Nascemos Para Ser Manipulados JL Pio Abreu

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O seu nome ficou muito asso-ciado ao livro Como tornar-se doente mental, que tem tido uma grande receptividade por parte do público. Esta obra foi um ponto de viragem na sua carreira de escritor?Na altura em que o publiquei, houve uma certa polémica com um colega meu, Allen Gomes, que disse que o meu nome tinha ficado ligado a este livro, e a este título. E tinha razão, pois publiquei outras coisas que são, de facto, melhores e mais sérias. Mas que não são lidas. Contudo, não penso que Como tornar-se doente mental seja um livro jocoso ou irónico. O livro é sério. O que lá está escrito é mais ou menos o que penso em termos da corres-pondência entre os mecanis-mos psicopatológicos. Mas, por exemplo, escrevi um outro livro, O tempo aprisionado – ensaios não espiritualistas sobre o espírito humano, que, como tem este título, ninguém o leu. Vou tentar reeditá-lo com um outro nome – A fenomenologia da se-xualidade. Assim vende-se [ri-se].

Tentou então adaptar Como tornar-se doente mental ao mer-cado?Num outro livro meu, Comunicação e Medicina, explico um dado óbvio: vivemos num excesso de infor-

mação, e portanto o problema não é explicar aquilo que nós pensamos e sim chegar ao público. Não há comunicação sem a relação com o auditório. E então precisa-se do polémico, do paradoxal, daquilo que Milan Kundera fala em A Arte do Romance: “o leitor tem de ser apanhado no primeiro parágrafo”. Por isso usei todos esses truques da comunicação no livro.

Crê que “de médico e de louco todos temos um pouco”? No livro, é como se sancionasse essa ideia…Sim, isso é verdade. É interessante ver que, entre as pessoas que gostaram imenso do livro, estão muitos actores e pessoas liga-das à cenografia e dramaturgia. E o que eles disseram é que os seis tipos apresentados no livro [fóbico, paranóico, obsessivo-compulsivo, histriónico, maníaco-depressivo, esquizofrénico] correspondem aos seis tipos de personagens mais importantes em toda a drama-turgia.Mas não era essa a minha intenção. Não escrevi um livro sobre a natureza humana, mas sobre as doenças psiquiátricas. Mas a ideia que as pessoas têm é de que é um livro sobre a natureza humana. Quis que este livro fosse psicoterapêutico: que as pessoas com determinadas patologias,

lendo o livro, pudessem melhorar, ao perceberem o caminho em que estão envolvidas.

Concorda com o psicólogo Óscar Gonçalves quando ele diz, no prefácio a Como tornar-se doente mental, que a doença mental é a mais ficcionável de todas as fenomenologias clínicas?Não é tão ficcionável assim. Podemos encenar uma doença psiquiátrica, mas isso não quer dizer que fiquemos doentes. Agora os que ficam doentes, realmente ficam doentes. Perdem a liberdade até de encenar outras doenças. Ou de serem outras pessoas. Fazem aquilo e só aquilo. Entram naquela personagem e depois há um ponto irreversível, em que não conseguem voltar atrás.

Hoje em dia é mais fácil, ou menos difícil, tornar-se doente mental? Há mais condições para isso hoje do que no passado?Penso que sim. Vivemos numa sociedade muito complexa e difícil de entender. As pessoas perderam muito o sentido de futuro, e estão constantemente a perder. Não conseguem fazer expectativas, as coisas são imprevisí- veis. Ao mesmo tempo, há grupos de marketing concen- trados em manipular e robotizar as pessoas. Portanto a capacida-

de de reflexão e crítica fica anulada. E a tendência de as pessoas passarem várias horas por dia em frente à televisão é verda-deiramente desorganizadora da vida mental. Vivemos num exces-so informativo, sem referências. E há ainda a perda do sentido de comunidade e da partilha. Mas isso é importante na nature-za humana, pois somos animais comunitários. Precisamos de nos compreender uns aos outros e de saber que o outro tem as mesmas informações que nós. A natureza humana está a mudar.

Se tivesse de escolher uma do- ença mental, qual escolheria? Seria fóbico, paranóico, manía- co-depressivo…?[exclama rindo] A mania, a mania! Mas só queria se fosse só maníaco. São pessoas muito engraçadas e interessantes… e felicíssimas! O problema está aí.

O que vê como grandes su- cessos nos seus cerca de 40 anos de actividade profissional?Os grandes sucessos foram todas as pessoas que ajudei. Não são grandes sucessos, são pequenos sucessos, sucessos diários. E não só as que ajudei, mas as que ensinei também.

N a s c e m o s p a r a s e r m a n i p u l a d o s

Psiquiatra, professor, escritor, mas, sobretudo, um espírito inquieto. Aos 62 anos, Pio Abreu pode falar de tudo um pouco: desde a sua experiência precoce na política, na psiquiatria e mesmo na hipnose, até ao envolvimento profissional, há 3 anos, no processo Casa Pia. Reparte o seu tempo entre os Hospitais da Universidade de Coimbra, a Faculdade de Medicina e a Sociedade Portuguesa de Psicodrama. Confessa não gostar do protagonismo, mas revela satisfação por ter recebido, este ano, o prémio italiano “Città delle Rose” pela obra Como tornar-se doente mental. Prestes a lançar um novo livro, Pio Abreu partilha memórias e “estórias” de vida tão diversas como os seus interesses. por Ana Rita Faria

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Alguma vez sentiu que fracassou ou se sentiu frustrado? Sim, os médicos sentem muito isso, sobretudo a sensação de impotência. Volta e meia somos confrontados com a morte. Mas isso também nos ajuda a perceber que não somos omnipotentes. Temos fracassos, mas ajudam-nos a aprender. Como dizia o Dalai Lama: “se algum dia perderes, não percas a lição”.

Mas no livro Como tornar-se doente mental diz que sente que era “tola” a “ilusão” de que “melhorando as pessoas até a sociedade melhoraria”. Por que diz isso?Eu também tive uma vivência política, de intervenção e de cidadania. E percebi, de facto, que é mais fácil mudar o individual a partir do social, do que o social a partir do individual.

Se pensa isso, por que não desenvolve uma maior interven-ção política? Parece quase fugir dos palcos políticos…A intervenção política é difícil porque há regras e instâncias que não controlamos. Este libera- lismo acéfalo e predador é pura e simplesmente o oxigénio que nós respiramos. É difícil inter-vir, e não se pode intervir de um momento para o outro.

Não gosto muito do protagonismo, aliás temo-o. Mas estou dentro do Partido Socialista, sou membro da Margem Esquerda e faço alguns artigos de opinião que às vezes têm algum impacto. Prefiro não me envolver muito nestas coisas e manter o meu espírito crítico, embora às vezes me cale, e neste momento estou calado.

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Só conhecemos uma ínfima par- te do cérebro humano. Partindo desse pressuposto qual é o actual nível de desenvolvimento da psi-quiatria?Neste momento, existem dados para poder fazer uma ideia global do modo como funciona o cérebro humano e do modo como funcio-namos em relação com o cérebro humano. Constantemente saem dados na literatura científica, mas são dados parcelares. Falta fazer uma integração.

Mas então a psiquiatria ainda está longe da maturidade plena?[Pausa] Na prática está, em teoria não tanto.

Nas técnicas utilizadas, é isso que quer dizer?Em técnicas, em tratamentos. Por-que usamos os medicamentos, mas nem sempre os usamos bem. Existe muita pressão das multi-

nacionais para usar o seu medi-camento, sem critérios e sem um conhecimento da fisiologia. E às vezes exageramos e damos demasiados medicamentos às pes-soas.

Mas é possível mudar essa concepção de doença como “tubo de ensaio”?Acho que é possível, desde que consigamos ter aquilo que cada vez existe menos: uma capacidade crítica.

Nesse sentido, a psicologia poderia ser mais indicada do que a psiquiatria no tratamento de algumas doenças? Afinal, os psicólogos não podem receitar medicamentos…Sim, por vezes a psicologia podia ser mais indicada. Mas a grande questão é que quando fazemos quer psicologia, quer psiquiatria, lidamos com o espírito, a alma

das pessoas. As religiões também lidam com isso. E existe muito a tendência para as próprias teorias psicológicas se transformarem numa religião, com crenças arreigadas. Deste modo, as dis- cussões começam a ser mais ideológicas do que científicas. E uma discussão ideológica é paranóica, enquanto numa discussão científica as pessoas ouvem-se umas às outras. Ora, tanto a psiquiatria como a psicologia estão muito impre- gnadas de questões ideológicas e religiosas.

Em que tipo de doenças men- tais a psicologia poderia ser mais indicada?Nas doenças que podem acontecer a todos nós: as fobias, as de- pressões… Em quase todas. Mas os psicólogos deviam trabalhar com os psiquiatras, pois andamos todos à procura

do mesmo. Quando há separação de campos, e quando lutamos uns contra os outros, está tudo estragado. Mas penso que a psiquiatria está muito ligada à medicina. Não a vejo como uma especialidade médica, e sim como um dos três ramos da medicina, juntamente com a cirurgia e a medicina interna. A cirurgia lida com a matéria, a medicina interna lida com a energia, e a psiquiatria lida com a informação. Talvez o gran- de futuro da psiquiatria seja ligar-se mais à medicina e ajudar a medicina a não ver as pes-soas segmentadas, mas sim como uma pessoa completa e global. Portanto, a psiquiatria pode hu-manizar a medicina, que neste momento também corre muito risco de se desumanizar.

A psiquiatria pode humanizar a medicina

Estivemos este tempo todo a falar da sua profissão, e ainda não fiz uma pergunta fundamental: por que é que escolheu a medicina, e nomeadamente a psiquiatria?[Grande suspiro] A minha família queria que eu fosse para engenha-

ria, mas escolhi muito cedo a medi-cina e gostava muito da psiquiatria. Aos 15 anos, já lia muitos livros sobre psiquiatria e decidi que que- ria investigar a natureza humana. Na altura, a psicologia não esta- va organizada e, portanto, para

saber como funcionava a natureza humana, tinha de saber como funcionava o organismo humano. Logo, tinha de ser médico.

Aos seus 15 anos o que é que lia?Aos 15 anos já lia Carl Jung,

Freud… Lia muita coisa tam-bém sobre hipnose e escritores como Sartre.

Alguma vez praticou hipnose?Sim, aos 17 anos.

A memória não é um vídeo que a gente gravou

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Praticou com quem?Com os colegas da escola em Santarém. A certa altura, alguém descobriu que eu sabia umas coisas de hipnose e pediu-me para fazer. Mas, depois, isso tornou-se muito complicado para mim, porque gerou um ambiente social patológico. As pessoas solicitavam-me cons- tantemente para fazer experiên- cias, e cheguei a ficar doente com uma úlcera por causa disso. E depois entrei para Coimbra com essa fama da hipnose. Ainda agora há muita gente que se lembra disso.Na altura, a hipnose era conside- rada esotérica. Mas é um instru-mento importante para qualquer psiquiatra, embora levante vá- rias questões, como a criação da dependência dos outros em relação a nós e a facilidade em manipular as pessoas. De facto, nascemos para ser manipulados.

E hoje ainda recorre a essa téc- nica?Não, não quero, não gosto. Estou sempre a lutar contra isso, porque vejo que as pessoas são muito ma-nipuláveis e dou muito valor à li- berdade individual e interpessoal. Podemos conseguir mudar uma pessoa com a hipnose, mas é muito efémero, porque as pessoas acabam por reagir contra isso. Uma pessoa só muda o seu comportamento quando é ela própria a decidir mudar. Além disso, existe muito a ideia de que a hipnose serve para reavi-var memórias esquecidas. Mas

quando se estuda cientifica-mente essa questão, descobre-se que as memórias são alteradas. As memórias induzidas pela hipnose podem conter elementos que as pessoas vão buscar à sua história, mas têm outros que são sugeridos. A maior parte das vezes, são falsas memórias.

A memória foi também uma questão que se levantou no processo Casa Pia, quando foi solicitado o seu parecer de especialista em relação aos alega-dos abusos sexuais de menores…Na altura, fiz um estudo sobre a memória e actualizei-me sobre os seus processos. Porque, de fac-to, aquilo que se sabe hoje sobre a memória é completamente dife- rente do que se pensava há 20 anos. Na altura da Casa Pia, a prisão preventiva de Paulo Pedroso [em Maio de 2003] tinha sido decidida pelo juiz Rui Teixeira com base em perícias psicológicas, que diziam que as crianças estavam a contar a verdade. Mas as perí- cias psicológicas não tinham pés nem cabeça: estavam erradas e mal feitas. Era uma aldrabice completa. Já na altura, muita gente dentro da área judicial internacional chamava a atenção para a falibilidade da memória humana e para a possibilidade de criar falsas memórias. Estes processos de suspeita de violação, que afinal não são violação, já são conhecidos há muito empo por todo o mundo. Mas agora existe na justiça uma prova que se

sobrepõe às outras: a prova do ADN. A nossa memória é a coisa menos fiável que pode existir. A memória não é um vídeo que a gente gravou.

E que processos de manipulação da memória podem ocorrer?Na altura da Casa Pia foi evi-dente: basta colocar sistemati-camente os arguidos a aparecer ou a falar na televisão. Outro mo- do de induzir memórias é apresen- tar, às alegadas vítimas, line-up’s em fotografias simultânea.Temos, então, o problema das fontes de memória. Para me lembrar dos acontecimentos, visualizo-os. O problema é saber se essas ima- gens dos acontecimentos me en- traram na cabeça devido a factos reais ou a fotografias, se entraram na altura em que suposta-mente ocorreram ou a posteriori. E, depois, houve também uma construção social da verdade, que foi uma aldrabice completa, mas que influenciou toda a gente, inclusive as próprias crianças e víti-mas. Para além disso, há também formas de perguntar que induzem a resposta, sobretudo a crianças, jovens, ou a pessoas cuja memória já está perturbada devido a uma série de experiências, como acon- tecia com os miúdos alegada- mente vítimas de abuso. Vi isso nos testes e depoimentos das ale-gadas vítimas de Paulo Pedroso. Penso que ajudei a desmontar aquela aldrabice toda, montada com a colaboração de alguns psicólogos e até psiquiatras,

muito ingénuos e ignorantes, ou então ligados a escolas do pen- samento psicológico muito ideoló- gicas. Quando o parecer sair cá para fora, se sair, talvez as pessoas possam perceber o fundamento desta opinião.

Qual foi a imagem que ficou da Casa Pia na sociedade portu-guesa? Que consequências?Foi uma coisa horrorosa. Foi de facto um golpe de estado contra o líder do PS na altura [Ferro Rodrigues]. Há muita coisa neste processo que quando se desco- brir… O problema é que este processo envolve muita gente, mas também, e sobretudo, esconde muita gente. Mas foi um golpe de estado, que criou um sentimento de depressão e tristeza. Veja o caso do Carlos Cruz: houve uma sensação de perda de uma das pessoas mais amadas do país. E, sobretudo, houve muita satisfação do Durão Barroso, que usou o processo Casa Pia para dizer aldrabices e vir com a história da “tanga”. Deprimiu ainda mais o país com essa história e depois imolou-se pelo fogo, pois a seguir foram aqueles fogos todos que incendiaram o país! [ri-se] Foi ter-rível! E depois ainda houve aquela violação da privacidade das pessoas, em que tudo saltou para a televisão de uma maneira incrível: os depoi-mentos dos miúdos, às vezes com-pletamente falsos, saltaram para os jornais.

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Continuando com as memórias, mas desta vez as suas… Nasceu em Santarém, depois veio tirar o curso em Coimbra… Por que é que escolheu esta cidade?Coimbra tinha muito aquela mís- tica das Repúblicas… Eu pró-

prio cheguei a viver numa, o Palá- cio da Loucura. E foi dessa República, e sobretudo da dos Pyn- -Guyns, que nasceu a crise de 69.

Na altura esteve bastante envol- vido nesse movimento de contes-

tação. Que principais recordações lhe ficaram desses tempos?As recordações são de grande satis- fação e de grande realização. De- pois da crise de 69, tive de ir de castigo para a tropa, estive na guer- ra colonial na Guiné, onde con-

tinuei a conspirar. Mas foram tempos que valeram a pena. Há quase uma sensação de parti-cipação colectiva de toda uma geração na história. Cada um fez muito e todos fizemos muito. E depois tudo desembocou no 25

Absolutamente um espírito inquieto

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de Abril, que foi a última revo-lução romântica da Europa.

Volvidos todos estes anos, como vê hoje o movimento de contesta-ção que encetou no passado?Uma coisa deliciosa. Tive o privi- légio de sentir que estava no sítio certo, à hora certa, a fazer as coisas certas.

O que pensa do movimento estudantil dos dias de hoje?Dedica-se a coisas muito secun-dárias, não existe uma visão em profundidade das coisas, é mui- to conflituante e acaba por ser muito levado pela televisão. Ficam à margem questões substanciais, como o ensino que não dá qualificações, os cursos que criam estudantes para o desemprego, a universidade que não presta e que se está a borrifar para os alunos. Mas aquilo de que as pes-soas se lembram é da imagem de um miúdo a ser arrastado pela polícia, mostrada pela televisão. É espantoso como todos os estu-dantes continuam agarrados a essa história. E os líderes estudantis propagam essa ideia, falam nisso constantemente, e os estudantes aceitam.

Se hoje fosse estudante, voltaria a lutar, como no passado, pelos objectivos propagados actual- mente?Todos os que fizeram a crise de 69 lutaram contra os dirigentes instituídos na altura, muito lidera- dos pelo partido comunista. Foi um movimento que pretendia ser cada vez mais abrangente: dos estudan-tes para a cidade, e da cidade para o país. E conseguimos fazê-lo graças a uma luta terrível contra essa gente que queria a liderança do movimento. Se hoje fosse estu- dante, continuaria a fazer isso: lu- tar contra os dirigentes de carreira, contra os líderes auto-propostos, contra as pessoas manipuladas por outras instâncias, contra as pessoas que querem ter uma glória, afinal de contas, efémera, à conta de coisas que não são substanciais.

Para si, qual foi a principal con- quista do movimento de contes- tação juvenil de 69?A crise de 69 clarificou o regime. Pensava-se que o Marcelo Caetano, que governava na altura, iria fazer a esperada transição, mas não fez. Em termos de conquistas humanas, a maior em todos estes movimentos da década de 60 foi a emancipação

das mulheres, a sua capacidade de saírem do buraco.

Continua a ser um espírito in-quieto?Absolutamente. E desde logo con- tra o domínio feminino em todas as instâncias, pedagógicas, jorna- lísticas, médicas… [ri-se].Devia existir discriminação posi- tiva na Assembleia da República, nos órgãos de poder, para as mu- lheres. Se bem que as mulheres não vão para lá porque são demasiado espertas, e sabem que ali o poder é muito efémero. [ri-se] Mas tam- bém devia haver discriminação positiva para os homens. O equilí-brio entre os sexos é fundamental em todas as actividades. Vou publi-car agora um livro sobre isso, sobre o problema da identidade. Vou pôr os genes a falar na primeira pes- soa, bem como a cultura.

Para além do novo livro, que outros planos tem para o futuro?Não sei. Ainda não sei se me vou reformar.

Mas se se reformar pretende continuar ligado à psiquiatria?Sim, pretendo continuar ligado à psiquiatria, à escrita, e sobretudo

fazer mais contactos. Estou de facto farto de Coimbra.

Porquê?Porque estou cansado da pequena Coimbrinha, da Coimbra da Uni- versidade, que é uma feira de vai- dades, e de cada Coimbrinha que vive na inveja dos vaidosos. Em Coimbra, transporta-se a his- tória dos estudantes e futricas para todas as instâncias e estas duas per- sonagens tornam-se um problema cultural a vários níveis. A guerra entre os médicos hospitalares e os médicos professores, que não faz sentido nenhum num hospital universitário, mas que existe. Na Câmara Municipal, há guerras para saber quem é mais impor- tante: se o reitor da Universidade, se o presidente da Câmara. Den- tro do próprio partido a que pertenço, já vi altos responsáveis dizerem que ganham eleições con- tra a universidade. Isto não tem sentido nenhum. A Universidade vive de costas voltadas para a cida-de, e a cidade para a Universidade. Se a autarquia não se ligar à Uni- versidade, e se a Universidade não se ligar à Câmara e à própria ini-ciativa privada, está tudo perdido.

A nossa memória é a coisa menos fiável que pode

existir. A memória não é um vídeo que a gente gravou.

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