume um falar coletivo, que dirá nós em vez de eu. Será igualmente uma voz
48
que não se sabe donde vem e se recusa a dizer quem é, ou usa de artes que levam o leitor a identificar-se com ele, a ser, de algum modo, ele. E pode, enfim, mas não explicitamente, ser a voz do próprio autor, dado que este, capaz de fabricar todos os narradores que entender, não se limita a conhecer somente o que as suas personagens conhecem, antes sabe e não o esquece nunca, tudo quanto aconteceu depois da vida delas (SARAMAGO, 2000, p. 15).
Diríamos ainda, que o autor não deixa de existir para dar lugar ao escritor,
como apontava Barthes (2004) em A morte do autor10, mas desaparece em
determinados momentos; se transforma em um autor-narrador que se dissipa volta e
meia para que as personagens entrem em cena e o leitor preencha os espaços e as
funções vazios deixados pelo autor-narrador e pelas personagens. Esse autor-
narrador uno e múltiplo trará questionamentos, impressões, sentimentos e críticas
do próprio autor e das diversas vozes sociais que cria e traduz na fala das
personagens. Ler Saramago é encontrar Saramago e outras vozes na leitura que se
faz:
O que eu quero é que o leitor, quando se encontrar com um livro meu, quando ler e chegar ao final, possa dizer: conheci a pessoa que escreveu isto. Embora não defenda um confessionalismo na literatura, me interessa dizer: aqui estou eu, e isto é o que eu penso, isto é o que eu sinto. Para mim, é muito importante que o leitor possa dizer: este livro carrega uma pessoa dentro, e que essa pessoa é o autor de toda essa diversidade de coisas com que se faz um romance (SARAMAGO, 2010, p.202-3).
Esquecer que há uma pessoa por trás disso tudo, um alguém que pensou,
estudou, leu, imaginou tanto as personagens, quanto a história e o texto como um
todo; alguém que previu certo tipo de leitor e que produziu um trabalho que resultou
em uma obra literária é tratar a escrita e a língua como algo que existe
10
Nesse artigo, Barthes (2004) afirma que o autor é uma construção moderna, produto de uma sociedade que descobriu o prestígio do indivíduo, criticando então, as relações efetuadas entre a vida do autor e seu texto. Para ele, o autor morre a partir do momento em que inicia sua escritura, cedendo lugar ao scriptor, um sujeito que nasce com o seu próprio texto (e não antes dele como o autor), um sujeito do aqui e agora da enunciação, que não possui paixões e sentimentos, mas um dicionário enorme onde vai buscar as palavras das quais precisa, fazendo uma bricolagem de textos. Entretanto, essa morte, em Barthes retira a autoridade do autor, demonstrando pouca preocupação com o fato de que o discurso enquanto expressão de um modo de pensar, não é neutro, mas dotado de ideologia e impressões provenientes de quem os produziu, de acordo com o lugar que esse sujeito ocupa e para quem se dirige, além das múltiplas vozes sociais que o permeiam.
49
independentemente de um sujeito, como algo neutro que não carrega as
singularidades de quem a utilizou.
Em O que é um autor? Michel Foucault, a partir das considerações feitas
pelos leitores de As palavras e as coisas, sobre o modo como abordava as questões
dos nomes próprios e os nomes das coisas, não afirma a morte do autor, mas seu
desaparecimento quando lhe convém, em provimento do discurso que cria,
permitindo que se conheça o jogo do que chama de “função-autor”. O filósofo
salienta que o autor não pode ser substituído por qualquer outro elemento, já que
possui um papel em relação ao discurso que enuncia pela escrita, além de seu
nome ser o responsável por agrupar certo número de textos. Ainda, a autoridade
que é conferida ao autor é que indica que o discurso que se terá contato não é algo
consumível, flutuante e passageiro, “mas que se trata de uma palavra que deve ser
recebida de certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber certo status”
(FOUCAULT, 1969, p. 13).
Chegar-se-ia finalmente a idéia [sic] de que o nome do autor não passa, como o nome próprio, do interior de um discurso ao indivíduo real e exterior que o produziu, mas que ele corre, de qualquer maneira, aos limites dos textos, que ele os recorta, segue suas arestas, manifesta o modo de ser ou, pelo menos, que ele o caracteriza. Ele manifesta a ocorrência de um certo conjunto de discurso, e refere-se ao status desse discurso no interior de uma sociedade e de uma cultura. O nome do autor não está localizado no estado civil dos homens, não está localizado na ficção da obra, mas na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e seu modo
singular de ser (FOUCAULT, 1969, p. 13).
Foucault também pondera que o autor é aquele que permite superar
contradições surgidas no interior de um texto, no qual também existem marcas de
seu pensamento tanto consciente quanto inconsciente, fazendo surgir a função-
autor. Entretanto, essa função-autor não é “uma pura e simples reconstrução que se
faz de segunda mão a partir de um texto dado como um material inerte. Os textos
sempre contêm em si mesmo certo número de signos que remetem ao autor”
(FOUCAULT, 1969, p. 19). Esses signos, no entanto, como afirma o estudioso, não
funcionam igualmente em textos providos e desprovidos da “função-autor”. No
romance, por exemplo, o pronome utilizado pelo narrador não remete imediatamente
ao escritor real, mas a um autor ego que se distancia mais ou menos do escritor real
50
durante o decorrer de uma obra, o qual optamos por chamar, em Saramago, autor-
narrador, conforme mencionado anteriormente.
Exemplificamos com um trecho das intermitências no qual vemos o autor-
narrador demonstrar sua opinião para os leitores. Ele se inclui, desta vez, não como
ser fictício que é o narrador em exclusividade na concepção antiga, mas uma
pessoa que narra a história inverídica, mas possível da morte; um narrador que se
coloca como humano ao mesmo tempo em que inclui em seu discurso outras vozes,
representando um coletivo que com ele está se identificando e ficando com pena da
morte, um nós:
Por qualquer estranho fenómeno óptico, real ou virtual, a morte parece agora muito mais pequena, como se a ossatura se lhe tivesse encolhido, ou então foi sempre assim e são os nossos olhos, arregalados de medo, que fazem dela uma giganta. Coitada da morte. Dá-nos vontade de lhe ir pôr uma mão no seu duro ombro [...] Não se rale, senhora morte, são cousas que estão sempre a suceder, nós aqui, os seres humanos, por exemplo, temos grande experiência em desânimos, malogros e frustrações [...] provavelmente temos andado a ver quem se cansava primeiro, se a senhora ou nós, compreendo o seu desgosto, a primeira derrota é a que mais custa. depois habituamo-nos, em todo o caso não leve a mal que lhe diga oxalá não seja a última, e não é por espírito de vingança, que bem pobre vingança seria ela, seria assim como deitar a língua de fora ao carrasco que nos vai cortar a cabeça, a falar verdade, nós, os humanos, não podemos fazer muito mais que deitar a língua de fora ao carrasco que nos vai cortar a cabeça, deve ser por isso que sinto uma enorme curiosidade em saber como irá sair da embrulhada em que a meteram, com essa história da carta (SARAMAGO, 2005, p. 140-1, grifos nossos).
Em um terceiro e último momento, iniciado anteriormente ao surgimento da
morte personificada em mulher, devido ao acompanhamento que a mesma faz ao
violoncelista a narrativa destoa como música, sendo comparada, por Saramago, à
vida, à Sonata de Chopin (em minúsculo no romance) e à Terceira Sinfonia de
Bethoven.
Trazer a presença da música na narrativa nos forneceria tema para mais uma
dissertação de mestrado, contudo, como a intenção no momento é trazer os fatores
e componentes da narrativa e organização textual, a música implícita no romance
não pode ser ignorada ou não mencionada.
O avançar da narração e a voz do narrador-autor cedida, em alguns
momentos, à morte e ao violoncelista, sugere uma corrida para um desfecho,
51
promovendo um misto de sensações no leitor que corre os olhos em direção ao
encontro da morte com seu músico, como um encontro da vida com a morte que não
se sabe ao certo se resultará em um fim, ou em um recomeço. A voz do narrador-
autor surge para demonstrar opiniões e pensamentos próprios, abrindo espaço para
o leitor que, agindo como coautor da narrativa, faz seus questionamentos e
conclusões acerca do pouco que lhe é exemplificado e fornecido, possuindo, quando
convém ao autor-narrador, a elucidação de pormenores essenciais:
É natural que a curiosidade de quem vem seguindo este relato com escrupulosa e miudinha atenção, à cata de contradições, deslizes, omissões e faltas de lógica, exija que lhe expliquem com que dinheiro vai a morte pagar a entrada para os concertos se há menos de duas horas acabou de sair de uma sala subterrânea onde não consta que existam caixas automáticas nem bancos de porta aberta. E, já que se encontra em maré de perguntar, também há de querer que lhe digam se os motoristas de táxi passaram a não cobrar o devido às mulheres que levam óculos escuros e têm um sorriso agradável e um corpo bem feito. Ora, antes que a mal intencionada suposição comece a lançar raízes, apressamo-nos a esclarecer que a morte não só pagou o que o taxímetro marcava como não se esqueceu de lhe juntar uma gorjeta. Quanto à proveniência do dinheiro, se essa continua a ser a preocupação do leitor, bastará dizer que saiu donde já tinham saído os óculos escuros, isto é, da bolsa ao ombro, uma vez que, em princípio, e que se saiba, nada se opõe a que de onde saiu uma cousa não possa sair outra (SARAMAGO, 2005, p. 184-5, grifos nossos).
Isso se deve, à luz de Flory11, ao fato de que o narrador pressupõe,
através do dialogismo intrínseco de seu discurso, um interlocutor que o acompanha passo a passo, participando de uma comum construção, que o leva a usufruir o prazer estético da POIESIS como coautor do texto. A narrativa que se autocontempla sublinha a autoconsciência de sua identidade literária ficcional, onde autor e leitor implícitos partilham da produção e da recepção da mensagem ficcional, através da criação e recriação do texto (FLORY, 1997, p. 116).
Deste modo, toda a formulação do texto em escala estética e ética, pelo
narrador, que é também autor e se utiliza dos obscuros da História, de fatos e
presenças da realidade, atualizando o velho pelo novo nas parábolas “figurava na
fábula tradicional mil vezes narrada da tigela de madeira” (SARAMAGO, 2005, p.
11 Embora trate da análise do romance histórico O cerco de Lisboa, chega a mesma conclusão nossa, na análise dAs intermitências da morte.
52
75), nas metáforas, nos intertextos e citações de grandes nomes da História
Literária, Musical, Filosófica etc. “o músico não tocou a suite de bach [..] em
conversa com alguns colegas da orquestra que [...] falavam sobre a possibilidade da
composição de retratos [...] como os de samuel goldenberg e schmuyle”
(SARAMAGO, 2005, p. 169).
Além disso, há menções e utilizações de expressões que são representadas e
utilizadas em um mundo real e a consciência exemplar de que nunca se diz
totalmente o que se pretende com as palavras “Com as palavras todo o cuidado é
pouco, mudam de opinião como as pessoas” (SARAMAGO, 2005, p. 60), o autor-
narrador fornece todo o arcabouço para um horizonte de expectativas do leitor,
permitindo que, por meio da ficção, esse leitor coautor, atualize e reflita sobre sua
realidade pela remodelação e possibilidade da ficção.
Enfim, ao falarmos sobre a obra, a autoria dela e sua temporalidade e
espacialidade, queremos mencionar que As Intermitências da morte permite
perceber o método do autor, suas provocações ao leitor em relação ao tempo e
espaço em que vive e em que sua história foi construída, além de demonstrar alguns
traços próprios do período turbulento em que a pós-modernidade se inicia e que
alguns autores como Bauman, Harvey e Jameson afirmam ser suas características.
53
2 LITERATURA, MORTE E HISTÓRIA
[...] a arte opera a partir de um certo nível de estilização da realidade, atuando de preferência sobre motivos já afastados das necessidades imediatas.
Antônio Candido
Retiramo-nos pouco a pouco da ênfase no tempo e espaço do autor, da
narrativa, do leitor sem, no entanto, ausentar toda a pesquisa deste. O pano de
fundo ainda reside nos tempos e espaços, mas agora com o foco sob as relações
entre literatura, história e morte.
Ao discorrer sobre o tempo e o espaço do autor, no capítulo 1, acabamos
abordando as teorias e pensamentos predominantes nos séculos XX e XXI como
influenciadoras do modo de pensar e escrever de José Saramago. Assim como no
caso do autor, essas teorias também agem de diferentes formas sobre a maneira de
pensar do pesquisador, fazendo com que este concorde ou refute esses modos de
refletir a realidade.
Nesse sentido, a escolha do pensamento complexo justifica-se por sua
grande completude, por considerar os contrários, o todo e as partes que interagem
para a formação do todo, visto que não é possível falar da obra, As intermitências da
morte, sem levar em conta que é necessário falar de vida para tratar sobre a morte e
ambas se complementam, interagem e contribuem para a compreensão do todo que
é a natureza humana. Além da interação vida e morte, é preciso ainda ressaltar que
nessa interação surgem outras: as relações entre imaginação e realidade e,
portanto, entre literatura e história, permeadas pela memória e pelo tempo.
Para que algo nasça é preciso que algo morra. Para criar uma obra literária,
por exemplo, é necessário, de certa forma, matar alguns aspectos da realidade,
modificando-a; para que os momentos da História pudessem surgir foram
necessárias muitas mortes: de pessoas, de momentos, de períodos, de
acontecimentos. A História passada de um povo consegue permanecer viva por
meio da memória. A memória, entretanto, pode não ser duradoura, apagando alguns
de seus registros com o passar do tempo, emprestando da imaginação os recursos
54
necessários para recriar as pontes danificadas e tentar restabelecer as recordações.
Uma pessoa, por exemplo, é mantida “viva” após sua morte, através das
recordações e memórias que guardamos dela. Em suma, a morte está
intrinsecamente ligada à História, à memória e à Literatura, e é essa perspectiva que
procuramos descrever neste capítulo.
2.1 A escolha do pensamento complexo
[...] o pensamento complexo não é o que evita ou suprime o desafio, mas o que ajuda a revelá-lo, e às vezes mesmo a superá-lo.
Edgar Morin
Abordamos anteriormente, as teorias e pensamentos dos séculos XX e XXI
que influenciaram o modo de pensar e escrever de José Saramago. Essas mesmas
teorias também interferem no pensar do pesquisador, fazendo com que este
concorde ou refute determinados modos de refletir a realidade.
Em busca de algo consolidador encontramos diversas teorias que se
mostraram interessantes, mas não abarcavam a completude daquilo que
imaginávamos e buscávamos para esta pesquisa, visto que estudar José Saramago
é o mesmo que fugir do convencional, posto que esse escritor português se utiliza
de um jogo dos contrários, estabelecendo ordem na desordem e vice-versa, criando
sentido em algo que se demonstra impossível e dando vida àquilo que jamais o
poderia ter. Por esse motivo, necessitaríamos de algo que atendesse aos
paradoxos, as incertezas e certezas, considerando ambas as partes para a
formação de um todo, uma unidade total tal qual suas obras: uma obra complexa.
Uma das ideias que melhor abarcou e se encaixou nessa busca foi a do
pensamento complexo (Edgar Morin, 2015; Ilya Prigogine, 2003), devido à
possibilidade de considerar as partes e o todo em conjunto, contrários que não
excluem totalmente, mas que interagem e se complementam formando algo
diferente do que se tinha.
55
Ilya Prigogine, um físico muito influente e pesquisador das questões da
complexidade a partir da física, afirma que a complexidade nos permite pensar de
um modo superior àquele da ciência clássica determinista, de um futuro definido, no
qual o estável, repetitivo e em equilíbrio era posto em evidência, excluindo as
variações. Nessa nova forma de pensar fala-se em possibilidades e não em certezas
absolutas, permitindo que o pensamento anteriormente incerto possa ser um
pensamento capaz de inovação e modificação. A dualidade entre as ciências exatas
e humanas, por exemplo, é rejeitada pelo físico, que as considera necessárias e
muito importantes:
Na verdade, penso que o homem tem duas grandes experiências. Uma é a experiência da repetição. Vemos o Sol aparecer todos os dias, vemos os movimentos da Lua, vemos o movimento das marés, do mar, e é essa idéia de repetição que abriu espaço às leis clássicas, às leis da dinâmica e para essas grandes construções admiráveis que são as leis de Newton e, mais tarde, as leis da mecânica quântica e da relatividade. Porém, também temos uma segunda experiência. Temos a experiência da criatividade, a experiência do novo, a experiência artística, a experiência literária. E, pensando bem, temos de levar em conta as duas experiências (PRIGOGINE, 2003, p. 63).
A partir de uma completa e atenta observação e reflexão acerca da formação
do universo, o caos que o forma ou a forma do caos, questões de ordem, desordem,
turbulência e interações, Morin desenvolve as premissas do pensamento complexo,
o qual surge em oposição ao que o autor denomina de simplificação lógica. Essa
simplificação, que é justamente o que a ciência faz quando segrega e fragmenta o
conhecimento em disciplinas isoladas, que não dialogam e convergem num todo
maior, excluindo o que não faz parte do sistema linear se aproxima da explicação de
Prigogine sobre as ciências deterministas e o que estas faziam em oposição a tudo
que era instável e flutuante.
Nesse sentido, ao invés de efetivar uma circularidade viciosa, na qual se retira
um elemento e se eliminam as antinomias, Morin sugere que converta o “círculo
vicioso” em “círculo virtuoso”:
conservar a circularidade é recusar a redução dum dado complexo a um princípio mutilador; é recusar a hipóstase dum conceito dominante [...] É recusar o discurso linear como ponto de partida enfim. É recusar a simplificação abstracta (MORIN, 1977, p. 22, grifos do autor).
56
Converter o círculo vicioso em virtuoso, em Morin, corresponde a considerar
as especificidades das partes e do todo, em Prigogine. Para Prigogine, uma coisa
pode ter determinantes diferentes enquanto parte, e outras características enquanto
conjunto, como um todo. Para demonstrar isso, o autor utiliza como exemplo uma
bola em oposição a um cristal:
Um cristal é uma estrutura de equilíbrio: se não querem que ele caia e se quebre, é preciso deixar o cristal tranqüilo; uma bola, não se pode deixá-la tranqüila, ela vive apenas da troca com o mundo exterior, ela só existe porque está dentro do todo. Entretanto, ela é diferente do todo. A individualidade emerge do todo e, no entanto, ela é diferente do todo (PRIGOGINE, 2003, p.54).
Segundo o autor, a individualidade, o subjetivo nasce do todo ao mesmo
tempo em que faz parte dele. A bola existe como bola, tem sentido enquanto tal, na
interação e imersão com o todo do qual ela faz parte. Sendo parte do todo, contudo,
ela também é diferente dele, pois tem suas particularidades de bola, não pode ficar
parada e quieta senão não existe como bola.
Para exemplificar como funciona o pensamento complexo, Morin parte da
explicação do surgimento do universo e seu desenvolvimento. Considera, pois, que
o universo é um todo composto de múltiplas unidades, e que sua ordem advém da
desordem de sua composição, a qual, mediante um jogo de interações e troca de
informações entre seus elementos dá origem a outro elemento:
A interacção torna-se assim a noção-placa giratória entre desordem, ordem e organização. Isto significa que estes termos, desordem, ordem e organização, estão agora ligados, via interacções, num anel solidário no qual cada um destes termos já não pode ser concebido fora da referência aos outros, e no qual têm relações complexas, isto é, complementares, concorrentes e antagónicas (MORIN, 1977, p. 54).
De acordo com Prigogine, ordem e desordem convivem em um mesmo
espaço, por meio de interações que ora se excluem e ora se complementam
formando um todo complexo. O autor demonstra, por exemplo, como o tempo pode
ter uma dupla função: de equalizar (a forma como todos envelhecemos é a mesma)
e de diferenciar ao mesmo tempo (o tempo no Rio de Janeiro é diferente do tempo
em outro lugar, pois depende das interações de cada lugar com o mundo exterior),
57
demonstrando como os contrários se complementam e interagem e, para
compreendê-los é necessário considerar as flutuações múltiplas por ele produzidas.
As colisões e interações determinam a necessidade de descrever outras situações
que não eram possíveis anteriormente:
Os sistemas nos quais existe uma seta do tempo são sistemas em que acontecem interações o tempo todo. Tal como neste recinto, nesta sala. As moléculas estão realizando uma colisão, depois uma outra colisão, mais uma outra colisão, e assim por diante [...] Aqui as interações continuam o tempo todo. E isso cria a necessidade de descrever situações nas quais a interação é permanente [...] As colisões, as interações, criam correlações. Essas correlações se tornam, cada vez mais, múltiplas. É como se você tivesse uma conversa com um amigo e saísse, e depois esse amigo contasse a conversa para um outro, então já existem três pessoas, e em seguida o outro a contasse para mais outro, quatro pessoas, e assim vocês têm comunicações que se estendem sobre níveis de liberdade cada vez mais numerosos (PRIGOGINE, 2003, p.60-61).
Para pensar a complexidade, então, Morin propõe três princípios básicos: 1-
Princípio Dialógico - com ele é possível manter duas proposições antagônicas ao
mesmo tempo. Um exemplo é a "ordem e a desordem [que] são dois inimigos: um
suprime o outro, mas ao mesmo tempo, em certos casos, eles colaboram e
produzem organização e complexidade" (MORIN, 2007, p. 74); 2- Princípio da
Recursão organizacional - "um processo recursivo é um processo onde os produtos
e os efeitos são ao mesmo tempo causas e produtores do que os produz" (MORIN,
2007, p. 74) como no caso dos indivíduos que produzem a sociedade que os produz;
e 3- Princípio Hologramático, o qual se situa além do holismo e do reducionismo,
considerando que o conhecimento das partes está no todo e o do todo está nas
partes.
Esses princípios, embora não assim divididos e delimitados, também
compõem a base da complexidade abordada em Prigogine. Pensemos então a
complexidade (sugerida acima por Morin) por meio do exemplo da bola (de
Prigogine): a bola corresponde ao princípio dialógico, pois mantém duas posições
diferentes ao mesmo tempo (a bola com sua particularidade ao mesmo todo em que
a bola, sendo bola, muda na interação com o todo); no segundo princípio a bola é ao
mesmo tempo, produtora e causa do que a produziu, pois produz o sentido de não
se manter parada e é causa da interação do todo com ela; e no terceiro princípio, a
58
conhecimento da bola enquanto bola está na interação com o todo, e a interação do
todo surge na particularidade com cada bola.
Em suma, tanto Prigogine (2003) quanto Morin (2007) recusam um princípio
simplificador de ordem, clareza e distinção apenas – que refuta os contrários ou
antinomias-, e partem de um princípio de complexidade que une e faz interagir os
contrários, a ordem e a desordem. Nessa perspectiva, o pensamento complexo
busca diferenciar e unir sem separar. Consiste em um “ir e vir constantes entre
certezas e incertezas, entre o elementar e o global, entre o separável e o
inseparável” (MORIN, 2003, p. 29); um anel tetralógico
(desordem/interações/ordem/organização) com ligação de natureza dialógica, no
sentido de unidade entre duas lógicas que se complementam e se excluem
mutuamente.
Figura 2 - Anel tetralógico
Fonte: elaborado pelo autor.
É justamente dessa maneira que percebemos a organização da narrativa
saramaguiana: a ordem se faz pela desordem, a qual se transforma e se organiza,
na desorganização, novamente em ordem e assim continua em todo o romance de
forma cíclica. A complexidade acaba considerando as antíteses, as oposições
binárias, os paradoxos ou os dois lados da moeda sobre qualquer assunto, além de
ser um pensamento que se aproxima do estilo de José Saramago em suas
narrativas. Portanto, o pensar complexo, seria necessário para uma compreensão
maior e mais aprofundada da narrativa a qual nos destinamos. Compreensão esta
que será descrita no último subtópico deste capítulo, por meio da interação e inter-
relação dos elementos apresentados no transcorrer da dissertação, após as
59
explicitações necessárias entre Literatura e História, Realidade e Ficção, além das
considerações sobre a morte.
2.2 Sobre Literatura e História
As palavras trazem a sabedoria do vivido.
José Saramago
Consideramos de grande importância abordar, ainda que sumariamente, as
relações entre Literatura e História como áreas com espaço e tempo diferentes, mas
que assemelham quando ultrapassam as fronteiras simbólicas que as distinguem na
tentativa de conservar a história de um povo para, então, entrarmos na abordagem
do romance.
A literatura é uma produção artística utiliza-se da representação e da
imaginação para retratar alguma realidade e, no caso de alguns gêneros, evidenciar
e criticar aspectos ocultados e assuntos silenciados por determinados períodos e
determinadas sociedades. Assim o faz, mediante os olhos de um autor que cria a
intriga e, misturando dois mundos, real e ficcional, compõe sua narrativa.
A História, por sua vez, é conhecida por retratar acontecimentos da realidade
baseados na interpretação e descoberta de fontes, de fatos reais, que aconteceram
em determinados momentos, de modo a transmiti-los pela memória e torná-los
conhecimento comum do passado. O responsável por descrever esses momentos, o
historiador, também lança sobre seu escrito seu ponto de vista do que está
narrando.
Em síntese, como contribui Sandra Jatahy Pesavento no seu artigo História &
literatura: uma velha-nova história, ambas, Literatura e História são narrativas que
“tem o real como referente, para confirmá-lo ou negá-lo, construindo sobre ele toda
uma outra versão, ou ainda para ultrapassá-lo. Como narrativas, são representações
que se referem à vida e que a explicam” (PESAVENTO, 2006, s/p).
Ainda segundo a autora, não é possível se chegar à veracidade em História,
mas sim à verossimilhança, a qual se define pela aparência de realidade, tal qual a
60
Literatura. Entretanto, o historiador não cria traços como o literato; ele os descobre e
os converte em fonte atribuindo-lhe significado, por esse motivo a Literatura tem sido
utilizada frequentemente como fonte de estudo para estes estudiosos descobrirem
aspectos que não eram evidenciados sobre determinada época.
O mundo da ficção literária — este mundo verdadeiro das coisas de mentira — dá acesso para nós, historiadores, às sensibilidades e ás formas de ver a realidade de um outro tempo, fornecendo pistas e traços daquilo que poderia ter sido ou acontecido no passado e que os historiadores buscam. Isto implicaria não mais buscar o fato em si, o documento entendido na sua dimensão tradicional, na sua concretude de “real acontecido”, mas de resgatar possibilidades verossímeis que expressam como as pessoas agiam, pensavam, o que temiam, o que desejavam (PESAVENTO, 2006, s/p).
Jeanne Marie Gagnebin (2006), citando Walter Benjamin, ressalta que não é
possível se chegar a uma história verdadeira, visto que quando dizemos que o
historiador se baseia em fatos, não podemos esquecer que eles são assim
considerados por algum discurso que o constitui como tal. Deste modo, segundo
Benjamin (1987), não é possível descrever o passado, mas articulá-lo “Articular
historicamente o passado não significa conhecê-lo “como de fato ele foi”. Significa
apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela lampeja num momento de perigo"
(BENJAMIN, 1987, p.224).
Ricoeur (1994, p.15) aponta que o desafio de toda obra narrativa é “o caráter
temporal da experiência humana”, visto que o mundo exibido por ela é sempre um
mundo temporal, por esse motivo ele dirá que “o tempo torna-se humano na medida
em que está articulado de modo narrativo: em compensação a narrativa é
significativa na medida em que esboça traços da experiência temporal”. Enquanto a
narrativa apontará o tempo, a mimese aponta o espaço.
O autor acima busca defender, ainda, sua tese de que há uma derivação
indireta que faz o saber histórico proceder da compreensão narrativa, sem perder
sua cientificidade. Para ele o historiador constrói, sim, parâmetros que se apropriam
ao seu método e objeto, porém o significado dessas construções são emprestados
das configurações narrativas, obtidas com o mesmo recurso do reconhecimento
(adquirido na fusão da mimese I e III, conforme retomaremos mais adiante).
Compagnon segue na mesma linha de Pesavento e Ricoeur, salientando que
a “história dos historiadores” é composta por múltiplas histórias parciais, com relatos
61
que se contradizem e tempos diferentes, perdendo o sentido de unicidade que
outrora as filosofias totalizantes atribuíam.
A história é uma construção, um relato que, como tal, põe em cena tanto o presente como o passado; seu texto faz parte da literatura. A objetividade ou a transcendência da história é uma miragem, pois o historiador está engajado nos discursos através dos quais ele constrói o objeto histórico. Sem consciência desse engajamento, a história é somente uma projeção ideológica (COMPAGNON, 1999, p. 222-3).
A modificação nessa forma de ver a História vai de encontro com o que
Benjamin (1984) chama de morte das grandes narrativas devido ao declínio da
experiência narrativa oral (que se inicia com a fábula e culmina no desaparecimento
das formas tradicionais narrativas) com o surgimento do romance moderno, também
evidenciada após metade do século XIX, juntamente com o pós-guerra e,
consequentemente, os movimentos que iniciam o pós-modernismo e a
interdisciplinaridade. Ele demonstra, mediante razões históricas e, principalmente,
devido ao terror da Grande Guerra, que as pessoas que voltavam com vida não
conseguiam expressar o que lá vivenciaram por palavras, restando o silêncio e a
lembrança.
Benjamin (1987) distingue o romance da narrativa, afirmando que enquanto o
segundo retira de sua experiência e da experiência narrada por outros para contar
uma história, o primeiro se origina no isolamento do indivíduo, no caso o autor, que
não sabe dar conselhos e não os recebe. Gagnebin, citando o autor, aponta que,
embora o autor afirme a morte da narrativa, demonstra a necessidade de “uma
narração nas ruínas da narrativa, uma transmissão entre os cacos de uma tradição
em migalhas, portanto uma renovação da problemática da memória” (GAGNEBIN,
2009, p.43).
É justamente essa narração e uma nova forma de elaborar o romance,
contrária à crítica ardente de Benjamin, que percebemos nascer com José
Saramago e que parece resistir à produção massiva, desvalorizada e mercadológica
de várias incessantes publicações das ditas “novas literaturas”. Antes de
abordarmos a análise da obra saramaguiana em questão, explanamos nossa
compreensão do que seja e a relação que possui, em sequência de Literatura e
História, da ficção e da realidade pela mimese.
62
2.2.1 A mimese: realidade e ficção
[...] o tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo, e que a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna uma condição da existência temporal.
Paul Ricoeur
Com a língua todas as manifestações do possível e do impossível serão
manifestadas na literatura. Seja utilizando-a para falar do enredo, da descrição do
ambiente, das personagens, das memórias ou pensamentos e até mesmo sob a voz
de um indivíduo que não pertence à obra, mas que aparece volta e meia para
lembrar determinado item e não deixar que o leitor se perca, devaneie ou esqueça-
se de algo que será chave para o entendimento de algo mais adiante, na história.
Como aponta Antoine Compagnon,
Os textos de ficção utilizam, pois, os mesmos mecanismos referenciais da linguagem não ficcional para referir-se a mundos ficcionais considerados como mundos possíveis. Os leitores são colocados dentro do mundo da ficção e, enquanto dura o jogo, consideram esse mundo verdadeiro, até o momento em que o herói começa a desenhar círculos quadrados, o que rompe o contrato de leitura, a famosa "suspensão voluntária da incredulidade” (COMPAGNON, 1999, p. 136-7).
Também, segundo Leyla Perrone-Moisés, é através de um sistema faltoso
que é a linguagem, a literatura referencia a realidade, pois sua utilização se deve a
convenções e correlações entre um signo e outro. Segundo ela:
dizer as coisas é aceitar perdê-las, distanciá-las e até mesmo anulá-las. A linguagem não pode substituir o mundo, nem ao menos representa-lo fielmente. Pode apenas evocá-lo, aludir a ele através de um pacto que implica a perda do real concreto (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 105).
Esse pacto corresponde a um recurso próprio da literatura: o mimético.
Entretanto, ressaltamos que a mimese à qual nos referimos é aquela dinâmica,
63
tomada como “forma de conhecimento humano”, que liga o mundo real e o ficcional,
e não se prende a binarismos ou simplificações na exclusão do que é contrário, mas
opera com os contrários e forma um ponto comum.
Adotamos, então, a mimese como é definida por Compagnon em uma terceira
releitura dA poética, de Aristóteles: “A mimèses é, pois, conhecimento, e não cópia
ou réplica idênticas: designa um conhecimento próprio ao homem, a maneira pela
qual ele constrói, habita o mundo" (COMPAGNON, 1999, p.127). Para isso, ele
analisa as definições e explicitações de grandes estudiosos refletindo sobre o que
estes excluem de suas teorias. É justamente essa exclusão que ele utiliza e une,
considerando suas particularidades numa nova concepção de mimese.
Assim, ao abordar os dois extremos sobre a relação literatura-realidade em
concepções que seguem a tradição aristotélica (a literatura representa a realidade) e
a moderna, somando a teoria literária (a literatura fala de si mesma e não do
mundo), e passando pelas teses antimimese de Roland Barthes (2004) (ilusão
referencial da linguagem) e Michael Rifatterre (mantém a referência da linguagem,
mas a tira da literatura, devido a sua “função poética”) até sua diferenciada
compreensão que envolve alguns aspectos inovadores das teses de Paul Ricoeur,
Northrop Frye e Carlo Ginzburg que buscam a reintrodução da realidade na
literatura.
[...] reintroduzir a realidade em literatura é, uma vez mais, sair da lógica binária, violenta, disjuntiva, onde se fecham os literatos – ou a literatura fala do mundo, ou então a literatura fala da literatura -, e voltar ao regime do mais ou menos, da ponderação, do aproximadamente: o fato de a literatura falar da literatura não impede que ela fale também do mundo. Afinal de contas, se o ser humano desenvolveu suas faculdades de linguagem, é para tratar de coisas que não são da ordem da linguagem (COMPAGNON, 1999, p. 126).
Assim, Compagnon demonstra que é possível levar em consideração as duas
teorias literárias e considerar a literatura como capaz de falar de si própria e também
do mundo, pois se o ser humano fala é porque desenvolveu habilidades para tratar
das coisas que vão além da linguagem. Uma intenção não precisa ser excludente da
outra. Aqui mais uma vez, vemos os “opostos” trabalhando juntos para produção de
sentido, os contrários considerados na mesma proporção.
Compagnon (1999) ainda, explicando Frye, parte da intriga (muthus), da
intenção (dianoia) e do reconhecimento (anagnôrisis) para libertar a mimese de seu
64
até então caráter de “cópia do real”. Frye, explica, prioriza a estrutura semântica e
simbólica da narrativa e joga o reconhecimento para o leitor, ou seja, tira da ficção e
a o joga para o exterior dela.
Ricoeur (1994), ao contrário, assume a mimese como sendo “imitação
criadora” e liga-a ao reconhecimento, apontando que a narrativa é uma forma de
conhecer e viver no mundo. E esse conhecimento, esse dinamismo ampliará aquilo
que está representando, saindo do senso comum e finalizando no reconhecimento.
O autor ressalta ainda que esse conhecimento se relaciona por uma mediação entre
tempo e narrativa.
A relação entre o que ele chama de mimese I (o desenvolvimento da intriga e
a pré-compreensão do mundo, do nível vivido e da experiência humana) e a mimese
III (recepção da obra pelo leitor para um tempo configurado simbolicamente pela
composição narrativa) é que gera o reconhecimento: mimese II (quando a intriga por
si é a mediadora ou responsável pela integração entre o tempo real e o tempo da
ficção, realidade e literatura. Além de conhecimento dos mundos que restitui à ação,
o tempo vivido do leitor, completando o ciclo dessas operações narrativas, onde o
sentido nunca se encerra num fechamento ou cristalização).
Candido (1969) complementa essa ideia, ainda, quando afirma que uma obra
literária não deve ser considerada importante apenas pelos eventos reais aos quais
referencia, mas também pelo modo como faz referência a eles. É o que faz a obra
saramaguiana: o modo como ela está organizada, o modo como fala da sociedade e
dos seres humanos, como os referencia da realidade, transformando-os e os
tornando mais ricos e complexos, define sua importância e magnitude. Deste modo:
Uma obra é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula que obteve para plasmar elementos não-literários: impressões, paixões, idéias, fatos, acontecimentos, que são a matéria-prima do ato criador. A sua importância quase nunca é devida à circunstância de exprimir um aspecto da realidade, social ou individual, mas à maneira por que o faz. Esta autonomia depende, antes de tudo da eloqüência do sentimento, penetração analítica, fôrça de observação, disposição das palavras, seleção e invenção das imagens; do jôgo de elementos expressivos, cuja síntese constitui a sua fisionomia, deixando longe os pontos de partida não-literários (CANDIDO, 1969, p. 34).
Voltando a Ricoeur e Frye, embora considerem a pluralidade e totalidade de
sentidos na literatura e, concordamos com Compagnon (1999) quando isto afirma,
desenvolvem argumentos muito flexíveis a respeito do reconhecimento dentro e fora
65
da intriga. É justamente por esse motivo que nossa compreensão, estudo e análise
se voltam para um pensamento que considera tanto a realidade quanto a ficção,
tanto os sentidos atualizados pelo leitor quanto os sentidos que o próprio texto
emana, por sua estrutura, estilo e interseção com o contexto.
Apreciamos o papel do autor e de seu tempo como influenciadores intrínsecos
à obra e à intriga, enfim, ponderamos as partes e o todo, e a nova unidade que sai
desse todo e se traduz em partes maiores e menores, mas ao mesmo tempo
complexas, aproximando-se à compreensão da complexidade de Edgar Morin
(2015), na qual nada acontece separadamente, mas numa interseção e interação
constante com todas as partes, sejam elas desordenadas ou ordenadas,
trabalhando em conjunto para uma organização cada vez maior e mais complexa.
2.3 A literatura e a morte: uma interseção no barroquismo alegórico
saramaguiano
As alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino dos das coisas.
Walter Benjamin
José Saramago transformou-se em um mestre na atualização do velho, ou
reconfiguração do passado pelo ponto de vista do excluído, fornecendo uma nova e
possível compreensão. Em suas obras literárias, o único Nobel de Literatura da
Língua Portuguesa, modernizou e transformou a alegoria barroca, a qual passa de
uma estética tradicional do belo, para uma estética do luto, como propunha Walter
Benjamin (1984).
O barroco tradicional surgiu na Itália no século XVII após a reforma
protestante de Martinho Lutero e a crise estabelecida entre a igreja e a ciência, com
o deslocamento das ideias do teocentrismo para o antropocentrismo. Esse estilo
demonstrava e refletia as tensões do período evidenciando as contradições sentidas
pelo homem europeu entre céu/inferno; fé/razão; efêmero/eterno; profano/sagrado e,
na literatura, se traduziu em uma escrita repleta de antíteses, paradoxos, metáforas,
jogo de ideias, linguagem rebuscada e exagerada.
66
O barroquismo saramaguiano, entretanto, deixa a linguagem ornamentada e
cede lugar a uma escrita mais simplificada, clara, irônica e repleta de jogos de ideias
que direciona a atenção e participação do leitor para uma crítica social e humana
irônica acerca da utilização da morte como objeto de corrupção de várias instâncias
políticas e ideológicas, pautada na maior de todas as alegorias barrocas: a morte.
No trecho abaixo, o diálogo entre um jornalista e o ministro da saúde,
demonstra simplicidade e clareza, inclusive na utilização de termos que podem
causar outras significações pelo contexto da história acabam por resultar em uma
irônica confusão de comunicação entre as duas personagens, deixando
subentendido o despreparo de ambas ao lidar com uma situação incomum:
Como responsável pela pasta da saúde, asseguro a todos quantos me escutam que não existe qualquer motivo para alarme, se bem entendi o que acabo de escutar, observou um jornalista em tom que não queria parecer demasiado irónico, na opinião do senhor ministro não é alarmante o facto de ninguém estar a morrer, Exacto, embora por outras palavras, foi isso mesmo o que eu disse, senhor ministro, permita-me que lhe recorde que ainda ontem havia pessoas que morriam e a ninguém lhe passaria pela cabeça que isso fosse alarmante. É natural, o costume é morrer [...] Mas, agora que não se encontra quem esteja disposto a morrer, é quando o senhor ministro nos vem pedir que não nos alarmemos, convirá comigo que, pelo menos, é bastante paradoxal (SARAMAGO, 2005, p. 9-10, grifos nossos).
Lopes (2014) em sua dissertação de mestrado aponta que a primeira obra
saramaguiana a introduzir elementos do barroco foi a coletânea de contos em
Objecto Quase (1978), sendo o conto A Cadeira seu precursor, já que enfatiza “o
necessário pacto entre autor e leitor em um processo alegórico” (LOPES, 2014, p.
31), seguido das demais obras que apresentam o que o autor chama de “hibridismo
da alegoria e do barroco” (LOPES, 2014, p. 32), os quais Saramago herda de Pe.
Antônio Vieira ao “apropriar-se do discurso alegórico para denunciar. Trata-se de um
espólio estilístico, e não comportamental ou político” (LOPES, 2014, p. 33).
No estudo que faz sobre a obra As intermitências da morte (nosso objeto de
estudo), o autor procura o sentido alegórico na narrativa saramaguiana. Em suas
conclusões, ele aponta que José Saramago faz exatamente o oposto ao
tradicionalismo alegórico barroco12, fornecendo como exemplo a passagem do
12 A alegoria utilizada no período barroco foi apropriada pela Igreja Católica com a intenção de instituir significados.
67
romance em que por meio da alegoria da imortalidade, o primeiro-ministro e o
cardeal discutem sobre como ambos viveriam sem seu pilar principal, a morte.
Assim, Saramago questiona o conservadorismo religioso e governamental:
Trata-se de um modo de utilizar a alegoria subversivamente a partir do ponto de observação de como ela foi utilizada pelo poder católico. Lendo Saramago desse modo, decifra-se uma tessitura de significados situada na contramão do uso original do recurso, aproximando-se da necessidade de perceber o mundo por meio de sua realidade, mas também de sua história (LOPES, 2014, p. 36-7).
A alegoria da morte não é utilizada, tal qual no barroco, para demonstrar
tristeza, angústia, punição dos pecados e desencanto com o que se fez na vida, mas
sim para evidenciar o comportamento dos seres humanos com todos os problemas
causados por uma vida sem a existência da morte, uma eternidade na qual todos
continuam a envelhecer e adquirir todas as mazelas da idade, mas nunca morrem.
Além disso, o “formigueiro interminável” de velhos, evidenciado por Saramago no
excerto abaixo com palavras impactantes como “catarrosos”, incapazes de “segurar
nem a baba que lhes escorre do queixo”, é utilizado como metáfora alegórica para
alertar aos leitores sobre a fragilidade do sistema em que se encontram, mostrando
como o governo reagiria frente ao pesadelo que seria uma vida sem morte.
[...] do formigueiro interminável dos que, pouco a pouco, levaram a vida a perder os dentes e o cabelo, das legiões dos de má vista e mau ouvido, dos herniados, dos catarrosos, dos que fracturaram o colo do fémur, dos paraplégicos, dos caquécticos agora imortais que não são capazes de segurar nem a baba que lhes escorre do queixo, vossas excelências, senhores que nos governam, talvez não nos queiram crer, mas o que aí nos vem em Cima é o pior dos pesadelos que alguma vez um ser humano pôde haver sonhado (SARAMAGO, 2005, p. 25).
O barroco de Saramago (2010) busca por clareza. Contudo, nessa tentativa,
conforme o autor, ele pode acabar se complicando e complexificando e, ao invés de
dizer uma coisa para conseguir um determinado sentido, são ditas várias outras que
ainda podem não ser suficientes para expressar aquilo que se gostaria efetivamente,
já que com tantas informações e detalhes existentes nada parece impressionar ou
atingir. Por esse motivo, é necessário “pois, voltar à alegoria, para acentuar aquilo
que, em condições normais, não necessitaria mais do que a exposição do fato
68
simples [...] Há que transcender esse abuso de informação com a alegoria”
(SARAMAGO, 2010, p. 239).
Talvez essa transcendência esperada pelo autor com a utilização alegórica,
permita-nos inferir um sexo para a morte, que na narrativa não pode pertencer a
outro gênero além do feminino, e que o ser humano pertencente ao formigueiro
interminável e imortal – formado pela ideia de nós todos – sem todas as alegorias,
só consiga pensar por meio de rótulos e padrões biológicos, de cor, espécie, idade,
religião. Com a alegoria não seria necessário encaixar os pensamentos e as ideias
em caixas mutiladoras e pré-fixadas, é possível ir além na produção de sentido do
que se pretende e do que se lê.
A ideia de Saramago vai de encontro aos estudos alegóricos e origem do
drama barroco alemão13 de Walter Benjamin (1984). Em seus estudos, o filósofo
procura reabilitar a alegoria, tanto criticada e condenada pelo classicismo e
historiografia literária até então, contudo essa reabilitação “não se reduz a uma
discussão de técnicas poéticas e retóricas, mas abrange uma teoria da relação entre
linguagem, em particular linguagem literária, e dor, finitude, morte” (GAGNEBIN,
2009, p. 38).
Benjamin (1984) afirma que a filosofia da arte foi dominada durante muito
tempo por um usurpador romântico de saber absoluto que se traduziu no conceito de
símbolo, o qual “corresponde à evidência imediata e feliz do sentido, à presença
repentina de transcendência nas nossas palavras, sem necessidade de explicação
suplementar” (GAGNEBIN, 2009, p. 39). Esse conceito ajudou a relegar à alegoria,
uma mera forma de ilustração quando, em sua essência, é forma de expressão e
representação do mundo acoplado ao momento histórico que a utiliza e define.
Gagnebin (2009) aponta como a alegoria reabilitada de Benjamin demonstra a
insuficiência da linguagem e acentua sua fraqueza e deficiência, pois nunca
consegue realmente dizer o ser como ele é. Em outras palavras, sua figuração se
baseia em duas premissas como salienta a autora: distância histórica e
13 Embora os estudos de Benjamin (1984) concentrem-se em demonstrar a riqueza do drama barroco alemão, condenado e visto como “um reflexo deformado da tragédia antiga”, os resultados da pesquisa podem ser transpostos, utilizados e aplicados nas obras saramaguianas, às quais se comparadas, chegam a resultados muito semelhantes aos de Benjamin no trato com a linguagem e sua pendência para a estética do luto. O autor compara, assim, tragédia ao drama e aponta e, trazendo argumentos e aportes teóricos consistentes, ressaltando que enquanto a tragédia se liga ao mito, o conteúdo do drama possui como objeto mais autêntico a história, na vida histórica.
69
temporalidade (quando o sentido literal não é adquirido de imediato, busca-se um
segundo sentido mais verdadeiro); e a arbitrariedade que delimita a relação entre a
imagem alegórica e sentido “verdadeiro”. Além disso, ela ressalta o lado cruel e
vaidoso do ser humano, destacando as dores da realidade.
Assim, para Benjamin (1984), a história inscrita na natureza está na base da
alegoria, visto que o instante místico se transforma em algo atual, disposto no agora;
o eterno se separa da comum história da salvação do homem, resultando em uma
imagem viva à disposição do artista, o qual dá forma aos objetos utilizando de
digressões, vacilações e sensualidade. É justamente isso o que vemos acontecer
em Saramago quando a história da morte é levada para o universo da ficção e
transforma a visualização mítica da morte, envolta em seu capuz e com o poder de
ceifar quaisquer vidas que desejar, em uma personagem sentimental, em conflito,
envolta em uma sensualidade de mulher, humana. Essa morte em processo de
personificação e posterior conclusão que surge à disposição do autor, solapa os
ideais profanos de possibilidade de um despertar além-morte, da salvação do
homem com uma ressurreição.
A expressão alegórica benjaminiana nasce então, da combinação entre
natureza e história, a qual se exprime na figura de uma caveira e não de um rosto:
E porque não existe, nela, nenhuma liberdade simbólica de expressão, nenhuma harmonia clássica da forma, em suma, nada de humano, essa figura, de todas as mais sujeitas à natureza, exprime, não somente a existência humana em geral, mas, de modo altamente expressivo, e sob a forma de um enigma, a história biográfica de um indivíduo (BENJAMIN, 1984, p. 188).
Justamente pelo fato de a caveira não representar uma simbologia
momentânea própria do símbolo, com um sentido petrificado, mas algo que se
constrói progressivamente, demonstrando a hipocrisia envolta à figura da morte, no
caso da narrativa, e também por representar uma construção progressiva da morte
como um todo e do indivíduo que antes era a morte do romance, com uma história,
sentimentos e pensamentos, permite possibilidades maiores de significações, por
isso é uma alegoria. Morte, alegoria e progressão de sentido se relacionam numa
combinação de história e de natureza: “Quanto maior a significação, tanto maior a
sujeição à morte, porque é a morte que grava mais profundamente a tortuosa linha
de demarcação entre a physis e a significação” (BENJAMIN, 1984, p. 188).
70
Essa sujeição de morte ligada à significação é compreendida por nós como a
possibilidade alegórica de produção do sentido. Quanto mais produção de sentido
uma alegoria é capaz de despertar, além do sentido momentâneo e dado do
símbolo, mais ela está fadada a morrer como representação de uma possibilidade
de significação única e pétrea. A morte saramaguiana, construída progressivamente
na narrativa como alegoria, morre como morte entidade, ceifadora de vida, e
ressurge com várias possibilidades de significação metamorfoseada na figura da
mulher, humana, personificada.
Saramago, assim, primeiramente usa a morte em sua existência e definição
históricas para depois esvaziá-la de seu significado conhecido e transformá-la em
alegoria, em algo diferente, uma personagem humana, mulher, compartilhando um
saber que se difere do já conhecido - que ficou esquecido ou destinado às margens,
algo oculto. Não só o mundo é esquartejado com a ausência da morte e uma
possível imortalidade, como os homens são despedaçados e estilhaçados em sua
essência com uma morte que não aparece e dá lugar a uma velhice eterna, cheia de
doenças e ausências de saúde. Alegoricamente, não só o mundo real é destituído
de sua vida, como tudo em toda a narrativa morre para dar lugar a outro algo vivo: a
realidade morre para significar uma narrativa possível no impossível, surgida entre a
ordem da desordem, a morte como figura envolta em um capuz morre para dar à
vida a uma personagem humana e mulher.
A complexidade permeia também a alegoria, os contrários são trabalhados e
tratados dialeticamente. Conforme Benjamin aponta, mesmo cada coisa podendo
significar qualquer outra coisa e permitindo que o mundo profano seja visto com
pouca importância, a exegese alegórica da escrita, ao apontar vários outros objetos,
investe um poder incomensurável que confere à significação profana a elevação a
um patamar mais elevado, quase divino. Assim, “[n]a perspectiva alegórica, portanto,
o mundo profano é ao mesmo tempo exaltado e desvalorizado [...] a alegoria é as
duas coisas, convenção e expressão, e ambas são por natureza antagonísticas”
(BENJAMIN, 1984, p. 197).
Em suma, pelos fragmentos e estilhaços de um mundo em ruínas,
desorientado e confuso, traduzidos por uma linguagem e história também assim
narrados, As intermitências da morte sugere uma concepção fundadora alegórico-
barroca atualizada ou uma composição pela estética do luto, a qual se exemplifica e
71
comprova na configuração do próprio romance e na obra benjaminiana com um
todo.
2.4 A palavra morte: etimologia
[...] a vida e a morte se encontram no mesmo degrau do ser como tese e antítese.
George Simmel
A palavra morte tem origem no latim mors – mortis e designa, de acordo com
o dicionário etimológico, “fim da vida, falecimento, termo, destruição” (CUNHA, 1982,
p.534). O dicionário latino português traz mais especificações sobre o termo,
definindo mors como “1. Morte; falecimento; óbito. 2. A Morte (personificada). 3.
Cadáver: corpo morto; homem que está com os pés na cova” (TORRINHA, 1942, p.
533).
Já o Dicionário Houaiss da língua portuguesa aponta definições do
substantivo feminino “1 interrupção definitiva da vida de um organismo 2 fim da vida
humana” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1320); além de trazer a representação
iconográfica da morte “imagem de um esqueleto humano armado de foice” (Id. Ibid.);
os vários tipos de morte: morte clínica, aparente, cerebral, cósmica, morrida, natural,
por causa externa, presumida, súbita; e o sentido figurado da expressão “pensar na
morte da bezerra” e demais sentidos figurados da palavra:
3 fig. fim, desaparecimento, freq.. gradual, de qualquer coisa que se tenha desenvolvido por algum tempo [...] 4 fig. fim, término de qualquer coisa, ger. Subjetiva, criada consciente ou inconscientemente pelo homem [...] 5 fig. Intenso sofrimento, grande
dor e angústia (Id. Ibid.).
As definições propostas pelos três dicionários evidenciam o ponto no qual
queremos chegar, o qual aponta para os vários tipos de morte existentes, citando a
astrologia, medicina e sentido conotativo e denotativo, além da morte não-humana e
da representação personificada da morte (que o dicionário sugere utilizar com inicial
maiúscula) como um esqueleto e sua gadanha. Essas constatações também servem
72
como base para iniciarmos o estudo da morte e suas representações e/ou
compreensões.
2.4.1 Mudanças de visões acerca da morte: uma breve descrição
[...] as atitudes que hoje prevalecem em relação aos moribundos e à morte não são inalteráveis nem acidentais. São peculiaridades de sociedades num estágio particular de desenvolvimento e, portanto, com uma estrutura particular.
Norbert Elias
Ao abordarmos as várias modificações da compreensão de morte,
particionamos o estudo em três grandes partes, as quais surgem a partir de uma
análise e leitura reflexiva das ideias do sociólogo Edgar Morin (1997), do historiador
Phillipe Ariès (2017), Norbert Elias (2001) e Michel Foucault (1977). A primeira delas
chamaremos morte trivial; a segunda, desejo de morte; a última, aversão ou morte
inominável14 Entretanto, apesar das três categorias, possuímos claramente a ideia
de que nesses períodos houve instabilidades e exceções quanto à essa visão global.
Ariès (2017) direciona sua pesquisa para a História, compondo uma História
da morte no Ocidente. Ele considera que tanto na baixa Idade Média quanto na
Antiguidade, a morte era considerada a partir de uma relação de proximidade e
familiaridade, calma e serenidade, pois os indivíduos acreditavam que sua
personalidade não era apagada com a vinda desta, mas adormecida, supondo uma
vida além-morte. Entretanto, ao mesmo tempo, essa relação era atenuada e
indiferente aos indivíduos, visto que estes já esperavam a chegada do seu fim e
aceitavam essa fatalidade, sendo, portanto, advertidos. Exceções quanto à morte
súbita, terrível ou peste que não eram mencionadas.
Elias (2001) salienta que a morte era assim vista não porque fosse mais
pacífica ou aceitável, como afirma Ariès, mas devido ao fato de as condições de
vivência antigamente eram completamente diferentes da atualidade. As pessoas
14 A morte tratada como inominável é tomada na mesma acepção de Morin, Ariès e Elias.
73
viviam menos já que não se conhecia as causas de muitas doenças e não havia
tratamento para as mesmas, sendo o misticismo e a fé os responsáveis pela cura
milagrosa de um ou outro indivíduo. Quando acometidas por um mal, não havia
muitas possibilidades de aliviar as dores, sendo a companhia dos sujeitos próximos
o conforto dos moribundos. Ainda, os indivíduos possuíam uma vida mais intensa,
apaixonada, selvagem e, de certa forma, incerta, de acordo com Ariès.
A morte era vista como o destino ao qual todos chegavam, com a
possibilidade, como mencionado anteriormente, de possuir uma individualidade
despertada num após-morte. Essa fase é a que chamamos de morte trivial, no
sentido de ser algo mais comum e mais próximo às pessoas. Nessas consciências
arcaicas, conforme expressa Morin (1997; 1981), reinam as experiências de morte-
renascimento, pois as pessoas acreditavam que após a morte, o humano morto se
transmutava em uma planta ou animal, ou renascia em uma criança e quando essa
morte-renascimento era a mais pura possível, a criança recebia o nome do último
defunto.
Os processos de enterro nesse período, de acordo com o autor, significavam
a reintrodução do esqueleto em posição fetal na terra onde ele renascerá, assim,
nessa analogia do retorno do cadáver à terra provavelmente sugerem que “a terra
em que a morte vai se transmutar em nascimento exige a determinação maternal”
(MORIN, 1997, p.122). Em outras palavras, o morto renascerá em outro ser por meio
do seio materno, que pode ser a mãe ou a própria terra, sugerindo a ideia de mulher
como doadora da vida (pois dá a luz) e demonstrando a importância das virgens nos
sacrifícios.
Com cada mudança e transformação da sociedade e dos próprios grupos de
pessoas, mesmo que lentamente, também a concepção e entendimento que se tinha
sobre a morte foi modificada, diferenciando-se na segunda fase da Idade Média, no
Romantismo, no mundo moderno e pós-industrial (especificaremos mais adiante
acerca das visões e compreensões da morte). Cada mutação, conforme Ariès (2017)
deve-se a novos modos do ser humano compreender o mundo a sua volta e a si
próprio, influenciado pelas culturas e pelas religiões.
Avançando um pouco mais na História, quando são lançadas as bases para a
civilização moderna, há uma mudança abrupta no trato com a morte, conforme Ariès
(1990), a qual passa a ser individualizada e interiorizada. Assim, em contraposição
ao homem da primeira fase da Idade Média e da Antiguidade, o autor aponta que o
74
homem do Renascimento “empenhava-se em participar de sua própria morte,
porque via nesta um momento excepcional em que sua individualidade recebia sua
forma definitiva. Só era dono de sua vida na medida em que era dono de sua morte”
(ARIÈS, 2017, p. 218).
Embora participando ativamente do processo do morrer, o modo com que se
lidava com a morte era aberto, público e sem censuras estritas, a “visão de corpos
humanos em decomposição era lugar-comum. Todos, inclusive as crianças, sabiam
como eram esses corpos; e, porque todos sabiam, podiam falar disso com relativa
liberdade, na sociedade e na poesia” (ELIAS, 2001, p. 30). Entretanto, a partir do
século XVII, como salienta Ariès (2012), essa individualização se ameniza e o
moribundo começa a dividir com a família a soberania de sua vida.
Séculos após, com o surgimento do Romantismo no fim do século XVIII e
acentuado por ele, principalmente em sua primeira fase, surge o desejo pela morte.
Esse desejo se traduz em um interesse mórbido por ela, percebido e evidenciado
por vários poetas e escritores românticos que, segundo Elias
[r]epresentam um limiar diferente do nosso de vergonha e embaraço e, portanto, uma estrutura diferente de personalidade, que é social e não individual. Referências à morte, à sepultura e a todos os detalhes do que acontece aos seres humanos nessa situação não eram sujeitos a uma censura social estrita (ELIAS, 2001, p. 30).
O romantismo é o período que Morin (1997) chama de crise da morte,
considerada segundo sua incidência na literatura, na poesia e na filosofia, por serem
especializadas no geral e funcionarem como “barômetros do grau de angústia
difusa, das rupturas subterrâneas de uma sociedade: elas refletem uma crise que é,
ao mesmo tempo, a da humanidade burguesa e a de uma nova fase da “condição
humana”” (MORIN, 1997, p. 282).
Ainda como explica Morin, os primeiros românticos não conseguiam se
adaptar ao aburguesamento social e se encontravam divididos entre uma civilização
morta (idealizada) com misticismo e magia natural e outra que exigia participações
econômicas por eles desprezadas. Essa inadaptação promove o desejo de reviver
verdades originárias, causando insatisfação e infelicidade na busca dessa aspiração,
deixando visível uma obsessão pela morte e pela transitoriedade da vida, conforme
Morin (1997), e gerando uma ambivalência entre passado e futuro, a qual é
quebrada e dá lugar ao indivíduo em seu isolamento e solidão.
75
A ciência abre a consciência para abismos que se abrem uns sobre os outros, se devoram uns aos outros... As civilizações são mortais. A humanidade está fadada à morte. A terra morrerá [...] A morte humana, já vazio infinito, se dilata em todos os planos do cosmo, cada vez mais vazia e infinita [...] Assim, tudo remete ao indivíduo solitário a uma solidão cada vez mais miserável no vazio de um nada sem limite (MORIN, 1997, p. 287).
Essa neurose da morte ou niilismo centrado na morbidez desenvolvida pelo
mal do século fará com que qualquer crença que faça esquecer ou consolar essa
angústia neutralize a morte: “É porque ele é solidão, horror e desencantamento que
o niilismo desemboca de modo tão frequente na fé mais grosseira” (MORIN, 1997, p.
290). A regressão ou a volta retoma o aspecto da salvação por uma possível
imortalidade e retira a morte dos pedestais relegando-a ao esquecimento, à rejeição.
Em O nascimento da clínica, Foucault explica as relações do nascimento da
clínica e da medicina moderna, no fim do século XVIII, quando passa por uma
grande transformação no que concerne à organização do seu conhecimento e
prática. Segundo o filósofo, essa alteração na medicina se deu por meio de uma
reorganização no campo hospitalar: “foi preciso situar o doente em um espaço
coletivo e homogêneo. Também foi preciso abrir a linguagem a todo um domínio
novo: o de uma correlação perpétua e objetivamente fundada entre o visível e o
enunciável” (FOUCAULT, 1977, p. 226). Esse visível e enunciável repousava na
morte e a morte percebida em relação a ela, torna-se, nas palavras do estudioso,
“legível, aberta sem resíduos à dissecação soberana da linguagem e do olhar” (Id.
Ibidem, p. 227).
Em um terceiro momento essa morte aberta e enunciável caminha, no século
XIX, para a categoria do inominável, sendo recusada e afastada pelos avanços da
ciência e da medicina. Os salvadores não são mais os sacerdotes, mas os médicos
com seus olhares clínicos não mais direcionados para doença em relação à
natureza humana, como desde a Antiguidade até o Renascimento, mas para a
doença em relação à morte, como aponta Foucault (1977).
Mas a morte é também aquilo contra que, em seu exercício cotidiano, a vida vem se chocar; nela, o ser vivo naturalmente se dissolve: e a doença perde seu velho estatuto de acidente para entrar na dimensão interior, constante e móvel da relação da vida com a morte. Não é porque caiu doente que o homem morre; é fundamentalmente
76
porque pode morrer que o homem adoece. E, sob a relação cronológica vida-doença-morte, uma outra figura, anterior e mais profunda, e tragada, que liga vida e morte para libertar além disso os signos da doença (FOUCAULT, 1977, p. 177).
Contudo a morte só é aberta ao olhar do médico e não aos olhares dos
homens em si, pois estes, quanto menos tocarem no assunto e quanto mais longe
direcionarem a morte dos familiares e de si próprios, mais ela figura no não dito e
solidifica-se como tabu:
Os tabus proíbem a excessiva demonstração de sentimentos fortes, embora eles possam acontecer. E a tradicional aura de mistério que cerca a morte, com o que permanece dos gestos mágicos – abrir as janelas, parar os relógios-, torna a morte menos tratável como problema humano e social que as pessoas devem resolver entre si e para si. [...] O crescente tabu da civilização em relação à expressão de sentimentos espontâneos e fortes trava suas línguas e mãos. E os viventes podem, de maneira semi-inconsciente, sentir que a morte é contagiosa e ameaçadora; afastam-se involuntariamente dos moribundos (ELIAS, 2001, p. 36).
Neste excerto, Elias demonstra como a morte inominável contribui para a
manutenção do tabu da própria morte, pois, em nossas considerações, além dos
vivos se afastarem dos moribundos e delegarem todos os cuidados a ele
necessários para as instâncias hospitalares ou asilos e, no caso dos velórios e
sepultamentos, o ritual é transferido para as funerárias e retirado das mãos da
família, assim, “os clientes potenciais são protegidos [..] da lembrança da morte e de
tudo relativo a ela” (ELIAS, 2001, p. 39). Além disso, a proibição dos pais para com
seus filhos de modo que não brinquem, nem corram nos cemitérios, o império do
silêncio e os sussurros, tudo sem escândalos e solenemente contribuem para
manter a ideia de ameaça da morte o mais longe possível.
O indizível da morte transforma-se, no século XXI, um elemento narrativo
para José Saramago e, são esses clientes em potencial explorados pelas
instituições que têm na morte sua fonte de existência e comércio, os elementos
escolhidos para o início do romance saramaguiano. Aproveitando-se do tabu envolto
nesse tema, o escritor português demonstra e critica o trato com a morte e tudo que
gira em torno desse assunto.
77
2.4.2 Saramago e a morte
A finitude é o destino de tudo. O Sol, um dia
apaga-se.
José Saramago
A forma com que Saramago trata a morte no romance demonstra muito do
que o próprio autor sente e pensa a respeito dela, contrariando o que muitos
estudiosos e diversos autores mencionam sobre a falta de relação entre um autor e
a ficção que cria (motivo pelo qual refutamos essa última ideia e tentamos descrevê-
la como insuficiente). Além disso, o como esse assunto é abordado reflete
características traduzidas pelas vivências, tempo e espaço do escritor português,
somados a uma consciência ideológica, cultural e política que transpassa na escrita.
Esta relação existencial que fica explícita na produção literária pode ser depreendida
pela afirmação do próprio autor quando diz:
Eu não estaria tão seguro de que a vida se eleva acima da morte. Quase diria que são irmãs, que aonde uma vai a outra acompanha e que não há mais remédio. Nós estamos morrendo em cada momento, começamos a morrer quando nascemos e vamos nessa direção fatalmente. Algumas células do nosso corpo se regeneram, outras são substituídas, mas outras morrem e, portanto, somos um corpo vivo onde está a morte. Nós transportamos nossa própria morte. E é preciso ter isso claro. A morte não é a inimiga que chega, na qual nós não estávamos pensando, e ficamos surpresos e perguntamos: como é que a senhora aparece aqui? Não, não, não temos por que nos surpreender. Ela está aí, ao nosso lado e temos de viver com ela (SARAMAGO, 2010, p. 171).
O autor vai de encontro com o pensamento de Morin (2007, p. 63) quando
aponta que o ser humano morre a cada momento, visto que suas células
rejuvenescem, morrem, se substituem, que “vive-se de morte, morre-se de vida”; e
se identifica com vários dos pensamentos de Schopenhauer (2013) e Simmel
(1998), quando aponta que morte e vida são como são no mesmo sentido, um ser
que surge de um nada e perece para um nada, ou como os cristãos afirmam que
vêm do pó e ao pó retornam “a essência humana é um intermédio entre o nada e o
nada. O nada, porque antes de nascer, o que havia antes era o nada, depois
78
também é o nada” (SARAMAGO, 2010, p. 172). Essas são características
essencialmente humanas – a naturalidade da morte – e históricas – os conflitos
bélicos vivenciados pelo autor – que o instigam a criar conceitos e personagens.
Percebemos, ainda, ideias que se assemelham às de Elias (2001), quando
afirma que a morte não é terrível, mas sim um momento difícil porque envolve a dor
da perda e a dor dos moribundos, mas Saramago (2005, p. 172) propõe que se veja
isso de um modo irônico “como quem diz “pois as coisas são assim, tentemos rir
disso da forma que é possível”” ou quando se internam os velhos em asilos,
escondendo-os da vista de todos, matando-os na invisibilidade.
Tudo isso aparece implícita e explicitamente na escrita e na narrativa,
mediante uma desordem (a greve da morte) para uma ordem (a volta dela) e, desta,
novamente a desordem (o violoncelista que não morre) continuando em um anel
circular. As interações entre o todo complexo na unidade da obra, e desta unidade
narrativa em um todo complexo social, cultural, ideológico, político, teológico e
filosófico constroem uma nova, mas nem tão nova assim, visão do que seja a morte.
Esta novidade consiste justamente na forma como é tratada e por que assim
é feita por Saramago, fazendo renascer, ressurgir e rejuvenescer uma reflexão que é
necessária há muito, mas também há muito tempo afastada e delegada aos
bastidores da vida. A morte está para a vida assim como esta está para morte: na
antítese, no paradoxo, na complexidade de uma e outra está a possibilidade de uma
compreensão mais adequada do que seja esse fenômeno e de como lidar com ele
de forma menos assustadora e temerosa.
2.5 Morte, Literatura e História: uma interação na complexidade
De todo modo, viver é, sem cessar, morrer e se rejuvenescer. Ou seja, vivemos da morte de nossas células, como uma sociedade vive da morte de seus indivíduos, o que lhe permite rejuvenescer.
Edgar Morin
Saramago, por meio da ficção, reescreve a História a partir de seus pontos
excluídos e obscuros, trazendo à vista personagens que evocam reflexões e
79
análises da realidade, de modo que instituições, seres e acontecimentos pré-fixados
e mitificados na cultura do ocidente sejam repensados e reinterpretados. Como
muito bem salienta Reis: “[o] destino das personagens é, então, indissociável do
devir de uma História que a ficção repensa, tanto em função do passado
propriamente histórico, como até em função do futuro: acontece” (REIS, 2004, p.
38).
A morte entidade, histórica, é repensada e colocada ao mesmo tempo em
evidência e contraposição a uma nova morte, esta última personagem do romance
saramaguiano. A morte, do escritor português, é mais sentimental, pensativa e
preocupada com suas ações perante a humanidade. Essa preocupação se traduz
em suas atitudes para com a população do país não nomeado e o próprio
violoncelista que entra em contato direto com a morte, por meio de sua
personificação.
Em interação, em um movimento circular virtuoso, morte, literatura e história
interagem e sofrem alterações/modificações que culminam em um todo diferenciado
e rico que se assemelha e difere de suas partes ao mesmo tempo, mas que
necessita delas para ser definido tal qual é. Assim também, morte e vida são
pensadas na complexidade como contrários que se afastam e se atraem
simultaneamente em um processo interativo com o meio e com a realidade.
Cada parte da obra, o estilo do autor, o discurso, o leitor, o próprio autor, com
sua especificidade, em interação com as demais partes que são igualmente todo
dentro de seus sistemas, somados às partes da história, tempos e espaços da
realidade e da ficção também, somados à construção da ideia de morte e sua figura
representativa em contraposição ao que é a vida, agregam-se na complexidade e
interagem dentro dela. É assim que Saramago transita entre a ordem que gera
desordem e a desordem que interage e se organiza, podendo gerar novamente uma
desordem, mas ressaltando que toda desordem é necessária para que se chegue a
um nível de conhecimento e aprofundamento maior da realidade e de qualquer
aspecto dela.
80
3 A HERMENÊUTICA DA MORTE EM SARAMAGO
Pensa por ex. mais na morte, - E seria estranho em verdade que não tivesse de conhecer por esse facto novas representações, novos âmbitos da linguagem.
Wittgenstem
Os capítulos anteriores foram necessários e importantíssimos para
compreendermos como os tempos e espaços influenciam em todos os aspectos de
uma criação literária, de um romance, neste caso, As intermitências da morte, de
José Saramago. Todas as ordens, desordens, interações e novas organizações que
em movimentos cíclicos foram se modificando, atualizando, complementando e
contribuindo para a formação de um todo complexo sobre a morte, na narrativa e por
meio dela, modificam nosso entendimento sobre aspectos da realidade.
A ênfase nesse capítulo será para a hermenêutica da morte na obra literária
em questão. A contação da história na interseção da própria da obra com um todo e
tudo que já foi abordado, contribuirá na reformulação e atualização da ideia de morte
como tabu, como algo assustador, malfazejo, que deve ser evitado e figurar no não
dito. Ao mesmo tempo é na contação que percebemos a interseção da narrativa com
o tempo natural e histórico que envolve o contexto do autor, resultado desta sua
relação crítica com o tempo presente.
A morte, em sua representação esquelética, cultural e ideológica assemelha-
se à caricatura geral que dela possuímos na realidade. Já a morte em sua singeleza
e personificação de ser humano demonstrará e quebrará padrões petrificados e
fixados na História e nas culturas da maior parte do Ocidente, os quais serão
demonstrados no decorrer deste capítulo.
3.1 A morte no romance: caminhos de uma protagonista
[...] cada um de vós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto
81
desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe.
José Saramago
“No dia seguinte ninguém morreu” (SARAMAGO, 2005, p. 04): a catarse do
romance tem origem logo no primeiro enunciado e incita a partir dele toda a
problemática/intriga da obra. Desse momento em diante, diversas instâncias sociais
e áreas do conhecimento passam a debater e procurar soluções para a ausência
eterna da morte. Nessa discussão, Saramago permite apreender três grandes áreas
que também segundo os teóricos (Ariè, Morin e Elias) são as principais responsáveis
pela compreensão de morte que temos: teológica, filosófica e
política/cultural/ideológica.
A alegria e alvoroço gerados nos habitantes do país ao descobrir sua
imortalidade a partir daquele primeiro dia do ano, nos permite subentender que
anteriormente seus pensamentos acerca da morte traduziam-se em medo, pavor e
rejeição. Isso se explica, de acordo com Schopenhauer (2000; 2013) porque o
homem teme a morte, sendo este constituído do que chama de Vontade cega. A
vontade cega faz com que o indivíduo busque fugir da morte, o que se deve a uma
vontade de vida (que consiste no viver e no existir), a qual ao avistar a possibilidade
de um fim que a limita, se volta contra essa probabilidade com certa violência. Na
vontade de vida o conhecimento não existe de forma originária, tal qual nos animais,
mas se objetiva posteriormente. Assim, quando o sujeito adquire conhecimento e
possui consciência dele, não teme a morte:
a morte mesma, para o sujeito, consiste apenas no momento em que a consciência desaparece, na medida em que cessa a atividade do cérebro [...] A morte, em termos subjetivos, concerne portanto apenas à consciência (SCHOPENHAUER, 2000, p.69).
Esse medo se transforma em contentamento para os habitantes, os quais se
traduzem na consciência de continuação da existência e, portanto, de si e seus
entes. Entretanto, para as instituições sociais a possibilidade da falta de morte gera
caos e preocupação, principalmente para o governo e para a igreja, das quais
surgem os primeiros manifestos na narrativa de Saramago. O cardeal da Igreja
Católica, após um pronunciamento do chefe do governo, afirmava que se fosse a
82
vontade de Deus suspender as mortes, os habitantes daquele país deveriam sentir-
se privilegiados. O cardeal, então, coloca em debate a premissa da existência da
igreja: a morte e, portanto, a ressurreição e o diabo, apontando que nas mãos da
igreja estaria o poder para salvar o país:
Terei de falar ao rei, recordar-lhe que, em uma situação como esta, tão confusa, tão delicada, só a observância fiel e sem desfalecimento das provadas doutrinas da nossa santa madre igreja poderá salvar o país do pavoroso caos que nos vai cair em cima [...] Perguntarei a sua majestade que prefere se ver a rainha-mãe para sempre agonizante, prostrada num leito de que não voltará a levantar-se, com o imundo corpo a reter-lhe indignamente a alma, ou vê-la, por morrer, triunfadora da morte, na glória eterna e resplandecente dos céus (SARAMAGO, 2005, p.13, grifos nossos).
O que se inicia e é perceptível pelo discurso que discorre entre o primeiro-
ministro e o cardeal é uma espécie de luta de poderes, na qual ambos concorrem
para ver qual instância sobrevive ou lida melhor com a “amortalidade”, evidenciado,
contudo, a decadência da igreja, visto que um dos pilares de sua sustentação é
posto em ruínas.
Que irá fazer a igreja se nunca mais ninguém morrer, Nunca mais é demasiado tempo, mesmo tratando-se da morte, senhor primeiro-ministro, Creio que não me respondeu, eminência, Devolvo-lhe a pergunta, que vai fazer o estado se nunca mais ninguém morrer, o estado tentará sobreviver, ainda que eu muito duvide de que o venha a conseguir, mas a igreja, A igreja, senhor primeiro-ministro, habituou-se de tal maneira às respostas eternas que não posso imaginá-la a dar outras, Ainda que a realidade as contradiga, Desde o princípio que nós não temos feito outra cousa que contradizer a realidade, e aqui estamos (SARAMAGO, 2005, p. 14).
Toda a primeira parte da narrativa que trata da ausência da morte pelos
diálogos e vozes polifônicas evidencia a corrupção das diversas instâncias sociais,
principalmente a Igreja e o Estado, e também do próprio ser humano o qual,
aproveitando-se de um fato inusitado, sempre desenvolve a habilidade de lucrar e
consumir. A Igreja, nesse sentido, também não estaria mais ajustada por ser
pautada no sagrado e no sobrenatural. Tampouco o Estado por ser mais humano e
terreno.
A ligação humana com o Estado surge de modo mais espontâneo com o
dispor das bandeiras nas casas dos habitantes, como se não poder morrer fosse
83
algo possibilitado pelo governo. A ironia reside justamente aí, pois o acontecimento
da ausência de mortes em nada tem a ver com ações do governo, da igreja,
tampouco de qualquer outra instituição. Esse “embandeiramento” estimulado por
uma viúva ao perceber que a morte não mais vinha se torna também fonte de
comércio para outros sujeitos que utilizam o suposto patriotismo e ingenuidade dos
cidadãos para intimidá-los. Mostrar a bandeira vira sinônimo de patriotismo e o
contrário, de traição:
Quem não puser a imortal bandeira da pátria à janela da sua casa, não merece estar vivo, Aqueles que não andarem com a bandeira nacional bem à vista é porque se venderam à morte, Junte-se a nós, seja patriota, compre uma bandeira, Compre outra, Compre mais outra, Abaixo os inimigos da vida, o que lhes vale a eles é já não haver mais morte (SARAMAGO, 2005, p. 16-17).
Implicitamente, Saramago questiona também o pertencimento e identidades
construídas a partir do imaginário do Estado Nação. Os símbolos nacionais são
forjadores do modo de ser. Ao mencionar a bandeira fica implícito que o autor deseja
levar o leitor a pensar na sua identidade e do quanto ela tem de política.
Os diálogos e pensamentos dos responsáveis de empresas funerárias,
seguradoras hospitais, asilos, igreja, governo e o próprio ser humano assumindo o
papel de família do desmorto são tratados e narrados metafórica e ironicamente pelo
autor-narrador que não perde a oportunidade de desmascarar o ser humano
escondido por trás de cada papel social, manipulando uma ou outra coisa para seu
interesse próprio. Os mesmos cidadãos que comemoram alegremente a sua
imortalidade, demonstram sua logo e rápida insatisfação com a greve da morte
quando se pensa nas instâncias que representam. Aqui também podemos pensar no
imaginário do autor português que, tendo vivido entre as guerras e demais
atrocidades históricas não deixava de pensar no quanto os corpos sem vida eram
fontes de inúmeros negócios (culto ao herói morto na guerra, a eliminação de etnias,
possíveis corpos doentes, etc.).
Como afirma Ariès (2012, p. 269) “O moribundo é apenas um objeto privado
de vontade e, muitas vezes, de consciência, mas um objeto perturbador, e tanto
mais perturbador quanto mais recalcada é a emoção”. Assim, o filho que comemora
a vida do pai que não morreu é o mesmo a transportá-lo ilegalmente para o outro
lado da fronteira a fim de “livrar-se” do fardo de carregar um morto-vivo que não se
84
recupera e também não falece; o homem que se vê imortal reclama pela sua
empresa (sem mais mortos para enterrar e sem clientes para os seguros de vida
pagar); o chefe de governo vive em uma encruzilhada pensando em quantos
milhões de velhos deverá manter com o dinheiro que “arrecada”; o padre ou pastor
não sabe como manter o fiel na igreja quando não há mais possibilidade de
ressurreição e salvação para os pecados.
Essa mudança de atitude é explicada por Certeau (1998) quando discorre
sobre a morte e os moribundos. Segundo o autor, o moribundo sai da esfera do
“pensável” (que liga ação, portanto, ao que se pode fazer) e para outro lugar, onde
não se pode fazer mais nada, tornando-se um sujeito que não pode trabalhar,
apenas definha consideravelmente com o tempo, um alguém “imoral”:
[...] o moribundo reduz a questão do sujeito à extrema fronteira da inação, onde é a coisa mais impertinente e menos suportável. Em nossa sociedade, ausência de trabalho significa absurdo; deve-se eliminá-la para que prossiga o discurso que incansavelmente articula as tarefas e constrói o relato ocidental do “há sempre alguma coisa a fazer”. O moribundo é o lapso desse discurso. É, e não pode ser senão obsceno. Portanto, censurado, privado de linguagem, envolto
numa mortalha de silêncio: inominável (CERTEAU, 1998, p. 294).
Portanto, pensar um país onde os doentes e velhos continuariam com suas
mazelas e trariam incansavelmente gastos e mais gastos, prejuízos e mais prejuízos
a diversas instâncias, o governo decide partir para a ação, retirando a ideia de morte
do esquecimento (durante os quase sete meses desde seu início) e trazendo a
mesma para debate, para que algo fosse feito com urgência.
Além disso, o autor parece sugerir que as pessoas pensem e reflitam acerca
do tema da duração da vida, dos corpos, instigando também os gestores a pensar
em como manter e governar uma população que vive cada dia mais, que aumenta
sua expectativa de vida com a ajuda de todas as descobertas e avanços científicos.
Poderíamos então pensar no crescente debate de uma reforma da previdência, o
qual se dá diversos países no início do século XXI. Como o governo manteria a
crescente leva de adultos que procriam em quantidade menor do qualquer outro
período na História e que, devido a isso, serão idosos em quantidade sustentados
por uma minoria de jovens que não se equivalem em número e esforço à quantidade
de velhos e moribundos.
85
As histórias das personagens que se cruzam na narrativa com vozes
dialógicas e polifônicas não fazem mais que ressaltar a estupidez, caráter humano e
o fato de que uma vida sem morte seria catastrófica, até mesmo para a filosofia:
E nós, perguntou um dos filósofos optimistas [...] que vamos fazer [...] Para começar, levantar a sessão, respondeu o mais velho, E depois, Continuar a filosofar, já que nascemos para isso, e ainda que seja sobre o vazio, Para quê, Para quê, não sei, Então porquê, Porque a filosofia precisa tanto da morte como as religiões, se filosofamos é por saber que morreremos, monsieur de montaigne já tinha dito que filosofar é aprender a morrer. Mesmo não sendo filósofos, ao menos no sentido mais comum do termo, alguns haviam conseguido aprender o caminho. Paradoxalmente, não tanto a aprender a morrer eles próprios, porque ainda não lhes teria chegado o tempo, mas a enganar a morte de outros, ajudando-a, o expediente utilizado, como não tardará a ver-se, foi uma nova manifestação da inesgotável capacidade inventiva da espécie humana (SARAMAGO, 2005, p. 30-1).
George Simmel em seu artigo Metafísica da morte define a morte como
criadora de forma, já que ela limita a vida e a configura, fazendo com que o indivíduo
se adapte ao meio para continuar existindo. Para ele também cada movimento
humano é uma tentativa de vida e de fuga da morte,
Não somente cada passo da vida nos aproximaria da hora da morte, mas seria, positivamente e a priori modelado por ela, que é um elemento real da vida. E esta modelagem é então determinada ao mesmo tempo pela evitação da morte: na verdade, pena e prazer, trabalho e repouso e todos os nossos comportamentos considerados naturais, são uma fuga instintiva ou consciente da morte (SIMMEL, 1998, p.179).
Na ineficiência das ações do governo e tentativa de encontrar uma solução,
quem “toma” seu lugar é a máphia, a qual surge no romance com uma significação
nova, tal qual seu nome, passando a controlar as ações do país. Questionada pelo
diretor de serviço sobre sua identidade, a máphia responde ser “um grupo de
pessoas amantes da ordem e da disciplina, gente altamente competente na sua
especialidade, que detesta confusões e cumpre sempre o que promete, gente
honesta” (Id. Ibidem, p. 44, grifos nossos), conhecido pela diferenciação na grafia
no nome “máphia, com ph”, distinguindo-se da tão conhecida máfia por não fazer
negócios com o estado, ser criminosa e desonesta. É esse grupo que acaba
tomando as rédeas, de certa forma, do próprio governo e do transporte ilegal de
86
moribundos para morrer do outro lado da fronteira. Se o governo não encontra uma
forma de livrar-se dos indesejados, dessa vez por todos, inclusive familiares, alguém
o teria de fazer.
É por meio da questão ascendida pela personagem “espírito que pairava
sobre as águas” e direcionada ao aprendiz de filósofo a despeito da metamorfose da
morte ou não do bicho-da-seda em borboleta nós, leitores, somos levados a refletir o
quê, de fato, é a morte. O aprendiz afirma aquilo que evidenciaram Simmel, Elias e
Saramago sobre a existência da morte de cada um, lado a lado com a vida desde o
nascimento:
Falávamos da morte, Não da morte, das mortes, perguntei por que razão não estão morrendo os seres humanos, e os outros animais, sim, por que razão a não-morte de uns não é a não-morte de outros, quando a este peixinho vermelho se lhe acabar a vida, e tenho que avisar-te que não tardará muito se não lhe mudares a água, serás tu capaz de reconhecer na morte dele aquela outra morte de que agora pareces estar a salvo, ignorando porquê, Antes, no tempo em que se morria, nas poucas vezes que me encontrei diante de pessoas que haviam falecido, nunca imaginei que a morte delas fosse a mesma de que eu um dia viria a morrer, Porque cada um de vós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe, E os animais, e os vegetais, suponho que com eles se passará o mesmo, Cada qual com a sua morte, Assim é, Então as mortes são muitas, tantas como os seres vivos que existiram, existem e existirão (SARAMAGO, 2005, p. 68).
A vida, tal como o espírito que paira sobre as águas discorreu e tal qual
Simmel afirma, está intrinsecamente ligada à morte, a atrai “enquanto contrário,
enquanto o "Outro" em que se transforma a coisa e sem o qual essa coisa não
possuiria absolutamente o seu sentido e a sua forma específicos” (SIMMEL, 1998, p.
180), portanto, ambas existem em seus paradoxos, coexistindo no mesmo degrau
do ser. Nos conteúdos particulares da vida surge a morte. Neles, conforme Simmel,
é que o eu se constrói objetiva e subjetivamente e quanto mais ele vive, mais se
destaca, mais quer se separar desses conteúdos particulares liberados pela
submersão da morte à vida, sem que o eu deixe de existir e criando a ideia de
imortalidade.
Assim, refletir sobre a morte que não ceifava apenas os seres humanos, mas
continuava em todas as demais espécies e escalas em seu “padrão de
normalidade”, e os estudos dos economistas e filósofos a comprovar por a + b que a
87
falta da morte não era nada boa, levaram os familiares a desprezar ainda mais a
imortalidade de seus desmortos, embora ainda uma centelha de dignidade pairasse
em suas mentes, com respeito aos velhos e doentes.
É o intertexto e a citação indireta da fábula da tigela de madeira, trazida pelo
autor-narrador, que fará modificar a atitude dos cidadãos, como um conselho ou
uma chamada de atenção para as realidades e acontecimentos da vida. Enquanto
um pai cuida de um filho na infância, na velhice esse mesmo pai, agora com atitudes
infantis, deverá ser cuidado pelo filho.
Quando o regime monarquista é posto em dúvida pelos cidadãos que não
pensam em pagar os altíssimos custos reais e com a possibilidade de um golpe de
estado, é que o primeiro-ministro recebe um envelope violeta que viria, a saber, da
própria morte anunciando o retorno das mortes e o prazo de sete dias para as
pessoas acertarem suas pendências na terra, antes de serem atingidas pela tesoura
da parca. A partir daí o enfoque narrativo sai do problema da falta da morte e se
direciona para a morte anunciada, sugerindo que não importa os acontecimentos, a
essência humana é sempre achar defeitos nos acontecimentos e não contentar-se
com nada.
Nesse segundo momento do romance, com o surgimento da morte como
personagem e todo o desenrolar de suas ações, reflexões e pensamentos é que
percebemos a reconstrução de sua identidade.
3.2 A morte em evidência: uma personagem
A autora e signatária da carta, sentada, envolta na melancólica mortalha que é seu uniforme histórico, com o capuz pela cabeça, medita no sucedido enquanto os ossos dos seus dedos, ou os seus dedos de ossos, tamborilam sobre o tampo da mesa.
José Saramago
Naquilo que chamamos de segunda parte da narrativa, o enfoque sai da
morte mais geral e se concentra na morte enquanto personagem, que agora passa a
88
avisar os moribundos, com antecedência de uma semana, sobre sua própria morte.
A ferramenta utilizada é uma carta violeta e o objetivo desta é que os seres
humanos despeçam-se de seus familiares e resolvam suas possíveis pendências na
Terra.
[...] senhor director-geral da televisão nacional, estimado senhor, para os efeitos que as pessoas interessadas tiverem por convenientes venho informar de que a partir da meia-noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia [...], porém, um ponto há em que sinto ser minha obrigação dar a mão à palmatória, o qual tem que ver com o injusto e cruel procedimento que vinha seguindo, que era tirar a vida às pessoas à falsa fé, sem aviso prévio, sem dizer água-vai [...] a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá um prazo de uma semana para pôr em ordem o que ainda lhe resta de vida, fazer testamento e dizer adeus à família, pedindo perdão pelo mal feito ou fazendo as pazes com o primo com quem desde há vinte anos estava de relações cortadas, dito isto, senhor director-geral da televisão nacional, só me resta pedir-lhe que faça chegar hoje mesmo a todos os lares do país esta minha mensagem autógrafa, que assino com o nome com que geralmente se me conhece, morte (SARAMAGO, 2005, p. 96-8).
A morte desejada para o retorno da “normalidade” volta a ser temerária, mas
neste caso, não temos mais a visão geral da população, e sim a história específica
da própria morte, a qual adquire a chance de mostrar sua versão da história.
Percebemos que a ideia inicial dela era atender aos desejos humanos de modo que
estes pudessem desfrutar do que queriam e descobrir com isso, que a ruim de toda
a história conhecida não era a morte, mas as consequências de uma vida sem a
existência da própria morte, ambas necessárias e complementares. A morte,
conforme o excerto demonstra, mostra-se piedosa e preocupada com as pessoas,
de certo modo solidária, pois dá a elas a chance da despedida, do arrependimento,
do perdão.
A relação se estreita e a visão global da morte começa a se modificar a partir
desse ponto. Notamos uma preocupação da morte em ser compreendida, em querer
mudar a imagem que os seres humanos dela possuem. Somadas, sua voz e a voz
do narrador, se mesclam na narrativa, em espaços estratégicos. Além de trazer
informações estatísticas e lógicas, procurando compor uma veracidade no entremeio
da ficção, a voz do autor-narrador contribui para a modificação da ideia de morte no
desenrolar do romance.
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Durante sete meses, que tantos foram os que a trégua unilateral da morte havia durado, tinham-se ido acumulando em uma nunca vista lista de espera mais de sessenta mil moribundos, exactamente sessenta e dois mil quinhentos e oitenta, postos de uma vez em paz por obra de um instante único, de um átimo de tempo carregado de uma potência mortífera que só encontraria comparação em certas repreensivas acções humanas. A propósito, não resistiremos a recordar que a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem (SARAMAGO, 2005, p.104, grifos nossos).
A reflexão trazida pelo autor-narrador complementa a ideia de modificação da
identidade dessa morte assustadora, levantando algumas questões: “A quem
deveríamos temer: a morte ou o ser humano?”, “Quem sempre matou mais, a morte
ou o ser humano?”. Quem seria o verdadeiro monstro da história? Na comparação
entre morte e natureza humana, o assustador recai para o homem, pois o autor faz
uma clara distinção, a partir de então, entre o morrer naturalmente e o morrer por
meio provocado.
É importante ressaltar ainda, que a titularidade da carta violeta se dá em letra
minúscula: morte, levando o leitor a conjeturar sobre qual morte o romance trata.
Como aponta Candau (2011, p. 18), “a memória é a identidade em ação”, talvez por
isso, quando na narrativa fala-se em morte, vem-nos à cabeça a morte construída
historicamente, aquela morte aterradora. Como essa, quem sabe, seja a única
compreensão de morte conhecida pelo leitor, a morte trazida com letra minúscula
vem quebrar esse padrão identitário, construindo outra identidade para esta morte, a
morte com letra minúscula, ressaltada por sua proprietária. Aqui a diferenciação da
Morte com letra maiúscula sugere a relação dessa como um mistério, enquanto a
morte diz respeito a um fato:
Na tarde deste mesmo dia, como já havíamos antecipado, chegou à redacção do jornal uma carta da morte exigindo, nos termos mais enérgicos, a imediata rectificação do seu nome, senhor director, escrevia, eu não sou a Morte, sou simplesmente morte, a Morte é uma cousa que aos senhores nem por sombras lhes pode passar pela cabeça, o que seja, vossemecês, os seres humanos, só conhecem, tome nota o gramático de que eu também saberia pôr vós, os seres humanos, só conheceis esta pequena morte quotidiana que eu sou, esta que até mesmo nos piores desastres é incapaz de impedir que a vida continue, um dia virão a saber o que é a Morte com letra grande, nesse momento, se ela, improvavelmente, vos desse tempo para isso, perceberíeis a diferença real que há entre o relativo e o absoluto (SARAMAGO, 2005, p. 109, grifos nossos).
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A diferenciação proposta pela própria morte, já a identifica como um ser outro,
ressaltando o nome próprio, embora com minúscula, como indicador da alteridade
em relação à outra morte. Assim, essa diferença entre nome com minúscula e
maiúscula, morte e Morte, ratifica a intenção da personagem saramaguianas em ser
diferente dessa outra, mais aterrorizante e ameaçadora do que si própria15.
Partindo das considerações de Derrida sobre a letra inicial maiúscula do
nome próprio da "Biblioteca de Manhattan”, Gomes chega à conclusão que
Em Saramago, ao avesso, consta a assinatura da "m"orte, nome que devia ser propriamente próprio, assim automaticamente escrito em iniciais em maiúsculas. Porém, como nome próprio em minúscula, estilisticamente se potencializa a imagem de uma singularização e, também, uma desmonumentalização, assim compreendamos, da antiga e absoluta "Morte" que, sem respeitar a ninguém, tanto exigia respeito. Agora, assustadoramente a assinatura da "m"orte, nas cartas que a comunicam com os humanos, condiz com seu aspecto duvidoso, até humilde, e singular. Caso de um nome próprio que, de algum modo, se põe como impróprio, e não de um nome próprio que se torna nome comum. Caso de um nome próprio impróprio, nome que se auto-inocenta do maiúsculo, do monumental (GOMES, 2007, p. 190).
Em suma, a morte saramaguiana representa uma morte que se constrói e
identifica na diferença com a outra Morte, aquela assustadora e assassina que não
se importa com nada nem ninguém. A morte geral, descrita nas páginas primeiras da
narrativa, a qual todos ficavam com medo e sequer pronunciavam é uma morte
outra. Por meio do oposto, Saramago vai moldando uma nova configuração de
morte, partida da pressuposição do m minúsculo.
Entretanto, não podemos esquecer que essa minusculização dos nomes
próprios é comum a muitas das personagens saramaguianas, sugerindo que ao
mesmo tempo em que o escritor português busca aproximar sentidos, fazer
referências a seres reais por meio da construção histórica evocada pela memória
coletiva, os afasta quando os identifica com letras minúsculas. O nome próprio,
então, como ressalta Gomes (2007), coloca-se como impróprio e não como comum,
ele se inocenta e difere da Morte entidade, monumento, conhecida por todos.
15 As considerações definidas nesse trecho da dissertação fazem parte de um estudo anterior desenvolvido sobre a mutação na identidade da morte, personagem de Saramago e corresponde à base inicial e complementar desta dissertação. O artigo foi publicado na Revista Anuário de Literatura. Florianópolis, v. 23, n. 1, 2018.
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Mais uma vez esta morte em questão se coloca a serviço dos humanos,
atendendo mais um de seus desejos: a carta violeta às pessoas que têm seu destino
já definido fornece uma possibilidade de “acerto de contas” com os familiares e
amigos. A fala disseminada torrencialmente quando postos a frente de uma morte
súbita, não esperada e tampouco imaginada não teria mais desculpas para circular:
“Coitado! Nem teve tempo de se despedir”; “A morte pegou-lhe de surpresa, tanto
que não resolveu suas pendências” e “Não pôde nem pensar no futuro das crianças,
pois roubaram-lhe a vida”. Todos passam a ter, assim, uma segunda chance com a
morte:
O homem está ali parado, no meio do passeio, com a sua estupenda saúde, a sua sólida cabeça, tão sólida que nem mesmo agora lhe dói apesar do terrível choque, de repente o mundo deixou de lhe pertencer ou ele de pertencer ao mundo, passaram a estar emprestados um ao outro por oito dias, não mais que oito dias, di-lo esta carta de cor violeta que resignadamente acaba de abrir, os olhos nublados de lágrimas mal conseguem decifrar o que nela está escrito, Caro senhor, lamento comunicar-lhe que a sua vida terminará no prazo irrevogável e improrrogável de uma semana, aproveite o melhor que puder o tempo que lhe resta, sua atenta servidora, morte [...] duvida o homem se deverá voltar para casa e desabafar com a família a irremediável pena, ou se, pelo contrário, terá de engolir as lágrimas e prosseguir o seu caminho, ir aonde o trabalho o espera, cumprir todos os dias que lhe restam, então poderá perguntar Morte onde esteve a tua vitória, sabendo no entanto que não receberá resposta, porque a morte nunca responde e não é porque não queira, é só porque não sabe o que há de dizer diante da maior dor humana. (SARAMAGO, 2005, p. 122).
As justificativas para as ações da morte são inseridas na narrativa pela voz do
autor-narrador, com livre acesso aos pensamentos e sentimentos dela, em pontos
específicos do romance. A morte não é vitoriosa por ceifar vidas e não responde aos
questionamentos humanos porque não sabe o que dizer em um momento de dor. A
morte sente, mas não sabe como agir perante da dor do homem. Ela mata, mas isso
não significa que seja prazeroso: “Poderia tratar-se de uma sádica manifestação de
crueldade, como tantas que vemos todos os dias, mas a morte não tem qualquer
necessidade de ser cruel, a ela, tirar a vida às pessoas basta-lhe e sobeja-lhe”
(SARAMAGO, 2005, p.123).
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Essas justificativas se intensificam quando uma das cartas violetas
anunciando o destino final de sete dias para a pessoa retorna às mãos da morte. Ela
própria passa a se questionar sobre seu ofício e suas atitudes:
[...] as cartas só podem ir aonde as levam, não têm pernas nem asas, e, tanto quanto se sabe, não foram dotadas de iniciativa própria, tivessem-na elas e apostamos que se recusariam a levar as notícias terríveis de que tantas vezes têm de ser portadoras. Como esta minha, admitiu a morte com imparcialidade, informar alguém de que vai morrer numa data precisa é a pior das notícias, é como estar no corredor da morte há uma quantidade de anos e de repente vem o carcereiro e diz, Aqui tens a carta, prepara-te (SARAMAGO, 2005, p. 133).
Através da comparação da outra morte, com as ações dessa, o autor
descontrói a morte entidade, mesmo que talvez não fosse sua intenção, para
construir em seu lugar, passo a passo, folha a folha do romance, uma outra morte:
que sonha, chora, sorri, pensa e relembra sua antiga vida, uma morte que sente.
É com a carta violeta pertencente a um violoncelista que deveria estar morto
aos quarenta e nove anos e já completou seus cinquenta, retornada às origens, às
mãos da soberana morte e no desenrolar as atividades com o músico, que a história
da morte é posta a conhecimento para o leitor.
A personagem conhecida e acreditada como ser invisível, lado contrário da
face de deus16, é demonstrada como a figura caricata criada e construída
historicamente em nossas memórias, a morte esquelética, envolta em sua mortalha
e portadora de uma foice:
Em geral crê-se que a morte, sendo, como gostam de afirmar alguns, a cara de uma moeda de que deus, no outro lado, é a cruz, será, como ele, por sua própria natureza, invisível. Não é bem assim. Somos testemunhas fidedignas de que a morte é um esqueleto embrulhado num lençol, mora numa sala fria em companhia de uma velha e ferrugenta gadanha que não responde a perguntas, rodeada de paredes caiadas ao longo das quais se arrumam, entre teias de aranha, umas quantas dúzias de ficheiros com grandes gavetões recheados de verbetes (SARAMAGO, 2005, p. 142).
O que o autor-narrador vai sugerir durante o desenrolar da narrativa é uma
morte que não ceifa a vida das pessoas por livre e espontânea vontade, mas por
16 Todos os nomes, em Saramago, são escritos com inicial minúscula e assim os utilizaremos para nos referir às personagens.
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atribuição, ou seja, porque alguém lhe designou o oficio e nunca lhe passou pela
cabeça recusar. Simplesmente lhe deram os regulamentos e ela precisou obedecer,
motivo pelo qual ela fica perplexa com o retorno da carta. Se desde o início o
violoncelista estava predestinado a morrer, por outro ser, talvez deus, como exposto
na narrativa, por que então este teimava em morrer? E se no livro da vida ou da
morte estivessem morte e violoncelista predestinados a terem suas realidades
modificadas?
É mais do que compreensível a perplexidade da morte. Tinham-na posto neste mundo há tanto tempo que já não consegue recordar-se de quem foi que recebeu as instruções indispensáveis ao regular desempenho da operação de que a incumbiam. Puseram-lhe o regulamento nas mãos, apontaram-lhe a palavra matarás como único farol das suas actividades futuras e, sem que provavelmente se tivessem apercebido da macabra ironia, disseram-lhe que fosse à sua vida (SARAMAGO, 2005, p. 158-159).
Uma tarefa inventada pela própria morte para modernização dos seus
serviços e modificação das relações com o ser humano, para conhecimento de sua
verdadeira “face” ou identidade, quebrando tabus e a ideia de morte ameaçadora
reafirmada pelas personagens na visão da morte geral, no início do romance, torna-
se a origem de todos os seus problemas e o estopim para a mudança de seu futuro
e da compreensão humana sobre ela.
A humanização de seu comportamento, por meio do enredo como um todo,
da construção do discurso e das diversas vozes do romance, principalmente a voz
do autor-narrador, faz sua identidade entrar em conflito. O início dessa
transformação e conflito é colocado em evidência no romance, no momento em que
a morte, assumindo a forma de uma espécie de sombra para ir até a casa do músico
e conhecer quem era o humano que não morria e o que havia de especial nele, após
a observação do caderno com as partituras da suíte 06, opus 1012, em D maior, de
Sebastian Bach. A morte deixa-se cair, tremendo os ombros como se chorasse
compulsivamente, adquirindo características humanas, da mulher que um dia foi,
recompondo-se em seguida para preencher o quarto do homem, como um sopro:
Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos se escondia, e uns ombros que tremiam não
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se sabe porquê, chorai não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua. Assim como estava, nem visível, nem invisível, nem esqueleto, nem mulher, levantou-se do chão como um sopro e entrou no quarto (SARAMAGO, 2005, p.150).
Essa caída de joelhos da morte sugere que a morte tenha sido vencida em
toda a sua grandiosidade e onipotência, pela música contida no caderno do
violoncelista. O autor-narrador confirma essa hipótese quando retorna ao momento
do excerto acima e explica, mediante comparação à história de Aquiles, que assim
como foi revelado que este homem bruto possuía sentimentos, também isso
acontecia com a figura da morte. O caderno de música destaca e ressalta a vida que
esta morte não teve e jamais o poderia ter:
[...] ao esqueleto da morte nos referimos, há sempre a possibilidade de que um dia venha a insinuar-se na sua medonha carcaça, assim como quem não quer a cousa, um suave acorde de violoncelo, um ingénuo trilo de piano, ou apenas que a visão de um caderno de música aberto sobre uma cadeira te faça lembrar aquilo em que te recusas a pensar que não havias vivido e que, faças o que fizeres, não poderás viver nunca. Salvo se (SARAMAGO, 2005, p. 153, grifos nossos).
O salvo se deixado intencionalmente ao fim da frase, sem continuação, para
que o leitor inclua suas considerações e pense o que esse termo estaria querendo
expressar largado ali, ignorado de propósito, deixa implícita a ideia de que a morte
tem uma saída e esta já sabe, de certa forma, qual é.
O autor-narrador utiliza as antíteses, pequena/grande, como uma forma de
mostrar a onipotência da morte enquanto ser capaz de finalizar a vida do homem,
descrevendo-a como grande e giganta, e reafirmando sua fragilidade, sua pequenez,
quando se deixa levar pelos sentimentos mesmos aos dos humanos, quando sente
o afago do cão em seu regaço e quando deixa que a música penetre em seu interior:
[...] agora via-lo acordado e de pé [...] mas não podia ser, foi só um engano dos olhos, uma distorção da perspectiva, está aí a lógica dos factos para nos dizer que a maior és tu, morte, maior que tudo, maior que todos nós. Ou talvez nem sempre o sejas, talvez as cousas que sucedem no mundo se expliquem pela ocasião [...] sim, a ocasião, porque tu já eras outra vez uma pequena morte quando regressaste ao quarto e te foste sentar no sofá, e mais pequena ainda te fizeste quando o cão se levantou do tapete e subiu para o teu regaço que parecia de menina, e então tiveste um pensamento
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dos mais bonitos, pensaste que não era justo que a morte, não tu, a outra, viesse um dia apagar o brasido suave daquele macio calor animal, assim o pensaste, quem diria, tu que estás tão habituada aos frios árctico e antárctico que fazem na sala em que te encontras neste momento e aonde a voz do teu ominoso dever te chamou (SARAMAGO, 2005, p. 153-4).
A refuta para o medo da morte vem na explicação do autor-narrador sobre a
verdade da própria morte: que ela está em todo o lugar, a todo o momento e sempre
estará com as pessoas, não importa onde estejam:
A morte, neste preciso momento, não faz nada mais do que aquilo que sempre fez, isto é, empregando uma expressão corrente, anda por aí, embora, a falar verdade, fosse mais exacto dizer que a morte está, não anda. Ao mesmo tempo, e em toda a parte. Não necessita de correr atrás das pessoas para as apanhar, sempre estará onde elas estiverem ( SARAMAGO, 2005, p. 164).
Justamente pelo fato de a morte estar em tudo, acompanhando-nos desde o
nascimento é porque não devemos temê-la, como processo e ciclo natural da vida
humana. A morte não é o problema, como afirma Elias (2001), o problema são os
sentimentos que esta faz aflorar nos espíritos humanos quando alguém morre, já
que a presença daquele ente não existe mais:
A morte não é terrível. Passa-se ao sono e o mundo desaparece – se tudo correr bem. Terrível pode ser a dor dos moribundos, terrível também a perda sofrida pelos vivos quando morre uma pessoa amada [...] A morte não tem segredos. Não abre portas. É o fim de uma pessoa. O que sobrevive é o que ela ou ele deram às outras pessoas, o que permanece nas memórias alheias (ELIAS, 2001, p. 76).
Saramago parece trazer essa mesma concepção em seu romance,
demonstrando que a morte é algo natural, presente o tempo todo em nossas vidas,
esperando o momento certo de ceifar-nos a existência, não porque assim o tenha
decidido, simplesmente porque assim foi escrito e ela não pode mudar isso.
A morte, após seus sentimentalismos humanos, muda a forma de ver o
músico. Isso é notado pelo discurso do autor-narrador e pela forma de a própria
personagem olhar para o músico. O homem que era só homem passa a ser “o seu
homem” (SARAMAGO, 2005, p. 165, grifos nossos); o violoncelista passa a ser seu.
A utilização do pronome possessivo aqui sugere uma aproximação e posse daquele
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ser humano, ambiguamente, como uma relação homem/mulher e como uma relação
morte possuidora da vida humana.
A morte está orgulhosa do bem que o seu violoncelista tocou. Como se se tratasse de uma pessoa da família, a mãe, a irmã, uma noiva, esposa não, porque este homem nunca se casou [...] Durante os três dias seguintes [...] a morte foi, mais do que a sombra, o próprio ar que o músico respirava (SARAMAGO, 2005, p. 167, grifos nossos).
Por meio do aprofundamento nos pensamentos da personagem, o autor-
narrador descreve a morte saramaguiana, a qual, ao mesmo, não sugere apenas a
representação da morte livresca, mas também a morte geral, essa a que o ser
humano conhece quando perde alguém. Contudo essa descrição já caminha para o
lado da construção da nova identidade da morte, visto que a personagem, tal qual a
morte real não faz distinções de pessoas, pois já nos conhece do modo como somos
compostos: caveira e esqueleto:
A morte olha o violoncelista. Por princípio, não distingue entre gente feia e gente bonita, se calhar porque, não conhecendo de si mesma senão a caveira que é, tem a irresistível tendência de fazer aparecer a nossa desenhada por baixo da cara que nos serve de mostruário. No fundo, no fundo, manda a verdade que se diga, aos olhos da morte todos somos da mesma maneira feios (SARAMAGO, 2005, p.168, grifos nossos).
A morte nos identifica sem roupagens, sem máscaras, talvez por esse motivo
a ela não importe quem é ceifado por sua foice, já que apenas executa o serviço,
pois os nomes já lhe vêm escritos, corroborando toda a construção de Saramago
sobre ela. Ainda, o adjetivo utilizado “feios”, relacionado a primeira pessoa no plural
do discurso, inclui o leitor na narrativa, sugerindo que a morte conhece a verdadeira
essência do ser humano.
Há também uma distinção clara durante todo o romance da morte humana e
da morte dos animais. A morte animal é retrata como mais “simples”, visto que os
animais não são afetados por causas comuns ao contrário do ser humano que,
sendo racional e presunçoso, se considera a espécie mais forte e inteligente do
universo. Mesmo conhecendo tudo isso, a morte da narrativa fica pensativa ao ver
uma imagem que o violoncelista observa em seu livro, a figura de uma borboleta:
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Conforme se pode ver na imagem que vem no livro, a caveira é uma borboleta, e o seu nome latino é acherontia atropos. É nocturna, ostenta na parte dorsal do tórax um desenho semelhante a uma caveira humana, alcança doze centímetros de envergadura e é de coloração escura, com as asas posteriores amarelas e negras. E chamam-lhe átropos, isto é, morte. O músico não sabe, e não poderia imaginá-lo nunca, que a morte olha, fascinada, por cima do seu ombro, a fotografia a cores da borboleta. Fascinada e também confundida [...] O que custa mais a perceber, o que está a confundir esta morte que continua a olhar por cima do ombro do violoncelista é que uma caveira humana, desenhada com extraordinária precisão, tenha aparecido, não se sabe em que época da criação, no lombo peludo de uma borboleta (SARAMAGO, 2005, p. 172-3).
A morte se pergunta como uma caveira humana teria sido sobrescrita no
dorso de uma borboleta, quando a morte de ambos os seres é diferente. Essa
borboleta mencionada na narrativa não é uma mera criação, ficção.
Imagem 3 – Acherontia atropus
Fonte: http://www.borboletas.info/borboleta-caveira/
A borboleta existe em nossa realidade, compõe-se exatamente das cores
descritas na narrativa e apresenta uma caveira branca em seu dorso um pouco
amarelado. A parte negra da borboleta, se bem observada, assemelha-se muito a
um capuz negro, como se algo estivesse envolvendo a parte amarela de seu corpo,
que dá segmento à caveira. A impressão visual é de que um esqueleto está sendo
envolvido por algo obscuro, negro, como se a morte estivesse presente na vida de
um inseto, representando também a morte de um ser humano.
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Agora está triste porque compara o que haveria sido utilizar as borboletas da caveira como mensageiras de morte em lugar daquelas estúpidas cartas de cor violeta que ao princípio lhe tinham parecido a mais genial das ideias. A uma borboleta destas nunca lhe ocorreria a ideia de voltar para trás, leva marcada a sua obrigação nas costas, foi para isso que nasceu. Além disso, o efeito espectacular seria totalmente diferente, em lugar de um vulgar carteiro que nos vem entregar uma carta, veríamos doze centímetros de borboleta adejando sobre as nossas cabeças, o anjo da escuridão exibindo as suas asas negras e amarelas, e de repente, depois de rasar o chão e traçar o círculo de onde já não sairemos, ascender verticalmente diante de nós e colocar a sua caveira diante da nossa (SARAMAGO, 2005, p. 174).
A morte reflete que, talvez, a melhor saída teria sido escolher uma borboleta
destas que já possui em suas costas a obrigação marcada para avisar aos humanos
de sua morte, já que uma borboleta nunca voltaria para trás como uma carta violeta.
Contudo surge-lhe uma ideia para resolver a questão do seu músico que não morre:
transformar-se em mulher, carne e osso, portanto humana, e entregar-lhe a carta
pessoalmente. Assim não haveria modos de esta voltar para trás.
3.3 A persona morte
Meia hora teria passado num relógio quando a porta se abriu e uma mulher apareceu no limiar.
José Saramago
A morte teria uma semana como mulher para resolver as pendências com o
violoncelista. Contudo, essa transformação não sugere apenas que a morte queira
completar seu ofício, mas que tenha chances de algo mais, chances de
experimentar como é ser humana, de sentir e viver como um homem,
complementando as transformações de sua persona, em construção desde o início
da narrativa. A morte é, então, uma linda mulher:
Meia hora teria passado num relógio quando a porta se abriu e uma mulher apareceu no limiar. A gadanha tinha ouvido dizer que isto podia acontecer, transformar-se a morte em um ser humano, de preferência mulher por essa cousa dos géneros, mas pensava que
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se tratava de uma historieta, de um mito, de uma lenda como tantas e tantas outras [...]Estás muito bonita, comentou a gadanha, e era verdade, a morte estava muito bonita e era jovem, teria trinta e seis ou trinta e sete anos Como haviam calculado os antropólogos, Falaste, finalmente, exclamou a morte, Pareceu-me haver um bom motivo, não é todos os dias que se vê a morte transformada num exemplar da espécie de quem é inimiga (SARAMAGO, 2005, p. 180, grifos nossos).
A gadanha também suspeita da transformação da morte e ironiza uma
conversa com ela. Quando questionada pela morte se está bonita e irresistível, a
gadanha afirma que a resposta depende de qual tipo de homem ela quer seduzir.
Apesar da sua absoluta falta de experiência do mundo exterior, particularmente no capítulo dos sentimentos, apetites e tentações, a gadanha havia acertado em cheio no alvo quando, em certa altura da conversa com a morte, se perguntou sobre o tipo do homem a quem ela pretendia seduzir. Esta era a palavra-chave, seduzir (SARAMAGO, 2005, p. 183).
A morte, além disso, preocupa-se com sua aparência e se, de alguma forma,
esta possui alguma coisa de semelhante com o status e aparência anteriores, de
morte encapuzada com uma gadanha às mãos.
A morte tirou os óculos, E agora que lhe parece, perguntou, Tenho a certeza de nunca a ter visto antes, Talvez porque a pessoa que tem diante de si, esta que sou agora, nunca tivesse precisado de comprar entradas para um concerto, ainda há poucos dias tive a satisfação de assistir a um ensaio da orquestra e ninguém deu pela minha presença, Não compreendo, Lembre-me para que lho explique um dia, Quando, um dia, o dia, aquele que sempre chega, Não me assuste. A morte sorriu o seu lindo sorriso e perguntou, Falando francamente, acha que tenho um aspecto que meta medo a alguém. Que ideia, não foi isso o que quis dizer, Então faça como eu, sorria e pense em cousas agradáveis (SARAMAGO, 2005, p. 186, grifos nossos).
A morte não se satisfaz com algumas de suas ações como ser humano,
acreditando que foi abusada com a senhora da bilheteria, assustando-a. O medo
que as pessoas têm da morte já é tão grande, como afirma o autor-narrador, que
não seria necessário a morte divertir-se à custa dessas pessoas:
Assustara a amável senhora da bilheteira, divertira-se à sua custa, e isso tinha sido um abuso sem perdão. As pessoas já têm suficiente medo da morte para necessitarem que ela lhes apareça com um
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sorriso a dizer, olá, sou eu, que é a versão corrente, por assim dizer familiar, do ominoso latim memento, homo, qui pulvis es et in pulverem reverteris, e logo depois, como se fosse pouco, havia estado a ponto de atirar a uma pessoa simpática que lhe estava fazendo um favor aquela estúpida pergunta com que as classes sociais chamadas superiores têm a descarada sobranceria de provocar as que estão por baixo, Você sabe com quem está a falar. Não, a morte não está contente com o seu procedimento. Tem a certeza de que no estado de esqueleto nunca lhe teria ocorrido portar-se desta maneira, se calhar foi por ter tomado figura humana, estas cousas devem pegar-se, pensou (SARAMAGO, 2005, p. 187-8, grifos nossos).
A morte em persona começa a perceber as mudanças em suas
características pelo simples fato de tornar-se humana. A atitude soberba, a
estupidez, arrogância e prepotência apresentadas em um curto intervalo de tempo
em que a morte está na figura humana e ainda o pensamento de que estas coisas
são transmitidas na espécie, lança uma dura crítica à natureza do ser humano. A
morte se vê em transformação, entretanto, como ainda era morte, não dormia.
Esse estágio inicial da morte em persona não elimina completamente as
características anteriores da morte, pois ela ainda está em transformação, não foi
consolidada como mulher, justamente por isso entram em conflito nesse trecho do
romance as atitudes da morte esqueleto e da morte disfarçada de mulher.
A descrição da morte sozinha em seu camarote assistindo ao concerto é uma
descrição triste, com ares de piedade. Uma mulher, não apenas mulher, mas morte,
com uma beleza que não se define e não se consegue explicar, sozinha, isolada
“rodeada de vazio e ausência por todos os lados, como se habitasse um nada,
parecia ser a expressão da solidão mais absoluta” (SARAMAGO, 2005, p. 190). A
descrição não cabe apenas à morte mulher, mas também à morte esqueleto tratada
durante toda a narrativa, contudo nota-se uma diferença nessa nova personagem. A
partir da comparação com uma águia que tem um instinto assassino, a morte talvez
fosse outro tipo de águia que preferisse ir embora a matar o violoncelista indefeso.
O primeiro encontro do violoncelista com a morte mulher inquieta-o, como se
pressentisse algo estranho. Todas as palavras por ela pronunciadas soam
ambíguas, com duplos sentidos como se quisessem expressar um sentido a mais
que apenas o literal:
Recordava frases que a mulher havia dito, a alusão às ambiguidades que sempre se pagam e descobria que todas as palavras que ela
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pronunciara, se bem que pertinentes no contexto, pareciam levar dentro um outro sentido, algo que não se deixava captar. Algo tantalizante, como a água que se retirou quando a intentávamos beber (SARAMAGO, 2005, p. 195).
A morte, no quarto de hotel não se reconhece, não sabe mais quem é. O
espelho que deveria ser sua imagem e semelhança não reflete sua verdadeira
identidade, quem verdadeiramente a morte é. Quando o autor remete ao espelho,
quer provocar no leitor uma discussão sobre sua própria identidade como um jogo
constante, no qual escolhas que são realizadas em diversas situações para diversos
acontecimentos, coisas que nos sucedem e nos vão atingindo e fazendo com que
refutemos algumas coisas e acrescentemos outras ao nosso eu. Como disse
Bauman,
A “identidade” só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, “um objetivo”; como uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais – mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta (BAUMAN, 2005, p. 21-22).
A morte mulher liga para o violoncelista e ambos têm uma conversa telefônica
que não acaba muito bem. Após isso, a morte não vai ao concerto do músico no
sábado, conforme ingresso comprado e palavra dita ao homem. A narrativa enfoca,
nesse trecho, apenas nas conclusões do violoncelista e não aborda nada sobre a
morte. É notável que algo aconteceu com a morte após não reconhecer-se no
espelho, para não ter ido ao concerto no sábado, quando era certo que no domingo
deveria voltar. O autor-narrador ignora, mas o leitor atento consegue perceber que
fica um espaço vazio para que ele mesmo preencha com suas considerações e
confirme-as no decorrer do romance.
No domingo a morte encontra com o músico em um banco da praça e este
confessa estar apaixonado por ela, mas ela não responde apenas porque as
palavras não podem sair de sua boca, sendo morte. A morte não poderia apaixonar-
se, a mulher, humana, sim:
não me venha para cá com a história de que também o conhece a ele, Não tanto como a si, mas você é uma excepção, Melhor que não
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o fosse, Porquê, Quer que lho diga, quer mesmo que lho diga, perguntou o violoncelista com uma veemência que roçava o desespero. Quero, Porque me apaixonei por uma mulher de quem não sei nada, que anda a divertir-se à minha custa, que irá amanhã sei lá para onde e que não voltarei a ver, É hoje que partirei, não amanhã, Mais essa, E não é verdade que tenha andado a divertir-me à sua custa, Pois se não anda, imita muito bem, Quanto a ter-se apaixonado por mim, não espere que lhe responda, há certas palavras que estão proibidas na minha boca, Mais um mistério, E não será o último, Com esta despedida vão ficar todos resolvidos, outros poderão começar, Por favor, deixe-me, não me atormente mais (SARAMAGO, 2005, p. 195).
As páginas seguintes da narrativa são como uma imersão no vazio, na dor,
como se a vida não existisse e nada mais fizesse sentido para aquele músico
apaixonado por uma mulher que não conhecia e que iria embora, sem poder tocá-la,
sem saber seu nome. O autor-narrador descreve o momento e leva o leitor a pensar
que o violoncelista caminhava para seu fim, mesmo que a morte não tenha lhe
entregado a carta. O leitor pensa que desta vez, sim, a morte não falhará, voltou a
ser fria, desumana.
Contudo, mais do que em toda narrativa, ao fim do romance a morte parece
ter se resolvido e ter descoberto o que queria para sua vida, ou para sua morte. Ela
se dirige ao quarto do violoncelista, pede que este toque a suíte de Bach e, ao final,
beijam-se:
Quando ele terminou, as mãos dela já não estavam frias, as suas ardiam, por isso foi que as mãos se deram às mãos e não se estranharam. Passava muito da uma hora da madrugada quando o violoncelista perguntou, Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu, Não, ficarei contigo, e ofereceu-lhe a boca. Entraram no quarto. Despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu (SARAMAGO, 2005, p.207).
O músico adormece e a morte se levanta. O leitor presume que é para deixar
a carta violeta em algum lugar, para que o violoncelista possa abri-la e ter
conhecimento de seu destino, contudo a morte não o faz. Mesmo ainda sendo morte
e possuindo o poder de queimar a carta com um simples toque ou lançar de olhos, a
morte prefere fazê-lo à moda humana, acendendo um fósforo humilde, tal qual sua
nova existência, queimando a carta que apenas ela poderia destruir:
103
[...] era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu (SARAMAGO, 2005, p. 208).
O sono que chega para a morte que nunca dormia sugere que a sua
transformação em persona tenha sido concluída e ela tenha decidido ficar com o
músico. Como a carta extingue-se, queimada pelas chamas, inferimos que o destino
da morte como esqueleto também tenha terminado. A prova de que o músico não
morre e de que a morte mulher não volta a ser morte esqueleto é, no primeiro caso,
o fato de ninguém morrer no dia seguinte, que seria o dia do músico e o fato de a
mulher sentir sono, coisa que não sucederia à morte esqueleto.
Saramago, assim, conclui a transformação da identidade e do conhecimento
que todos possuímos acerca da morte. A partir de uma construção comum de
ceifadora de vidas, passamos a conhecer a morte que segue seu trabalho sem
questionar, sem sair da rotina até que lhe surge a ideia de não mais matar para
fornecer aos seres humanos um gosto de caos, em uma vida sem mortes,
demonstrando sua soberania e poder. Entretanto, o que era uma boa ideia se
transforma em conflito para a morte que vê um homem desafiar ao seu envio de
cartas violetas, não morrendo quando necessário. Logo a partir do início das cartas
violeta vemos na morte um sentimentalismo, preocupação e pensamentos
característicos do ser humano que se consolidam com sua personificação efetiva
após deita-se com o músico e queimar a carta que ditava a morte do violoncelista.
104
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tanto a produção do texto quanto sua recepção estão vinculadas às
condições de tempo e espaço. O autor que cria um texto situa-se num local e em um
período determinado – Portugal pós Primeira Guerra Mundial, século XX –, sofrendo
influências destes, bem como do seu passado, transmitido pela memória e pela
cultura dos grupos aos quais pertenceu e pertence – tais como a experiência da
escassez financeira e alimentícia de Saramago na infância; a (im)possibilidade de
estudar; a vivência no campo; a militância e aderência às ideias marxistas, a rejeição
ao fascismo e ao militarismo; e suas influências jornalísticas. Portanto, também sua
forma de raciocinar, mesmo que ultrapasse o modo de pensamento de seu tempo,
ainda assim carrega características do momento que os produziu.
Tudo isso, consequentemente, também se traduz no texto como produto da
criatividade e elaboração humana como forma de representação da realidade. Esse
texto, no caso a obra As intermitências da morte, por conseguinte, tem impacto e
recepções diferenciadas de acordo com o tempo e o espaço em que é recebida. Um
leitor brasileiro produzirá sentidos diferentes da morte se comparado, por exemplo, a
um leitor mexicano, para o qual a morte é comemorada com festa e dança. Do
mesmo modo, os sentidos da leitura não serão aos mesmos para um idoso que
vivenciou os períodos de guerra e atrocidades militares, que foi torturado durante a
ditadura, e para um jovem nascido no século XXI.
Entretanto, todos esses potenciais leitores, mesmo atribuindo sobre a obra
suas experiências e atualizando suas vivências, de modo a adquirir um sentido
determinado com a leitura da obra, ainda seguem uma linha de sentido já
previamente configurada e pensada pelo autor quando este escreveu o romance.
Justamente por isso, leitores de obras escritas no passado podem encontrar
diferentes sentidos (mas sempre seguindo uma linha lógica que conduz a
interpretação) de acordo com a forma com que apreendem e pensam a realidade da
qual fazem parte.
A morte delineia-se em uma visão geral, mais abrangente, escancarando a
natureza humana e suas ações “racionais”, afunilando para exemplificar as relações
que o homem tem com a morte, talvez sua própria morte. Todos os leitores,
independente de sua figuração no tempo e espaço perceberão a crítica ácida à
105
essência do ser humano, por vezes corrupta e irracional, por vezes consciente e
emotiva.
Além disso, autor, obra e leitor, prefigurados por um pensamento que carrega
marcas de uma cultura e de uma ideologia, estão em constante interação e
interseção. Nessa relação cíclica, desorganizam e descontroem conceitos até então
tidos como únicos e verdadeiros. A desordem que se faz na narrativa com o
desaparecimento da morte, na interação de cada parte com o todo e do todo com a
parte (as personagens, as instituições, a morte como um todo que chega para cada
um, em seu momento), organiza-se para uma nova ordem, maior, mais completa e
complexa do que aquela existente antes da desordem.
Contudo, o ciclo continua na narrativa e a aparente ordem transforma-se em
desordem novamente com o aviso de sete dias, pela carta violeta, da morte: as
pessoas não resolvem suas pendências e questões. Na interação entre a morte e os
indivíduos para uma nova organização, surge outra desordem (o violoncelista que
não morre), gerando novas interações e novas tentativas de organização para uma
ordem ainda mais complexa (a personificação da morte). Pensamos que o ciclo
chega ao fim, com o fim do romance, mas na realidade, ele ainda continua se
refletirmos que a ordem (morte mulher) gera uma desordem no mundo da morte
(não há alguém que assuma o lugar e, portanto, outro ser deve ser procurado).
Se compararmos todo esse processo do pensar complexo, percebemos que o
pensamento interdisciplinar segue mais ou menos, no mesmo ritmo. São nas
desordens provocadas por pensamentos de disciplinas que divergem, que surge
uma interação entre as disciplinas e as mesmas se organizam para a formação de
uma nova ordem, mais complexa e abrangente: um novo método ou pensamento,
talvez.
Ainda, seguindo nesse viés, a narrativa é a causadora da desordem de um
pensamento que tinha a morte como assustadora, temerária, assassina, horrenda e
maléfica. O decorrer da leitura, a interação da obra, das vozes nela presente por
meio das vozes da personagem e da própria relação dialógica do discurso literário,
com o público, nesse caso o leitor, vai reformulando, reorganizando e atualizando o
pensamento sobre a morte, gerando uma nova forma de entendimento mais
complexa e diferente da primeira, sobre a morte (nova ordem). A desordem é a
responsável pela formulação da ordem e o contrário também é verdadeiro.
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Saramago traz, por meio de um elemento que bagunça padrões e
compreensões fixadas em nossa cultura e vivência, uma reformulação do que é a
morte. Utilizando a alegoria, metáforas e ironia consegue trazer a morte, de um
modo mais simples e mágico, simplesmente e complexamente ficcional, como
alegoria para a vida. A morte assustadora é uma construção que se dilui com a
demonstração da possibilidade de sentimentos, de pensamentos, por aquela que é
julgada uma criatura incapaz de sentir, de amar. Não é porque a morte possui um
significado que nos assuste, que em sua inteireza não possa carregar beleza,
sensualidade e sentimentos bons. Podemos ser seres bons dotados de ruindades, e
seres horríveis com pedacinhos de bondade. É na interação e no conhecimento, na
compreensão que a casca pode se mostrar diferente da essência.
Importante ressaltar também que, embora as ideias de alguns autores sejam
divergentes e criticadas em alguns pontos, e se direcionem para linhas diferentes de
investigação, todos chegam a mesma conclusão implícita ou não sobre a morte. Por
vias antropológicas, históricas, sociológicas, literárias, linguísticas e filosóficas
pessimistas ou não, consideramos que a morte e a acepção que cada sujeito possui
acerca dela é construída no tempo e no espaço ao qual pertencem, segundo
diferentes formas de influência culturais e ideológicas.
A morte, assim, liga-se à identidade individual de cada homem e à identidade
coletiva de cada grupo, e é rejeitada quando, através da consciência do tempo
humano, supõe um apagamento do ser, sem explicações e compreensões da
possibilidade de um além, onde a construção e conhecimento de toda uma vida
possam ser retomados e continuados.
O medo da morte liga-se mais às dores do próprio moribundo ou o sentimento
de dor causado por um indivíduo próximo ao moribundo, do que da morte em si,
embora a ciência e a medicina já tenham se desenvolvido suficientemente para
garantir uma morte “indolor”.
É justamente a morte tratada por seu contrário, a vida, em sua relação com as
doenças adquiridas pela velhice, em contextos sociais e embates ideológicos e
epistemológicos entre diferentes áreas e instâncias, e pelos discursos apresentados
que José Saramago constrói As intermitências da morte, abordando em um primeiro
momento, especificamente, a morte em termos gerais (tal qual o fizemos). Contudo,
ao invés de partir do medo da morte, o escritor português parte do medo que a
possibilidade de viver eternamente causaria.
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Por meio da relação direta do ser humano, no caso o violoncelista, com a
morte, o autor-narrador torna mais claro o conflito de identidades presentes no seio
da própria morte enquanto personagem e como construção histórica. A morte,
assim, tem sua identidade reconstruída na assimilação e diferenciação com a morte
entidade, que todos conhecem. Ela não mata por prazer, pelo contrário, a alcunha
foi dada e ela precisa realizar seu ofício mesmo com sentimentos de compaixão e
dor pelos humanos que perdem um ente querido.
Saramago demonstra que a morte não é assustadora, não é ameaçadora,
algo para ser temido. Ela é parte de um ciclo da natureza, no qual desde o início
todos sabemos que teremos um fim. O escritor português quebra os tabus da morte,
por meio de sua figura alegórica, sensualizando a morte como mulher, com um quê
de atração e desejo, assim como aconteceram em vários períodos anteriores da
História.
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