Nasc Evol Disc Mus Harnoncourt

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MU 460 – HISTÓRIA DA MÚSICA II Texto: Nascimento e evolução do discurso musical In Harnoncourt, Nikolaus. O Discurso dos Sons. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988 p. 164-174 Por volta de 1600, ou seja, mais ou menos na metade da vida de Monteverdi, deu-se na música ocidental uma reviravolta decisiva — como nunca até então se vira e como nunca se tornará a ver. Até aquela época a músico praticamente não passava de poesia posta em música; escreviam-se poemas, motetos ou madrigais, sacros ou profanos, nos quais o clima geral da poesia servia de fundamento à expressão musical. Não se tratava absolutamente de transmitir o texto como palavra declamada ao ouvinte, mas antes a sua mensagem; por conseguinte, era a atmosfera da poesia que inspirava o compositor escrever sua obra. Assim, por exemplo, um poema de amor – as palavras de um enamorado — era composto numa forma madrigalesca a várias vozes e musicado tão abstratamente que a pessoa que falava se tornava uma personagem artificial. Ninguém pensava numa mensagem realista ou num diálogo; por outro lado, o texto também era quase incompreensível, pois as diversas vozes eram escritas em forma de imitação, embora palavras diferentes fossem cantadas simultaneamente Estas composições a várias vozes, sem texto, formavam também o rico repertório da música instrumenta; elas eram simplesmente adaptadas pelos próprios músicos aos seus instrumentos. Esta música vocal e instrumental constituía não só a base de toda a vida musical como também formava todo o repertório existente. Era uma situação acabada, sem outras possibilidades de desenvolvimento à vista e que poderia prolongar-se eternamente. Mas subitamente, como que vinda dos céus, surgiu a idéia de fazer-se da própria palavra, do diálogo, o fundamento da música. Tal música deveria tornar-se dramática,

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Evolução da música.

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MU 460 – HISTÓRIA DA MÚSICA II

Texto: Nascimento e evolução do discurso musical

In Harnoncourt, Nikolaus. O Discurso dos Sons. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988

p. 164-174

Por volta de 1600, ou seja, mais ou menos na metade da vida de Monteverdi,

deu-se na música ocidental uma reviravolta decisiva — como nunca até então se vira e

como nunca se tornará a ver. Até aquela época a músico praticamente não passava de

poesia posta em música; escreviam-se poemas, motetos ou madrigais, sacros ou

profanos, nos quais o clima geral da poesia servia de fundamento à expressão musical.

Não se tratava absolutamente de transmitir o texto como palavra declamada ao ouvinte,

mas antes a sua mensagem; por conseguinte, era a atmosfera da poesia que inspirava o

compositor escrever sua obra. Assim, por exemplo, um poema de amor – as palavras de

um enamorado — era composto numa forma madrigalesca a várias vozes e musicado

tão abstratamente que a pessoa que falava se tornava uma personagem artificial.

Ninguém pensava numa mensagem realista ou num diálogo; por outro lado, o texto

também era quase incompreensível, pois as diversas vozes eram escritas em forma de

imitação, embora palavras diferentes fossem cantadas simultaneamente Estas

composições a várias vozes, sem texto, formavam também o rico repertório da música

instrumenta; elas eram simplesmente adaptadas pelos próprios músicos aos seus

instrumentos. Esta música vocal e instrumental constituía não só a base de toda a vida

musical como também formava todo o repertório existente. Era uma situação acabada,

sem outras possibilidades de desenvolvimento à vista e que poderia prolongar-se

eternamente.

Mas subitamente, como que vinda dos céus, surgiu a idéia de fazer-se da própria

palavra, do diálogo, o fundamento da música. Tal música deveria tornar-se dramática,

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pois um diálogo já é em si dramático; soa conteúdo argumento persuasão,

problematização, negação, conflito. O que contribuiu para o nascimento da idéia, como

já era de se esperar nesta época, foi a Antigüidade A paixão pela Antiguidade levou à

concepção de que o drama grego não era falado, mas cantado. Nos círculos dos

apaixonados pela Antiguidade procurou-se reviver as tragédias gregas com toda a

autenticidade. Os mais conhecidos destes círculos foi a camerata Fiorentina dos Corsi e

Bardi, nos quais Caccini, Peri e Galilei (o pai di astrônomo— atuavam como músicos.

As primeiras óperas de Peri e Caccini, não há como negar, tem estupendos libretti, mas

do ponto de vista puramente musical são medíocres; contudo as idéias, que nelas se

achavam desenvolvidas levaram a um música completamente “nova” — Nuove Musichee

(título da obra didática e polêmica de Caccini) à música barroca, à música eloqüente.

O que encontramos a respeito de Caccini na maioria dos dicionários está

infelizmente bem distante daquilo que ele próprio escreveu. Hoje ele é na maior parte

considerado o mestre do barroco ornamentado; mas olhando-se seus escritos, que são

muito mais interessantes do que aquilo que foi escrito sobre ele, encontra-se uma

descrição dos novos meios de expressão; dentre estes uma esplêndida magnificência

cênica é o que lhe parece mais importante. Coloraturas e ornamentos de todos os tipos

são aconselhados apenas onde reforçam a expressão da palavra, ou então para esconder

os parcos recursos cênicos de um cantor (“Os ornamentos não foram inventados porque

eram indispensáveis para se cantar bem, mas... para agradar aos ouvidos quando não se

pode pôr ardor e brilho numa execução...”). . ‘ O que há de essencialmente novo na idéia

é o seguinte: um texto, quase sempre um diálogo, é musicado a uma voz,

fundamentalmente para seguir com precisão e realismo o ritmo e a melodia da palavra.

Tratava-se unicamente de dar o máximo de compreensão ao texto e interpretá-lo tão

expressivamente quanto possível. A música deveria permanecer em segundo plano, sua

função era a de compor um discreto suporte harmônico. Tudo o que se tinha até então

considerado como propriamente musical era rejeitado como diversão. Somente em

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passagens de expressão essencialmente intensa é que o conteúdo verbal era sublinhado

por uma interpretação musical e harmônica correspondente, muitas vezes

extremamente surpreendente. Nesta nova forma, é claro, quase não há repetição de

palavras, ao contrário do madrigal, onde as palavras e grupos de palavras são quase

sempre repetidos. Num diálogo real repetem-se palavras apenas quando se supõe que o

interlocutor não as compreendeu ou então quando se quer dar a elas, através da re-

petição, um peso especial — e assim era feito na nova música, denominada monodia.

Galileu, colega de Caccini, explica exatamente como o compositor moderno deve

proceder: que ele escute como falam entre si as pessoas de diferentes condições sociais

– em qualquer situação da vida – como se desenvolvem e se articulam as conversas ou

discussões entre pessoas de alto e baixo nível! – e depois, que ele ponha tudo isso em

música. (Era, aliás, exatamente assim que se imaginava naquela época o modo como os

originalmente foram representados os dramas gregos.) Significativamente, este novo

estilo não foi elaborado pelos compositores de formação clássica, mas por diletantes e

cantores.

Idéias deste tipo eram naquele tempo absolutamente novas sem dúvida alguma

chocantes. Para compreender a que ponto tudo isto era novo, precisamos tentar nos

transportar àquele tempo: suponhamos que estivéssemos com 30 anos de idade e

nunca tivéssemos ouvido outra música a não ser os maravilhosos madrigais de

Marenzio, do jovem Monteverdi e dos compositores franco-flamengos, uma complicada

música polifônica e altamente esotérica. E eis que de repente surge alguém dizendo do

que a maneira como as pessoas falam já é a própria música, a verdadeira música. Isto

naturalmente só foi possível na Itália onde a língua soa de fato melodramática; basta

escutar as pessoas numa praça de mercado em alguma cidade italiana para

compreender o que Caccini e Galilei queriam dizer; ou escutar a defesa de um processo

num tribunal - só faltam então alguns acordes no alaúde ou no cravo e a monodia, o

recitativo está pronto. Para os aficionados musicais já mencionados, que foram

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arrancadas de seus sonhos madrigalescos por estas monodias, isto deve ter sido um

choque, muito mais forte do que aquele produzido pela música atonal há 80 anos.

Caccini diz: o contraponto é obra do diabo, ele destrói a inteligibilidade. O

acompanhamento deve ser simples, a ponto de não ser escutado; as dissonâncias só

devem ser utilizadas sobre determinadas palavras, para enfatizar uma expressão verbal.

Tudo o que Caccini diz em seu livro Nuove Musiche a respeito da linguagem da

melodia falada e do acompanhamento é decisivo para o surgimento da ópera, do

recitativo e até mesmo da sonata. Caccini distingue três tipos de canto falado: recitar

cantando, cantar recitando e cantare. O primeiro corresponde ao recitativo habitual e

está, portanto, mais próximo da fala que do canto, sendo assim, muito naturalista. O

cantar recitando, o canto recitado, ou antes, declamado, enfatiza um pouco mais o papel

do canto e de certo modo corresponde ao recitativo accompagnato. O terceiro tipo

corresponde à ária .

Precisamos deixar bem claro que tudo isto era completamente novo, tal como

uma explosão a partir do nada. Na evolução de nossas artes é raro acontecer uma coisa

absolutamente nova que não tenha nascido de algo já existente. (Acho notável que esta

novidade tenha se originado da intenção de reconstituir fielmente algo muito antigo, a

música dos gregos.) Lá estava o que se tornou fundamento da evolução musical dos dois

séculos seguintes, que eu gostaria de chamar música eloqüente.

Mas, a idéia sensacional do canto falado só se tornou realmente interessante para

nós, a músicos e para músicos, depois que caiu nas mãos de um gênio musical.

Monteverdi foi o maior compositor de madrigais de seu tempo, já antes deste

desenvolvimento ele dominava a arte do contraponto em seus mínimos detalhes. Com

sua enorme competência de compositor abordou o domínio primitivo da declamação

musical, nele provocando uma verdadeira revolução, inclusive musical. Naturalmente

Monteverdi não podia aceitar integralmente as teorias e os dogmas do círculo de

Caccini. Como músico autêntico que era jamais poderia dizer: o contraponto é obra

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diabo, ou a música não deve ser interessante para não desviar atenção do texto.

Monteverdi se deixou inspirar pelas novas idéias, mas sem aceitar-lhes os dogmas, pois

estava sempre à procura de novas formas de expressão. Desde a sua primeira tentativa

no campo da ópera, a partir de aproximadamente 1605. Monteverdi começou elaborar

seu vocabulário dramático-musical de forma sistemática. Em 1607 Orfeo, no ano

seguinte Ariana (da qual só restou famoso Lamento) a partir daí, praticamente cada

pequena peça a uma ou duas vozes, cada dueto ou trio que escreveu é uma espécie de

ensaio, uma pequena cena de ópera, uma espécie de mini-ópera. Ele progride assim de

maneira sistemática até chegar às suas grandes óperas. E é o próprio Monteverdi que

nos ensina até que ponto avançava de maneira consciente. Era um homem de grande

cultura, amigo de Tasso e que conhecia os filósofos, tanto os clássicos como aqueles de

seu tempo. Sabia exatamente por que fazia tal coisa: com o maior cuidado, procurava

uma expressão musical para cada sentimento, para cada emoção humana, para cada

palavra, para cada fórmula de linguagem.

Um exemplo célebre desta pesquisa sistemática nos é fornecido pela cena do

Combattimento di Tancredi e Clorinda, composta e 1624. Monteverdi, com o maior

cuidado, escolheu para ela um texto meio do qual pudesse exprimir a violência do

sentimento de cólera. “.. . Entretanto”, diz ele, “como não consegui encontrar na música

dos compositores antigos nenhum exemplo capaz de exprimir o estado de alma

agitado... e como sei que o que mais emociona a nossa alma são os contrastes, objetivo

que a boa música deve também procurar atingir... comecei a pesquisar com todas as mi-

nhas forças a forma de expressão agitada... encontrei na descrição do combate entre

Tancredo e Clorinda os contrastes que me pareceram mais apropriados para screm

traduzidos em música: a guerra, a prece, a morte.”

Mas eu, na qualidade de músico, me pergunto então: seria isso verdade, seria isso

realmente possível? Então a música anterior a 1623 não tinha nenhum meio que fosse

capaz de exprimir a agitação extrema? Será que até aquela ocasião ela ainda não havia

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tido necessidade de tal coisa? Pois, aquilo de que se tem necessidade, naturalmente,

existe. Ora, o que se passava era o seguinte: na arte lírica do madrigal, não existe

nenhuma explosão de cólera, nenhum estado de agitação extrema, nem no sentido

positivo nem no negativo, portanto ela não precisava de um meio de expressão para

traduzir tais estados. Já na arte dramática, este é um recurso absolutamente indispensável.

E assim Monteverdi, abrindo o seu Platão, aí descobriu as notas repetidas: “explorei,

então”, prossegue ele, “os tempi rápidos, aqueles que nascem num agitado clima de

guerra, opinião com que concordam os melhores filósofos.., e encontrei o efeito que

procurava dividindo a semibreve em semicolcheias que se ataca. separadamente, sob

um texto que exprime a cólera”.

Esta possibilidade que Monteverdi descobriu para exprimir o sentimento de

agitação extrema, ele a chamou stile concitato. As notas repetidas passaram, doravante, a

ser empregadas como um meio de expressão a e o concitato se tornou um procedimento

artístico corrente. Até os séculos XVII e XVIII ele continuou sendo usado no sentido

descrito por Monteverdi, tanto o termo como a coisa designada. Encontra-se este gênero

de notas repetidas em Haendel e até mesmo ainda em Mozart. Monteverdi conta que,

inicialmente repugnava aos músicos o fato de tocar 16 vezes a mesma nota num único

compasso. Sentiam-se verdadeiramente ultrajados por se exigir deles uma coisa

musicalmente tão absurda. Além do mais, as notas repetidas, num estilo que se pretenda

rigoroso, são proibidas, Foi preciso que ele lhes explicasse que elas tinham uma

significação extramusical, um sentido dramático, corporal.

Com o concitato, entrou na música algo que ainda não existia: o elemento corporal,

puramente dramático, que nos leva agora abordar um importante aspecto do drama

musical. Não se pode representar uma situação dramática, um diálogo, sem ação. Aqui,

são necessários a mímica, os gestos e o movimento do corpo inteiro. Fala-se com todas

as fibras do corpo. Da mesma forma que a linguagem sonora dramática, descoberta por

Monteverdi, esclarece e realça o conteúdo expressivo da palavra, ei a comporta também

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o movimento corporal. Monteverdi foi, por conseguinte, o primeiro grande dramaturgo

da música a integrar o gesto à composição, com isto prenunciando um elemento

essencial das futuras encenações Para, mim, só existe de fato o drama musical quando

todos estes elementos aqui citados, inclusive o corporal, se acham reunidos.

Há nos textos das óperas e dos madrigais certas palavras de estímulo que

retornam constantemente. Elas estão sempre ligadas a determinadas figuras, sempre as

mesmas De modo que, aos poucos, foi-se formando a partir das teorias de Caccini e seu

grupo, sobretudo a partir das inovações de Monteverdi, um repertório de figuras

musicais Monteverdi conseguiu tal mestria neste campo que ele consegue, por meio de

figuras diversas, dar às mesmas palavras uma expressão diferente, de sorte que a.

mesma palavra varia cada vez, qualquer coisa no seu sentido, de acordo com o contexto.

Os compositores codificaram, assim, em larga medida, a interpretação da linguagem.

Somente em Mozart e muito mais tarde em Verdi é que provavelmente encontramos

algo semelhante. Sobre a base das obras desta primeira geração de compositores de

óperas criou-se, por fim, um imenso vocabulário de figuras de sentido determinado e

que eram familiares a todo ouvinte culto. Foi a partir daí que se pôde chegar ao

corolário, isto é, utilizar-se também este repertório de figuras independentemente, sem

qualquer texto: graças somente a figura musical, o ouvinte fana a associação com a

linguagem. Esta transposição de um vocabulário musical, inicialmente vocal, para a

música instrumental é muito importante para que se possa compreender e interpretar a

música barroca. Ela tem suas raízes na idéia inicial do canto falado o qual foi estilizado

e transformado numa grande arte por Monteverdi.

As relações entre música instrumental e vocal tornam-se bastante compreensíveis

a partir deste fato. Aqui igualmente têm suas raízes os curiosos diálogos da música

“pura”, as sonatas, os concerti dos séculos XVII e XVIII, e até mesmo as sinfonias, já em

plena época clássica. Estas obras foram, com efeito, concebidas a partir da linguagem e

frequentemente se inspiram em programas retóricos, tanto concretos como abstratos.

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O repertório de figuras da monodia e do recitativo nesse meio-tempo se tornou

tão independente, que por volta de 1700 já se via nele um repertório de figuras para a

música instrumental. Este repertório de figuras, doravante instrumentais, Bach voltou a

aplicá-lo ao canto. (Talvez por essa razão muitos cantores achem Bach tão difícil de

cantar, pois ele escreve cm um estilo demasiado “instrumental”.) Quando se examina as

figuras isoladas na música de Bach, facilmente se pode reconhecer a sua origem como

figuras dc linguagem. Trata-se aqui, na verdade, de uma evolução, de uma franquia

destas figuras descobertas na monodia, no canto falado solista. Em Bach, os

componentes retóricos são, contudo, bastante acentuados, e conscientemente

fundamentados nas teorias clássicas da retórica. Bach havia estudado Quintiliano e

construiu suas obras a partir de suas regras — e de uma maneira tão precisa, que se

pode encontrá-las nas suas composições a posteriori. Para tal, ele utilizava — um século

depois de Monteverdi — o elaborado vocabulário do discurso sonoro oriundo da Itália e

transposto à língua alemã, vale dizer, com acentos consideravelmente mais incisivos.

(Os latinos consideravam ainda, nesta época, a sonoridade da língua alemã como dura e

“ladrada”, com acentos exageradamente marcados.) O que particularmente surpreende

em Bach é que ele tenha introduzido e incorporado todo o arsenal do contraponto aos

princípios retóricos.

Na primeira liquidação musical, que provocou a descoberta da monodia, a

música como tal poderia ter sido reduzida a nada caso se tivesse seguido os dogmas dos

“florentinos” e rejeitado o madrigal e o contraponto, coisa, aliás, perfeitamente possível

por volta de 1600. Naturalmente, a coisa não podia ficar por aí e o próprio Monteverdi

não abriu mão de compor madrigais polifônicos, após ter travado conhecimento com o

novo estilo de monodia. Surge então em sua obra uma diversidade estilística pouco

habitual, que se impôs mesmo no seio das composições mais extensas. Nas duas óperas

da fase final, se encontram os três tipos de escrita – recitação cantada, canto recitado e

canto propriamente dito — todos eles nitidamente separados, mas no terceiro tipo de

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escrita, o canto, ele volta algumas vezes a utilizar elementos contrapontísticos da antiga

arte dos madrigais.

Na música de Bach, esta arte do contraponto, batizada de prima pratica por

oposição à monodia dramática moderna, a seconda pratica, voltou a ganhar tanto terreno,

que passaram a ser novamente aceitos a fuga e os estilos imitativos, mesmo na música

vocal profana. Encontra-se, novamente, então, como nos franco-flamengos e nos

italianos anteriores a 1600, peças nas quais os textos são cantados não simultaneamente,

mas sobrepondo-se uns aos outros— naturalmente que cada voz sobre as figuras

adequadas. O vocabulário musical, o drama musical são agora expressos de outra

forma, pois na partitura polifônica um elemento suplementar de expressão — o mundo

complexo do contraponto — é empregado de forma dramática e retórica.

À próxima etapa deste desenvolvimento conduz a Mozart. Ele dispõe certamente,

tal como Monteverdi, de todo o saber técnico acumulado até então, do conhecimento

pleno da arte do contraponto elaborado durante a época barroca. No período que o

separa de Bach os rumos musicais se haviam desviado completamente da complicada

música do barroco tardio, compreensível apenas por alguns iniciados e entendidos, para

se voltarem na direção de uma música nova, “natural”, que devia ser simples, a ponto

de que qualquer um pudesse compreendê-la, mesmo que nunca tivesse escutado música

em toda a sua vida. Estes objetivos, que estão na base da “nova música de sentimento”,

posterior a Bach, foram expressamente recusados por Mozart, que qualificava de

“Papageno” todo ouvinte que se contentava em achar uma coisa bela, sem saber porque.

Ele conferia a esta palavra um sentido extraordinariamente pejorativo e enfatizava que

ele próprio escrevia unicamente para pessoas entendidas. Mozart dava muito valor ao

fato de ser compreendido pelos “verdadeiros conhecedores” e presumia que seus

ouvintes tivessem conhecimentos musicais e boa cultura geral; e como cada vez mais,

justamente, na área da música, as pessoas — mesmo sem a menor formação — se

achavam no direito de dar opiniões, isso volta e meia o levava a ter grandes acessos de

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raiva. Assim, na ópera Idomeneo, por exemplo, seu pai temia que ele se dirigisse somente

aos conhecedores: “. . - Eu te recomendo, no teu trabalho, não pensar somente no

público musical, mas também naquele não musical. . . não esqueças, portanto, o que se

chama popolare, este também tem grandes orelhas (de asno) para serem afagadas”

(dezembro de 1780).

Seja como for, Mozart dispunha de todas as ferramentas musicais do final do

Barroco; no entanto, não podendo tomar a forma, já algo esclerosada, da ópera séria

italiana para o drama musical que tinha em mente compor, foi buscar alguns

ingredientes da ópera francesa, onde o elemento musical sempre esteve subordinado à

linguagem (nesta não havia praticamente ária) e, assim, retorna de modo não

intencional à origem do drama musical. A subordinação ao texto era muito mais

acentuada na ópera francesa do século XVIII do que na italiana, cuja atração principal

residia em imensas árias, de conteúdo estereotipado (a ária de vingança, a ária de ciúme,

e, já quase chegando ao final do espetáculo, a ária do amor ou ária do “tudo está bem de

novo”) e de presença infalível em todas as óperas, embora pudessem substituir-se

mutuamente, coisa, aliás, que se estava sempre fazendo. Na ópera francesa, as formas

antigas ainda sobreviviam: recitativo, anoso e arieta, o que a tornava uma base muito

mais apropriada para qualquer reforma dramática do que a opera seria italiana. A teoria

desta reforma pode ser encontrada mais claramente na obra de Gluck, porém na prática

é Mozart quem concretiza as mudanças no drama musical.

Encontramos em Mozart os mesmos princípios que em Monteverdi. Para ele, o

importante é sempre o drama, o diálogo, a palavra isolada, o conflito e sua resolução e

não uma poesia composta como um todo. Paradoxalmente, isto não se aplica no seu caso

somente à ópera, mas também à música instrumental, que é sempre dramática. Na

geração seguinte, este elemento dramático, eloqüente, aos poucos se perde da música.

As razões para tal — como já o dissemos — têm a ver com a Revolução Francesa e suas

conseqüências culturais que conduziram à situação na qual a música foi posta a serviço

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de idéias sociopolíticas. O ouvinte deixava de ser, doravante, uni interlocutor, para

tornar-se um desfrutador inundado e inebriado de sons.

Em minha opinião, é exatamente aí que se encontram as raízes da nossa total

incapacidade de compreender a música pré-revolucionária. Penso que pouco

compreendemos tanto Mozart como Monteverdi, quando os reduzimos unicamente ao

“belo” — que é o que geralmente acontece. Nós buscamos Mozart pelo prazer, para nos

deixar enfeitiçar pelo belo. Quando se quer descrever “belas” execuções mozartianas. é

comum ouvir-se a expressão “felicidade mozartiana”; é quase uma fórmula

estereotipada. Estudando-se, contudo, mais a fundo, as obras nas quais ela é empregada,

pergunta-se: por que “felicidade mozartiana”? Os contemporâneos descrevem a música

de Mozart como sendo extremamente contrastada, penetrante, perturbadora e

desconcertante; é exatamente neste ponto, por sinal, que a crítica da época a questiona.

Como pode então acontecer que se tenha reduzido esta música apenas à “felicidade”, no

prazer estético? Pouco depois de haver lido um artigo a respeito de uma dessas

execuções de “felicidade mozartiana”, trabalhei com meus alunos uma sonata para

violino de Mozart, escrita sobre uma melodia francesa. A peça foi inicialmente muito

bem tocada, eu diria inclusive que a violinista conseguira transmitir a tal “felicidade

mozartiana”. Trabalhando mais a sonata, observamos então que esta música penetrava

“sob a pele”, que ela não só encerrava a “felicidade mozartiana”, como também

continha toda a gama dos sentimentos humanos: da felicidade à tristeza, até o

sofrimento.

Contudo, eu me pergunto muitas vezes se posso realmente recomendar a um

aluno um estudo nesta direção. Pois, se as pessoas forem aos concertos para gozar a

“felicidade mozartiana” e ao invés disto receberem — talvez — uma verdade

mozartiana, pode ser que isto vá incomodá-los, que o ouvinte não esteja querendo saber

desta verdade. Na maior parte das vezes, desejamos ouvir e vivenciar algo determinado,

a tal ponto que já perdemos a atitude de curiosidade do ouvinte; talvez até nem

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desejemos mais escutar aquilo que nos é dito através da música.

Será que nossa cultura musical deve reduzir-se àquilo que nos proporciona um

pouco de beleza e paz após um dia cheio de trabalho e de preocupações? Será que esta

música não tem mais nada para nos oferecer?

Este é, portanto, o quadro em que se situa a música eloqüente e o discurso sonoro

dramático: nos seus primórdios, com Monteverdi, eles tomam o lugar do sereno mundo

da arte dos madrigais. No seu término, após Mozart, são substituídos amplamente pela

pintura plana do romantismo e do pós-romantismo. A música eloqüente, em forma de

diálogo, nunca é meramente beleza sonora, ela é transbordante de paixão, cheia de

conflitos espirituais, inclusive cruéis, mas que quase sempre se resolvem. Certa vez,

para defender-se da acusação de que sua música não seguia as regras da estética, que ela

não era suficientemente “bela”, disse Monteverdi: “que possam todos aqueles que

compreendem música repensar as regras de harmonia e acreditar em mim quando digo

que o compositor moderno só possui a verdade como princípio diretor.”