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NAS ENTRELINHAS DO MERCADO INTERNO: HISTÓRIA DE LUTAS DE
ESCRAVIZADOS EM MATO GROSSO DO SÉCULO XVIII
BRUNO C. BIO AUGUSTO1
JOSÉ WALTER CRACCO JÚNIOR2
RESUMO
O período colonial é retratado neste estudo pelo trabalho com a terra e possíveis reafirmações
amparadas no cultivo da terra por pessoas escravizadas nos arredores do rio Cuiabá, mergulhado
em um cenário entre o cerne da elite, visto nos senhores de terras, tentando desenhar uma
margem afastada das benesses da riqueza – tanto do ouro como do comércio. Assim, analisar a
América portuguesa é tentar entender as múltiplas formas de sobrevivência de seus habitantes
em meio à produção monocultura, mas também ir além disso. Desse modo, nossa história
contada aqui trará algumas distinções da realizada por Caio Prado Júnior no ano de 1942, ou
seja, consideraremos o nosso ambiente de estudo – Vila Real de Cuiabá no século XVIII –
atentos para problemáticas que, embora imbricadas em um primeiro olhar, distanciam-se por
vezes dos latifúndios e monoculturas coloniais quando pensada pelo viés das roças de
autossustento agrícola; dos embates entre senhores de escravos e seus escravizados que se
afiguram, nas fontes, pertencentes, às vezes, à quilombos. Nesse sentido, alocaremos outra
pedra angular em nossa discussão, qual seja, pretendemos escovar a história a contrapelo, como
nos disse Benjamin (1987), pois temos o intuito de reler fontes e reflexões a partir das
perspectivas das pequenas roças – sejam nas propriedades rurais ou mesmo no fundo dos
quintais das cidades, vilas e arraias -, enfim, da brecha camponesa como uma das possibilidades
e lugar de autonomia de escravizados em vista de sua produção agrícola como auto sustento e
do mercado local. Também os quilombos pensados como lugares de resistência - o caso do
quilombo do Quariterê –, de vivências e de flutuações entre a margem e o cerne da sociedade.
Palavras-chave: colonial; quilombo; camponês; terra; Mato Grosso.
INTRODUÇÃO
Para os estudos acerca da história do Brasil, as questões que envolvem a “terra” se
tornam importantes perspectivas para a pesquisa histórica. Estudar o envolvimento do homem
com a labuta no campo, a luta pela conquista da terra, pela sobrevivência oriunda da pequena
1 Graduando do curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – CPTL. Bolsista do Programa
de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) sob
orientação da Profª Maria Celma Borges. 2 Graduando do curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul UFMS/CPTL. Bolsista de
Iniciação científica da UFMS (PIBIC). E-mail: [email protected]
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agricultura e também os lazeres que os campos propiciaram e propiciam, assim, cruzarmos com
a nossa própria história.
Os portugueses encontraram no século XVI, no momento da primeira ocupação
litorânea, ou invasão europeia nas terras tropicais, um ambiente intimamente ligado à extração
de suas riquezas equatoriais, e que, nas cartas remetidas à D. João II, “superadas as dificuldades
da viagem, eram recompensados pela atração do sol, da luminosidade e do lucro possível” (DEL
PRIORE, 2016 p.15). Assim, transformaram a fauna e flora dos trópicos em produtos de
exportação, principalmente a figura do pau-brasil, durante a primeira metade Quinhentista,
madeira de cor avermelhada, muito apreciada para tingir tecidos europeus e para dar coloração
nos móveis que adornam as casas de Portugal e outros cantos da Europa (DEL PRIORE, 2016).
De acordo com Sampaio (2014), após 60 anos de exploração dos recursos naturais da
América lusitana, o Brasil já rivalizava com o comércio das Índias Orientais portuguesas, ou
seja, os artigos da natureza americana também adentravam, junto com as especiarias orientais,
às prateleiras do comércio europeu. Podemos observar, ainda para o autor, que a Metrópole
portuguesa começa a estruturar um corpo administrativo colonial aqui na América no intuito de
legitimar as suas possessões frente aos invasores – ingleses e franceses – que chegavam também
movidos pela cobiça dos artigos tropicais. Assim, no ano de 1534 temos a constituição das
capitânias hereditárias.
Neste momento, para Mary del Priore, é o começo dos embates pelas terras. Ou seja,
como no século XVI a mão-de-obra se constituiu principalmente pela indígena, esses
trabalhadores estavam acostumados a viverem de suas roças, caça e pesca e pós 1534 adentram
em um universo onde a terra tinha dono – pelo olhar da Coroa pertencia a Portugal – e a mão-
de-obra passa a ser compulsória. Assim, pela resistência desses povos originários3 frente à
colonização de expansão do território, Monteiro (1994) nos informa acerca da procura dos
colonos pelo trabalho indígena, e que essa busca respaldava na prática do escambo e também
da compra de cativos indígenas – capturados pelos bandeirantes. Quanto à resistência indígena,
salientamos que sempre houve embates entre os colonos e povos originários, principalmente
das nações de índios guerreiros, como os Tupiniquim na capitânia de São Vicente, e, no século
3 Concordamos com Souza Junior (2013) quando analisa que os motivos maiores da resistência indígena estariam
ligados ao papel de “índio trabalhador” que lhe foi atribuído pelo colonizador, dado que tal papel era subversivo a
cultura indígena, acostumada com a agricultura para as suas necessidades.
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XVIII, os Guaicuru e Paiaguá na capitânia de Mato Grosso, bem como os Cayapó, os quais
lutaram pela permanência nas terras e pelo direito de usufruir da natureza. Neste contexto, para
o Ouvidor Geral das minas do Cuiabá, Joseph de Burgos V.a Lobos, no ano de 1731, era
importante para o “bem comum” a conquista dos índios Paiguá. Para isso, seria necessário “huas
arobas[?] de polvora, e o concerto das carretas de duas peças de artelharia”4.
Estudar a questão agrária colonial também é estudar a monocultura, principalmente a
sua produção em terras vastas com plantações de cana-de-açúcar – muito cultivada no nordeste
Quinhentista e Seiscentista. Podemos ir na contramão da ideia de uma história colonial voltada
apenas aos elementos da grande propriedade, do trabalho escravo e da monocultura – como
bem pensa Caio Prado Junior no tempo historiográfico em que estava inserido – e que “os
clássicos da economia brasileira apontam para o mesmo caminho, aquele que derroga ao cultivo
de alimentos papel secundário, não funcional e certamente não determinante para os rumos do
desenvolvimento da colônia” (PEDROZA, 2014 p.383). Vamos tentar, neste artigo, estudar a
análise à contrapelo de uma história das vastidões de terras em que, analisadas pelo microscópio
do historiador, pode enxergar as especificidades coloniais, ou seja, as lutas de camponeses que
não concordavam com os mandos e desmandos dos senhores de açúcar no nordeste, o
surgimento de freguesias na Bahia, na cidade de São Paulo, e a figura do bandeirante buscando
intimamente nos indígenas a práxis para sobreviver no ambiente hostil da mata Atlântica, como,
por exemplo, numa correspondência de Josephe de Burgos V.a Lobos, no ano de 1730, contando
com a ajuda da Coroa para financiar o embrenhamento nas matas interioranas: “foi servido
mandar darlhe quatro mil cruzados e ao menistro q. o acompanhou dous mil cruzados, e os
gastos todos de transpote de canoas e mantimentos por conta da fazenda real como consta da
certidaõ junta”5. Indicia-nos com a carestia de produtos alimentícios para as viagens nesses
primeiros momentos do fincamento oficial6 da Vila do Cuiabá, como segue um trecho do
mesmo documento escrito por Vila Lobos: “generos q. vaõ de povoados tem taõ excessivos
4 MORGADO, Eliane Maria Oliveira. Et al. (orgs) Coletânea de Documentos Raros do Período Colonial (1727
– 1746). V.I. Cuiabá: Entrelinhas, 2007 p.75. MF. 05, Doc. 73, AHU 1731, abril, 07, Cbá. 5 MORGADO, Eliane Maria Oliveira. Et al. (orgs) Coletânea de Documentos Raros do Período Colonial (1727
– 1746). V.I. Cuiabá: Entrelinhas, 2007 p.63. MF. 1, Doc. 743, AHU 1ª fila -3º doc.- anexo 1. 1730, Maio 07. SP 6 Entende-se como “fincamento oficial” o contexto pós a chegada do governador general Rodrigo Cezar de
Menezes na região do Cuiabá no ano de 1727. A partir dessa data temos a elevação do Arraial do Nosso Senhor
Bom Jesus do Cuiabá para o status de Vila.
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preços pellas dificuldades, e riscos dos transportes”. Embrenhando-se pelos interiores coloniais,
temos a partir do século XVIII, a vila de Nosso Senhor Bom Jesus do Cuiabá, locus deste
trabalho.
Neste local, centraremos nossos estudos para contarmos uma história que vai além da
riqueza aurífera, ou seja, a terra não produz apenas ouro, a natureza também é responsável por
fornecer matéria-prima para confecção dos pratos cuiabanos, que segundo Arruda (2011), “os
gêneros de boca mais encontrados na cozinha paulista e monçoeira eram a farinha (milho ou
mandioca), e feijão e na parte das carnes o toucinho” (p.16). Lançaremos mãos de referências
que nos faça compreender a importância que o metal dourado obteve para o cotidiano
Setecentista, como no ato de tabelar os preços dos produtos em pesos de ouro e também a
burocracia régia necessária para os tentáculos reais, características estas atreladas à produção
cotidiana de alimentos, necessária para matar a fome dos cuiabanos, como o toucinho, feijão,
galinha, carne de vaca e porco (SILVA, 2011). O conceito de “cotidiano” utilizado para
entendermos a vivência nas terras de ouro do Mato Grosso será o ensinado por Michel de
Certeau, o qual usamos para apreendermos a importância da vida prática dos sujeitos na história,
de uma “sabedoria sábia” que somente a ação empírica vivida pelos personagens pode
proporcionar (DE CERTEAU, 2007).
Neste trabalho, a pedra angular de nossa pesquisa será a fonte que ilustra o quilombo
do Quariterê, ou como queira alguns, quilombo do Piolho7. Haja vista priorizarmos também
fragmentos de fontes encontrados em obras diversas de estudiosos sobre o momento colonial
brasileiro, pois o trabalho com as fontes é inerente ao trabalho do historiador. De acordo com
De Certeau (1982), o historiador realiza a busca pelo não-dito, pelas entrelinhas – justificativa
de utilizarmos em nosso título – que proporcionam a relatividade do discurso histórico e que,
para nós, torna ainda mais enriquecedor a narrativa do contador de história, mesmo quando as
fontes, no caso deste trabalho, mostram-se lacunares.
ROÇAS COLONIAIS
7Mesmo com os estudos de Volpato (1996) acerca do quilombo do Quariterê, temos a intenção de rediscutir o
funcionamento interno deste quilombo no que concerne as roças dentro dele. Assim, também entendemos como
aquiescente utilizar as suas contribuições metodológicas quando formos nos debruçar nas fontes que tratam de
outros quilombos presentes na capitania de Mato Grosso.
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Os estudos do abastecimento interno da colônia se debruçam acerca da produção de
alimentos para matar a fome da população. Assim, não podemos significar apenas um único
produto específico, mesmo quando pensamos nas economias (da cana, do ouro ou do café), ou
seja, o abastecimento de autoconsumo e venda de seus excedentes talvez possam nos mostrar
uma outra forma de pensar, por exemplo, o nordeste canavieiro, o Rio de Janeiro além de seu
porto, Minas Gerais de riqueza aurífera, mas que apresentava a dubiedade entre fome e fartura.
O estudo do abastecimento interno do extremo-oeste talvez nos permita enxergar além dos
donos dos morros e terras auríferos, dos camarários administrativos e dos ‘homens de negócio’
que iam e vinham pelos caminhos terrestres e fluviais, tanto em Goiás como em Vila do Cuiabá,
Vila Bela e outras localidades que homens e mulheres iam fincando estadias, mostrando-nos,
entre fontes e bibliografias, o ato do camponês de cultivar o seu chão. Assim, de acordo com
Arruda (2011), o abastecimento sempre foi uma preocupação em locais de mineração. No
princípio da mineração nas minas cuiabanas, os roçados eram esparsos e havia muito a
utilização da carne de peixe e produtos vegetais encontrados na natureza para a alimentação
dos famintos. Ainda para o autor, com a criação na segunda metade do século XVIII de
caminhos terrestres, começa a prática do gado vacum e a “carne verde”, ou seja, carne natural
– sem ser a de sol -, adentra-se nas refeições dos pratos das pessoas.
Segundo Maria Yeda Linhas (2014), é possível termos três vertentes do estudo do
campesinato colonial: a do protocampesinato negro nas fazendas; dos lavradores subordinados
aos senhores de terra; e por último, dos sertanejos e quilombolas. Assim, acompanhando as
fugas dos negros e a busca dos sertanistas por outras terras, temos o que Pedroza chama de
“campesinato itinerante”, ou seja, uma deslocação dos camponeses adentrando interiores da
América portuguesa.
Pode-se dizer, talvez, que a legitimação das ocupações administrativas das minas
cuiabana seja a motivação de alargar o espaço percorrido pelos campesinos nas beiras dos rios,
que são ocupações esparsas nos caminhos fluviais e alvos dos indígenas - que procuravam
destruí-las e retardar a tentativa de legitimação branca da posse. Podemos pensar nesse difícil
percurso para os viajantes quando lemos o Ouvidor Vila Lobos requerer da Coroa a quantia de
seiscentos mil réis para comprar ferramentas e mantimentos para a viagem do ano de 1731, pois
“os citios e roças q. no meu tempo se tinhaõ principado, pelas margens daquelles rios, pª nellas
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haver mantimentos com abundandia, e comodidade, , [...] de q. rezultou animarce o gentio, a
destruir as q. estavam mais proximas ao rio Paraguay8”.
Desse modo, imaginamos que com o tempo a ação de lavrar a terra aumentara,
principalmente nos pontos de paradas ao longo das mil e quinhentas e oitenta e duas léguas de
São Paulo à Vila do Cuiabá. No ano de 1728, a monção de Rodrigo Cézar de Menezes obteve
sorte em uma parte do trajeto, como relata o ilustre que “achase hua lemitada porsaõ de restolho
de milho, e alguas batatas, e aboboras, sem duvida pereceria, e toda a tropa, q. se compunha de
mais de trezentas pessoas”. Assim, também na localidade de Vila do Cuiabá, em momento de
carestia de comida a produção de alimentos seria mais importante para empenhar a mão livre e
de negros escravizados do que nas aluviões em busca do metal dourado. O governador Rodrigo
Cezar de Menezes, durante sua estadia no extremo oeste Setecentista, mostra-se preocupado
com as especulações de preços durante a sazonalidade da seca. Talvez Menezes teria medo dos
possíveis motins que bocas com fome poderiam provocar:
porque mais não puderam por andarem os negros occupados a plantar e replantar as
rossas, que por causa de secas faltaram, enão faiscaram por segurarem os mantimt.os
de qie houve faltas e carestias, e houve tempo em q. nas faisqueiras não chegaram a
andar trezentos negros, outros por q. naõ quizeraõ, e ultimamente outros, por q. não
tiveraõ, nem tem q. remeter; e estes saõ aquelles a q.m esses moradores a titulo de negº
dão as fazendas com uzura estanha, vendendolhe [ilegível] o qual cinco com reduaçaõ
de mil reis a oitvavas, e ainda em cima juros9.
Concomitante à necessidade de mão de obra para a produção de comida, temos
também o requisito de força braçal para abrir caminhos e adentrar ainda mais no interior da
América, pois, àqueles que achassem novos veios de ouro poderiam recorrer à emolumentos e
mercês da Coroa.
Bertholomeu Bueno da Sylva, João Leite da Sylva e Roiz do Prado são sujeitos que
nos possibilitam pensar as trocas de mercês pelos achados auríferos no ano que precede a 1721.
Moradores da Villa de Santa Anna da Parnahiba, os amigos requerem ao rei, em Portugal,
passagem livre dos rios que ligam as terras de mineração cuiabanas ao porto de Parnahiba.
8 MORGADO, Eliane Maria Oliveira. Et al. (orgs) Coletânea de Documentos Raros do Período Colonial (1727
– 1746). V.I. Cuiabá: Entrelinhas, 2007 p.77. MF. 10. Doc. 692, AHU. 5ª fila- 3º doc. – anexo 5
1732, fevereiro, 02, Lxa. 9 MORGADO, Eliane Maria Oliveira. Et al. (orgs) Coletânea de Documentos Raros do Período Colonial (1727
– 1746). V.I. Cuiabá: Entrelinhas, 2007 p.42. Mf. Doc. 732, AHU. 1ª fila – 9º doc. – anexo 2. 1728, Março, 28,
Cuiabá.
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Recorrendo ao prestígio de ser o primeiro grupo a achar algumas aluviões nos sertões da colônia
do extremo oeste e também, nas palavras do rei português, “não só conquistando com guerra
aos Gentios Barbaros que se lhe opuserem, mas também procurando descobrir os haveres que
nas dittas terras esperavam achar”, pedindo a “benignidade os honre, e lhes agradeça o esperem
se a hua empresa de tanto trabalho despeza e perigo10”. Desse modo, podemos visualizar que
os moradores de Parnahiba recorrem à Ley Mental para eles e “suas duas ou três vidas” –
acreditamos que se referiam aos seus descendentes - usufruírem os frutos de seus
“desbravamentos”.
QUILOMBO: LOCAL DE SOBREVIVÊNCIA OU LOCAL DE AUTOCONSUMO?
Esta narrativa vem sendo “escovada a contrapelo”, como nos disse Benjamin (1987),
pois estamos prezando ir à contramão da afirmação de estudar os quilombos apenas como locais
de subsistência de negros, negras, povos originários e outros agentes considerados à margem
da sociedade colonial. É pertinente, em nossa perspectiva, entender estas organizações não se
limitando à questão da resistência; queremos dizer que devemos nos atentar a sua economia e
sua produção de alimentos, num sistema paralelo ao predominante no Brasil Colonial, ou seja,
frente a produtos para o mercado externo. Destarte, nas “Américas, foi comum a formação de
setores camponeses a partir do extrativismo e da pequena produção agrícola de roceiros libertos,
escravizados e de comunidades de escravos fugidos” (GOMES E REIS, 2008, p. 206).
As pesquisas envolvendo uma análise de lupa sobre os quilombos do Brasil colonial
obtiveram suas origens em grupos de estudos da Universidade Federal Fluminense e
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Segundo Pedroza (2014), as pesquisas alocadas nestes
dois centros universitários vestiram uma roupagem para tentar pensar na formação econômica
distinta da monocultura escravista, assim, após a propulsão destes estudos nas décadas de 80 e
90, os pobres e livres são realçados em uma historiográfica que os veem não como vítimas, mas
como sujeitos ativos de suas próprias histórias. E também não os enxergar como passivos das
10Carta Régia escrita ao G.or e Cap.am G.al, de S. Paulo, em 14 de Fever.o de 1721 – sobre justar com os
descobridores das Minas de Goiaz o premio pelas descubrir segurando-lhe a m.ce [das] pasagens dos Rios por duas,
ou três vidas sugeitas a Ley Mental. Documentos Régios: Códice n. 1 da Superintendência do Arquivo Público
de Mato Grosso. Cuiabá: Entrelinhas, 2013.
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leis de senhores de terras, mas como agentes de seu marco temporal, que, pelas buscas de um
pedaço de chão, iam delineando o território brasileiro.
A possível formação de camponeses que cultivavam produtos sem ser o da monocultura
pode nos possibilitar pensarmos o quilombo como espaço de produção concomitante a espaços
de habitações, ou seja, roças entrelaçadas a casas e famílias. No ano de 1779, o comandante
mestre de Campo de Vila do Cuiabá, Antônio da Silva Freire, arrola em um documento os
objetos que foram achados em um quilombo: “4 armas de fogo, 2 chifarótes, 5 machados
usados, 3 tachos de cobre pequenos, 2 foices [ilegível], 2 almocrafas (?) velhos, 4 [ilegível]
usada, 1 balança de quarta de pesar ouro, com seu marco competente” e também “1 balança de
meia libra com pesos de 3/8 ½” e também se prendeu os escravos aquilombados “Jozé mina,
João mina, Caetano mina, Miguel mina e Marianna”11.
Importante dizermos que a prática de buscar “negros fujões” era algo corriqueiro nos
exercícios administrativos coloniais, pois, vistos como produtos, o escravizado ao fugir poderia
transfigurar em perdas de lucros dos homens e mulheres que possuíam sua posse. Assim,
imaginamos que a Coroa financiou uma expedição composta por 42 pessoas, e, o comando
máximo estava sobre a régia do Comandante Encarregado José da Silva Freire e seu ajudante,
o capitão do mato João Jorge de Mello12. Não sabemos ao certo se esta composição de
expedições em busca de aquilombados se remete ao Quilombo do Piolho, mas podemos
conceber que por ocorrer na mesma região do rio Cuiabá, algumas características permanecem,
tais como as funções de “Comandante Encarregado; Capitão do Mato; Alferes; Cabos;
Trilhadores; Soldados das companhias do mato”13.
De tal modo, podemos observar que “a formação dos quilombos significou muito mais
do que apenas escravos fugindo para as matas e tentando escapar das perseguições” (GOMES,
2005, p.154). Significou um reinventar de suas culturas, suas ferramentas, seus cultos
religiosos, suas estratégias de defesa, seus modos de cultivo, suas hierarquias de poder, conciliar
as crenças dos diversos sujeitos que viviam nos quilombos, enfim, fundar sua própria
identidade. A fonte de 1779, ainda nos traz dados dos objetos descobertos pela expedição,
11 ARQUIVO PUBLICO DO MT. BR MTAPMT.TM.RO. 0998 Caixa n.015. Vila do Cuyabá, 02 de Mayo de
1779. 12 Idem. 13 Idem.
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mostrando-nos um cotidiano que pulula em uma vida economicamente ativa, onde supomos
que havia o trabalho aurífero além do cultivo da terra, pois foram encontradas balanças
específicas para a medição do metal dourado, assim como “20/8 ¾ de ouro em pó, e duas
pequenas pedras, machados usados, tachos de cobre, foices14”.
Assim sendo, agora, estudando o quilombo do Quariterê, a fonte mais rica do que
viemos afirmando, observa-se que era farto de alimentos e estruturas, pois havia “grandes
plantações de milho, feijão, mandioca, amendoim, batata, cará e outros tubérculos. Cultivavam
também frutas como bananas e ananás. Plantavam fumo e algodão, com o que produziam
tecidos grosseiros. Além disso, criavam galinhas” (VOLPATO, 1996, p.224). O quilombo tinha
uma hierarquia de comando, ou seja, era regido por Thereza Benguela e o seu conselheiro José
Piolho.
Na América portuguesa, os quilombos atingiram uma estrutura funcional pelos seus
componentes, ou seja, os seus roçados, que lhes possibilitavam autossuficiência, a presença de
agentes percorrendo rotas pelos matos e estradas em busca de mercadorias, escambos, roubos,
proteção, os quais fizeram emergir nas autoridades coloniais o medo.
O medo de aquilombados possibilitou a autoridades adotarem medidas contra os
quilombos da Capitania de Mato Grosso, até então pertencente à Capitania de São Paulo. Assim,
uma das medidas foi o investimento do dinheiro público em Bandeiras e demais expedições
direcionadas contra os sujeitos aquilombados. Uma resposta para isso seria considerar o que
nos disse Volpato; “vencendo quilombos, o governador vencia um inimigo antigo e temido”.
(1996, p.225). E vencer esse inimigo era trazer segurança para as rotas do ouro, as rotas de
mantimentos, as rotas que levavam escravos a Vila do Cuyabá e também de lá saiam rumo à
Goiás, Gerais e São Paulo.
Devemos considerar também que os quilombos não eram lugares que abrigavam
apenas negros fugidos e indígenas, refugiavam também criminosos – pelo olhar das autoridades
-, homens e mulheres que se ausentavam das leis coloniais, buscando fugir de uma justiça
amparada no cabedal. Assim, era necessário proteger funcionários régios de possíveis
amotinados em busca de vingança. Nesse contexto, encontramos ordens vindas do Conselho
14 Ibidem.
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Ultramarino de d. João15, representado por João Telles da Sylva e o Doutor José Gomes de
Azevedo, no ano de 1725, quando legitimavam o armamento de homens oficiais em serviço
real ao percorrerem estradas, pois corriam o risco de sofrerem emboscadas dos seus inimigos.
Ou então de pessoas que não eram punidas por seus crimes pela justiça, pois a Vila do Cuiabá
ainda não contava com um tribunal de julgamento oficial nessa época, e “estes delinquentes
unidos aos quilombos” vinham “fazendo mayores insultos, e asaltando os viandantes e
outros”16.
Levando em consideração as repressões aos quilombos, sobretudo observadas pelo
tamanho das companhias destinadas a acabar com eles, podemos entender que havia formações
que tinham seus próprios mecanismos para viver na vida aquilombada. Dessa forma, passamos
a entender os quilombos não apenas como simples espaços de resistências onde os seus
integrantes subsistiam, mas sim como os quilombos tiveram um desenvolvimento econômico,
político, religioso significativo, como é o caso do Quariterê. Assim, podemos perceber o quanto
atormentaram as autoridades coloniais. Assim, se torna incoerente afirmar e entender os
quilombos apenas como lugares de resistência. É preciso, também considerar as múltiplas
facetas que ocorriam neste espaço, sendo os roçados uma delas, pois, além de possibilitar a vida
no quilombo, assegurava as trocas dos excedentes produzidos que acabavam se configurando
em mercadorias nas rotas que, por vezes, contribuíam, mesmo que indiretamente ao
abastecimento interno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em vista das discussões apontadas, devemos considerar que às análises dos roçados
presentes na capitania de Mato Grosso ainda são tímidas, na medida em que são poucos os
estudos que contemplam está temática no século XVIII. Desse modo, nos aventuramos em
vasculhar os documentos em busca de vestígios que narram, mesmo que de maneira mais
15 Provisão expedida pelo Conselho Ultramarino ao Governador Rodrigo Cezar em 13 de agosto de 1725. In:
Documentos Régios: 1702-1748: Códice n. 1 da Superintendência de Arquivo Público de Mato Grosso / estudo
introdutório Maria de Fátima Costa; transcrição paleográfica Luzinete Xavier de Lima. -- Cuiabá, MT: Entrelinhas,
2013. 16MORGADO, Eliane Maria Oliveira. Et al. (orgs) Coletânea de Documentos Raros do Período Colonial (1727
– 1746). V.I. Cuiabá: Entrelinhas, 2007 p.42. Mf. Doc. 732, AHU. 1ª fila – 9º doc. – anexo 2. 1728, Março, 28,
Cuiabá.
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secundária, essas roças, sejam elas dentro de quilombos, ao redor das minas, no fundo dos
quintais das casas do meio urbano (PEDROZA, 2013), ou como bem nos indicou Sérgio
Buarque de Holanda, nas trilhas das monções, principalmente nas que objetivavam chegar até
Cuiabá pelo meio fluvial.
Segundo o autor, os navegantes deixavam suas canoas e iam constituindo roças de
plantação pelo caminho, pois em determinados momentos das monções se fazia necessário o
caminho a pé, principalmente nas monções afora do período de navegação, ou seja, no período
da seca em que eram necessários longos caminhares para enfrentar as itapevas, como é o caso
da subida do Rio Ivinhema até a chegada a Aquidauana, por exemplo. Essas roças cultivadas
por esses sertanistas, de acordo com Holanda (1990), tinham como característica a produção de
“roças de milho, feijão, abóbora, banana e talvez mandioca” (p.49). E a sua produção contribuiu
para a “comodidade” dos viajantes, uma vez que lhes prevenia do risco da fome.
Levando em consideração o que foi apresentado, não podemos considerar como único
abastecimento, ou fonte de agricultura principal do Brasil Colonial, o proposto por Caio Prado
Júnior, porém, não queremos com isso criticar os seus escritos, pelo contrário, é necessário
entender sua visão direcionada acerca da monocultura e dos grandes latifúndios, pois
possibilitaram releituras feitas por outros autores anos depois acerca das brechas que seus
estudos não contemplaram, e mesmo a possibilidade de visões dispares – os pequenos roçados,
a brecha camponesa, entre outros – como é o caso dos estudos de Linhares e de Ciro Flamarion
Cardoso nas décadas de 1970 e 1980 – envoltos em grupos de estudos surgidos, principalmente,
nas universidades cariocas – e Manoela Pedroza mais recentemente (2014), para citar apenas
autores mais enfatizadas neste trabalho.
Assim, compreendemos que os pequenos roçados significaram muito mais do que
pessoas apenas subsistindo, significaram o sustento das pessoas diretamente ligadas com a
lavragem da terra e também das que eram influenciadas por essa rede da produção local, como,
por exemplo, os possíveis compradores que perambulavam pelas feiras de Vila do Cuiabá e de
seus arredores. Desse modo, com a escassez do mercado interno, muito devido à ênfase de
produzir o cultivo fundamentado na monocultura ou extrair o ouro para fins de exportações, as
vilas, arraiais, pequenas pousadas pelas estradas e os quilombos recorriam a essas roças locais,
ou de distâncias próximas, para o abastecimento de alimentos, configurando desta forma a sua
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suma importância para o modo de vida e o cotidiano das pessoas, ainda que isso ocorresse em
uma zona paralela, mas essencialmente visceral para os interiores, ou mesmo grandes
aglomerados de pessoas. Enxergamos, com isso, uma possível autonomia dos camponeses
frente ao senhor de terras e também do pequeno comerciante defronte aos homens de negócios
e seus cabedais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA
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