NARRATIVAS DE TRANSFORMAÇÃO: Reportagem e … · produção jornalística da Narrativa de...

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EDUARDO HENRIQUE AMÉRICO DOS REIS NARRATIVAS DE TRANSFORMAÇÃO: Reportagem e ampliação da consciência pelo Jornalismo Literário Avançado Universidade de Marília - UNIMAR Programa de Pós-graduação em Comunicação Marília 2011

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EDUARDO HENRIQUE AMÉRICO DOS REIS

NARRATIVAS DE TRANSFORMAÇÃO:

Reportagem e ampliação da consciência pelo Jornalismo Literário Avançado

Universidade de Marília - UNIMAR

Programa de Pós-graduação em Comunicação

Marília

2011

EDUARDO HENRIQUE AMÉRICO DOS REIS

NARRATIVAS DE TRANSFORMAÇÃO:

Reportagem e ampliação da consciência pelo Jornalismo Literário Avançado

Relatório de Qualificação apresentado ao

Programa de Comunicação da

Universidade de Marília (UNIMAR),

para obtenção do Título de Mestre em

Comunicação,

Área de concentração: Mídia e Cultura.

Orientadora

Profª. Drª. Rosangela Marçolla

Marília

2011

Universidade de Marília - UNIMAR

Reitor

Dr. Márcio Mesquita Serva

Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação

Profª. Drª. Suely Fadul Villibor Flory

Programa de Pós-graduação em Comunicação

Coordenadora Profª Drª. Rosangela Marçolla

Orientadora

Profª Drª. Rosangela Marçolla

UNIMAR – UNIVERSIDADE DE MARÍLIA

Eduardo Henrique Américo dos Reis

NARRATIVAS DE TRANSFORMAÇÃO:

Reportagem e ampliação da consciência pelo Jornalismo Literário Avançado

Banca Examinadora

Profª. Drª. Rosangela Marçolla

Avaliação: _______________________ Assinatura: ______________

Prof. Dr.

Avaliação: _______________________ Assinatura: ______________

Prof. Dr.

Avaliação: _______________________ Assinatura: ______________

Agradecimentos

Para escrever uma dissertação, assim como na produção de reportagens de

fôlego, é preciso tempo, dedicação e apoio. É necessário fazer uma verdadeira imersão

no tema que se pretende abordar. É um mergulho de corpo inteiro, mas sem tirar os pés

do chão – como diria o professor Sergio Villas Boas. Para se manter os pés no chão,

pessoas importantes devem acompanhar a jornada. Elas são responsáveis pelo

equilíbrio, pela manutenção da calma, pelos necessários empurrões e também são fontes

de inspiração e força para percorrer um trajeto transformador.

Por isso, agradeço primeiramente aos meus pais – Américo e Marineide -, que

sempre dedicaram energia para que eu pudesse estudar cada vez mais e sempre me

motivaram a buscar meus sonhos – mesmo quando esses sonhos pareciam um tanto

quanto estranhos e eu me trancava no quarto lendo livros que não pareciam ter relação

alguma com jornalismo ou me enfiava no meio de uma floresta no interior do Rio de

Janeiro para ficar dez dias em silêncio, sem contato com o mundo exterior.

Agradeço também a minhas irmãs, Ariadne e Bruna, que desde pequenas são

como um porto seguro onde posso parar, refletir e seguir minha caminhada com mais

sobriedade. À minha sobrinha Lara, que enquanto escrevo este agradecimento tem

apenas 20 e poucos dias de vida -, que me tocou profundamente e, com toda a

sensibilidade que uma criança pode ter, me fez recordar todos os motivos que me

fizeram escrever uma dissertação que tem como parte do tema uma busca constante por

um mundo melhor.

Agradeço também à minha amiga e namorada, Thais Aquino, que sempre

entendeu minha necessidade de isolamento para os estudos e pesquisa, que sempre se

interessou por minha busca pessoal e também percebeu e embarcou nas grandes

mudanças causadas por esse desejo de aprendizado e evolução. Thais também

contribuiu com a leitura de trechos e tardes de discussões sobre o conteúdo deste

trabalho.

Às minhas queridas ex-alunas, que se tornaram grandes amigas, Jaqueline Bueno

e Suely Lima. Agradeço profundamente por terem aberto seus corações para as

possibilidades reais de transformação e agora são peças fundamentais para a evolução

de muita gente. Após alguns anos distante, devido aos diferentes caminhos que a nossa

profissão nos leva, agradeço também ao meu amigo André Thieful. Pela amizade

sincera, o companheirismo e a retomada das noites em claro falando sobre livros,

filmes, música ou debatendo os modus operandi da prática jornalística da atualidade.

Obrigado, amigo!

Em especial, agradeço à minha orientadora Rosângela Marçolla, pelo carinho e

amor que dedica ao ensino e por iluminar meu caminho durante a realização desta

pesquisa. Um abraço e carinho especial à professora Maria Cecília Guirado (Ciça) –

que, por meio de suas aulas, contribuiu muito com a evolução de meu texto e de meu

olhar sobre cada obra lida. Agradeço também especialmente ao professor Edvaldo

Pereira Lima, que inspirou a produção deste trabalho através de ideias nada

convencionais, mas que formam um caminho sincero e real para a melhoria da

qualidade da prática jornalística e de transformação efetiva na vida das pessoas.

Resumo

Este trabalho apura como a prática jornalística – por meio do Jornalismo

Literário Avançado – pode contribuir com a ampliação da consciência de repórteres ou

escritores de não-ficção e leitores através da elaboração e leitura de reportagens

sustentadas em campos variados de conhecimento. O estudo traça um caminho para a

produção jornalística da Narrativa de Transformação – proposta de Edvaldo Pereira

Lima que tem como objetivo ser inspiradora de mudanças no pensamento individual e

social.

O objetivo deste trabalho é indicar um dos caminhos possíveis para uma

produção jornalística que seja mais humanizada, que facilite o entendimento dos temas

abordados pelas reportagens para que possam ser aproveitados de maneira prática e

efetiva pelos leitores. A ideia é que as reportagens sejam um trajeto que o leitor possa

seguir para acompanhar as grandes mudanças que vêm ocorrendo em um mundo em

constante transformação.

Os procedimentos metodológicos para este estudo partiram da pesquisa

bibliográfica relacionada ao pensamento sistêmico, à produção de reportagem, ao

jornalismo de compreensão e, principalmente, das propostas do Jornalismo Literário

Avançado e das Narrativas de Transformação – que englobam conhecimentos de ponta

em áreas aparentemente distintas da ciência, como a biologia, a psicologia e a física

quântica, com o objetivo de promover a transdisciplinaridade e associar teores

inovadores à prática jornalística. Ela engloba também experiências na prática de

reportagem do próprio autor.

A hipótese formulada é que, por meio da ampliação da consciência e da

sensibilidade dos repórteres, seja possível estimular a elaboração de conteúdos

jornalísticos sustentados por recursos transdisciplinares, pela humanização dos

acontecimentos reportados e inspiração de alterações significativas no modo de ver e

estar no mundo do leitor.

Palavras-chave: Comunicação; Prática jornalística; Jornalismo Literário Avançado;

Visão de mundo; Transformação

Abstract

This paper determines how the journalistic practice - through the Advanced

Literary Journalism - may contribute to increase awareness of reporters or non-fiction

writers and readers through the development and sustained reading of articles in various

fields of knowledge. The study provides a way for the production of journalistic

narrative of Transformation - Edvaldo Pereira Lima proposal that aims to be inspiring

changes in social and individual thought.

The objective of this work is to indicate a possible route to producing a

newspaper that is more humane, to facilitate understanding of the issues addressed by

reports that can be leveraged in a practical and effective by readers. The idea is that the

reports are a path that the reader can follow to keep up the great changes taking place in

a changing world.

The methodological procedures for this study started from the literature related

to system thinking, production reporting, and understanding of journalism, especially

the proposals of Journalism and Advanced Literary Narratives of Transformation -

which include cutting-edge knowledge in areas of apparently distinct science, including

biology, psychology and quantum physics, in order to promote transdisciplinary and

innovative content to associate the practice of journalism. It also includes practical

experience of the author's own story.

The hypothesis is that, by increasing awareness and sensitivity of the reporters, it

is possible to stimulate the production of journalistic content supported by disciplinary

resources, the humanization of the events reported and inspiration of significant changes

in the way of seeing and being in the world reader.

Keywords: Communication; Journalistic Practice; Advanced Literary Journalism;

Worldview; Transformation

SUMÁRIO

Introdução ...................................................................................................................... 11

CAPÍTULO 1 – Visão de mundo

1.1 Visão de mundo, pensamento sistêmico e prática jornalística ................................ 14

1.2 A separação .............................................................................................................. 15

1.3 O jornalista mecânico-positivista ............................................................................ 18

1.4 Ponto de ruptura ....................................................................................................... 21

1.5 O entendimento ........................................................................................................ 23

1.6 O jornalista sistêmico, a visão complexa e a proatividade ...................................... 25

Exercício 1 – Passo para desenvolver a mente sistêmica .............................................. 27

CAPÍTULO 2 – Jornalismo de compreensão

2.1 Notícia, informação jornalística e compreensão ...................................................... 32

2.2 Da informação explicativa à compreensão .............................................................. 35

2.3 O reforço do jornalismo literário ............................................................................. 40

Exercício 2 – Pensar narrativamente: sensibilização e criatividade a campo ................ 46

CAPÍTULO 3 – Jornalismo Literário Avançado

3.1 Uma base holística para a narrativa do real ............................................................. 51

3.2 Transdisciplinaridade .............................................................................................. 52

3.3 Física quântica ......................................................................................................... 54

3.4 Campos morfogenéticos .......................................................................................... 57

3.5 Psicologia humanista ............................................................................................... 59

3.6 Pensamento produtivo e improdutivo ...................................................................... 61

3.7 A Escrita Total e as neurociências ........................................................................... 64

Exercício 3 – Conexão intensa, compromisso profundo ............................................... 66

CAPÍTULO 4 – Narrativas de Transformação

4.1 Histórias para a transformação social ...................................................................... 70

4.2 Exemplos imitáveis e histórias de vida .................................................................... 72

4.3 Reportagem e sensibilidade solidária ...................................................................... 74

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Humanizar para transformar .......................................................................................... 80

REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 82

ANEXOS ....................................................................................................................... 88

Introdução

Evolução tecnológica, um mundo cada vez mais interconectado, agilidade nas

comunicações, fácil acesso à informação. O mundo tem passado por grandes

transformações - sejam elas nas áreas das telecomunicações, da ciência ou no próprio

meio ambiente. As ágeis mudanças que ocorrem no planeta Terra atingem todos a todo

instante – do empresário engajado ao mercado financeiro até o monge budista isolado

em um templo na Tailândia. Mas como fica o cidadão comum em meio a esse universo

de constantes transformações?

O cidadão comum se perde em uma sensação de superficialidade, de descrença,

falta de perspectiva ou baixo conhecimento. A velocidade dos acontecimentos lhe nega

a possibilidade de aprofundamento, da formação de uma relação mais próxima e

participativa com os acontecimentos que o cerca. Ele assiste a vida passar ao ver-se

estagnado - como se suas atitudes não tivesse nenhuma interferência no que ocorre ao

seu redor. O homem tem sido atropelado pelos próprios recursos que criou.

O jornalismo, um elemento essencial para as relações entre os campos de

conhecimento, é uma peça-chave para que essas transformações aconteçam. No entanto,

a própria prática jornalística precisa atualizar-se. Enquanto o mundo caminha para a

comunicação rápida e superficial, o jornalismo deve recordar como transmitir

conhecimento. O jornalismo necessita de versatilidade, bem como o jornalista.

No primeiro capítulo deste estudo, é exatamente a visão do jornalista que está

em foco – como ele age na atualidade e quais foram os caminhos seguidos pela ciência

que influenciaram suas práticas profissionais. Os pensamentos cartesianos e positivistas

são destacados como os métodos que contribuíram com uma visão fragmentada da

realidade, que coloca o mundo objetivo de um lado e o subjetivo do outro – como se

eles não tivessem relação alguma. Essas linhas de pensamento tão valorizadas são muito

úteis na prática jornalística cotidiana e na transmissão de informações, mas deixam a

desejar quanto à transmissão de conhecimento. O cidadão recebe as informações, mas

não sabe o que fazer com elas.

Para isso, o capítulo ainda apresenta como o chamado pensamento sistêmico

pode ser utilizado para alterar a visão objetiva e fragmentada do jornalista e

proporcionar um entendimento mais complexo da vida como um todo, promovendo a

proatividade e o protagonismo de um cidadão que tem seu modo de pensar muito

enraizado na “isenção”. Para contribuir com a ampliação da visão de mundo, o produtor

da informação também precisa estar em constante desenvolvimento pessoal. A mudança

de pensamento por parte do jornalista e seu interesse pelo aprendizado são fundamentais

para uma prática jornalística que consiga vincular as informações transmitidas e o

cotidiano do leitor, do cidadão.

O segundo capítulo trata da diferenciação entre notícia, informação jornalística e

compreensão. A apresentação das características de cada um deles é necessária para o

entendimento do que trata o estudo como um todo, que é mais voltado para a

reportagem do que para a notícia em si. As técnicas do Jornalismo Literário também são

valorizadas e indicadas como forma que aproximação entre os significados e o leitor.

Esse estilo de aprofundamento narrativo na não-ficção associa a visão do jornalista à

prática profissional sem menosprezar a subjetividade – o que é primordial para a

construção de sentidos e da ampla compreensão.

Com o objetivo de apresentar um caminho possível para a construção de

reportagens que possam inspirar transformações, o terceiro capítulo deste trabalho é

sustentado nas propostas básicas de Edvaldo Pereira Lima para o que chama de

Jornalismo Literário Avançado. A linha propõe a agregação de conhecimentos de ponta

à prática jornalística tanto para serem levadas ao receptor quanto como pano de fundo

para a construção das narrativas. Seguindo o caminho do pensamento sistêmico, o

Jornalismo Literário Avançado é uma proposta transdisciplinar. Não fragmentária, a

linha está apoiada no pensamento ecológico e holístico, em princípios da Educação, da

Física Quântica, da biologia, psicologia humanista e nas neurociências.

Com a utilização de reportagens, o quarto capítulo estuda trechos de produções

jornalísticas que foram construídas com as características apresentadas nos capítulos

anteriores e debate como esses elementos e estruturas narrativas podem contribuir com a

inspiração de mudanças nos campos de domínio do repórter ou do leitor. A formação do

personagem na narrativa – como exemplo imitável – e a humanização também integram

o capítulo, que é encerrado com um debate sobre a sensibilidade solidária, vinculando o

potencial de informação e compreensão da reportagem a um caráter mais educativo e de

valorização da dignidade humana dentro do jornalismo.

Para facilitar o entendimento do que é proposto pelo estudo, os três primeiros

capítulos são acompanhados por exercícios que podem facilmente ser praticados.

Objetiva-se deixar a leitura do estudo mais prazerosa e também – como defende o

trabalho como um todo – facilitar a compreensão.

CAPÍTULO I – VISÃO DE MUNDO

O acaso? Difícil dizer que não exista, mas de algum modo ia me

convencendo de que grande parte daquilo que parece acontecer

“por acaso” somos nós que provocamos. Somos nós que, uma vez

alterados os óculos com os quais enxergamos o mundo, vemos

aquilo que antes nos escapava e por isso acreditamos que não

existia. O acaso, em suma, somos nós.

Tiziano Terzani

1.1 Visão de mundo, pensamento sistêmico e prática jornalística

Os métodos de trabalho, pesquisa e práticas utilizados pelos jornalistas da

atualidade são, basicamente, sustentados pelas propostas metodológicas de Auguste

Comte e René Descartes – linhas de pensamento que influenciaram não somente a

ciência, mas o modo de ser e estar no mundo de toda a sociedade ocidental

principalmente a partir do século XVII.

A partir do entendimento básico dessas linhas de pensamento, apresenta-se como

outra forma de pensar – no caso, o pensamento sistêmico – pode contribuir com a

ampliação da consciência e da compreensão de mundo dos jornalistas. Para isso, utiliza-

se como base o estudo feito por Maria José Esteves de Vasconcellos (2002) sobre o

pensamento sistêmico – originado nos trabalhos científicos de Ludwig Von Bertalanffy

e sua Teoria Geral dos Sistemas.

É necessário destacar que a visão sistêmica não se restringe a uma linha única de

pensamento. Ela está relacionada com diversas propostas entrelaçadas que buscam

abordar o universo natural e científico de um modo mais orgânico, como se toda a vida

na Terra integrasse um mesmo superorganismo vivo (LOVELOCK, 2006), como será

visto a seguir. Entre estas propostas estão o pensamento complexo, o movimento da

Ecologia Profunda, a Teoria de Gaia, a física quântica e até os estudos budistas e a

espiritualidade (MACY, 2004).

O jornalista da atualidade, o homem comum, desenvolveu-se cultural e

intelectualmente sob a influência de linhas de pensamento que fragmentam a realidade

em variados campos de conhecimento. Esta fragmentação limita a capacidade do

profissional, ou ser humano, para notar e estabelecer as interdependências entre fatos,

informações e – principalmente – entender como sua maneira de agir, de estar no

mundo, afeta a vida de seus leitores, familiares e da sociedade como um todo.

No jornalismo, o reflexo da fragmentação pode ser facilmente notado por meio

da superficialidade aplicada ao tratamento das informações, à racionalidade técnica e a

uma objetividade que menospreza a complexidade do pensamento humano e de suas

relações com todas as formas de vida na Terra.

Defende-se aqui o pensamento sistêmico aplicado ao cotidiano do jornalista

como possibilidade para alterar não somente suas práticas profissionais, mas também

expandir sua visão de mundo de modo que se torne um ser humano mais responsável e

proativo.

1.2 A separação

Para conseguir estabelecer uma relação entre o pensamento sistêmico, a visão de

mundo predominante na atualidade e a prática jornalística, é necessário tratar,

brevemente, dos conceitos que influenciaram o modo de pensar do mundo

contemporâneo.

Durante os séculos XVI e XVII, o pensamento medieval era praticamente

sustentado pela filosofia de Aristóteles e pela teologia cristã. Aristóteles acreditava que

não seria possível existir forma separadamente da matéria. Para ele, a matéria possui,

em potencial, a natureza essencial de todas as coisas. Essa essência se tornaria real por

meio da forma (CAPRA, 2006). Aquela visão preservava a noção de um universo

orgânico, vivo e espiritual, mas que foi alterada por uma série de mudanças conhecidas

como Revolução Científica.

As descobertas nos campos da física, matemática e astronomia, normalmente

associadas aos nomes de Copérnico, Galileu, Descartes, Bacon e Newton, causaram

uma ruptura na maneira complexa e interrelacionada de compreender a vida e a

transformaram na noção do mundo funcionando como uma máquina (CAPRA, 2006,

p.34). Material e espiritual, corpo e mente, foram separados. Nascia o pensamento

mecanicista.

Para a primeira parte deste estudo, utiliza-se como referência as regras do

método cartesiano, de René Descartes, e as características do pensamento positivista,

propostas por Auguste Comte, para aprofundar a compreensão da visão de mundo

predominante na atualidade ocidental.

O pensador, físico e matemático francês René Descartes (1596-1650), apontado

como figura central na origem da ciência moderna, se opunha à filosofia da Idade Média

e afirmava que deveria substituir a fé pela razão para que o conhecimento fosse

científico. A ciência deveria se ocupar com estudos mensuráveis e quantificáveis,

edificados pela matemática (VASCONCELLOS, 2002).

Para desenvolver seu racionalismo, Descartes propôs, em seu Discurso do

Método (1999, p.49 e 50), um método sustentado pelas seguintes regras:

- Evidência: não acreditar que algo seja verdadeiro se não for entendido

claramente;

- Análise: promover a divisão de qualquer dificuldade em quantas parcelas for

possível ou necessário;

- Síntese: concluir ordenada e progressivamente os pensamentos, indo dos mais

simples para chegar aos mais complexos;

- Enumeração completa: enumerar e fazer uma revisão bem detalhada a ponto de

se ter a noção de que algo foi esquecido ou omitido.

Descartes buscava um conhecimento preciso, com verdades irrefutáveis. Para

ele, a dúvida era a origem do conhecimento. O pensador reconhece que “duvidar é

pensar e funda o conhecimento no cogito (em latim, cogitare = pensar): „penso, logo

existo‟” (VASCONCELLOS, 2002, p.62).

Seu pensamento analítico fragmenta fenômenos complexos, os reduz com o

objetivo de compreender o comportamento do todo a partir de suas partes. Sua síntese

organiza essas partes; e a enumeração possibilita a revisão delas.

No entanto, por ser sustentado pela matemática, pela precisão, o método de

Descartes ignora tudo que não pode ser comprovado por esse processo, ou seja, sua

ciência separa a filosofia (área do domínio do sujeito) do conhecimento exato (campo

do domínio da coisa, da medida). Isso assemelha-se com o que ocorre na prática

jornalística contemporânea, como será visto mais adiante.

Outra linha de pensamento determinante para a constituição do modo de ser e

estar contemporâneo é a positivista. O fundador desta escola foi o filósofo, também

francês, Augusto Comte (1798-1857). O pai desta linha de pensamento sustentava que a

filosofia deveria ser responsável pela compilação e organização dos resultados das

diversas ciências. O filósofo deveria criar teses para harmonizar todo o conhecimento.

Para organizar tudo isso, Comte propôs o que chamou de Lei dos Três Estágios,

distanciando ainda mais o que já estava fragmentado. Ele apontou três etapas para o

conhecimento humano: a teológica, fenômenos explicados pela ação de seres míticos;

metafísica, fenômenos explicados por abstrações racionais, possibilitando várias teorias

sobre um mesmo fato; e a etapa positiva, que busca conhecer explicações para a

natureza através da experiência e da observação, na tentativa de identificar as leis que

regem os fenômenos (VASCONCELLOS, 2002, p.63).

Mas essas leis gerais não podem ir além do que permitem a experimentação e a

dedução matemática. Tudo que vai além disso é metafísica e não tem valor. O

objetivo de conhecer as leis é poder fazer previsão: conhecemos para prever os

acontecimentos

Além dos três estágios, Comte também delineou um trajeto para definir o pensar

positivista, como apontado pela professora e jornalista Cremilda Medina, em seu livro

Ciência e Jornalismo (MEDINA, 2008, p.20):

- o real em oposição ao quimérico;

- o que é útil em contraposição ao que é inútil;

- ao contrário da indecisão ou das dúvidas indefinidas, a certeza constituída pela

harmonia lógica;

- um grau de precisão compatível com a natureza dos fenômenos e conforme a

exigência das verdadeiras necessidades humanas opõe o conceito de preciso a vago;

- o significado mais banal, positivo versus negativo – caberia à filosofia

organizar, e não destruir;

- reforça-se a tendência, necessária para Comte, de substituir em tudo o relativo

pelo absoluto.

Segundo Comte, o sujeito deve anular-se para desvendar o conhecimento. Ele

deve ser objetivo e, para isso, precisa fazer “tabula rasa de seus juízos e valores, para

deixar as coisas falarem. Deve atuar como uma câmara fotográfica, que dá a cópia fiel

da coisa.” (VASCONCELLOS, 2002, p.64)

Nota-se aí, a defesa por uma isenção do sujeito quanto ao que observa, quanto à

experiência que realiza.

Devendo a prova ser experimental, a verdade passa pela exigência de

testemunhos e garantias fornecidas pela experiência: só a observação confiável,

fidedigna, que foi compartilhada, pode fundamentar as afirmações. E há

também a exigência de neutralidade: as afirmações do cientista devem ser

impessoais e ele deve apresentar apenas os resultados de sua pesquisa;

proposições marcadas por posições pessoais não são científicas.

(VASCONCELLOS, 2002, p.64)

Mesmo tendo contribuído para a evolução da ciência e da própria humanidade,

linhas de pensamentos como a mecanicista e a positivista acabaram por moldar a

maneira de pensar da atualidade, na tentativa de racionalizar, de simplificar, estabilizar

e entender toda a vida.

Para separar as ciências da natureza das ciências do homem, Comte dizia, por

exemplo, que a natureza humana é de uma natureza diferente da natureza. Mas essa

busca pelo rigor e pela precisão acabou por gerar a fragmentação do saber e um senso

comum de que o homem não integra o mundo natural. Isso alimenta um sentimento

humano de superioridade quanto às outras formas de vida; provoca a sensação de poder

sobre a natureza e a utilização dela em benefício próprio, além de estimular o

individualismo.

Na visão do filósofo Paul Feyerabend (2007), a tentativa metodológica de tornar

a ciência cada vez mais racional, por meio da análise, da simplificação e da busca por

respostas definitivas, vira uma “fraqueza”. Segundo ele, não haveria conhecimento se a

ciência fosse tão perfeita. O que para alguns pensadores são erros ou desvios de método,

para Feyerabend são “precondições do progresso”. Apenas a dinâmica da vida e sua

imprecisão possibilitam o desenvolvimento, as transformações, como defende:

Sem “caos”, não há conhecimento. Sem um freqüente abandono da razão, não

há progresso. Idéias que na atualidade formam a própria base da ciência existem

apenas porque houve coisas como preconceito, presunção, paixão; porque essas

coisas opuseram-se à razão e porque se lhes permitiu fazerem o que quisessem.

Temos, então, de concluir que, mesmo no interior da ciência, não se pode e não

se deve permitir que a razão seja abrangente, e que ela, com freqüência, precisa

ser posta de lado, ou eliminada, em favor de outros instrumentos. Não há uma

única regra que permaneça válida em todas as circunstâncias, nem um único

meio a que se possa sempre recorrer. (FEYERABEND, 2007, p.220)

Antes de aprofundar em linhas de pensamentos que tentam estabelecer relações

mais complexas entre a “natureza do homem e a natureza da natureza”, vê-se necessário

vincular os pensamentos mecanicista e positivista ao jornalista, ao ser humano, e suas

práticas e modos ver e estar na atualidade.

1.3 O jornalista mecânico-positivista

Objetividade, veracidade e imparcialidade: estas são marcas predominantes do

jornalismo contemporâneo. Assim como o método de pesquisa proposto por Comte, o

jornalista deve ir a campo, levantar informações, colher testemunhos que as

comprovem, ordená-los e apresentar os resultados de maneira impessoal e objetiva.

Para apresentar esses resultados, assim como o método proposto por Descartes, o

profissional deve organizá-los de maneira que sejam facilmente compreendidos, sem

deixar dúvidas. Para isso, os dados que não podem ser comprovados, que não são

precisos, devem ser considerados inúteis ao entendimento do tema abordado.

O trabalho jornalístico convencional deve racionalizar os fatos e apresentá-los

com clareza e uma organização que faça dos dados apresentados verdades absolutas.

Objetividade, veracidade e imparcialidade são pressupostos de isenção jornalística e se

tornaram paradigmas do profissional que executa a função de reportar os fatos.

Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari (1982) apontam sete elementos para definir

o texto jornalístico informativo: brevidade, clareza, simplicidade, concisão, precisão,

exatidão e ritmo.

Notam-se itens semelhantes aos integrantes dos métodos de Descartes e Comte.

Como o texto e a apuração jornalística são ferramentas essenciais no cotidiano do

repórter, este modus operandi de trabalho sustentado pela tríade objetividade-

veracidade-imparcialidade se torna parte do modo de ser e agir do ser humano, indo

além do profissional. A tríade vira um paradigma, termo muito utilizado por Thomas

Kuhn em seu livro A estrutura das revoluções científicas (1962).

Os paradigmas são como moldes que delimitam a maneira do ser humano ver o

mundo. São compostos pela experiência de vida, pelas práticas diárias, vivências e

hábitos. Assim, são os paradigmas que demarcam o caminho por onde seguem as

percepções humanas. Pessoas com paradigmas diferentes – que trilham caminhos

díspares – podem não ter as mesmas percepções sobre um mesmo tema. É o chamado

efeito paradigma.

Apesar de o profissional de jornalismo ser, de modo geral, reconhecido como

alguém que possui boa formação intelectual e mobilidade para tratar de assuntos

diversos, ele também tem seus paradigmas. E, estes, são sustentados pelas

características de suas ferramentas e rotinas de trabalho, bem como vivências diárias.

Como diz Edvaldo Pereira Lima:

O repórter que sai à rua para cobrir um acontecimento está intrinsecamente

condicionado a “ver” aquela realidade de acordo com seus valores culturais,

com sua formação escolar, com a mentalidade básica vigente em sua época ou

em seu grupo racial, até mesmo de acordo com sua herança genética. (LIMA,

1998, p. 11)

A busca constante por precisão, exatidão, concisão, simplicidade e clareza faz do

jornalista que atua com a produção diária da notícia um profissional simplista, que trata

a realidade complexa como séries de fatos isolados, organizáveis e efêmeros, que

podem ser simplificados e transmitidos para serem entendidos com facilidade e

velocidade.

O superficial toma o posto do complexo. Como diz o professor e jornalista

Juremir Machado da Silva (2000, p.44): “Positivista tardio, o jornalista (generalização

caricatural) acredita que o verdadeiramente profundo encontra sempre uma forma

simples de expressão”.

É dessa forma que se molda o paradigma do jornalista mecânico-positivista. Um

ser que simplifica o complexo, que ignora o duvidoso, que trata o profundo como

superficial e ainda busca a verdade e a imparcialidade. Paradoxal, o jornalista é o ser

que consegue reunir, por exemplo, sentimentos de justiça e isenção.

Misto de intelectual e de carteiro, o jornalista explora essa ambivalência.

Acossado, exime-se de qualquer responsabilidade intelectual: é apenas o

mensageiro. Na ofensiva, substitui o intelectual e pensa com todas as facilidades

do poder midiático, sem as obrigações enfadonhas da demonstração. (SILVA,

2000, p.46)

Da já citada tríade objetividade-veracidade-imparcialidade, o mecânico-

positivista somente acredita se aproximar do que é objetivo. Engessado em seu

paradigma, ele cai no auto-engano – como o religioso radical que mata para defender a

paz proposta por sua crença.

Ao se identificar com os elementos e métodos do jornalismo contemporâneo, o

repórter pode transformá-los em verdades próprias. Como há a identificação, tudo o que

é contrário a eles se torna errado, inconveniente e deve ser descartado. É a metafísica

para Comte.

O pesquisador francês Edgar Morin chama esta relação entre o paradigma

estagnado e os modos de agir de “nova cegueira ligada ao uso degradado da razão”.

Segundo ele:

Qualquer conhecimento opera por seleção de dados significativos e rejeição de

dados não significativos: separa (distingue ou disjunta) e une (associa e

identifica); hierarquiza (o principal, o secundário) e centraliza (em função de

um núcleo de noções-chaves); estas operações, que se utilizam da lógica, são de

fato comandadas por princípios “supralógicos” de organização do pensamento

ou paradigmas, princípios ocultos que governam nossa visão das coisas e do

mundo sem que tenhamos consciência disso. (MORIN, 2007, p.10)

Preso a essas características, o profissional passa a ser um ser humano de

pensamentos pré-condicionados e lineares. Mais uma vez, ele está amarrado a

paradigmas que o limitam ao reducionismo, a uma realidade fragmentada vinculada ao

imediatismo e uma imparcialidade que causa danos ao difundir informações e modos de

ver que não estabelecem relações mais complexas. Ele alimenta um mundo cada vez

mais superficial.

O jornalista mecânico-positivista, na condição de mensageiro da sociedade,

executa as funções aparentes de informar e entreter – sustentadas pela ocorrência social,

pelo fato –, mas deixa de lado outras funções essenciais do jornalismo, como orientar,

educar e estimular a participação social, ou seja, a ação, o pensamento produtivo.

1.4 Ponto de ruptura

Uma característica que pode ser notada em parte dos jornalistas que sofrem com

as amarras do jornalismo contemporâneo é uma angústia, uma necessidade de ruptura

com a própria condição. Insatisfação pessoal e negativismo borbulham nas redações dos

jornais. E não é difícil notar que estes sentimentos não estão vinculados somente com

questões salariais ou excesso de trabalho ou somente a esta categoria de profissionais.

A vida como um todo passa por um momento de crise. Por um lado, a evolução

industrial e tecnológica gera benefícios diretos à vida do homem; por outro, acelera o

desequilíbrio social e ecológico. Por todos os lados “erro, ignorância e cegueira

progridem ao mesmo tempo que os nossos conhecimentos”, como diz Morin (2007,

p.9), e “as ameaças mais graves em que incorre a humanidade estão ligadas ao

progresso cego e incontrolado do conhecimento”.

Diante de uma maré de conflitos, vê-se a sociedade à deriva em meio à

violência, drogas, problemas psicológicos, entre outros. Porém, é possível notar uma

busca maior, um aumento de interesse das pessoas, pela melhoria da qualidade de vida,

da saúde e da preservação do meio ambiente, o que pode sinalizar a mudança de um

paradigma individualista para uma preocupação mais ampla, destinada ao bem-estar

como um todo.

O ser humano é um organismo complexo, imerso em subjetividade, que vive

conectado com as diversas formas de vida, mesmo que acredite “ter uma natureza

diferente da natureza dos outros”. Como parte de um superorganismo todo interligado

que é a Terra – ideia defendida pela Teoria de Gaia, do químico James Lovelock (2006),

que afirma que o planeta é um sistema que procura manter a vida por meio de uma auto-

regulação –, o ser humano que não busca uma compreensão mais ampla de sua condição

tende a sofrer com desequilíbrios ao não encontrar um caminho mais harmônico para

trilhar.

É uma dor, uma sensação de desespero não comentado, que integra o

inconsciente coletivo. E os jornalistas não estão isentos disso. Ou, como afirma Medina

(1998, p.a 24 e 25): “Há, sim, uma insatisfação muito latente nos profissionais mais

sensíveis diante das rotinas técnicas que comandam a produção de significados nas

empresas, instituições e grupos organizados das sociedades contemporâneas.”

A pesquisadora ainda associa essas sensações aos receptores da produção destes

jornalistas: “[...] a narrativa que por aí passa frequentemente deixa os consumidores,

fruidores ou parceiros do caos contemporâneo frustrados com o universo simbólico que

se oferece como organizado nas coberturas jornalísticas” (MEDINA, 1998, p.25).

E continua:

[...] a crise de percepção coisifica a consciência humana e perturba

profundamente as visões de mundo que se presentificam nas narrativas.

Paradigmas abalados, conflitos culturais e desumanização de cosmovisões

sacodem as certezas técnicas e tecnológicas da comunicação social assim como

dos demais atos de relação entre os homens. (MEDINA, 1998, p. 25)

Segundo as pensadoras e ativistas ecológicas Joanna Macy e Molly Young

Brown (2004), todo ser humano está suscetível a esta sensação de isolamento, que o

impede de tratar de preocupações profundas:

Embora, na superfície, concentremo-nos nas atividades cotidianas, por baixo há

a vaga consciência de uma catástrofe próxima. Tal como acontece com qualquer

forma de desonestidade, isso cria uma cisão interna, produzindo dúvidas e

levando-nos a desconfiar de nosso conhecimento interior, de nossa fonte mais

profunda de criatividade e de percepção. Isolados de nossa própria autoridade,

tornamo-nos mais suscetíveis à manipulação... (MACY, 2004, p.52)

Notar a necessidade da mudança de paradigmas, seja no âmbito profissional ou

pessoal, não é fácil. A visão de mundo torna a pessoa condicionada inconsciente de

como estes padrões de pensamento afetam seus modos de realizações cotidianas e de

percepção da realidade ao seu redor.

Questionar-se, duvidar das próprias crenças, pode vir a ser um colapso doloroso,

principalmente em razão da necessidade de romper as estruturas do que o ser humano

considera suas próprias ideias, sua identidade. Romper significa desfazer, destruir. E o

pensamento mecanicista e positivista não gosta disso. Ao invés de acabar com a

bagunça, ele prefere tentar organizá-la. No entanto, muitas vezes, para ampliar sua visão

de mundo, o homem precisa romper com seus velhos costumes.

1.5 O entendimento

Pensar sistemicamente significa estabelecer relações complexas entre elementos

em interação. Esta proposta surgiu a partir da Teoria Geral dos Sistemas, do biólogo

austríaco Ludwig von Bertalanffy (1968). Nela, ao estudar relações entre fenômenos

físicos e biológicos, ele propôs uma teoria geral que poderia ser aplicada às várias

ciências, sem se limitar a fronteiras disciplinares.

Um sistema, na visão de Bertalanffy, é um conjunto de componentes em estado

de interação. E reconhecer a interação entre estes componentes é essencial para pensar

sistemicamente. Ao desenvolver uma proposta que estabelece relações entre seus

elementos, o biólogo retomou o entendimento da vida como formas complexas em

constante mutação e contribuiu com o desenvolvimento de diversos campos do

conhecimento, como a psicologia, a física, a química, a matemática, a engenharia, a

economia, as neurociências, as ciências sociais e até o jornalismo.

O físico Fritjof Capra (2006) tem uma definição interessante para a visão

sistêmica. Segundo ele, nesta visão:

as propriedades essenciais de um organismo, ou sistema vivo, são propriedades

do todo, que nenhuma das partes possui. Elas surgem das interações e das

relações entre as partes. Essas propriedades são destruídas quando o sistema é

dissecado, física ou teoricamente, em elementos isolados. Embora possamos

discernir partes individuais em qualquer sistema, essas partes não são isoladas, e

a natureza do todo é sempre diferente da mera soma de suas partes. (2006, p. 40

e 41)

Capra afirma que este modo de pensar revolucionou profundamente o

pensamento científico, pois alterou a visão analítica cartesiana para a necessidade de

uma compreensão “contextual” dos sistemas. Houve uma reversão no processo – o que

era reduzido às análises das partes para entender o todo, agora pode ser compreendido

por meio da contextualização de relações mais amplas.

Para Vasconcellos (2002, p. 112), “contextualizar é reintegrar o objeto no

contexto, ou seja, é vê-lo existindo no sistema”. A autora aponta três características

essenciais para o “pensar sistemicamente”. Elas são: complexidade, instabilidade e

intersubjetividade (VASCONCELLOS, 2002, p. 101 e 102):

- Complexidade:

reconhecimento de que a simplificação obscurece as inter-relações de

fato existentes entre todos os fenômenos do universo e de que é

imprescindível ver e lidar com a complexidade do mundo em todos os

níveis. Daí decorre, entre outras, uma atitude de contextualização dos

fenômenos e o reconhecimento da causalidade recursiva.

- Instabilidade:

o reconhecimento de que “o mundo está em processo de tornar-se”. Daí

recorre necessariamente a consideração da indeterminação, com a

consequente incontrolabilidade desses fenômenos.

- Intersubjetividade:

o reconhecimento de que “não existe uma realidade independente de um

observador” e de que o conhecimento científico do mundo é construção

social, em espaços consensuais, por diferentes sujeitos/observadores.

Desde 1980, Morin se dedica ao estudo do pensamento complexo. Na visão do

pesquisador, essa linha de raciocínio não pretende eliminar a simplicidade. Ele afirma

que a complexidade aparece a partir da falha do pensamento simplificador, porém, ela

também absorve todo o modo operacional relacionado à simplificação - como ordem,

clareza, distinção e precisão no conhecimento.

Enquanto o pensamento simplificador desintegra a complexidade do real, o

pensamento complexo integra o mais possível os modos simplificadores de

pensar, mas recusa as conseqüências mutiladoras, redutoras, unidimensionais e

finalmente ofuscantes de uma simplificação que se considera reflexo do que há

de real na realidade. (MORIN, 2007, p.6)

Morin destaca que o pensamento complexo aspira ao conhecimento

multidimensional e sugere o reconhecimento de um princípio de incompletude e de

incerteza. Para o pesquisador, há uma tensão constante na busca por um saber não

fragmentado, mas há, em contrapartida, o reconhecimento de que qualquer

conhecimento é incompleto, inacabado.

Segundo ele, uma das características para observar a complexidade é o que

chama de “princípio dialógico”. Este princípio indica que é “impossível chegar-se a

uma unificação primeira ou última, a um princípio único, a uma solução monista.

Aplicar esse princípio significa articular, mantendo a dualidade no seio da unidade, sem

pretender realizar uma síntese, como acontece na dialética” (apud VASCONCELLOS,

2002, p.114).

Outra ideia importante que compõe o pensamento complexo é a causalidade

recursiva. A recursividade, segundo Morin, se refere aos processos em que efeitos e

produtos são necessários à própria ação que os gera. “Um processo recursivo é um

processo onde os produtos e os efeitos são ao mesmo tempo causas e produtores do que

os produz” (MORIN, 2007, p. 74).

A causalidade recursiva, então, está relacionada à transformação constante dos

sistemas, à instabilidade, e também à intersubjetividade, já que não há uma separação

entre produto e produtor. É a teia da vida, termo cunhado por Capra, que não para de se

alterar – que nasce, cresce, evolui, entra em colapso, adoece, sara, ganha, perde, morre,

renasce. Este aparente caos eternamente dinâmico que sustenta os sistemas vivos não

pode ser controlado, barrado ou fixado pelo ser humano. Tudo está em processo de

mutação e adaptação a todo instante.

Um terceiro princípio sugerido por Morin é o “hologramático”. Um holograma

físico é uma imagem tridimensional cujo menor ponto contém quase a mesma totalidade

do objeto em conjunto. Segundo o pesquisador, o princípio hologramático vai além do

reducionismo - que nota somente as partes do todo – e também é mais complexo que o

holismo, que só observa o todo.

[...] na lógica recursiva, sabe-se muito bem que o adquirido no conhecimento

das partes volta-se sobre o todo. O que se aprende sobre as qualidades

emergentes do todo, tudo que não existe sem organização, volta-se sobre as

partes. Então pode-se enriquecer o conhecimento das partes pelo todo e do todo

pelas partes, num mesmo movimento produtor de conhecimentos. (MORIN,

2007, p. 75)

Assim, como conclui Morin, a ideia hologramática está também interrelacionada

ao princípio da causalidade recursiva, que está ligada ao princípio dialógico.

Por meio destas duas visões, a sistêmica e a complexa, é possível notar que os

métodos que vem sendo adotados como verdades plenas – predominantemente no caso

das ciências e também do jornalismo – menosprezam um vasto campo de informações.

Estes métodos tratam dados complexos, em constante mutação e que sofrem

interferência de seus produtos e produtores a todo instante, como fatos completos,

definitivos e que foram gerados ou observados através da ingenuidade das lentes da

isenção humana.

1.6 O jornalista sistêmico, a visão complexa e a proatividade

Como visto, o jornalista mecânico-positivista possui uma série de características

que definem o modo contemporâneo de se praticar o jornalismo. Estas características

estão diretamente relacionadas com a maneira de ver e estar no mundo destes

profissionais. A ação do jornalista contribui com a criação da realidade ao seu redor, ou

seja, a forma como trata as informações e as transmite influencia o público a pensar e

agir de determinada maneira.

A partir do momento em que o jornalista se dedica a ampliar sua visão de

mundo, a transformar sua própria realidade por meio do desenvolvimento de uma mente

sistêmica ou outros termos semelhantes de conhecimento, ele reconhece a necessidade

de uma prática jornalística proativa. O ser humano atua com a consciência de que seu

modo de ser e agir afeta as realidades abordadas em suas práticas diárias e profissionais.

Ele não menospreza sua participação na construção da realidade e se vê como

responsável pela criação da realidade vivida.

Sem ignorar a simplicidade, o jornalista que busca praticar uma visão mais

complexa consegue demonstrar as relações entre dados, fatos, informações e opiniões.

Dessa forma, o objetivo meramente informativo da prática também é ampliado,

podendo ser mais compreensivo, educativo e até instigante às transformações.

O jornalismo praticado com intenção, de forma não-mecânica, pode vir a ser um

elemento de estímulo à ampliação da consciência individual e coletiva, do

autoconhecimento, de valorização da dignidade humana, da compreensão das sutilezas

das relações e do estímulo ao protagonismo por parte do leitor.

No entanto, para haver intenção por parte do jornalista, deve brotar nele uma

consciência mais ampla, que o instigue a romper com seus paradigmas. Caso contrário,

a visão restrita, preconceituosa, sustentada pelos padrões do jornalismo convencional e

da sociedade contemporânea, o fará um agente de preservação do pensamento atual.

Reconhecer a mente sistêmica é transformar a própria vida em um campo vasto

para o aprendizado constante e, essencialmente, descobrir-se como um ser em constante

transformação. Todo ser humano é o que produz.

Com os elementos apresentados anteriormente, nota-se diferenças básicas entre

o jornalista atual e aquele que se chama aqui de jornalista sistêmico:

Jornalista atual

Jornalista sistêmico

Observa o objetivo Observa o objetivo e o subjetivo

Pensamento linear Pensamento não linear

Imediatista Estabelece relações

entre passado, presente e futuro

Visão fragmentada Visão complexa da realidade

Superficial Valoriza a profundidade

Isento Proativo (Reconhece sua participação)

Prioriza a informação Prioriza a compreensão

*Quadro elaborado pelo próprio autor

Enquanto o jornalista mecânico-positivista trabalha com a informação rasa, o

jornalista sistêmico compreende que não é possível ignorar o passado e observar

tendências para o futuro para narrar o presente, assim como não é possível menosprezar

os sentimentos e emoções humanas, colhendo apenas dados e opiniões formais.

Logo, o objetivo desta proposta também é valorizar uma prática jornalística que

prioriza o conhecimento humano, a compreensão dos fatos por meio de narrativas

sustentadas pela consciência de que as informações transmitidas, bem como seus

ambientes, personagens e autores são elementos em plena interação e que tecem uma

história complexa.

Exercício 1 - Passo para desenvolver a mente sistêmica

Ao reconhecer esta nova tríade complexidade-instabilidade-intersubjetividade,

inicia-se o caminho em direção ao desenvolvimento da chamada mente sistêmica, que,

porém, não deve ser meramente compreendida, mas também experimentada,

vivenciada.

Num breve resumo, a complexidade amplia a forma de compreender o todo

observado, a instabilidade possibilita ver que tudo está em constante mudança e a

intersubjetividade situa os observadores como ferramentas recursivas do sistema,

fazendo com que as diversas visões sobre um mesmo objeto sejam criadoras daquela

realidade e complementares entre si.

Propõe-se aqui um exercício simples para potencializar este entendimento

adaptado a partir das características apontadas por Vasconcellos. Para vivenciar o

pensamento sistêmico é necessário adaptar-se a novas formas de observação. É

perguntar-se: “Quais são outras maneiras possíveis de se compreender esta mesma

coisa?”

Parte Um – Ampliar o foco de observação por meio do mapa mental

Primeiramente, desenvolva um mapa mental utilizando uma palavra ou

expressão inicial. Relacione rapidamente termos, expressões e objetos que, de algum

modo, façam referência ao termo central utilizado. Os mapas a seguir foram

desenvolvidos para o Curso Jornalismo Literário Avançado – Narrativas de

Transformação, ministrado no segundo semestre de 2009. Como no exemplo:

MAPA MENTAL 1

A partir da palavra “Sol”, encontra-se uma série de objetos que contribuem com

a ampliação da visão sobre um mesmo assunto. Este mapa mental, no caso, foi

produzido por uma única pessoa e em poucos segundos. Esta ferramenta auxilia no

estabelecimento de uma rede de ideias partindo de um tema central. Note como esta

rede é um sistema totalmente interligado.

Muito utilizado pelo professor Edvaldo Pereira Lima, ícone das pesquisas sobre

o Jornalismo Literário, o recurso pode ser aproveitado, por exemplo, para a produção de

pautas ou para a definição de uma ideia para produção de texto. Ele ajuda o observador

a ampliar seu campo de visão e identificar seus próprios paradigmas.

Parte Dois – Validar outras realidades, indo além dos paradigmas

Como visto anteriormente, por meio da intersubjetividade é possível notar outras

realidades identificadas através de pontos de vista diferentes. Continuando no mesmo

exercício, para ir além de seus próprios paradigmas, tente fazer um novo mapa mental

sem repetir as expressões e objetos já utilizados no anterior – preserve apenas a ideia

central.

Outro caminho é pedir para que uma segunda pessoa também faça um mapa

mental partindo da mesma ideia central. Em seguida, compare os mapas e procure

aceitar as ideias diferentes da sua. Divirta-se com a possibilidade de reconhecer outras

visões como parte de uma mesma rede. O mapa mental a seguir foi feito por uma

segunda pessoa. Note as diferenças:

MAPA MENTAL 2

O segundo mapa mental indica que a última pessoa tem paradigmas diferentes

da primeira. Ao reconhecer isso, o observador pode somar as formas diversificadas de

compreensão sobre um mesmo tema e ampliar sua rede de entendimentos do assunto.

Veja como um terceiro mapa mental ficaria mais amplo com a reunião dos dois

anteriores:

MAPA MENTAL 3

Parte Três – Produção de texto para focar a instabilidade

Após concluir os mapas mentais e identificar as diferenças entre eles, escreva

um texto narrativo-descritivo de poucas linhas que faça referência à ideia central

utilizada nas partes anteriores do exercício. Para produzir este texto, siga apenas uma

regra: não utilize o verbo “ser” nas descrições; substitua por “estar”.

Por exemplo: “A casa está bonita. Também, no Verão, o sol está mais forte, faz

calor. E as texturas das paredes coloridas estão tomadas pela claridade do céu azul que

invade a sala logo pela manhã”. Sem se prender, tente apenas estabelecer relações entre

as ideias apresentadas nos mapas mentais e, ao escrever, não se preocupe com a grafia,

com erros de português - isso deve ser deixado para outro momento da produção de

texto. O objetivo aqui é apenas focar o desenvolvimento da mente sistêmica. E esta

última parte do exercício propicia a observação do movimento, da instabilidade, do que

é descrito – nada é, tudo está.

Ao concluir o exercício, retorne ao começo e simplesmente observe o que

mudou em sua maneira de percepção quanto àquela mesma ideia central. Mudou algo?

Não? É difícil buscar novas perspectivas sobre um mesmo tema? Por quê? A proposta

aqui é pensar sobre a maneira de pensar. Além de ser uma busca por uma nova visão,

também pode ser divertido.

CAPÍTULO II – JORNALISMO DE COMPREENSÃO

Deve-se buscar a complexidade lá onde ela parece em geral

ausente, como, por exemplo, na vida cotidiana.

Edgar Morin

2.1 Notícia, informação jornalística e compreensão

O elemento fundamental do jornalismo convencional é o fato. É a novidade de

interesse público que compõe a notícia, que será transmitida com velocidade, de

maneira sintética, superficial e fragmentária. A notícia, por sua vez, é a base de todo o

potencial da produção narrativa jornalística. É o objeto mais simples de um conjunto de

componentes narrativos do jornalismo – que passam pelas técnicas de captação,

produção e edição textual realizadas para o ágil jornalismo virtual, para o diário, até a

elaboração de um jornalismo mais complexo, de maior profundidade, contido nas

grandes-reportagens e nos livros-reportagem.

No livro A reportagem – Teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística

(2001), Nilson Lage faz uma diferenciação entre notícia e informação jornalística. Ele

indica que o universo das notícias – que abrange o jornalismo convencional em geral – é

o das aparências do mundo (LAGE, 2001, p. 111):

O noticiário não permite nem persegue o conhecimento essencial das coisas,

objeto de estudo científico, da prática teórica e de boa parte da criação artística,

a não ser por eventuais aplicações a fatos concretos. Por trás das notícias corre

uma trama infinita de relações e percursos subjetivos que elas, por definição,

não abarcam.

O que importa na abordagem noticiosa é somente a informação direta, atual e de

periodicidade restrita. Ela não tem o objetivo de explicar ou justificar os

acontecimentos. Na visão de Lage, esta missão está mais próxima do que chama de

informação jornalística – que remete a uma produção mais elaborada, com maior

número de dados que possibilitam um entendimento mais amplo, associada a uma

“visão jornalística” do assunto tratado.

Ao publicar o resultado de uma prova de natação, por exemplo, a notícia destaca

que determinado nadador venceu a competição ao superar os adversários em poucos

milésimos de segundo e destaca a personalidade do atleta e o ranking da disputa. Essa

informação é destinada para o público em geral.

Diferenciada, a informação jornalística poderia trazer o novo treinamento do

atleta vencedor e como os técnicos da equipe têm conseguido otimizar os tempos de

seus esportistas por meio de trabalhos que vão além da piscina. Essa informação já seria

voltada para um público mais específico, no entanto, ela trabalharia com dados e

informações que se associam em um contexto mais abrangente, interpretativo e

explicativo.

Instituto Sangari lança Mapa da Violência 2010

Agência Brasil

SÃO PAULO - O Instituto Sangari lança hoje, em São Paulo, o Mapa da Violência 2010 - Anatomia dos Homicídios no Brasil, com um painel sobre a situação e a evolução dos homicídios no período de 1997 a 2007. O lançamento está marcado para as 10h na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

O estudo mostra a situação da violência por estados, capitais, regiões metropolitanas, municípios, faixa etária, sexo, raça/cor, gênero. Segundo a pesquisa, pela primeira vez desde 1979 houve um período de queda nos índices de homicídio do país.

O Instituto Sangari atua na área de educação em cerca de 15 países.

Aproximando a informação jornalística mais da abordagem da reportagem do

que da notícia, Lage (2001, p. 113) faz um resumo das distinções entre as duas práticas:

- a notícia trata de um fato, acontecimento que contém elementos de ineditismo,

intensidade, atualidade, proximidade e identificação que o torna relevante;

corresponde, frequentemente, à disfunção de algum sistema – a queda do avião,

a quebra da normalidade institucional etc. Já a informação trata de um assunto,

determinado ou não por fato gerador de interesse;

- a notícia independe, em regra, das intenções dos jornalistas; a informação

decorre de intenção, de uma “visão jornalística” dos fatos;

- a notícia e a informação jornalística contêm, em geral, graus diferentes de

profundidade no trato do assunto; a notícia é mais breve, sumária, pouco

durável, presa à emergência do evento que a gerou. A informação é mais

extensa, mais completa, mais rica na trama de relações entre os universos de

dados;

- a notícia típica é da emergência de um fato novo, de sua descoberta ou

revelação; a informação típica dá conta de um estado-de-arte, isto é, da situação

momentânea em determinado campo do conhecimento.

Mais um exemplo direto dessa diferenciação. No dia 30 de março de 2010, o JB

Online (http://jbonline.terra.com.br/pextra/2010/03/30/e300320727.asp) publicou a

seguinte notícia:

Com um texto direto, sem a utilização de personagens, a matéria assinada pela

Agência Brasil (e não por um repórter específico) tem como objetivo principal anunciar

o lançamento do estudo. Ela diz do que se trata e aponta que “pela primeira vez desde

1979 houve um período de queda nos índices de homicídio no país”, sem transmitir

qualquer dado aprofundado.

A matéria a seguir foi publicada no mesmo dia que a anterior pelo portal na

Internet do jornal O Globo (http://oglobo.globo.com/pais/mat/2010/03/30/mapa-da-

violencia-em-dez-anos-pais-registra-512-2-mil-assassinatos-916211521.asp) e trata da

mesma pesquisa. Porém, agora, o objetivo principal é observar as informações contidas

no estudo e, para isso, utiliza-se dos dados do levantamento e de entrevista com o

Mapa da Violência: Em dez anos, país registra 512,2 mil assassinatos

Demétrio Weber - O Globo e Agência Brasil

BRASÍLIA e SÃO PAULO - Os dados do Mapa da Violência 2010 - Anatomia dos Homicídios no Brasil, divulgado nesta terça-feira, mostram que, de 1997 a 2007, o Brasil registrou 512.216 assassinatos. Só em 2007, foram 47.707 vítimas, nada menos do que 130,7 por dia. Em 2007, a taxa de homicídios no país era de 25,2 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes, a mais baixa dos onze anos no período estudado. Ainda assim, apenas dois décimos menor do que a de 1997 (25,4). Ou seja, uma década depois, o país retomou o patamar de 1997. O estudo é baseado nos atestados de óbito do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.

A queda foi maior nas capitais do país, onde as ocorrências passaram de 45,7 homicídios a cada 100 mil habitantes em 1997 para 36,6 em 2007. Porém, no interior os números são bem diferentes. A taxa de homicídios no interior do país cresceu de 13,5 (a cada 100 mil) em 1997 para 18,5 em 2007. De acordo com o estudo, os dados indicam o fenômeno da "interiorização da violência", que começou na virada do século, e consiste no deslocamento dos pólos dinâmicos da violência das capitais e regiões metropolitanas para o interior.

Uma análise ano a ano mostra que as estatísticas poderiam ser piores. De 1997 a 2003, a taxa de homicídios no país cresceu na faixa de 5% ao ano, atingindo o pico de 28,9 assassinatos para cada 100 mil habitantes em 2003 - com 51.054 mortos. Depois disso, o índice caiu em 2004 (27) e 2005 (25,8), voltou a subir em 2006 (26,3) e alcançou seu menor patamar em 2007.

O sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, autor do mapa, diz que a queda em 2004 e em 2005 pode ser atribuída à campanha do desarmamento. Ele aposta que o Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), do Ministério da Justiça, dará bons resultados. Mas observa que o programa foi lançado ao longo de 2007, de modo que sua eventual contribuição dificilmente seria captada no estudo.

- Estamos num momento de equilíbrio instável. Nos últimos anos, as taxas vão baixando, mas não há uma tendência clara. São políticas estaduais, com apoio federal, que estão incidindo nos dados da realidade. O que acontece em São Paulo, Rio e Minas, estados com peso demográfico enorme, influencia a média nacional - diz Julio Jacobo.

Comparando-se os dois extremos do período analisado, a taxa de homicídios do país oscilou negativamente (- 0,7%), entre 1997 e 2007. O número absoluto de assassinatos, porém, aumentou de 40.507 para 47.707, um acréscimo de 17,8%. Essa elevação ficou abaixo do crescimento populacional de 18,6% no período. A taxa leva em conta o tamanho da população e, por isso, caiu.

coordenador do estudo para interpretar o que eles significam e dizer que “Em dez anos,

país registra 512,2 mil assassinatos”:

Não se compara aqui a qualidade jornalística dos materiais, mas apenas a

diferença entre o que Lage chama de notícia e o que denomina informação jornalística.

Na segunda matéria, é possível notar o trato diferencial da informação

jornalística. Mesmo trabalhando com uma série de dados apresentados pelo estudo, o

repórter faz um recorte, seleciona os dados conforme sua intenção e elabora seu texto.

Enquanto a primeira matéria simplesmente aponta a queda nos índices de

homicídio, a segunda traz a mesma informação - porém mais aprofundada - além de

demonstrar como o índice é calculado e que, apesar da queda, a taxa de homicídios no

Brasil no ano de 2007 era de 25,2 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes,

“apenas dois décimos menor do que a de 1997 (25,4). Ou seja, uma década depois, o

país retomou o patamar de 1997”.

A matéria de O Globo interpreta os dados. É explicativa, um pouco mais

extensa, mais completa e utiliza um leque mais vasto de dados sobre um assunto

definido (os números da violência no país por meio de um estudo sobre o tema),

apresentando sua condição momentânea através de uma visão jornalística específica.

2.2 Da informação explicativa à compreensão

A informação jornalística está voltada para o “esforço de determinar o sentido de

um fato, através da rede de forças que atua nele” (MEDINA e LEANDRO, 1973, apud

KÜNSCH, 2000). Enquanto a notícia preserva as questões clássicas do jornalismo – o

quê, quem, quando, como, onde, por quê -, a informação jornalística ultrapassa essas

barreiras, podendo ser ampliada, segundo Künsch (2000, p.112), em três possíveis

direções:

1) contextualização do fato nuclear num presente e num espaço conjunturais; 2)

humanização – “Humanizar um relato significa conduzi-lo a um nível de

generalização capaz de encontrar as preocupações do conjunto público,

fazendo-o reviver a história como se ele próprio fosse o herói” (Bernard

Voyenne); 3) pesquisa especializada (com auxílio de bibliografia, arquivo e

opiniões especializadas, através de pesquisas e enquetes).

Estes são os elementos que enriquecem o potencial informativo e interpretativo

da informação jornalística e têm como campo propício para sua aplicação a reportagem

e a grande-reportagem. Ou seja, narrativas jornalísticas mais extensas e aprofundadas do

que a notícia.

Em relação à linguagem ou texto jornalístico, ainda de acordo com Künsch

(2000, p. 112 e 113) citando Medina e Leandro, “a grande-reportagem oferece maiores

chances de se fugir das técnicas estabelecidas nos manuais, rumo à linguagem

expressiva, envolvendo criação artística e formas, especialmente sintáticas, mais

flexíveis”:

A linguagem expressiva tanto pode se valer dos recursos da fala (estilo

coloquial), quanto buscar formas surpreendentemente novas de criação literária.

Freada pelo jornalismo tradicional, “por meio de cânones de manuais ditos de

estilo”, essa forma de linguagem adquire maiores condições de existência

através da “renovação informativa por meio da interpretação”, que “criou

condições para um estilo também renovador”.

A narrativa de linguagem expressiva vence o limiar do vocabulário frio e

simplificador do jornalismo convencional. Quando trabalhada de forma criativa e

fluente pode atingir um nível de excelência acima do potencial informativo, explicativo

e interpretativo e alcança um novo patamar para a informação: o da compreensão.

De acordo com a pesquisadora Fabíola Paes de Almeida Tarapanoff (2009,

p.107), a compreensão – palavra que vem do latim comprehendere, que significa

abranger, abraçar – “é um pensamento que afaga, que não reduz, que é mais afeto ao

geral do que ao individual. Que congrega, faz conversar as partes e o todo. [...] Que traz

o uno e o múltiplo e considera cada um em sua singularidade, em suas características

que o fazem um ser único e belo”.

Para Richard Saul Wurman, entender a diferença entre dados brutos e aqueles

que podem ajudar na expansão do conhecimento torna o ser humano um “processador

de informação mais competente”. Ele diz: “Maior competência lhe dará mais confiança

e mais controle, permitindo-lhe relaxar. Sentindo-se mais relaxado e menos culpado,

você chegará à compreensão” (WURMAN, 1991, p.45).

O autor ainda aponta que a informação atua em "diferentes níveis de urgência

sobre nossa vida" e simplifica esses níveis em cinco categorias, que chama de "cinco

anéis": Informação cultural, informação noticiosa, informação de referência, informação

conversacional e informação interna (WURMAN, 1991, p. 47 e 48):

Informação interna: São as mensagens que governam nossos sistemas internos e

possibilitam o funcionamento do nosso corpo. Aqui, a informação toma a forma

de mensagens cerebrais. Provavelmente, temos um controle menor sobre este

nível de informação do que sobre os outros, mas é o que mais nos afeta.

Informação conversacional: São as trocas formais e informais, as conversas que

mantemos com as pessoas à nossa volta, sejam amigos, parentes, colegas de

trabalho, estranhos na fila de embarque ou clientes em reuniões de negócios. A

conversa - talvez por sua natureza informal - constitui uma importante fonte de

informação, embora nossa tendência seja desprezar ou ignorar seu papel. E, no

entanto, esta é a fonte de informação sobre a qual mais exercemos controle,

tanto como emissores quanto como receptores de informação.

Informação de referência: Aqui nos voltamos para a informação que opera os

sistemas do nosso mundo - ciência e tecnologia - e, mais imediatamente, para os

materiais de referência que usamos em nossa vida. A informação de referência

pode ser qualquer coisa, desde uma manual de física quântica até a lista

telefônica ou o dicionário.

Informação noticiosa: Ela abrange os eventos da atualidade - a informação

transmitida pela mídia sobre pessoas, lugares e acontecimentos que talvez não

afetem diretamente nossa vida, mas podem influenciar nossa visão de mundo.

Informação cultural: Esta é a forma menos quantificável. Abrange história,

filosofia e artes, qualquer expressão de uma tentativa de compreender e

acompanhar nossa civilização. Informações colhidas nos outros anéis são

incorporadas aqui para construir o conjunto que determina nossas atitudes e

crenças, bem como a natureza de nossa sociedade como um todo.

O grande desafio de uma narrativa jornalística destinada à compreensão é

conseguir vincular estes diferentes “níveis de urgência” da informação de modo que

possam ser transformados em conhecimento. Como aponta a doutora em Ciência da

Informação e Documentação, Marta Ligia Pomim Valentim (2003), a construção desse

conhecimento exige algumas competências como: "saber pensar; saber observar; saber

estabelecer relações; saber questionar; saber aproveitar o conhecimento acumulado

através de experiências vivenciadas ao longo da vida; ter capacidade de apreender; ter

consciência da própria ignorância".

Desse modo, a narrativa deve valorizar uma visão mais complexa sobre os fatos

narrados, não ignorar o universo subjetivo e perceber a dinâmica da vida como uma

dança sem fim – em constante mutação – além de reconhecer o autor, bem como sua

personalidade e a de seus personagens, como elemento essencial para a constituição da

realidade observada e vivida, sem desprezar sentimentos, emoções.

Para Medina (1999, p.24), “narrativa é aquela que a compreende como uma das

respostas humanas diante do caos”. A pesquisadora afirma que, ao narrar o mundo, o ser

humano organiza esse caos em um cosmos, se expressa e se “afirma perante a

desorganização e as inviabilidades da vida”. E, assim, ao narrar a realidade, constitui

outra realidade, a simbólica.

Na visão do jornalista Ricardo Kotscho (in Dimenstein e Kotscho, 1990, p.82), o

profissional que atua no jornalismo, principalmente o repórter, é essencialmente “um

contador de histórias da vida presente”. No entanto, para Künsch (2000, p.97), as

técnicas utilizadas pelo jornalismo – de bases positivistas-funcionalistas – “colaboram

na configuração de uma mentalidade reducionista, de empobrecimento simbólico”.

Lima vê o jornalismo convencional e sua prática narrativa como formas de

percepção da vida amparadas somente pelo intelecto. Segundo ele, esta abordagem

estreita da realidade limita uma compreensão mais ampla das coisas, pois está associada

a um único ângulo de uma realidade complexa. “Quando este ângulo é enfocado em

primeiro plano perde-se a visão do conjunto, já que a compreensão ampla requer

qualidades que ultrapassam a lógica reduzida” (LIMA, 1995, p. 16 e 17).

Para o pesquisador, a narrativa jornalística deve assumir uma atitude de

antecipação e compreensão multidimensional para cumprir a verdadeira missão de

auxiliar o público a compreender os acontecimentos do mundo contemporâneo. Ele

afirma que:

Compreender é diferente de explicar. A explicação adota geralmente uma visão

unilateral, verticalizada, de cima para baixo, reducionista. Mostra o mundo sob

uma ótica única ou de pouca abertura. Já a compreensão busca exibir o mundo

sob perspectivas diversificadas. Mais do que isso, ilumina as conexões entre

conteúdos aparentemente desconectados. Interliga dados, mostra sentidos,

perspectivas. Faz [...] com que o leitor perceba o que tem a ver, com sua própria

vida, tudo aquilo que está lendo. (LIMA, 2009, p.366)

Medina aponta ser necessário experimentar uma narrativa ao mesmo tempo

complexa, afetuosa e poética para enriquecer a realidade transmitida e possibilitar uma

compreensão ampliada da realidade, enquanto Lima indica a valorização da eficiência –

para informar e orientar com profundidade – e da fluência – para cumprir a missão com

elegância.

Morin recorda que a literatura do século XIX e início do século XX – mesmo

período em que a ciência tentava eliminar a singularidade para se deter a identidades

simples e limitadas – apresentava seres singulares em seus contextos e época, como em

Dickens e Balzac, por exemplo. Pela vida cotidiana, as narrativas literárias

demonstravam que são nestes espaços – de relações familiares, profissionais ou de

amizade – que todo ser é complexo e “tem uma multiplicidade de identidades, uma

multiplicidade de personalidades em si mesmo, um mundo de fantasias e de sonhos que

acompanham sua vida” (MORIN, 2008, p. 57).

De acordo com o autor, a compreensão é um conhecimento fundado sobre a

comunicação e a empatia intersubjetivas:

Assim, compreendo as lágrimas, o sorriso, o riso, o medo, a cólera, ao ver o ego

alter como alter ego, por minha capacidade de experimentar os mesmo

sentimentos que ele. A partir daí, compreender comporta um processo de

identificação e de projeção de sujeito a sujeito. Se vejo uma criança em prantos,

vou compreendê-la não pela medição do grau de salinidade de suas lágrimas,

mas por identificá-la comigo e identificar-me com ela. A compreensão, sempre

intersubjetiva, necessita de abertura e generosidade. (MORIN, 2008, p. 93)

Ao entrar em contato com uma narrativa destinada à compreensão, o leitor tende

a se identificar e se projetar para a realidade simbólica e a compreender a informação

transmitida com mais clareza. Diferente do jornalismo convencional, meramente

informativo ou explicativo, a narrativa de compreensão convida o receptor a um

mergulho mais intenso na história motivando maior retenção de dados e entendimento.

Segundo Luiz Gonzaga Motta (2002, p.310), estas produções jornalísticas

“contam histórias, independente do seu grau de noticiabilidade”. Em sua visão, o estilo

revela uma “certa permissividade na recriação simbólica do real narrado”.

Para que o repórter consiga gerar uma narrativa deste nível, inicialmente ele

precisa se familiarizar com exercícios brevemente apresentados a seguir:

- Entrevistas de compreensão: não se limita ao tema que se discute e pode se

tornar uma forma de expressão por si. Possibilita “o crescimento do contato humano

entre entrevistador e entrevistado” (LIMA, 2004, p. 107). Não se restringe a um roteiro

ou à pauta;

- Histórias de vida: recurso variável (conforme os objetivos do autor –

autobiográficos, entrevistas biográficas, fonte complementar ou suporte de pesquisa),

que pode ser relacionado aos métodos de captação da História Oral, utilizado para

reconstruir o passado, apresentar personagens e humanizá-los;

- Observação participante: quando o repórter acompanha o fato narrado,

podendo até interferir nos acontecimentos;

- Memória: é o “resgate de riquezas psicológicas e sociais” que permite chegar

“a uma dimensão superior de compreensão tanto dos atores sociais como da própria

realidade maior em que se insere a situação examinada” (LIMA, 2004, p. 127).

- Documentação: no processo de captação, é essencial para fundamentar o tema

tratado e aprofundá-lo. A pesquisa documental também comprova o que está sendo dito

pelo narrador.

A construção cuidadosa, arquitetada com critério para sintetizar o âmago de

toda uma viagem de compreensão ao centro do território do desconhecido, ao

âmbito do complexo. E mais perguntas. Cujas respostas não estarão

necessariamente ali, mas que farão o leitor conjeturar, lançar-se, quem sabe, ao

novo círculo de perguntas e sondagens, a novas esferas da ordem hierárquica

das realidades intersectadas, justapostas, interpenetradas. (LIMA, 2004, p. 170)

É exatamente pela soma da sensibilidade ampliada do olhar, dos exercícios de

captação e narração e do reconhecimento da realidade complexa que o jornalismo

literário se apresenta como principal aliado das narrativas de compreensão.

2.3 O reforço do Jornalismo Literário

Dentre os caminhos possíveis para uma prática jornalística de compreensão, o

jornalismo narrativo é o que mais se adequa a uma proposta teórica e técnica de

captação, produção e transmissão de informações com maior profundidade. A riqueza

textual absorvida da literatura por meio de técnicas como narração, descrição,

exposição, funções de linguagem, angulação e pontos de vista, permite ao autor a

elaboração de matérias que convocam o leitor a ampliar o potencial de compreensão do

que lhe é apresentado.

O estilo narrativo, que pode ser adaptado à variadas mídias, mas é destacado

aqui no formato da escrita, tem apresentado significativa evolução.

Nas décadas de 1960 e 1970, nos Estados Unidos, o estilo ficou conhecido como

New Journalism. Repórteres como Tow Wolfe, Gay Talease, Norman Mailer

mesclavam às reportagens técnicas de captação e criatividade textual e definiam o que

faziam como “um novo estilo de literatura”, “romance de não-ficção”, “história como

romance, romance enquanto história” ou “literatura da realidade” – todos sinônimos do

chamado jornalismo narrativo ou literário (LIMA; 2009, p. 353).

Além das formas tradicionais de captação de dados do jornalismo - como

entrevista, documentação, observação e memória, os novos jornalistas incluíram em

suas práticas elementos como: a construção cena a cena, os símbolos de status de vida,

os pontos de vistas diferenciados, o diálogo e o fluxo de consciência. Suas produções

eram feitas para periódicos – jornais e revistas – e para o formato de livro-reportagem.

Na visão de Tom Wolfe (2005), essa prática elevou o jornalismo a um nível

semelhante ao melhor da literatura. E toda essa questão estilística tornou-se uma

“filosofia de aprofundamento e técnica (narrativa) literária” (VILAS BOAS, 2003,

p.10).

Além das técnicas narrativas, o jornalismo literário propõe uma produção

jornalística sustentada por oito princípios filosóficos básicos: imersão, humanização,

voz autoral, simbolismo, exatidão e precisão, digressão, responsabilidade e

criatividade. Esses oito elementos-chave são apresentados por Norman Sims e Mark

Kramer no livro Literary journalism: a new collection of the Best american nonfiction,

de 1995.

Uma diferenciação essencial entre o jornalismo convencional e o literário está

diretamente ligada à sua relação com o tempo. Enquanto o jornalismo tradicional,

praticado para a publicação em periódicos, é sustentado pelo caráter factual, imediatista

e efêmero, o literário quebra a barreira do tempo e estende o entendimento de um fato,

uma época ou até mesmo um período histórico.

Tanto Lima quanto Medina apontam que o jornalismo literário e de

profundidade busca narrar não somente o fato e escapa de um período temporal preso ao

“hoje”, ao “ontem”. Lima (1998, p.20) diz:

(...) o jornalismo de profundidade deve buscar ler a contemporaneidade, um

conceito muito elástico do tempo presente, que transcende o meramente atual

para focalizar com grande pertinência as implicações, hoje, de eventos que não

se deram apenas ontem, mas sim há anos, décadas, talvez. Isso porque a

contemporaneidade abrange, muito mais do que meros fatos, tendências que se

formam ao longo do tempo nas mais diversas esferas da vida social, muitas

vezes combinando-se e se relacionando nesse desenrolar.

Exemplo conhecido dessa afirmação é o livro A Sangue Frio (2003), de Truman

Capote. O jornalista-escritor faz do que poderia ser apenas uma notícia de jornal diário

sobre o assassinato de uma família uma narrativa de fôlego. Capote mergulha no fato,

na história de vida dos personagens e nos ambientes onde se passa a história para

reconstruir a realidade complexa de um crime brutal ocorrido em novembro de 1959,

em Holcomb, nos Estados Unidos. O livro é um sucesso até hoje. Ele não ficou preso ao

tempo do fato ocorrido.

Sustentado pelas narrativas da vida real, o jornalismo literário não se restringe à

prática da reportagem, mas também abrange os textos biográficos e de memória - como

os perfis e os ensaios. Todas estas possibilidades práticas têm potencial para englobar

aqueles oito princípios filosóficos básicos para contar histórias universalizadas – que se

desprendem de editorias e áreas especializadas - e transmitir conteúdos jornalísticos de

qualidade, principalmente através da forma narrativa com que são tratados, com a

exatidão e precisão diferenciada do modelo burocrático do jornalismo tradicional e por

meio de uma valorização estilística sem precedentes.

Gay Talese, autor do famoso perfil Frank Sinatra está resfriado (2004), reúne

todas as características em suas reportagens. O autor abusa da criatividade (no melhor

dos sentidos) para apresentar dados precisos, que comprovem a existência dos

ambientes e personagens e ainda prendem o leitor à narrativa. Como quando descreve o

movimento da lanchonete Nedick‟s, “a barraquinha de cachorro-quente mais

movimentada do mundo”:

E 8 mil vão (ou são empurrados) até a Nedick‟s, onde passam uns quatro

minutos engolindo uma média de setecentos hambúrgueres, mil xícaras de café,

5 mil cachorros-quentes e 5500 refrescos de laranja. A Nedick‟s ocupa apenas

93 metros quadrados de terreno, e fica na esquina da R.H. Macy‟s. “Mas a gente

sempre diz que a Macy‟s fica perto da Nedick‟s”, diz o presidente da cadeia

Nedick‟s, Lewis H. Phillips.

A barraquinha de cachorro-quente prospera naquela esquina desde 1947, o

faturamento anual é estimado em 400 mil dólares, com refrescos de laranja a

dez centavos, cachorros-quentes a vinte e hambúrgueres a quarenta. Dia e noite,

ouve-se o tilintar das caixas registradoras, salsichas giram nos espetos, a

laranjada jorra nos copos e o ar fica saturado de ansiedade e do chiado da carne

de porco, em meio a diálogos rápidos entre fregueses e balconistas. (TALESE,

2004, p. 93 e 94)

A veracidade dos fatos e dados, aquela que pode ser comprovada ou identificada

como concreta, também é fundamental no jornalismo literário como em qualquer prática

jornalística. Portanto, mesmo com a liberdade de estilo e de construção da narrativa, o

jornalismo literário é constituído por fatos reais e pela responsabilidade de seus

autores.

Para escrever o livro 102 minutos – a história inédita da luta pela vida nas

torres gêmeas (2005), Jim Dwyer e Kevin Flynn reconstruíram o atentado contra o

World Trade Center ao cruzar relatos de sobreviventes. A riqueza de dados precisos

elimina dúvidas sobre a possível falsidade dos fatos:

Uma bomba, pensou Dianne de Fontes, quando pensar tornou-se possível

novamente. Às 8h46:30, um impacto a jogara para fora da cadeira no escritório

de advogados do 89º andar da Torre Norte, no World Trade Center 1. A porta

girava, toda aberta, embora ela a tivesse travado em cima e embaixo. Em outro

ponto do andar, Walter Pilipiak acabara de abrir a porta do escritório da Cosmos

Internacional, uma corretora de seguros da qual era presidente. Akane Ito ouviu-

o chegar e levantou os olhos para cumprimentá-lo de sua mesa. Antes que

Walter pudesse responder “bom-dia”, sentiu algo atingir sua cabeça por trás e

foi lançado contra a parede. As placas que recobriam o teto caíram sobre Akane.

Uma bomba, concluíram, depois de respirar fundo várias vezes. (DWYER E

FLYNN, 2005, p.31)

Assim como no convencional, as informações transmitidas no trecho do livro de

Dwyer e Flynn são verificáveis - como a existência da empresa Cosmos Internacional

no 89º andar da Torre Norte do World Trade Center 1 ou o horário preciso em que uma

das aeronaves atingiu aquele prédio.

O que também permite uma diferenciação do jornalismo convencional do

literário são as asserções sobre o mundo real pela própria visão de mundo e participação

do autor e dos personagens. É a realidade simbólica definida por Medina.

Em O último herói americano, do livro Radical Chique e o Novo Jornalismo

(2005), Tom Wolfe mergulha no universo das corridas de stock-car para acompanhar

um prova com participação do piloto Junior Johnson. No trecho a seguir, Wolfe faz a

imersão na história e se apresenta como narrador participante da cena e ainda faz

reflexões e digressões sobre o que observa e vivencia:

E, de repente, na manhã de domingo, meu carro pára no maior

congestionamento da história do mundo. Estende-se por quinze quilômetros em

todas as direções na rodovia expressa North Wilkesboro. E bem ali me ocorre

que, pelo menos diante dessa situação, todas as idéias convencionais sobre o Sul

se limitam... ao rádio de domingo. (WOLFE, 2005, p.88)

Ao fazer a imersão, Wolfe se transforma em parte da história; em autor e

personagem simultaneamente. Este mergulho possibilita que ele transmita ao leitor suas

impressões, facilitando o entendimento da condição em que se encontra. Ele trabalha a

capacidade de imaginação do leitor. Ao dizer que está parado “no maior

congestionamento da história do mundo”, Wolfe também utiliza de seu modo de ver.

Sua voz autoral, seu estilo, expressa sua maneira de enxergar aquela realidade. Este

modo de produção jornalística, então, também permite que o jornalista interprete a

realidade observada.

E é por meio da humanização, das histórias de vida, das experiências do outro,

das virtudes e fragilidades que o leitor se identifica. O jornalismo literário traz em seu

centro as pessoas, os personagens da vida real. A partir das vivências do cotidiano, dos

movimentos e ações dos seres humanos é que ocorrem os fatos. Ao preservar e valorizar

as histórias das pessoas, seus modos de ver, suas partes física e psicológica, o

jornalismo – mais uma vez – conquista o leitor com maior intensidade.

Em 1942, o jornalista Joseph Mitchell publicou na revista The New Yorker o

perfil de Joe Gould (Professor Gaivota), um excêntrico boêmio nova-iorquino. Uma das

peculiaridades do personagem está em seu modo de vida: o próprio Gould diz destoar

“do resto da humanidade porque não quer ser proprietário de nada” (MITCHELL, 2003,

p.13). Formado em Harvard, ele vive “de ar, auto-estima, guimba de cigarro, café de

caubói, sanduíche de ovo frito e ketchup”, e afirma estar escrevendo um livro de

História Oral onze vezes maior que a Bíblia e com mais de nove milhões de palavras:

Gould tem a voz fanhosa e o sotaque de Harvard. O pessoal que trabalha nos

bares do Village se refere a ele como Professor, Gaivota, Professor Gaivota,

Mangusto, Professor Mangusto, Garoto do Bellevue. Ele veste roupas usadas

que ganha dos amigos. O capote, o terno, a camisa e até os sapatos

invariavelmente são grandes demais, porém ele os usa com uma espécie de

garbo desolado. “Olhe só para mim”, costuma dizer. “A única coisa que serve

direitinho é a gravata.” Nos dias mais terríveis do inverno, procura proteger-se

do frio colocando algumas folhas de jornal entre a camisa e a camiseta. “Sou

esnobe: só uso o Times”, diz ele. Para cobrir a cabeça gosta de peças incomuns

– gorro de esquiador, boina, boné de marinheiro. Numa noite de verão apareceu

numa festa com um terno de anarruga, camisa pólo, faixa escarlate, sandálias e

boné de marinheiro – tudo doado. Tem uma piteira preta e comprida e em boa

parte do tempo fuma guimbas que cata nas calçadas. (MITCHELL, 2003, p. 12

e 13)

O repórter descreve objetos e situações do dia-a-dia do personagem que não são

necessariamente símbolos de conquista, mas que definem quem ele é e o aproximam do

leitor.

No livro O Nome da Morte (2006), o jornalista Klester Cavalcanti conta a

história de Júlio Santana, um matador de aluguel que exterminou 492 pessoas. O

personagem central do livro afirma ter entrado para o mundo do crime por total

influência de um tio, diz não entender o motivo pelo qual as pessoas desejam a morte

das outras até descobrir que era enganado pelo próprio homem que o colocou naquela

vida desde menino:

Desorientado, ele saiu correndo pelas ruas de terra de Imperatriz. Chorava de

ódio e tristeza. Também sentia um certo arrependimento por não ter matado

Cícero. Já havia assassinado tanta gente que nem conhecia e que talvez nem

merecesse morrer. Pela primeira vez na vida, quis matar alguém por vontade

própria. Deveria ter feito. Mas não queria entristecer a alma de seu pai. Só

voltaria a ver o tio oito anos mais tarde, em 1993. Era o enterro de Cícero

Santana. Júlio só foi ao cemitério pela consideração que tinha à amizade que ele

e o tio desenvolveram nos seus tempos de menino. (CAVALCANTI, 2006, p.

210)

Mesmo ao contar a história de um homicida, o repórter não deixa de destacar as

relações humanas, os sentimentos e conflitos. Ele expõe ao leitor a complexidade do

fato narrado. A humanização, associada ao ritmo do texto, transmite o drama vivido

pelo personagem ao descobrir que era traído por um homem em quem confiava, tinha

admiração desde menino, mas que o colocou na odiosa vida do crime. Uma afeição é

gerada ao tocar os sentimentos do leitor e associá-los aos do personagem. De forma

criativa, o autor coloca o leitor no lugar no Júlio Santana.

Mesmo com toda a técnica associada ao jornalismo literário, muitas vezes

apresentar uma determinada história pode precisar de algo mais para prestigiar a

realidade simbólica composta pela narrativa. Quando isso ocorre, sai de cena o relato

objetivo para dar espaço ao simbolismo – um discurso mais poético, com uso de

metáforas, que expressa informações que não foram verbalizadas e estão ocultas e são

sutis. Como na abertura de uma das reportagens de Eliane Brum para o livro A Vida que

ninguém vê (2006) – livro que mereceu o Prêmio Jabuti de livro-reportagem de 2007:

O Zoológico de Sapucaia do Sul abrigou um dia um macaco chamado Alemão.

Era um domingo de sol, Alemão conseguiu abrir o cadeado e escapou. Ele tinha

o largo horizonte do mundo à sua espera. Tinha as árvores do bosque ao alcance

de seus dedos. Tinha o vento sussurrando promessas em seus ouvidos. Alemão

tinha tudo isso. Ele passara a vida tentando abrir aquele cadeado. Quando

conseguiu, virou as costas. Em vez de mergulhar na liberdade, desconhecida e

sem garantias, Alemão caminhou até o restaurante lotado de visitantes. Pegou

uma cerveja e ficou bebericando no balcão. Os humanos fugiram apavorados.

(BRUM, 2006, p.54)

Quando exercida com dedicação e qualidade, valorizando os princípios

filosóficos do jornalismo literário, a prática jornalística aspira composição de uma

narrativa “sutil e complexa, afetuosamente comunicativa e iluminando no caos alguma

esperança do ato emancipatório” (MEDINA, 1999, p. 25).

Ao contrário do conhecido formato padrão e da isenção jornalística, o jornalismo

literário, por meio de suas complexas asserções sobre o mundo real, e não por

transmissões de informações friamente objetivas, descreve e interpreta os

acontecimentos com profundidade. A prática não se limita à mera informação; ela

também associa visões sobre a atualidade descrita. Esta é a “arte de tecer o presente”.

O que o convencional não permite é exatamente esta afirmação perante o caos.

Ele apenas o apresenta e se afasta. O jornalismo tradicional entrega a informação ao

receptor e o abandona em seguida. Não há afirmação. Não há tentativa de contribuição

com a emancipação do pensamento do leitor. A informação burocrática não ajuda o

receptor a trilhar um caminho próprio; ela o mantém na linha do pensamento

improdutivo (como será visto mais adiante).

Nota-se como no jornalismo literário, além da série de técnicas e princípios

filosóficos propostos, há a necessidade de uma participação ativa do jornalista não

somente como profissional, mas também como ser humano. Para praticar o jornalismo

literário, a expressão pessoal também se faz essencial e desenvolver reflexões sobre a

representação complexa deste estilo jornalístico é um convite para que os jornalistas-

escritores assumam responsabilidades quanto à “autoria de sentidos renovadores e

reestruturadores” (MEDINA, 1998, p. 196).

Não é possível fazer jornalismo literário se menosprezar o próprio lado humano,

as opiniões, sensações e sentimentos. Não é possível praticar o jornalismo literário e de

compreensão sem manter uma atenção mais complexa sobre a realidade.

Autor de jornalismo literário tem nome, rosto, corpo, cabeça, tronco, membros.

Tem mente e coração. Pensa e sente. É um estudioso constante da realidade.

Interpreta, avalia, busca unir os fios de compreensão que unem ações, pessoas,

ambientes. Tem virtudes e defeitos. Enxerga coisas que pessoas menos

exercitadas para contar histórias não enxergam.

Mas é sua leitura particular do real, seu pensamento narrativo, que interessa ao

leitor. O autor, em jornalismo literário, é embaixador do leitor, que gostaria

talvez de ter estado presente numa situação descrita pelo autor, mas não poderia.

Assim, vive a experiência, simbolicamente, através do autor. Por isso, quer a

sua sinceridade narrativa. (LIMA, 2004, p.369 e 370)

Não é possível ser isento, mas é necessário fazer escolhas conscientes sobre o

que se busca e quanto ao que se pretende. Na escola brasileira do jornalismo literário,

esta prática proativa, associada a uma abordagem mais complexa, recebeu o nome de

Jornalismo Literário Avançado. No entanto, antes de apresentá-la, observe mais um

recurso para contribuir com o desenvolvimento das técnicas narrativas e de

compreensão.

Exercício 2 - Pensar narrativamente: sensibilização e criatividade a campo

No livro Vida de Escritor (2009), Gay Talese conta algumas de suas

experiências como narrador da vida real. Em uma de suas reportagens, ele acompanhou

os julgamentos originados em um conflito conjugal que acabou com um pênis decepado

e arremessado pela janela de um carro em movimento.

Para construir sua reportagem sobre o assunto, Talese observa que tipo de

situação vai enfrentar, o que deve notar em cada passo e como poderá transformar tudo

aquilo em texto. Talese pensa narrativamente. No trecho a seguir, o jornalista comenta

sua frustração ao saber do adiamento de um dos julgamentos, o que o impediria de

construir sua narrativa do modo que havia imaginado e entregá-la no prazo:

Não fiquei nada satisfeito, pois isso me obrigaria a modificar a abordagem do

artigo que devia ser entregue em setembro. Eu tinha pensado em começar a

matéria com uma descrição da sala de audiências apinhada, na abertura do

primeiro dia de julgamento, e tinha planejado um lead centrado em Lorena

Bobbitt no momento em que ela se sentasse no banco de testemunhas e

começasse a depor contra o marido, sentado à mesa da defesa a poucos metros

dela. [...]

Mas qualquer que fosse a decisão do júri e o rumo tomado pelas coisas, eu

pretendia escrever sobre o processo centrando toda a matéria na sala de

audiências, o único lugar para onde convergiriam todas as pessoas direta ou

indiretamente envolvidas no processo – o casal antagonista, seus advogados,

seus consultores, seus simpatizantes, seus detratores, os jurados, o juiz e a

mídia. [...] Eu poderia detectar e relatar qualquer desconforto que um deles

causasse ao outro, e ambos seriam sem dúvida pressionados pelos advogados do

oponente quando fossem inquiridos. (TALESE, 2009, p. 350 e 351)

Desenvolver o acesso a uma visão de mundo diferente pode estar ao alcance de

qualquer um. Para produzir uma narrativa com essa visão ampliada é necessário

sensibilidade e criatividade. É preciso aprender a ouvir, a observar, a sentir o odor, o

paladar, o toque e saber transitar pelo universo a ser narrado.

Uma forma interessante para se praticar essa viagem ao mundo da criatividade é

o contato com as artes e com a própria imaginação. Neste exercício, propõe-se que o

leitor encontre um recurso que o estimule a pensar narrativamente, ou seja, quando

observar um determinado acontecimento, imaginar de que maneira aquele fato poderia

ser contado na forma narrativa.

Grandes artistas, escritores, pintores e compositores conquistam-nos por

conseguir nos transportar para uma outra realidade através dos nossos sentidos.

A letra de Camarim, música do sambista Cartola e Hermínio Bello de Carvalho,

por exemplo, nos leva a acompanhar a curta, porém intensa, viagem do artista que se

prepara para o show em seu camarim, entra no palco, canta e recebe os aplausos da

plateia:

A poesia de Cartola nos transporta para aquele momento do artista. Enriquece

nossa imaginação com detalhes da cena – são as rosas murchando, o sinal do contra-

regra, a luz sobre a plateia, os bilhetes no espelho.

Todos estes elementos nos remetem ao ambiente em que se passa a história, mas

também transmitem as sensações do narrador, do próprio artista, como quando ele diz,

por exemplo, “no camarim nem sempre há euforia”. Especialmente quando se ouve a

música, há uma impressão de tranquilidade e reflexão sobre aquele momento do artista;

e até um certo vazio que só se completa quando ele entra no palco e solta a voz: “de

nada sinto falta, sou eu mais uma vez”.

Um ótimo recurso para ajudar a pensar narrativamente é a visualização criativa.

Para este exercício, o ideal é que se tenha acesso à música utilizada como exemplo.

Mas, se não tiver, não há problema.

Tente ficar em um local confortável e tranquilo. Mantenha papel e caneta por

perto. Sente-se, preferencialmente com os pés apoiados no chão, sem cruzar as pernas, e

Camarim

No camarim as rosas vão murchando

E o contra-regra dá o último sinal

As luzes da platéia vão se amortecendo

E a orquestra ataca o acorde inicial

No camarim nem sempre há euforia

Artista de mim mesmo nem posso fracassar

Releio os bilhetes pregados no espelho

Me pedem que jamais eu deixe de cantar

Caminho lentamente e entro em contra-luz

E a garganta acende um verso sedutor

O corpo se agita e chove pelos olhos

E um aplauso escorre em cada refletor

Pisando esta ribalta, cantando pra vocês

De nada sinto falta, sou eu mais uma vez

As rosas vão murchar, mas outras nascerão

Cigarras sempre cantam, seja ou não verão

com a coluna reta. Não deite. Coloque as mãos sobre as pernas, ou, com a palma da mão

esquerda voltada para cima – logo abaixo do umbigo – apoie o dorso da mão direita e

relaxe os ombros. Feche os olhos e volte sua atenção para a sua respiração. Não a

controle, apenas a observe. A tendência é que o ritmo de seus pensamentos seja

reduzido, trazendo calma e tranquilidade. Este é um dos princípios da meditação,

purificar a mente.

Depois de permanecer alguns minutos neste estado, acione a música e volte a

fechar os olhos. Caso não tenha acesso a ela, pegue a letra e leia calmamente. Tente

apenas transportar-se, por meio da imaginação, ao ambiente da narrativa. Note a riqueza

de detalhes, imagine as cores do camarim, o cheiro das rosas, o toque, os objetivos e as

sensações contidas naquele espaço e as sensações das pessoas que ali estão. Observe

que, na cena, outras pessoas aparecem – como o contra-regra e o próprio público, a

plateia.

Depois de visualizar criativamente todo o espaço da narrativa, é hora de pensar

narrativamente. Mais uma vez, permita-se retornar ao camarim, mas agora de uma

maneira diferente.

Observe que, dentro desta mesma cena, você (como observador) pode estar em

posições variadas; vendo tudo aquilo de diferentes perspectivas, tendo diferentes

impressões. Por exemplo, na visão do contra-regra, que dá o último sinal antes da

entrada no artista no palco; ou de um membro da plateia, que aguarda o show; ou até

mesmo de um narrador onipresente, que acompanha o artista o tempo todo, e conta a

história na terceira pessoa.

Tente buscar outras formas de contar essa mesma história. Não se esqueça dos

detalhes, das sensações. Pense narrativamente e escreva.

Este exercício é uma pequena adaptação do método da Escrita Total,

desenvolvido por Edvaldo Pereira Lima, e apresentado na íntegra no livro Escrita Total

– Escrevendo bem e vivendo com prazer, alma e propósito (2009), lançado pelo Clube

de Autores. Mais informações sobre o método são citadas na parte seguinte deste

estudo.

CAPÍTULO III – JORNALISMO LITERÁRIO AVANÇADO

O escritor torna-se grande por causa da profundidade de sua

compreensão da situação humana.

Leo Lowenthal

3.1 Uma base holística para a narrativa do real

As atuais condições do mundo têm exigido cada vez mais que a espécie humana

amplie sua consciência e altere seu modo de pensar e agir. Esse enorme organismo vivo,

que é o planeta Terra, tem mostrado sinais claros de desequilíbrio. Mudanças climáticas,

catástrofes naturais, guerras, conflitos armados, a violência urbana, desenvolvimento de

epidemias, de transtornos mentais, entre outros. Estas são demonstrações de que o

mundo, a vida como um todo, chegou a um ponto elevadíssimo de tensão.

Para o escritor e dramaturgo francês, Jean-Claude Carrièrre (2007, p.187),

profundo conhecedor do budismo, os chamados terrores modernos são obras humanas.

“A natureza tem cada vez menos participação, ou melhor: as degradações sofridas pelo

planeta são conseqüências de nossa presença e de nossa ação. Não podemos culpar

ninguém”.

Na visão do mestre espiritualista Eckhart Tolle, em seu livro O Poder do Agora

(2007), a humanidade sofre uma grande pressão para se desenvolver, pois esta é sua

única chance de sobreviver. E isso afeta cada aspecto da vida humana e de seus

relacionamentos.

Este momento de pressão exige do ser humano uma ruptura de paradigma. Uma

transformação na maneira de ver, sentir e estar neste mundo imerso em conflitos. O

jornalismo de compreensão tem como missão voltar-se para a realidade para auxiliar as

pessoas a formarem novas concepções do dinamismo da vida e suas relações. Ele deve

agir como um catalisador para a ruptura de paradigmas.

Porém, para que isso ocorra, é necessário que este estilo jornalístico também se

proponha a manter-se em uma constante e incansável busca evolutiva por meio de

teorias e práticas que possam, efetivamente, expandir a consciência do leitor quanto ao

conhecimento de si e do mundo em que vive.

Segundo Edvaldo Pereira Lima (2009), a tradição do jornalismo literário já

acarreta uma sólida bagagem no que diz respeito à sua tecnologia narrativa para a

expressão do real. No entanto, o autor afirma que existe uma necessidade de atualização

no tocante ao acompanhamento das novas perspectivas de compreensão que vêm sendo

produzidas em campos avançados das ciências. Na visão de Lima (2009, p.437):

Precisamos ampliar nossos horizontes de percepção, expressar nossas

descobertas narrativamente, absorvendo novos conteúdos de entendimento,

inserindo o novo quadro em nossos exercícios da arte de se contar histórias.

Precisamos mostrar o mundo, na sua complexidade, com olhares e sentimentos

novos.

Lima propõe um caminho em direção a um nível mais orgânico e essencial ao

pensamento complexo sustentado por instrumentos compostos por uma base holística

para as narrativas da vida real. Para ele, uma das funções desta produção jornalística é

“traduzir narrativamente conhecimentos complexos, tirando-os do campo exclusivo dos

especialistas e universalizando-os” e integrando contribuições de distintos campos de

conhecimento. É o que chama de Jornalismo Literário Avançado.

O autor sugere alguns alicerces para a composição de sua proposta de ideal

holístico: a transdisciplinaridade, a física quântica, a teoria dos campos morfogenéticos

e a psicologia humanista, além das neurociências e da mitologia.

Segundo Pierre Weil – no prefácio do livro Introdução à Visão Holística (1989,

p.11), de Roberto Crema –, o campo da holística é um espaço “onde correntes já

existentes podem encontrar-se na busca de soluções criativas para os problemas

específicos de nossa época, levando em conta a experiência do passado”. Ele ainda

afirma que essa abordagem determina uma abertura de espírito dos especialistas para

observar e transitar por áreas vizinhas ou distantes, além da dissolução de tendências

reducionistas e da adoção de uma ética que possa impedir aplicações tecnológicas

irresponsáveis.

No decorrer deste capítulo será possível notar que os alicerces apresentados por

Lima estão totalmente relacionados com propostas já citadas anteriormente e que elas se

complementam através de visões de diferentes campos do conhecimento humano.

3.2 Transdisciplinaridade

A transdisciplinaridade, por exemplo, é um movimento que busca reunir ciência,

arte, filosofia e tradições. Lima aponta o princípio dialógico entre estas áreas como

forma de compreender a realidade de maneira mais ampla e satisfatória.

A ciência apela para o experimento comprobatório, a filosofia procura

discernimentos pelo raciocínio, a arte chega à realidade pelas vias estéticas e da

intuição, as tradições (incluindo-se aí o conhecimento religioso, assim como a

cultura dos povos nativos) trazem uma leitura diferenciada, codificada em

parâmetros que têm méritos intrínsecos, embora possam parecer estranhos, em

princípio, à cultura racionalista de origem européia. (LIMA, 2009, p.440)

Nota-se como a não fragmentação das áreas de conhecimento permite uma

conversação sadia da informação objetiva com os mistérios do subjetivo, do

conhecimento científico com a sabedoria popular e entre a prova material e a fé

espiritual. A transdisciplinaridade aceita a interdependência e a contextualização entre

séries de fatores que constituem uma realidade complexa – sejam eles objetivos ou

subjetivos.

A flexibilidade para transitar entre os campos de conhecimento expande a

abrangência narrativa, estendendo o potencial de entendimento do conteúdo abordado.

Em uma mesma história, o autor se permite citar estudos científicos, experiências de

vida, estabelecer relações com as artes plásticas, o cinema, a música e obras literárias e

ainda descrever acontecimentos baseados na fé, na crença ou nas tradições populares.

Assim, o autor passeia pelas chamadas disciplinas para universalizar o que era restrito a

um campo específico.

Esse trânsito pelos campos variados do conhecimento possibilita a consolidação

do que John B. Thompson (2001) chama de auto-identidade e identidade coletiva.

Segundo ele:

a auto-identidade é o sentido que cada um tem de si mesmo como dotado de

certas características e potencialidades pessoais, como um indivíduo situado

numa certa trajetória de vida. A identidade coletiva é o sentido que cada um tem

de si mesmo como membro de um grupo social ou coletividade; é um sentido de

pertença, de ser parte de um grupo social que tem uma história própria e um

destino coletivo. (THOMPSON, 2001, p. 164 e 165)

Na visão de Thompson, essas identidades podem ser alimentadas por conjuntos

de pressuposições, crenças e padrões de comportamento trazidos do passado e, na

atualidade, pode passar por alterações principalmente com o desenvolvimento dos

meios de comunicação.

Ele afirma que “as tradições fornecem material simbólico para a formação da

identidade tanto a nível individual quanto a nível coletivo”. O pesquisador ainda diz que

esse processo de formação “nunca pode começar do nada; sempre se constrói sobre um

conjunto de material simbólico preexistente que constitui a fonte de identidade”

(THOMPSON, 2001, p. 165). É a influencia do passado sobre a formação das

identidades do presente e do futuro.

Dentro desta perspectiva, o Jornalismo Literário Avançado pode trazer

novamente à tona esse material simbólico para potencializar as relações entre os

conhecimentos, o processo de consolidação da auto-identidade e da identidade coletiva

e o desenvolvimento da empatia. Com essa capacidade, o indivíduo passa a se imaginar

no lugar do outro, “se torna mais expansivo, ansioso, aberto; e ao invés de se ver

localizado num ponto fixo de uma ordem imutável de coisas, percebe a própria vida

como um ponto que se move ao longo de uma trajetória” (THOMPSON, 2001, p.166 e

167).

3.3 Física quântica

O segundo aporte indicado por Lima também é responsável por grandes

transformações na visão científica. A física quântica, por meio do trabalho do físico

alemão Heisenberg, descobriu que as partículas atômicas não podem ser observadas

objetivamente, pois o próprio ato de observar interferia e modificava a “realidade do

objeto observado”. A descoberta, chamada de “princípio da incerteza”, acabou com a

precisão das fórmulas e cálculos e eliminou a possibilidade da objetividade não só no

mundo físico, mas também nas ciências humanas.

Nos estudos da física, Heisenberg estabeleceu que não é possível obter a um só

tempo a medida precisa da velocidade e a da posição de uma partícula. “Quanto mais

nos focalizamos em uma propriedade, mais a medição da outra se perde na incerteza”

(ARNTZ, CHASSE e VICENTE, 2007, p.58). Isso indica que as partículas subatômicas

não podem ser isoladas como objetos materiais sólidos e devem ser notadas como

interconexões entre vários processos de observação e probabilidades. E, se há

probabilidades, há incerteza.

De acordo com o físico quântico indiano, Amit Goswami (2006), um defensor

do “ativismo quântico”, a dualidade “onda-partícula” existente no universo subatômico

(quando um objeto quântico é observado com um aparato para medir ondas, ele age

como ondas; quando é observado com um aparato para medir partículas, ele age como

partículas) demonstra que a escolha humana tem um papel crucial na configuração da

realidade. Parafraseando Descartes, ele diz: “Escolho, logo existo”.

Esse paradoxo da dualidade onda-partícula é, na verdade, segundo o físico Niels

Bohr, uma relação de complementaridade. Os objetos quânticos não são uma coisa nem

outra. Eles transcendem essas descrições, pois ambas se complementam. Mas qual é a

relação desta visão com o que esse estudo propõe? Em seu livro O Universo

Autoconsciente – Como a consciência cria o mundo material, Goswami (2008, p.65)

afirma:

A mecânica quântica fornece-nos uma perspectiva mais ampla, um novo

contexto, que nos amplia a percepção e leva-a a um novo domínio. Podemos ver

a natureza como formas separadas – como ondas ou partículas – ou descobrir

complementaridade: a idéia de que ondas e partículas são inerentemente a

mesma coisa.

Ou seja, quem observa só conhece o fenômeno da forma que escolheu observá-

lo e descrevê-lo. Em palavras mais claras, o observador molda e cria a realidade à sua

maneira, ao seu modo de percepção. Ele altera o modo de ler o processo, interferindo

diretamente na realidade observada. Ganham mais espaço a participação ativa do

observador e a subjetividade.

Por esta razão, a ampliação da visão de mundo do jornalista, do ser humano, está

tão relacionada com o potencial que ele busca para desenvolver-se. Seja como autor de

narrativas da vida real, em seu campo profissional ou pessoal, quanto mais o indivíduo

tem consciência de que sua maneira de ver o mundo transforma a realidade em que vive,

mais controle e responsabilidade ele trará para si; e cada vez mais ele vai buscar um

entendimento amplificado das coisas, vai procurar entender suas interconexões e

complementaridades.

Essa intersubjetividade, então, valida as possíveis realidades por distinções

diferentes e reconhece os observadores como participantes da realidade observada. Nos

exemplos a seguir, as duas figuras são únicas, mas, dependendo do modo como são

observadas, apresentam “realidades” díspares e ao mesmo tempo complementares:

Figura 1 – O cálice reversível, de Edgar Rubin (1925), é um exemplo de inversão figura-fundo

Outro princípio adaptável para a visão deste estudo é o da correspondência. Não

é porque a física quântica aponta uma nova forma de observar os objetos subatômicos

que a física clássica deixa de existir. Elas se correspondem, ampliando a arena de

aplicabilidade de ambas. Enquanto o observador vê o cálice, ele sabe que as duas

silhuetas continuam ali, como parte daquilo que observa.

Na prática narrativa, a visão da física quântica também pode contribuir e muito

com o estímulo à criatividade por meio dos pontos de vistas, como sugerido no

exercício anterior. O narrador ou cada personagem apresentam visões e realidades

distintas de uma mesma história que se complementam para conformar um todo, como

nos traços da figura “Minha mulher e minha sogra”, de W.E. Hill.

Figura 2 – Desenho “Minha mulher e minha sogra”, de W.E. Hill.

Outros dois pontos sugeridos pela física quântica são o da não-localidade e o do

entrelaçamento, que serão relacionados a seguir, durante a apresentação de mais um

suporte do Jornalismo Literário Avançado.

3.4 Campos morfogenéticos

A Teoria dos Campos Morfogenéticos foi desenvolvida pelo biólogo e filósofo

da natureza, Rupert Sheldrake. Segundo o pesquisador, seres de uma mesma espécie

possuem uma conexão não racional que possibilita um processo de aprendizagem entre

eles e ultrapassa as barreiras do tempo e do espaço. Essa conexão seria o campo

morfogenético da espécie.

Sheldrake recorda que, graças ao desenvolvimento da física quântica, acredita-se

que os campos formam a base de todas as estruturas. “Campos quânticos de matéria,

campos eletromagnéticos e campos gravitacionais são de tipos diferentes, mas todos

apresentam as características comuns de regiões de influência, com padrões espaciais

específicos”, explica o biólogo, em seu livro Sete Experimentos que Podem Mudar o

Mundo (SHELDRAKE, 1995, p. 73 e 74).

O pesquisador ainda diz que esses campos são “inerentemente holísticos”, ou

seja, não podem ser fragmentados ou reduzidos. Tudo o que integra um mesmo campo

está entrelaçado, mesmo que, aparentemente, esteja distante no tempo e no espaço. Essa

proposta, então, sugere que os campos morfogenéticos permitem uma comunicação,

uma aprendizagem evolutiva, entre os seres. Sheldrake faz uma diferenciação na

nomenclatura do campo quando o torna mais abrangente; do morfogenético das espécies

(com um vínculo genético) às sociedades (campo mórfico).

Acredito que as propriedades holísticas e auto-reguladoras de sistemas de

quaisquer níveis de complexidade, das moléculas às sociedades, dependem

desses campos. Os campos mórficos não são fixos: evoluem. Possuem uma

espécie de memória interna, que depende dos processos de ressonância mórfica,

ou seja, a influência do igual sobre o igual ao longo do tempo e do espaço.

(SHELDRAKE, 1995, p. 74)

Essa teoria diz que as espécies têm uma memória coletiva, como uma

“consciência da natureza”, que possui potencial para aprender e evoluir. E, por integrar

um mesmo campo, quando um membro da espécie aprende algo ou evolui, outro ser da

mesma espécie também aprende ou amplia seu potencial de aprendizagem, que será

confirmado a partir da repetição e da consolidação do aprendizado.

Para aproximar o significado desta teoria à realidade humana, Lima (2009, p443)

concede o seguinte exemplo:

Quando um grupo de devotos de Nossa Senhora Aparecida reza com fé numa

pequena igreja qualquer do Brasil do agreste, coloca-se em comunhão com os

devotos de hoje e sempre que lotam as dependências da basílica da santa, em

Aparecida do Norte. Essa comunhão gera um fenômeno pouco conhecido,

fazendo com que o indivíduo se integre a outros num campo onde o ser humano

e outros conteúdos sutis da existência, que ainda não compreendemos bem,

participam de uma comunhão potencialmente realizadora de transformações, de

novos entendimentos, até de milagres.

Sensações semelhantes podem ser de fácil recordação para quem viveu os anos

1990 e 2000, como a conquista da Copa de Mundo de 1994 pela Seleção Brasileira, a

morte do piloto de Fórmula 1 Ayrton Senna no mesmo ano (que gerou forte comoção

nacional) e os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001.

De acordo com a teoria, a comunhão, a atenção voltada para um mesmo fato e a

intenção potencializam as energias sutis que interligam os seres humanos,

possibilitando, assim, maior abrangência dessa ressonância mórfica. Quando há mais

atenção a temas que podem contribuir com a evolução pessoal e coletiva, mais rápido

elas ocorrem. Assim, a intencionalidade é determinante para estimular a ruptura de

paradigmas e abrir portas aos novos entendimentos da realidade.

Por isso também que a valorização das tradições de povos antigos e religiosas

pode vir a ser importante neste estilo de produção jornalística. A retomada das tradições

e suas sutilezas podem trazer à tona respostas para conflitos atuais e que não conseguem

ser resolvidos por meio da visão objetiva e materialista.

A visão de Sheldrake vem para somar ao jornalismo literário uma consciência

evolutiva à elaboração de pautas, com histórias voltadas ao desenvolvimento humano, à

integração entre as pessoas e a uma educação solidária. A construção consciente de

narrativas da vida real que tragam como fundo estes elementos pode cooperar com a

universalização de sentidos mais justos, humanitários e produtivos.

3.5 Psicologia humanista

O suporte teórico do Jornalismo Literário Avançado ainda conta com as

contribuições da corrente humanista da psicologia. Essa linha, segundo Lima, propõe a

existência de uma mente coletiva, de padrões que influenciam o comportamento

humano, de um processo evolutivo para estágios mais avançados de consciência e de

ligações significativas entre fatores subjetivos e situações objetivas ou factuais – são os

chamados sincronismos.

A abordagem da psicologia humanista observa o indivíduo integralmente,

tratando o processo psicoterapêutico como um método de desenvolvimento do potencial

humano centrado na visão sobre o indivíduo e não sobre estudos estatísticos ou feitos

com animais, como realizado em outras linhas. Ao observar o ser humano de maneira

integral, os psicólogos humanistas priorizam o indivíduo em seu ambiente natural, sem

análises de comportamentos isolados ou experiências em laboratório.

Além da própria humanização, essa corrente contribui com o Jornalismo

Literário Avançado principalmente através dos conceitos desenvolvidos pelo psiquiatra

suíço Carl Gustav Jung, como a individuação (o reconhecimento interno do indivíduo

como é, em sua totalidade), os arquétipos (estruturas psíquicas sem conteúdo próprio), a

sincronicidade (relações entre subjetivo e objetivo, como, por exemplo, sonhos e

acontecimentos do cotidiano, coincidências etc.) e o inconsciente coletivo (um gênero

de memória coletiva em consonância com a Teoria dos Campos Morfogenéticos, de

Rupert Sheldrake).

Segundo Lima (2009, p.443), “esses conceitos podem iluminar nossas mentes

quando estamos trabalhando um perfil, uma biografia, trazendo à superfície do

discernimento os fatores ocultos que influenciam as trajetórias de vida de nossos

personagens”.

Outra contribuição de Jung são as quatro funções psicológicas fundamentais

apontadas por ele: intuição, sensação, sentimento e pensamento. Enquanto intuição e

sensação seriam formas para apreender informações (uma por meio das experiências

passadas, pelos objetivos futuros e processos inconscientes e outra pela experiência

direta, pela percepção através dos sentidos e de fatos concretos), sentimento e

pensamento seriam vistos como modos de julgar e tomar decisões (o primeiro, com

julgamentos sustentados em valores próprios, e o segundo em julgamentos baseados em

critérios impessoais).

O doutor em ecologia Stephan Harding (2008) relaciona esses “quatro modos de

conhecer” propostos por Jung ao pensamento ecológico profundo exatamente por

estabelecer um vínculo que vai desde a intuição humana – em seu elemento mais

subjetivo – ao pensamento, ao racional. Essa ligação é observava no exercício no final

deste capítulo.

Para o psiquiatra suíço, a compreensão da natureza humana poderia ser facilitada

por meio da criação de símbolos advindos, principalmente, das religiões e da mitologia.

Estes símbolos seriam “padrões dinâmicos coletivamente presentes” (apud CAPRA;

2006, p. 353):

Os arquétipos, segundo Jung, são “formas sem conteúdo, representando

meramente a possibilidade de um certo tipo de percepção e ação”. Embora

sejam relativamente distintas, essas formas universais estão inseridas numa teia

de relações, na qual cada arquétipo, em última instância, envolve todos os

outros.

O uso dos arquétipos de Jung na construção de histórias no jornalismo narrativo

já foi muito bem apresentado nas adaptações da Jornada do Herói – que entrelaça a

proposta narrativa mítica de Joseph Campbell e as “formas sem conteúdo” do psicólogo

suíço. No cinema, a estrutura foi adaptada por Christopher Vogler (2006) - muito

utilizada nos filmes de Steven Spielberg e George Lucas – e para o jornalismo por

Edvaldo Pereira Lima e Monica Martinez (2008).

Outro trabalho na área da psicologia que coopera com esse caminho em

construção que é o Jornalismo Literário Avançado é a visão do psicólogo Dante Moreira

Leite sobre os pensamentos produtivo e improdutivo. Este próximo elemento é

fundamental para as Narrativas de Transformação, que são apresentadas no tópico a

seguir.

3.6 Pensamento produtivo e improdutivo

Em seu livro Psicologia e Literatura (1967), Dante Moreira Leite observa, ao

analisar obras literárias de ficção de renomados escritores - associando as visões

freudianas, jungianas e gestaltianas -, que essas produções podem influenciar seus

leitores gerando pensamentos produtivos ou improdutivos.

Segundo Leite, o pensamento produtivo é aquele gerado por um estímulo à

transformação, que causa a reestruturação do modo de pensar de quem recebe a

informação e lhe fornece uma alternativa ao problema observado. Já o pensamento

improdutivo é o que preserva a antiga forma de pensar, sem uma saída viável para sua

atual condição.

Para o pesquisador, o receptor, ao ter acesso a uma obra literária, é convidado a

trilhar um desses dois caminhos: o da manutenção do pensamento, da situação cômoda;

ou da mudança de paradigma, um passo à frente para a ampliação de sua visão de

mundo.

Dante Moreira Leite afirma que toda obra de arte provoca estímulos e Edvaldo

Pereira Lima complementa ao dizer que nenhum estímulo intelectual é neutro. Ao traçar

um paralelo entre a análise de Leite, Lima aponta que os resultados gerados a partir da

produção jornalística também se enquadram em pensamentos produtivos ou

improdutivos. Como afirmou em entrevista concedida ao pesquisador Dimas Künsch

(Disponível em: www.textovivo.com.br. Acesso em: 12 de dezembro de 2007):

Se a leitura de uma obra de arte é negativista, pesada, só detectando os aspectos

não solucionados das situações humanas, ela tende a gerar no receptor uma

atitude condizente com o que leu, uma atitude de que não há solução, de que o

mundo é cruel, de que o ser humano é limitado e não consegue resolver os seus

pepinos.

Transpondo agora isso para a comunicação de massa como um todo, cujo

impacto, pelos instrumentos de que se utiliza, pela sua força de persuasão e pelo

seu alcance, é muito maior, ouso dizer que essa comunicação de massa também

pode gerar o chamado pensamento improdutivo no receptor. Falo da

incapacidade de o receptor retirar, da mensagem colocada ao seu dispor, uma

leitura transformadora.

Leite aponta que o pensamento improdutivo é sustentado pelo “equilíbrio”

(quando há uma situação de comodidade sobre determinado assunto ou condição); e, no

pensamento produtivo, de “desequilíbrio” (quando há uma busca e uma reordenação

sobre um entendimento). Ele defende que ao ler uma obra literária de ficção com um

“happy end” ou que possui personagens que apresentam sentidos psicológicos

superficiais, o leitor tende a não alterar sua linha de pensamento, enquanto a produção

literária carregada de conflitos pode estimular a busca por novas formas de pensar.

As situações equilibradas podem ser óbvias e monótonas, e são evidentes e

superficiais. As situações desequilibradas estimulam o pensamento; têm o

caráter de enigmas interessantes, problemas que nos fazem suspeitar uma

profundidade interessante. (LEITE, 1967, p. 137)

De volta à comunicação, Lima sugere que a simples apresentação dos conflitos,

sem uma orientação viável à solução para os problemas, também preserva o pensamento

improdutivo. É como se o receptor recebesse um problema em suas mãos e fosse

abandonado em seguida com uma sensação de “e agora? O que faço com isso?”.

Enquadrada nessa visão, a produção jornalística atual, por meio da propagação

dos aspectos negativos da sociedade, conserva uma abordagem negativista e uma

confusão mental que se vincula ao inconsciente coletivo. É um discurso desencantado

que alimenta o ciclo vicioso e a improdutividade individual e coletiva através de um

comodismo reativo. É o grande erro de acreditar que não há o que fazer diante da

desordem mental e social.

O pensamento improdutivo, então, reduz o potencial criativo humano ao ser

enraizado no inconsciente coletivo. Quando se diz potencial criativo humano, articula-se

sobre a capacidade do homem em atuar proativamente, de resolver e reduzir seus

problemas de forma inventiva e inteligente, mantendo-se em um desequilíbrio

evolutivo, porém positivo, que o leva sempre a saltos qualitativos de compreensão e

atuação dentro de sua própria realidade.

Em sua análise vinculada à literatura de ficção, Leite (1967, p.137 e 138)

exemplifica:

Se um romancista nos diz que uma pessoa gosta das coisas que faz, sente-se mal

quando precisa viver com pessoas de que não gosta, gosta do filho do seu

melhor amigo, etc., tudo isso parece óbvio e pensamos não saber muita coisa a

respeito dessa pessoa, como indivíduo. No entanto, se ouvimos falar de alguém

que detesta tudo que faz, que odeia possuir aquilo de que gosta, e que sempre

procura viver com pessoas de que não gosta, imediatamente temos o sentimento

de que aí está uma pessoa diferente e, ao mesmo tempo, interessante, por causa

de sua estranheza psicológica. Sentimos que as histórias onde se acentuam as

situações desequilibradas têm um sentido psicológico mais profundo. (1967, p.

137 e 138)

São os conflitos que motivam o interesse humano pelas artes, pelo cinema, pela

literatura, pelos programas televisivos e pelo próprio noticiário. Porém, apesar da

utilização de um verdadeiro arsenal narrativo e tecnológico, ainda há aparentemente

uma falha na construção do significado para o receptor. Isso pode ocorrer em razão da

superficialidade psicológica ao apresentar o que Leite chama de situações

desequilibradas.

A mídia, de forma generalizada, propaga uma cultura do medo através da

violência, da corrupção e do descrédito nas ações humanas. Mesmo que a publicação

desses conteúdos seja essencial para o caráter informativo, ela não contribui para a

formação de uma compreensão mais complexa da sociedade, pois não se aprofunda ao

simplesmente apresentar os conflitos e desequilíbrios. Sem trazer as situações

conflituosas e de desequilíbrio ao nível das confusões internas do ser humano e sem

orientá-lo, a construção do significado torna-se incompleta.

Leite aponta isso como um tumultuado entendimento entre “o que é” e “o que

deve ser”. “Essa é também uma razão pela qual, muitas vêzes, deixamos de perceber

injustiças no mundo que nos cerca, ou nos tornamos apáticos diante delas. O „é‟ adquire

o caráter do „deve ser‟, ou o desvio, com relação ao deve ser, se torna menos evidente”

(LEITE, 1967, p.139). Dessa forma, quando se cai em comodidade e afirma-se que o

mundo vive num eterno caos e que não há saída, deve-se se perguntar: “está assim, mas

será que é assim que deveria ser?”

Uma das missões do Jornalismo Literário Avançado é estimular o pensamento

produtivo por meio de suas narrativas e, para isso, utilizar-se desses recursos de ponta –

da qualidade textual, das técnicas de captação, do entendimento e assimilação de

campos variados da ciência – para auxiliar o leitor a reordenar os significados que

recebe e transformar-se em um agente construtor de sua própria realidade, um co-autor

do mundo em que vive.

3.7 A Escrita Total e as neurociências

Com base na Teoria dos Hemisférios Cerebrais, do neurobiologista americano

vencedor do Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia de 1981, Roger Wolcott Sperry,

Edvaldo Pereira Lima desenvolveu um método para a produção de texto criativo

chamado Escrita Total. O método do pesquisador observa o ato de escrever como uma

ação orgânica, que interliga o intelecto, a inteligência emocional, a intuição, a

sensibilidade e até a participação social.

A Teoria dos Hemisférios Cerebrais indica que o cérebro humano é dividido em

duas grandes partes. O hemisfério esquerdo seria responsável, primordialmente, pelos

processos mentais característicos da lógica, do raciocínio, do pensamento linear e

sequencial. Esse hemisfério cerebral é o que nota o mundo concreto; ele é objetivo,

crítico e organizado. No cotidiano, na execução de tarefas, ele está em constante

atuação: desde o momento em que se dirige um carro, na arrumação da casa ou na

organização de documentos no trabalho.

O hemisfério direito é mais voltado ao potencial humano imagético e criativo.

Menos cativa ao concreto e aos detalhes, é essa parte da massa encefálica humana que

possibilita a captação do todo de uma situação ou acontecimento; ela que nota as

relações entre as diferentes perspectivas da vida e está vinculada à intuição, às

sensações e aos sentimentos.

Baseado na teoria de Sperry e também nos estudos do psicólogo e neurobiólogo

Robert Ornstein, que vincula a ação dos hemisférios principalmente à educação, Lima

fez de sua Escrita Total uma maneira de buscar um equilíbrio dinâmico cerebral pelo

estímulo ao lado criativo do cérebro:

Imagino que você já está adivinhando, à essa altura, o que é o hemisfério

direito: é o canal por excelência da criatividade, no cérebro. É dele que partem

as nossas visões mais interessantes, a nossa juventude para enxergar o mundo

com olhos mais abertos, a nossa criancice para criar, vendo novas relações entre

as coisas, estabelecendo conexões múltiplas entre os sentidos. (LIMA, 2009; p.

88)

O método de Lima procura desenvolver – essencialmente – o lado direito do

cérebro ao relacioná-lo à escrita criativa. O lado esquerdo, já bem desenvolvido no

estilo de vida atual, seria destinado, na produção textual, mais ao ato do editar do que

propriamente escrever.

O pesquisador associa o que chama de escrita rápida – a produção de textos

sem organização e escritos em velocidade elevada (evitando que a razão interfira no

conteúdo jogado no papel) – com exercícios de observação, meditação, atenção aos

sonhos (os chamados sonhos lúcidos), contato direto com a natureza e seres humanos

para potencializar a intuição, os sentidos, os sentimentos e a capacidade de conectar

razão e emoção. Todos os exercícios contidos neste estudo, por exemplo, são pequenas

adaptações do método completo de Lima, compilado em seu livro lançado em 2009.

A Escrita Total espelha-se também na neuroplasticidade, ou seja, a capacidade

adaptativa dos neurônios por meio do aprendizado e da repetição prática. Segundo a

jornalista Sharon Begley, autora do livro Treine a mente, mude o cérebro (2008), este

órgão humano pode passar por transformações:

Não estático. Não fixo. Sujeito a mudanças contínuas. Adaptável. Sim, o

cérebro pode mudar, e isto significa que podemos mudar. Não é fácil. Como

veremos, a neuroplasticidade é impossível sem atenção e esforço mental. Para

mudar, você tem que querer mudar. Mas se a vontade está lá, o potencial parece

imenso. (BEGLEY, 2008, p. 39)

É o que sugere o método de Lima: acessar o potencial evolutivo cerebral por

meio de práticas cotidianas de ação e escrita que podem, efetivamente, transformar

visões de mundo e modos de agir.

Audaciosa, a proposta do pesquisador, no momento em que este estudo é

produzido no segundo semestre de 2010, ainda é vista com certa desconfiança pela

visão tradicionalista da sociedade, mas já se mostra como um verdadeiro caminho para a

evolução das abordagens humanas sobre o mundo contemporâneo através da prática da

escrita.

A Escrita Total trata de uma prática intensa e cientificamente sustentada de

valorização da realidade complexa. Quando mais se percebe a realidade complexa, com

mais sensibilidade, leveza, prazer, alma e propósito se vive - como já aponta o título do

livro sobre o método de Lima. Como diz Stephan Harding (2008, p.48):

Devemos conservar vivo e alimentar um senso da “alteridade” de todo e

qualquer fenômeno que possamos estar apreciando, permitindo que se

desenvolva um insólito tipo de intimidade em que o impulso de controlar seja

substituído por uma inspiradora admiração ante a assombrosa inteligência que

jaz no coração de todas as coisas.

Ao conservar vivo esse “senso da alteridade”, da qualidade do outro, da

diversidade; o autor (o jornalista-escritor) reduz seu impulso controlador e amplia seu

impulso participativo no cotidiano - por meio da inspiração e admiração da realidade

complexa e do pensamento produtivo -, assumindo um compromisso profundo com

tudo que se convive - como defende o movimento da Ecologia Profunda, no qual é

inspirado o exercício a seguir.

Exercício 3 – Conexão intensa, compromisso profundo

Uma vida em equilíbrio está baseada na harmonia entre o agir e o pensar. Porém,

em nosso cotidiano, a parte prática acaba sendo priorizada e nossos momentos de

introspecção e conexão mais intensa com as diversas formas de vida ao nosso redor são

depreciadas. O jornalista que busca praticar o Jornalismo Literário Avançado tem a

consciência desse desequilíbrio e transforma a procura por essa simetria entre o

pensamento e a ação em compromisso.

Segundo Stephan Harding, para assumir esse compromisso, o ser humano

necessita se adequar a três sentidos interconectados: Experiência profunda,

Questionamento profundo e Compromisso profundo. Esse elementos, segundo Harding,

estão no centro da chamada Ecologia Profunda. É por meio deles que o homem

intensifica seus sentimentos de reverência, admiração e adequação de seu modo de estar

no mundo a uma maneira de vida que reduz ao mínimo os danos ao meio ambiente.

Esse exercício é uma adaptação de práticas propostas por Harding associadas à

Escrita Total, de Lima. O objetivo dele é possibilitar uma breve experiência que

relacione nossa conexão com o mundo, nossos questionamentos e nosso compromisso

com tudo o que nos cerca. Ou seja, além de estimular nosso equilíbrio interno – o

autoconhecimento - o exercício também é uma forma prazerosa de acentuar nossas

percepções éticas a serviço de uma visão de mundo ecológica – aquela em que “toda

vida tem valor intrínseco, independentemente de seu valor para os humanos”

(HARDING, 2008, p.64).

Para a prática do exercício, é interessante que você reserve um dia agradável –

uma manhã ou tarde de sol – e se proponha a fazer um passeio. Vista roupas leves e

confortáveis e visite um parque público, uma praça, ou um lugar que goste de frequentar

– pode até mesmo ser um jardim ou o quintal de sua casa. É importante que neste local

você tenha contato direto com a natureza. Não se esqueça de levar papel e canetas para

o seu passeio, além de outros acessórios que considerar necessário para passar

momentos confortáveis.

Primeira parte

Sua primeira tarefa é “procurar o seu lugar em Gaia”. Este será um ponto que

poderá retornar sempre que quiser; será um lugar que te dará imenso prazer, será o seu

lugar. Então, quando estiver em contato com a natureza, caminhe com calma, observe o

ambiente, explore e sinta o lugar e sua conexão com ele. Aprofunde sua relação com o

espaço ao seu redor. Sinto os pés na terra, a textura da grama e das árvores. Observe,

sem julgar. Deixe-se guiar pela sensação, sentimento e intuição. Como diz Harding, na

hora de encontrar seu lugar especial, “deixe o pensamento no banco de trás. Você estará

no local certo se ele provocar em você uma profunda sensação de prazer” (HARDING,

2008, p. 57).

Segunda parte

Em seguida, ao encontrar seu lugar em Gaia, deite-se com as costas no chão.

Solte o corpo, feche os olhos, relaxe e direcione sua atenção para a respiração. Respire

fundo. Quando se sentir relaxado, sinta o peso de seu corpo sobre o chão.

Experimente a gravidade como o amor que a Terra sente pela própria matéria

que constitui seu corpo, um amor que o mantém seguro e o impede que você

saia flutuando para o espaço cósmico.

Abra os olhos e encare as vastas profundezas do universo enquanto sente o

grande volume de seu planeta mãe nas costas. Sinta como ela o prende ao seu

enorme corpo enquanto o faz rodar de cabeça para baixo pelo vasto cosmos que

se estende sob você. (HARDING, 2008, p. 72)

Pergunte-se sobre qual é a sensação de se ficar assim, seguro, de cabeça para

baixo. Sinta a Terra curva em contato com suas costas. E vá expandindo esse

sentimento para o seu redor. Estabeleça uma conexão intensa com a Terra, como se

sentisse desde as pequenas formas de vida na grama até as árvores. Lentamente, vá

ampliando seu sentimento de ligação com o planeta. “Sinta os grandes continentes, as

cadeias de montanhas, os oceanos, as áreas de gelo e neve nos pólos e os grandes

mantos de vegetação se estendendo a partir de onde você está” (HARDING, 2008, p.

72).

Dedique tempo às sensações. Quando estiver pronto, levante-se e respire fundo.

Esteja profundamente consciente da inseparável conexão de sua vida com a do planeta.

Por alguns minutos, aproveite a calma, o silêncio.

Terceira parte

Antes de partir para a produção de texto, olhe novamente ao seu redor. Encontre

uma pequena pedra. Sentado, coloque a pedrinha na palma da mão. Relaxe e deixe de

lado qualquer objetivo de atingir um resultado. Simplesmente observe. Nesta parte do

exercício, você vai trabalhar o seu “olhar ativo”.

Pelo período de 30 segundos a um minuto, olhe com muito cuidado para as

partes da superfície da pedra. Note a textura, as sutilezas nas alterações de cores, no

relevo, marcas. Em seguida, feche os olhos. E por mais um minuto visualize o que

acabou de perceber na pedra – pense nos detalhes que notou. Reveja a predrinha de

olhos fechado. Depois, deixe a imagem ir embora, mas continue de olhos fechados, sem

fazer nada, por alguns segundos.

Após abrir os olhos novamente, olhe a pedra como um todo. Não se concentre

nos detalhes. “Procure captar a pedra como um conjunto, como um fenômeno unificado

singular. Deixe que a totalidade da pedra flutue para o seu ser sem se perguntar o que é

esse todo ou como você pode realmente vê-lo”, orienta Harding (2008, p. 47).

Semelhante à observação anterior, faça isso de 30 segundos a um minuto e feche os

olhos para visualizar a pedra como um tudo.

É interessante que você repita esse ciclo por dez ou quinze minutos e, em um

tranquilo momento de reflexão, pergunte-se: “Houve diferenças entre os dois modos de

olhar?”

Quarta parte

Simplesmente escreva. Escreva rápido. Sem se preocupar com erros de

português. Use canetas coloridas. Não se preocupe com um tema. Deixe fluir para o

papel tudo o que passar por sua cabeça. Escreva por dez ou quinze minutos sem parar,

sem analisar. Deixe o lado criativo do cérebro entrar em ação.

Depois, você pode simplesmente guardar esse texto. Não releia na hora. Deixe

para horas depois ou até mesmo para o dia seguinte. Aí sim observe as ideias que jogou

no papel, as organize, corrija erros de grafia, edite. Note como seu texto e suas ideias

podem fluir mais livremente.

CAPÍTULO IV – NARRATIVAS DE TRANSFORMAÇÃO

Ser repórter é renascer e se recriar a cada reportagem. De

preferência, por parto natural.

Eliane Brum

4.1 Histórias para a transformação social

Para que o Jornalismo Literário Avançado possa existir em sua máxima potência

- utilizando dos variados campos de conhecimento, das técnicas do jornalismo narrativo

e levando o leitor a uma compreensão mais ampla da realidade –, o jornalista precisa

persistir em uma busca profunda e intencional pelo próprio aprendizado. Isso requer

dedicação e interesse em tornar-se um ser em constante mutação - uma mutação

sustentada essencialmente pelo pensamento produtivo.

Em busca de uma narrativa da vida real transformadora, ele deve traçar

caminhos que auxiliem na melhoria de sua própria qualidade de vida e da qualidade de

vida do leitor. Para isso, o jornalista tem de reconhecer-se (bem como reconhecer sua

maneira de viver e estar no mundo) como um agente de transformação social. Pois, é

por meio de sua narrativa que o receptor pode ser tocado por histórias reais que o levam

a resignificações da vida como um todo. Então, a narrativa de transformação origina-se

da visão de mundo do autor, de sua consciência e sua intenção.

Como apresentado no primeiro capítulo deste estudo, o jornalista que valoriza

uma visão sistêmica consegue viver e atuar com mais leveza e sensibilidade. Isso

contribui para que tenha uma maior capacidade de enxergar o potencial transformador

das histórias que pretende narrar. Assim, ele passará a ver alguns pontos que podem

auxiliá-lo na definição das pautas, dos métodos de captação e também na organização

das informações.

Ao escolher uma pauta de Jornalismo Literário Avançado, o repórter pode se

perguntar: “Qual é o meu interesse sobre esse assunto? Gostaria de saber mais, de

aprender sobre isso? Como essa história pode contribuir com a melhoria da minha

qualidade de vida, das pessoas ao meu redor e de meus leitores?”. Além de analisar o

efeito transformador da pauta no leitor e em si, o jornalista também pode se perguntar

por quais mudanças os possíveis protagonistas da história passaram, se essas alterações

são significativas e se, ao serem recontadas por meio de reportagens, têm a

possibilidade de ampliar a consciência do receptor e o estimular a tomar determinadas

iniciativas que solucionem problemas que supostamente estariam sem respostas.

Sugere-se que - para que o jornalista consiga colocar em evidência as qualidades

de histórias e de protagonistas que procura, além de ter mais facilidade para elaborar a

narrativa - busque temas, acontecimentos e ações com a assimilação das seguintes

características:

- histórias que possibilitem a ampliação da consciência do leitor;

- que estimulem a proatividade e o pensamento produtivo;

- valorizem a dignidade humana;

- apresentem novos paradigmas;

- incentivem o protagonismo e a busca do autoconhecimento pelo leitor;

- facilitem o entendimento de elementos sutis da realidade complexa.

A repórter especial da Revista Época, Eliane Brum, afirma trabalhar

intencionalmente com o conceito de transformação em suas reportagens – não somente

para o leitor, como também para os personagens e para a própria jornalista: “Porque só

tem graça ser repórter quando nos entregamos à reportagem e deixamos que ela nos

transforme. Se um dia eu voltar a mesma de uma viagem para o Amapá ou para a

periferia de São Paulo, abandono a profissão” (BRUM, 2008, p. 38 e 39).

Eliane é uma repórter que faz a verdadeira imersão nas histórias e cenários

narrados. Ela se envolve com os personagens e permite ser tocada por suas experiências.

Assim, vai modificando sua visão de mundo e construindo narrativas sustentadas por

trajetórias de vida e ações virtuosas imitáveis, que alteram também a percepção de

mundo do leitor.

Exemplo disso é a reportagem Vida até o fim. Nela, Eliane acompanhou a rotina

da Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São

Paulo por dez sextas-feiras. Na narrativa, por meio das histórias de pacientes,

funcionários da chamada “enfermaria da morte”, de sua própria vivência e de

referências externas, a repórter apresenta uma visão diferenciada da morte.

A enfermaria é conhecida como um local em que as pessoas vão para morrer.

Lá, no entanto, os doentes não ficam abandonados, mas aguardam o inevitável com

dignidade, qualidade na sobrevida e, consecutivamente, com menos sofrimento. No

trecho a seguir, a repórter destaca a importância do trabalho das auxiliares de

enfermagem e demonstra como aquele cotidiano altera seus modos de compreender o

mundo:

Maria de Cleide, Regina, Zilda, Neucilene, Edineia, Mary... Elas são dezoito

auxiliares de enfermagem que permanecem dia e noite ao lado dos pacientes

ajudando em necessidades básicas como urinar e defecar, dando banho,

limpando sangue e vômito, escutando muito. Isso lhes dá um olhar muito

particular sobre a vida e também sobre a morte. “Antes eu me preocupava muito

se estava gorda, se minha mama estava caída”, diz Maria de Cleide Batista, de

44 anos. “Depois que vim pra cá, eu agradeço a Deus por fazer xixi e por

respirar bem.” (BRUM, 2008, p. 376)

O parágrafo traz ao leitor a valorização do trabalho das auxiliares e a mudança

de significações na vida delas. A reportagem como um todo apresenta uma série de

pessoas que resolveram romper com os paradigmas da medicina atual em prol da

dignidade humana, além de pacientes que reverteram seus valores de vida para “morrer

melhor”. A história narrada por Eliane não faria sentido se não fosse amparada pelas

ações e exemplos de vida dos doentes e funcionários da enfermaria. Narrada dentro das

fórmulas do jornalismo convencional, ela perderia todo seu potencial transformador.

No decorrer da reportagem, o leitor navega por uma tempestade de sensações

variadas – são boas, ruins, de alegria, de tristeza, identificáveis e desconhecidas. A

leitura possibilita uma nova percepção de um tema difícil de ser tratado e reconstrói

suas significações através dos exemplos de vida. São mudanças internas e sutis, mas que

podem refletir no âmbito social ao gerar novos modos produtivos de pensar e agir, com

o leitor estimulado a procurar novos entendimentos e respostas aos conflitos de sua

própria vida.

Em outras palavras, as narrativas de transformação devem auxiliar na busca de

soluções para as dificuldades do leitor e não abandoná-lo com o problema nas mãos. A

ideia é que a narrativa provoque uma série de desequilíbrios internos, como diz Dante

Moreira Leite, um incômodo positivo – que estimula reflexões e reordenações no

pensamento -, mas também indicando um caminho possível para ser seguido.

Uma forma de trabalhar isso na narrativa é apresentando com clareza as

mudanças efetivas na percepção dos personagens – como no caso da auxiliar de

enfermagem Maria de Cleide Batista –, pela própria experiência do jornalista ao cobrir o

fato narrado ou por meio do uso de histórias de vidas que são verdadeiros exemplos a

serem seguidos.

4.2 Exemplos imitáveis e histórias de vida

Elemento essencial para a produção de narrativas de transformação, o uso das

histórias de vida permite identificar as facetas heróicas em pessoas que realizam ações

virtuosas nos pequenos feitos do cotidiano sem serem notadas. Valorizar estes

elementos ao reconstruir acontecimentos no jornalismo narrativo significa facilitar a

identificação do leitor com o personagem e suas iniciativas, bem como estimular a

projeção de si para a situação do outro; ou seja, instigar o leitor a agir e pensar

proativamente, alterando sua própria realidade. Como diz André Jolles, em As Formas

Simples (1976, p. 39): “[...] o santo permite-nos ver nitidamente o que desejamos fazer,

aprender e ser no caminho da virtude; ele próprio é o caminho que conduz à virtude e

podemos então segui-lo”. E complementa:

É a figura cuja forma nos faz perceber, viver e conhecer uma realidade que nos

parece desejável sob todos os aspectos; e essa figura exemplifica, ao mesmo

tempo, a possibilidade de tal passagem à ação; tomado na acepção dessa forma,

ele é, em resumo, um modelo imitável. (JOLLES, 1976, p. 40)

Exemplo disso é o que faz Eliane na reportagem Expectativa de vida: vinte anos

(2008). Ela narra a história de famílias e jovens envolvidos com a violência e, indo além

da frieza dos números que seriam apontados pelo jornalismo convencional, a repórter

reconstrói as trajetórias e imagens de pessoas reais. Um deles é Serginho Fortalece, o

único sobrevivente de um grupo de adolescentes que participaram do documentário

“Falcão – Meninos do Tráfico”, do rapper MV Bill e do produtor de hip-hop Celso

Athayde.

Eliane recria a história de vida de Serginho apresentando suas peculiaridades.

Logo no primeiro parágrafo da reportagem, ela demonstra que a história do rapaz é

singular: “Único vivo num grupo de dezessete, ele se tornou visível porque contrariou

as estatísticas. A regra para adolescentes como ele é morrer – e não viver” (BRUM,

2008, p. 187). A sensibilidade de Eliane valoriza os elementos destacados acima,

fazendo de Serginho, como diz Jolles, um “santo” ou um “herói legendário”.

O jovem que era envolvido com o mundo do crime e chegou a ser preso,

sonhava em ser palhaço – alimentava sonhos, apesar da conturbada realidade em que

vivia. Mais do que uma personalidade em si, a representação simbólica deste

personagem é muito forte e apresenta-se como um caminho possível para outras vidas

com pouca ou nenhuma esperança, ou seja, é imitável. Como a repórter aponta, por

meio da consolidação das virtudes de Serginho, do reconhecimento, identificação e

projeção da comunidade que o cerca:

Na primeira incursão ao centro, em companhia de MV Bill, foi parado e

abraçado no Largo da Carioca. Serginho Fortalece era agora a celebridade

invertida do tráfico. Deu autógrafos: „Fortalece, um beijo em teu coração‟. Do

ônibus, as pessoas gritam: „Quero te ver no circo!‟. Dona Sueli, da Cidade de

Deus, diz que vai botar seu autógrafo com o do jogador Ronaldo. Felipe, de

quatro anos, e Milene, de sete, crianças da favela, anunciam: „Quando a gente

crescer, vai ser palhaço que nem o Fortalece‟. (BRUM, 2008, p. 190)

Valorizar fenômenos de edificação, de aperfeiçoamento pessoal, não implica

uma abordagem ingênua e unilateral da pessoa ou história. A construção do herói

legendário não deve ignorar o que Carrièrre chama de “rachadura na carapaça” (2007)

ou o ponto fraco do guerreiro mitológico de A Ilíada de Homero, o calcanhar de

Aquiles; bem pelo contrário.

Além dos exemplos de modos e experiências de vida, a fragilidade humana é

ponto essencial para a construção do herói legendário e seus feitos imitáveis no

jornalismo de transformação. Sem reconhecer as fraquezas do herói, o leitor não

identifica seus próprios temores e “se não estiver ciente da própria precariedade,

ninguém pode ser forte”, como diz Carrièrre (2007, p.68). Assim, esta característica

contribui principalmente com a geração de uma empatia entre leitor e o personagem:

O heroísmo triunfante nos afasta uns dos outros, pois não há lugar para dois no

mesmo trono, mas a fragilidade que compartilhamos nos aproxima. Ela pode

por isso se tornar a fonte dos mais ativos e mais louváveis sentimentos, a

compaixão, a dádiva de si, o respeito que sentimos por todas as fraquezas do

outro, nas quais reconhecemos as nossas. (CARRIÈRRE, 2007, p. 185)

A representação dos personagens que passaram por transformações aprecia as

condições reais, sejam de virtude ou fragilidade. Busca também a integridade das

figuras humanas e valoriza o potencial das histórias que possam contribuir com

ampliação do conhecimento e da consciência dos leitores.

Desenvolver reflexões sobre esta representação complexa dos personagens é um

convite para que os jornalistas-escritores assumam responsabilidades quanto à “autoria

de sentidos renovadores e reestruturadores” (MEDINA, 1998, p.196). Outro ponto de

vista que pode contribuir com a estruturação das narrativas de transformação é o caráter

educativo e solidário da reportagem.

4.3. Reportagem e sensibilidade solidária

Buscar um sentido mais humano para a vida social. Essa é uma das metas da

narrativa de transformação. Aprender e ensinar por meio da reportagem deve ser um ato

solidário para o jornalista que, somado a sua sensibilidade, vai a campo em busca de

histórias que possam inspirar a valorização da dignidade humana. Para isso, se faz

necessária a sensibilidade solidária.

De acordo com os pesquisadores Hugo Assmann e Jung Mo Sung (2000), uma

necessidade atual do ser humano é unir competência e habilidades técnicas ao

sentimento de solidariedade, o que reflete na realização do indivíduo como um ser

social. Para eles:

A sensibilidade solidária é uma forma de conhecer o mundo que nasce do

encontro e do reconhecimento da dignidade humana dos que estão 'dentro-e-

fora' do sistema social; um conhecimento marcado pela afetividade, empatia e

compaixão (sentir na sua pele a dor do/a outro/a). Por isso mesmo, é um

conhecimento e uma sensibilidade que estão comprometidos, que vivem a

relação de interdependência e mútuo reconhecimento de um modo existencial,

visceral, e não somente intelectual." (ASSMAN e SUNG, 2000, p. 134)

Ao associar essa sensibilidade as suas competências e habilidades, o jornalista

pode fazer emergir princípios éticos próprios, transmitindo-os em suas reportagens –

passando assim do campo das formulações abstratas (reflexão) para um comportamento

ético (ação) – o que pode, enfim, tornar-se em “princípios organizativos da sociedade

norteando o funcionamento das instituições da sociedade” (ASSMAN e SUNG, 2000, p.

165). É a coerência entre o modo de pensar e agir do profissional, o que vem a ser a

base – dentro da prática jornalística - para uma educação à sensibilidade solidária.

O ser humano é um ser complexo, como também é a sociedade e o meio

ambiente no qual vivemos. Educar para a sensibilidade solidária pressupõe e

implica em ajudar as pessoas a perceberem a complexidade da realidade e da

nossa vida social, a tomarem consciência da nossa condição humana, a

relativizarem as suas certezas, a aprenderem a tolerar aos outros e a si próprio

nas suas limitações e falhas, a aceitar e conviver com a “resistência” da

realidade social em se adaptar aos nossos mais sinceros e honestos desejos de

uma vida baseada na justiça e solidariedade. (ASSMAN e SUNG, 2000, p. 165)

Em 2007, este autor produziu a reportagem A Inserção da Loucura (ANEXO 1)

- publicada na revista de jornalismo literário on-line TextoVivo com o título Loucos por

Inserção. A matéria narra o momento de um grupo de portadores de transtornos mentais

da cidade de Assis que fundou uma ONG (Organização Não Governamental) para

transformar o que fazia parte do tratamento psiquiátrico em trabalho e fonte de renda.

Eles produzem sabonetes artesanais, camisetas, livros de poesia feitos com material

reciclado, entre outros, para serem comercializados. Parte dos recursos é dividida entre

os participantes e outra fatia é destinada à própria ONG.

Ao ingressar nas pesquisas sobre o tema, este autor sentia-se fragilizado por não

saber como tratar aquelas pessoas, por se considerar diferente ou, até mesmo, superior.

Em suma, queria escrever uma reportagem com o objetivo de desmistificar uma

diferença social, um preconceito, que ele mesmo alimentava. Bastou acompanhar o

grupo por alguns dias e gerar uma proximidade sincera com aquelas pessoas para notar

que sua própria visão precisava mudar para conseguir uma abordagem mais verdadeira

sobre a “loucura” e sobre a realidade dos integrantes da ONG, chamada Pirassis. O

aprendizado, a ampliação do campo visual do repórter ocorreu bem no meio de uma das

entrevistas, como explicado no ensaio Em busca de Ananda, de 2007 (ANEXO 2):

Assim que tive o primeiro contato com o grupo, senti que um senhor de 52

anos, portador de transtornos mentais e analfabeto, chamado Camilo Leite, tinha

uma grande sensibilidade e, por isso, o tornei peça-chave para a reportagem

antes mesmo de conhecê-lo a fundo. Minha intuição foi comprovada.

Acompanhe um trecho da entrevista, com ele, na reportagem “A Inserção da

Loucura”:

Ahhhh, eu gosto de poesia! Eu gosto de fazê poesia! ... Sabe? Tudo na vida, as

coisa mais simpre, é poesia! Pru quê é nelas que tá a sabedoria! ... É nelas que

tá as coisa que tem experiência pá passa pá nóis! ... Sempi que eu vejo alguma

poesia, tipo as flor, as pessoa, as construção, eu saio ditano e peço pra alguém

escrevê pra mim... Na minha pasta de poesia tem mais de um livro! ... Ahh, eu

tenho mais de um livro! ... Tem bastante assim! Sabe? Eu trabaiava com

sacaria! Com trabaio pesado! ... Só que eu não era home bão, não! ... Não era,

não! ... Eu fumava, eu bebia! ... Eu era assim ó! É isso que eu era... Ingual esse

graveto. Era quebrado. Despois que bati a cabeça, comecei tratá. Mai não é só

remédio que trata a gente não... é sabedoria! Conversá com as pessoa mai

insperiente, que tem sabedoria! Quando eu era quebrado... num sabia o que a

gente sinifica. Agora eu sei! A gente tem que aprendê com os otro e se ajudá! ...

Uns e os outro! Sem apavoramento! Sem maltratá! Por isso, minha felicidade é

tá aqui com vocês.

Assim que Camilo concluiu essa fala, notei que meu próprio condicionamento

impunha um limite desnecessário na relação com aquelas pessoas. Ao derrubar

esta barreira, sabia que teria de transmitir a lição que recebi daquele senhor

analfabeto apaixonado por poesia para o leitor. A transformação não estava

somente na ação dos personagens e na busca pela própria inserção na sociedade,

ela se expandia à minha mudança de visão e à compreensão daquele universo

complexo pelo leitor. Uma abordagem objetiva e isenta ignoraria todas aquelas

sutilezas. (REIS, 2007)

No livro Econautas – Ecologia e Jornalismo Literário Avançado (LIMA, 1996),

a reportagem Um Caso de Dignidade, produzida por Beatriz Dornelles, demonstra como

a sensibilidade solidária e o caráter educativo pode ser utilizado na produção

jornalística. A matéria conta como uma série de iniciativas transformou uma favela da

região central de Porto Alegre – sem as mínimas condições estruturais – em um bairro

onde se pode viver bem.

A partir dos relatos do líder comunitário Deoclécio da Silva, Beatriz mostra

como as políticas públicas e a ação popular transformaram um espaço onde

predominava a exclusão e a condição de indignidade humana em um ambiente de vida

saudável. A repórter demonstra como pequenas iniciativas geraram grandes benefícios

aos cerca de 400 moradores da Vila Planetário, como é o caso da luta do próprio

Deoclécio para a aprovação da lei que concede o direito a todas as pessoas que moram

em áreas clandestinas a regularizarem sua situação:

“Decidi entrar na luta e fazer alguma coisa por essa gente que há 30 anos mora

aqui, nessas condições que eu já contei. E fui à luta. Foi difícil aprovar a lei

porque os vereadores achavam que o pobre tinha que morar bem longe do

centro. Pobre não pode morar no meio dos rico. Alguns até hoje são meio

contra, mas acabaram entendendo que toda e qualquer pessoa é um ser humano,

com direito de viver dignamente, como um cidadão qualquer de bom poder

aquisitivo”, relata Deoclécio. (DORNELLES in LIMA, 1996, p.66)

A partir da iniciativa, segundo Beatriz, a Prefeitura de Porto Alegre transformou

as malocas da favela em casas e manteve os moradores na área ocupada, dando-lhes

responsabilidade como pagar impostos e contas de água e luz, além de uma

porcentagem de 7,5% do salário mínimo da época para a aquisição da casa própria.

De acordo com a reportagem, a proposta deu certo e gerou muitas alterações

sociais no bairro – como o fim do desemprego e da vadiagem de seus moradores, que

foram motivados a trabalhar para pagarem suas contas; a construção de uma creche,

onde voluntárias cuidam das crianças para os pais poderem trabalhar; a redução do vício

do álcool; até a chegada no índice de 100% de moradores adultos empregados, além do

desenvolvimento dos serviços de higiene e da alfabetização de adultos.

A partir de uma iniciativa, uma série de mudanças – todas relacionadas a um

único espaço e a um único grupo de pessoas – começa a ocorrer. Isso demonstra as

ligações complexas entre as coisas e exemplifica claramente do que se trata o que se

pode chamar de equilíbrio ecológico.

Beatriz destaca:

O que mais se observa no comportamento dos ex-favelados é o espírito de

solidariedade que mantêm uns com os outros. Todos se prontificam a ajudar os

necessitados. As meninas ainda não em idade adulta cuidam das crianças, assim

como as mais velhas. Os homens ensinam para os colegas tudo o que

aprenderam com a vida, como o ofício da construção civil. As mulheres, para

ajudarem no orçamento de casa, têm empregos fixos de doméstica, diarista,

faxineira, babás, cozinheiras, lavadeiras e outras tarefas que podem realizar, já

que a maioria não obteve formação educacional suficiente para se candidatarem

a empregos bem remunerados.

“Sabe, depois que nós mudamos nosso tipo de vida, muitas dondocas, essas

mulheres ricas, encostam seus carrões aqui na frente e me pedem para conseguir

uma empregada para elas. Antes não era assim. Diziam que nós éramos

marginais. Olhavam com maus olhos para nós. Foi só nos colocarmos embaixo

de um teto e viramos pessoas honestas, coisa que sempre fomos”.

(DORNELLES in LIMA, 1996, p.68)

Esse tipo de reportagem demonstra como pequenos atos, que muitas vezes não

estão diretamente vinculados às grandes quantias em dinheiro ou a complicadas

decisões governamentais, podem inspirar a transformação social. Como afirma Lima no

ensaio “O Valor do Silêncio” (TextoVivo, acesso em 10 de dezembro de 2007):

O sentido de qualquer coisa é mais profundo do que sua proporção concreta.

Abrange aspectos subjetivos, que não podem ser considerados inferiores, de

segunda categoria. Ao contrário, são os aspectos subjetivos que nos revelam a

integração entre as coisas, bem como sua participação num processo maior que

a tudo abrange, como uma rede extraordinária de processos.

O narrador da vida real precisa, obrigatoriamente, dar vazão a essa busca

ampliada de compreensão.

Essa busca ampliada de compreensão, na narrativa de transformação, é a soma

dos modos de aprender, ensinar e reconhecer as pessoas e grupos sociais – como

apontam Assmann e Sung. Portanto, a maneira individual de pensar e agir é decisiva

para a realidade concreta e o pensamento coletivo, como afirma Lima no artigo “Da

vigília ao sonho lúcido” (TextoVivo, acesso em 10 de dezembro de 2007), relacionando

essa visão ao Jornalismo Literário Avançado:

O JLA concede uma atenção fundamental à questão da consciência e do seu

despertar nos seres humanos. Sua crença reside no poder gerador de realidades

que está armazenado no pensamento. O mundo material é apenas um reflexo do

que construímos, consciente ou inconscientemente, no plano mental. O desafio

para a humanidade, agora, é aprender a gerar conscientemente realidades

construtivas harmônicas, integrativas, cooperativas. Para isso, o homem deve

ser direcionado a testar e trabalhar, do leque de tecnologias de auto-

conhecimento disponíveis, as variantes que melhor lhe sirvam no processo de

reconstrução de si próprio.

A produção jornalística, diz Lima, para contribuir com a aceleração desse

processo de integração, deve antecipar ao seu leitor ou receptor o sentido das

transformações profundas que o mundo está passando. Isso possibilitaria a inversão do

atual condicionamento social através de um maior compromisso com o caráter

educativo e transmissor do conhecimento de qualidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando se escreve com mais cuidado, com mais sensibilidade, se

escreve com mais liberdade.

Gay Talese

Humanizar para transformar

Uma prática jornalística afetuosa, que acompanha o leitor, que demonstra um

caminho virtuoso, com personagens imitáveis e histórias narradas com proximidade.

Um jornalismo que retoma o prazer do ato de ler, que estimula o pensamento produtivo,

que faz pensar e aguça os sentidos. Um estilo de reportagem acompanha o leitor e o leva

por um caminho, que indica perspectivas, apresenta possibilidades e nunca o deixa

perdido diante de uma montanha de informações fragmentadas e que não constituem

significações no cotidiano. Um jornalismo mais humano. É o que propõe esse estudo.

A partir da visão sistêmica, essa pesquisa defende que, para produzir um

jornalismo que valorize a compreensão, o jornalismo deve ser estimulado a manter-se

em constante aprendizado, em constante evolução. No entanto, o aprendizado proposto

aqui vai além do conhecimento técnico e está diretamente relacionado com o modo de

ser e estar no mundo do repórter – nunca só como profissional, mas sempre como ser

humano. Um dos objetivos do trabalho é exatamente o de demonstrar que tudo está tão

interligado que o modo de ser do repórter nunca pode ser desvinculado do jornalismo

que ele executa. Por isso é responsável pelos desdobramentos de suas reportagens e é

co-autor de uma realidade muito mais abrangente do que as páginas dos periódicos.

O pensamento sistêmico – diferente das propostas positivista e cartesiana – não

despreza o fator humano, não é sustentado apenas pela objetividade. Essa linha de

pensamento nota o mundo com um organismo integral, que não pode ser reduzido a

pequenas partes. A vida em sociedade, palco do jornalismo, também não pode ser

seccionada para ser compreendida. Assim, o jornalista tem a missão de retransmitir

significados complexos com clareza aos cidadãos para que esses possam compor suas

visões de mundo. Se a visão de mundo do jornalista é reducionista, tecnicista,

desumanizada, ele tende a realizar um jornalismo fragmentado, muito técnico e,

consequentemente, desumano.

Então, o jornalista sistêmico, aquele que busca desenvolver a mente sistêmica,

observa além do objetivo, não se prende ao modo linear de reportar. Esse jornalista vive

em busca de uma construção textual que consiga estabelecer relações entre o passado, o

presente e o futuro. E repasse tudo isso ao leitor com profundidade, sempre facilitando

suas compreensões. Em uma procura ideal, inserir o leitor no palco dos fatos.

Essencialmente, esse jornalista reconhece sua participação na construção da realidade

social e sabe da importância de manter a coerência no que faz. Para ser um jornalista

sistêmico, o repórter deve priorizar seu lado mais sensível e humano. Ele deve ser

humano!

Quanto às técnicas jornalísticas, o profissional precisa saber o que realmente

deseja – meramente transmitir a notícia, explicar um determinado acontecimento,

direcionar um entendimento ou elevar a informação a um nível mais elevado, o nível da

compreensão.

Este estudo também tem o objetivo de esclarecer essas diferenças e defender a

prática do Jornalismo Literário como recurso para ampliar a compreensão das

informações. Tanto a estrutura narrativa variável quanto a filosofia de aprofundamento

propostas por esse estilo jornalístico são ricos campos para que o jornalista possa elevar

seu texto às potências elevadas da prática de reportagem. Humanização, voz autoral,

simbolismo, imersão, exatidão e precisão, digressão, responsabilidade e criatividade são

os fundamentos básicos para um jornalismo mais próximo do leitor.

Dessa forma, a soma da visão sistêmica com os elementos do Jornalismo

Literário amplia o potencial de compreensão da narrativa - como apresentado no

primeiro e segundo capítulos do estudo. Já as propostas do Jornalismo Literário

Avançado dão um passo adiante e incluem nesta vasta lista de recursos a

transdisciplinariedade. É por meio das inovações dos mais variados campos de

conhecimento que o jornalismo e a busca por uma reportagem de profundidade se

firmam. Associar e levar os resultados de pesquisas de ponta ao cidadão comum é

auxiliá-lo a compreender melhor a complexidade da sociedade em que vive.

Nas narrativas de transformação, jornalistas, personagens e leitores são peças de

um mesmo quebra-cabeça que se reconstrói a cada história, reformulando também a

vida social e suas mudanças. E a valorização desses elementos humanos transformam a

sociedade.

Enfim, a narrativa de não-ficção busca antecipar possíveis tendências das

mudanças que estão acontecendo no mundo e podem ser inspiradoras de

transformações. Essas narrativas, normalmente, trazem como tema histórias baseadas

em ações humanas, iniciativas que de alguma forma geram a melhoria da qualidade de

vida de seus personagens ou resignificações da realidade social.

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português. Estados Unidos: PlayArte, 2007.

Anexo 1

A Inserção da Loucura

Eduardo Reis

“Quem revelou o homem como único condicional não ensinou a trair, não ensinou

humilhar, não ensinou tirar. Ensinou ajudar.” – Estamira, no documentário Estamira,

de Marcos Prado.

Pequenos passos

Um homem de andar frágil e lento, trajando calças jeans claras e uma camiseta

promocional amarela, dobra a esquina do outro lado do grande terreno da antiga oficina

de trens. Com o olhar voltado ao chão, uma bolsa de um evento municipal sobre saúde

na mão, um ar sereno no rosto, o senhor de cabelos grisalhos ralos e sem dentes na

arcada dentária superior invade o campo gramado em frente à velha estação da Fepasa.

Camilo Leite, de 52 anos, caminha tranqüilo pela estreita trilha poeirenta aberta

entre a grama seca pelo calor escaldante e a temerosa falta de chuva que atingia Assis,

cidade do Oeste do Estado, a 440 quilômetros de São Paulo, nos meses de agosto e

setembro de 2007.

Ele atravessa a rua sem se preocupar com o trânsito das 8h40 da manhã de

quinta-feira, dia 20, pára sobre a calçada e, com a mão espalmada, seca o suor que corre

na parte frontal da testa. Sereno, Camilo mexe a cabeça de um lado para o outro. Olha

para o céu como em busca de algo e se perde no olhar. Observa o infinito azul sem

nuvens. Vê o marasmo da rua. Só uma bicicleta que passa. O senhor contrai as maçãs do

rosto e aperta a vista em direção ao sol. A luz ofusca. Não vê mais nada. Cai de volta ao

chão. “Mai tá um calor, né?”, diz ao expor seu sorriso banguela, dirigindo a palavra a

mim.

Ao mesmo tempo, aponta no fim da rua uma pequena mulher. Ombros caídos,

cabelo tipo Joãozinho e caminhar com passos arrastados carregados de tédio. Olhar

voltado aos próprios pés avermelhados de pó e sol. Suspiro. Bermudinha, chinelo e

camiseta. “Bom dia, Camilo”. Suspiro. Angelinha encosta na parede do prédio – saca

um maço amassado de cigarros TE. Suspiro. Acende um. Olha para o chão. Suspiro. E

solta um trago descomprometido. Suspiro.

O silêncio gritante de Angela e a busca sem fim dos olhos de Camilo terminam

somente com a chegada da estudante do quinto ano de psicologia da Unesp

(Universidade Estadual Paulista), Sônia Romeiro Costa, de 24 anos.

– Bom dia, Camilo! Bom dia, Angelinha! Vamos lá? – diz sorridente, a moça de

estatura baixa e cabelos negros encaracolados.

Poucos minutos antes das 9h, a porta do prédio já está aberta. O galpão é

semelhante a uma velha oficina mecânica. A pintura coberta pela poeira e a porta de

metal, que está sempre fechada, dão um tom de desuso ao local. Na área interna, o

grande espaço vazio faz ecoar qualquer chiado. As paredes estão carregadas de

ilustrações e frases de protesto escritas ao léu em tinta spray. Num canto, há uma estante

baixa cheia de livros doados ao cursinho pré-vestibular que, assim como a capoeira de

Angola, o teatro e alguns shows de bandas punk, também é realizado ali.

O número reduzido de participantes na reunião daquela manhã – somente sete

pessoas – se espalha entre as cadeiras escolares postas em volta de uma mesa

improvisada com uma lâmina de madeirite.

– Gente, o que vocês acham que podemos fazer hoje? – diz Sônia – Vamos

produzir mais material ou vamos nos organizar para ver como faremos no próximo

evento?

– Vamos falar sobre a barraca na feira! – sugere Célia Rangério ao arregalar os

olhos, franzir a testa e comprimir os lábios inferiores – Sabe por quê? Porque todo

mundo me pergunta onde pode comprar as coisas que a gente vende, mas ninguém sabe

onde tá nossa barraca, daí dá a impressão que a gente é tudo louco e não vende de

verdade, sabe? – a negra de 52 anos e postura firme demonstra uma suspeita quanto à

existência da produção do grupo.

– Ué! Tá aqui no Galpão, ué! – Responde o líder José Alfredo, num tom de

resposta óbvia – Tá tudo aqui no armário! É só falar pra vir aqui! – O ex-padeiro de 38

anos possui grandes entradas nos cabelos grisalhos, que dão a impressão da idade mais

avançada. Zé tem olhos comprimidos, usa óculos de aros finos e tem o lábio superior

maior do que o inferior. Também é dono de uma fala simples do interior do Estado, com

“R” puxado, tom sincero (talvez um pouco desconfiado).

Apesar da interferência, Sônia complementa a sugestão de Célia:

– Então, Célia! Isso é outra coisa que a gente tem que conversar. Temos que ver

como vamos enfeitar a barraca, conseguir as partes dela que faltam e avisar as pessoas

onde vamos vender nossas coisas... Mas, para isso, o pessoal tem que participar mais!

(Antes que alguém interrompa, Sônia acelera o passo da conversa) Então, gente, mas é

o seguinte: na semana que vem vai ter um evento na Unesp. É um pré-congresso do que

acontece em Buenos Aires, do Congresso das Madres, que trata da Luta

Antimanicomial. Acho que podemos montar nossa barraca lá, o que acham?

– Acho bom! – Responde Adriana Simão, uma negra corpulenta de 32 anos, que

está sempre com as mãos unidas entre as pernas e é dona de uma vozinha fina e meiga

como a de uma criança – Lá em Marília foi tão bom, né? A gente vendeu bastante coisa

lá!

– É, eu vendi! Eu fiquei na barraca lá em Marília. – diz Camilo ao me mostrar

uma edição do Jornal de Assis do dia 14 de setembro, que trazia a matéria anunciando a

participação do grupo no seminário em que foram debatidas questões como a inclusão

de portadores de transtornos mentais por meio do trabalho.

– É, foi bom! Mas eu não entendi muita coisa, não! – Recorda Zé Alfredo – Lá

eles tratavam a gente de “ele”, de “o indivíduo”. Eu entendi umas coisas, mas outras,

que tem linguagem acadêmica, né? Não entendi muito, não.

– Eles parece médico falano da gente! Parece que trata com diferença, sabe? –

Ataca Célia – Lembro quando eu tava lá. Era tratada só com diferença! Quando eu tava

lá...

– Sôôônia! – Interfere a pequenina Angela com uma expressão de criança

pidoncha – Póóósso ir embora?

– Mas já, Angelinha? Já tem pouca gente hoje...

– Sabe o que é? É que eu preciso ir... – Diz Angela enquanto Célia prossegue no

assunto:

Tinha uma janela e uma porta de grade, sabe? Daí vi que tinha um home

pintano a parede do lado de fora. Então eu subi num banco e perguntei pra ele como

tava o céu. Eu só queria sabê como tava o céu! O home saiu sem nem falar comigo.

Depois veio a infermera e aplicô uma injeção desse tamanho assim, chama sussega-

lião. Durmi até o otro dia. Contei o que tinha acontecido pra minha irmã, daí minha

irmã disse pra eles que eu era muito assim romântica, sabe? E que eu gostava de ver o

céu. Daí ela assinou um termo de responsabilidade e me tirou de lá.

E como um barquinho de papel que se afasta da margem do lago num dia de

vento, a cada intervenção a conversa vai ficando mais distante de seu ponto de partida.

E, todas as vezes que o papo começa a tomar outros rumos, Sônia faz os marinheiros

retomarem a rota de navegação. “Gente, precisamos decidir como vamos fazer na

semana que vem. O que passou, passou, já faz parte da nossa experiência. Agora

precisamos ver o que fazer daqui pra frente”, reforça a garota de fala direta e atitudes

pacientes.

Trajeto em si

Psicólogos, psiquiatras, neurologistas e estudiosos da mente humana apontam

que os desvios de atenção ocorrem no cérebro entre cada seis ou dez segundos. Isso se

intensifica entre os integrantes da associação presidida por Zé Alfredo. Como numa sala

de aula, durante as reuniões todos ficam com pequenas cadernetas nas mãos e anotam as

decisões. Exceto Camilo, que não sabe ler nem escrever. Por mais desconexa que seja

uma opinião, ela é ouvida e debatida pelo grupo – o que pode fazer uma pequena

decisão se desdobrar num debate épico por toda a manhã.

“Desde o começo deste ano, a gente tem buscado algumas maneiras para

valorizar a qualidade de vida que não seja só através do medicamento. Aqui a gente

caminha bem devagarinho, né Zé?”, explica Sônia, pedindo a confirmação do amigo, já

na saída da reunião.

– É! – concorda Zé Alfredo, com um sorriso no rosto não tão seguro quanto sua

afirmação – Mas de pouquinho a gente chega lá!

Após separar e organizar a produção de velas, sabonetes, livretos de poesias

escritas pelos associados e algumas camisetas que seriam comercializadas na Unesp na

semana seguinte, todos eles voltaram para suas casas com a programação anotada nas

cadernetas. Zé Alfredo permanece e me conta a história da associação.

Apesar de existir desde 2002, o grupo iniciou sua jornada de trabalhos em passos

bem pequenos e lentos. Contam, desde o início, com a parceria do Caps (Centro de

Atenção Psicossocial), onde pessoas como Célia, Camilo, Angelinha, Zé e Adriana

recebem atendimento médico e participam de oficinas terapêuticas de música, imagem e

vídeo, esporte e até da produção de um jornalzinho. Mas os trabalhos se intensificaram

somente no final de 2005, quando receberam um auxílio de órgãos municipais.

Com o dinheiro, puderam dar o primeiro e verdadeiro passo na luta contra suas

próprias dificuldades, contra o preconceito e pela inserção social e econômica.

“Investimos na compra de material básico pra produção de vela, sabonetes e camisetas.

Fizemos nossa oficina deixar de ser terapêutica, como é lá no Caps, para virar trabalho

profissional aqui”, explica Zé.

Ao mostrar as primeiras velas produzidas no PGR (Programa de Geração de

Renda), que permanecem guardadas no fundo de um armário no Galpão Cultural, Zé

atenta para uma de suas preocupações essenciais. Ao notar a baixa qualidade dos

produtos que tinham feito, eles recorreram a um curso de capacitação para a produção

de velas e sabonetes.

Pude comparar o material e vi que a diferença é gritante. As primeiras velas

tinham a parafina empelotada, com uma aparência meio suja. Já as novas eram bonitas,

de formato bem feito, com detalhes e enfeites trabalhados e ótimo acabamento. Todas

acompanhavam simpáticas etiquetas com a inscrição: Associação dos Usuários,

Familiares e Amigos da Saúde Mental de Assis – Além de adquirir um produto de

qualidade feito pelos artesãos da Pirassis, você está participando de um novo conceito

de loucura.

“A gente só quer se unir e trabalhar junto, caminhando pelo trajeto, enfrentando

nossas próprias dificuldades pra mostrar pras pessoas que nem todo louco é louco, sem

noção das coisas. Que não é bem por aí! A gente quer mostrar que a gente pode viver

como pessoas normais, que a gente pode estudar, trabalhar e ter uma vida comum, sem

precisar ser isolado da sociedade”, complementa Zé, que começou a tratar sua

oligofrenia há 15 anos e integra a associação desde o início.

Trilhas sinuosas

O cheiro de ar puro e eucalipto invade os pulmões e se alastra pelas enormes

sombras das árvores que tomam todo o campus. Folhas secas se espalham pelas

pequenas vias de asfalto que unem os prédios da universidade e estalam conforme são

atropeladas pelas rodas dos carros e das bicicletas. Do estacionamento ao lado do bloco

de Psicologia da Unesp já dava para ouvir o som da Lokonaboa – a banda composta por

associados da Pirassis, usuários do Caps e estagiários.

É quarta-feira, 26 de setembro, e o conjunto se apresenta no “Som do Meio-Dia”

– evento realizado com freqüência na cantina no horário do almoço dos universitários.

A música é animada e dançante. Bateria, baixo, violão, instrumentos de percussão e

vozes que cantam empolgadas num ritmo de balada:

“Estou vivendoooo... no mundo do hospitaaaaal

Tomando remédio de psiquiatria mentaaaaaal

Haldol! Diazepam! Rohypnol! Prometazinaaaa...

Meu médico não sabe como me tornar um cara normaaal

Me amarram! Me aplicam! Me sufocam num quarto trancado!

Socorro! Sou um cara normal as-fi-xi-a-dooo...”

Vocalista da banda há sete anos, o carismático e elétrico Wilson de Almeida, 38,

que iniciou seus tratamentos mentais em 1992 em razão de problemas com o álcool,

segura o microfone sobre o pedestal com a mão direita e balança o braço esquerdo no

ritmo da música “Sufoco da Vida”, da banda carioca Harmonia Enlouquece – também

nascida em um centro de atendimento psiquiátrico.

Vestido com uma surrada calça jeans, uma camiseta cor de guerra, botinas

marrons e óculos de fundo de garrafa, o rapaz moreno de tipo físico forte e andar

desengonçado feito mola frouxa chama o público imitando uma voz de locutor de rádio:

“Essa é pra dançar!”. Enquanto isso, Angelinha joga seu pequenino corpo pra lá e pra

cá, balança os braços e sorri em frente à banda, que toca num palco improvisado

diretamente no chão.

Outros integrantes da Pirassis e do Caps também estão por ali, misturados entre

os alunos. Célia não apareceu, apesar de ter confirmado a presença. Zé Alfredo, que diz

não saber dançar, prefere cuidar da barraca da associação oferecendo produtos aos

estudantes.

Enquanto isso, outros usuários, como se autodenominam as pessoas que utilizam

o serviço da saúde mental, dançam e pulam como crianças que ainda não tiveram a

inocência atropelada pela vida. Adriana e seu companheiro batem palmas no ritmo da

música.

A Lokonaboa toca desde Roberto Carlos, Rick e Renner até Ultraje a Rigor,

passando pelas imprescindíveis “Maluco Beleza”, de Raul Seixas, e “Balada do Louco”,

dos Mutantes. A música feita pelos estagiários e pelos artistas da Pirassis, que se

revezam nas funções de cantores e tocadores de tambor e pandeiro meia-lua, é muito

aplaudida. Wilson agradece imitando novamente a voz de locutor de rádio: “A banda

Lokonaboa, direto do Centro de Atenção Psicossocial e da Pirassis, agradece os

aplausos de vocês! Muito obrigado! Muito obrigado!”

Antes do começo da apresentação, Wilson havia se aproximado:

– E aí, Duardinho? Como é que cê tá? Tudo bom? Legal que você veio! Legal

mesmo! Eu tô ajudando o pessoal ali com o som pra gente começá, mas fica à vontade

aí! A Soninha tá ali, o Zé tá aqui! O Seu Camilo tá ali, ó! Fica à vontade! (Já havia

conhecido Wilson na semana anterior, quando visitei a reunião da diretoria da

associação – o vocalista da Lokonaboa é também um dos secretários da Pirassis).

Aproveito o tempo antes do início do show para caminhar por ali. Um grupo de

rapazes toma refrigerantes numa das mesas quando são surpreendidos por um dos

usuários do Caps, que já chega puxando uma cadeira e dizendo:

– Eu sô da banda! Quer ver?! – E, antes da resposta dos estudantes, canta:

“Aqueleeeee nóóóóóósso amorrrrrrrrrrrrrrr

A gente vê assiiiiiiiiimmmm

Me dá um bejooooo seeeeeuuuu...”

Barba por fazer. Camiseta branca-cor-de-barro. Bermuda rasgada. Boné

vermelho encardido. Chinelo de tira de borracha gasto. Olho pro peixe. Outro pro gato.

O homem, cujo nome nem se suspeita, canta uma música desconexa, que aparenta

brotar dos confins de sua criatividade no exato momento em que cada sílaba ruidosa é

amplificada em sua boca:

“Me dá um bejoooo seeeeeeeeeeuuuuuuuuuuu...”

E prolonga o final de cada frase numa variação harmônica inexistente até mesmo

na mais absurda combinação da escala musical. Os estudantes olham uns para os outros

com cara de asco e interrogação e assistem à cena protagonizada pelo aspirante a cantor.

Camilo, um dos tocadores de pandeiro meia-lua, está sentado sozinho num dos

bancos da pracinha ao lado da cantina quando me aproximo para conversar. Atencioso,

educado e sempre sorridente, o senhor, que freqüenta o Caps há mais de 15 anos, é um

amante da poesia, mesmo sem saber ler nem escrever.

Ahhhh, eu gosto de poesia! Eu gosto de fazê poesia! ... Sabe? Tudo na vida, as

coisa mais simpre, é poesia! Pru quê é nelas que tá a sabedoria! ... É nelas que tá as

coisa que tem experiência pá passá pá nóis! ... Sempi que eu vejo alguma poesia, tipo

as flor, as pessoa, as construção, eu saio ditano e peço pra alguém escrevê pra mim...

Na minha pasta de poesia tem mais de um livro! ... Ahh, eu tenho mais de um livro! ...

Tem bastante assim! Sabe? Eu trabaiava com sacaria! Com trabaio pesado! ... Só que

eu não era home bão, não! ... Não era, não! ... Eu fumava, eu bebia! ... Eu era assim ó!

É isso que eu era... ingual esse graveto. Era quebrado. Despois que bati a cabeça,

comecei tratá. Mai não é só remédio que trata a gente não... é sabedoria! Conversá

com as pessoa mai insperiente, que tem sabedoria! Quando eu era quebrado... num

sabia o que a gente sinifica. Agora eu sei! A gente tem que aprendê com os otro e se

ajudá! ... Uns e os outro! Sem apavoramento! Sem maltratá! Por isso, minha felicidade

é tá aqui com vocês.

Camilo mal termina de falar, quando Wilson retorna e diz:

– Ontem foi aniversário do Seu Camilo! – E aponta o dedo para o senhor sentado

ao meu lado – E meu tamém! Eu e o Camilo, a gente faiz aniversário no mesmo dia!

Parabenizo os dois. Camilo, com seu jeito sempre tranqüilo e silencioso, se

levanta e caminha com passos cansados em direção à barraquinha da Pirassis.

Caminhos próprios

A temperatura caía naquele início de noite em Assis e espantava as pessoas da

região central da cidade. Na entrada do Cine FAC – o cinema da Fundação Assisense de

Cultura – apenas uma garota miúda tentava fugir do frio no calor dos próprios braços.

Escondia-se atrás da mureta que acompanha os degraus da escada de pedras claras que

nos leva ao saguão do cinema. A continuação do evento da Unesp seria ali, com a

apresentação do documentário “O Profeta das Águas”, de Leopoldo Nunes.

Ainda eram 19h quando Zé Alfredo e Camilo, os participantes mais assíduos da

associação, adentraram o hall em companhia de um terceiro homem. Eles aguardavam a

chegada de uma estagiária que levaria os produtos do PGR para serem comercializados.

Mas ela não compareceu.

O casal Emerson e Adriana, que havia acompanhado toda a programação

daquela manhã, também não deu as caras. Talvez eles tivessem outros planos, como

tinha comentado o rapaz sorridente de 26 anos, cabelos claros bem penteados, que

gostava de vestir calças jeans com barras dobradas para fora e camisa flanelada na

época em que ainda não era namoradeiro.

Seis anos após sofrer um surto psicótico ao assistir a imagem dos choques de

dois aviões nas torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, no dia 11 de

setembro de 2001, Emerson evita recordar o que passou.

– Aquela imagem me fez deixar de acreditar nas pessoas. Deixei de acreditar até

na minha própria vida. – Diz enquanto o sorriso se apaga de seu rosto ao lembrar do

fato que desencadeou uma série de tratamentos psiquiátricos.

Porém, a vida de Emerson atualmente é outra, longe das internações, do

isolamento e da descrença nas pessoas. No dia 8 de setembro de 2007, ele trocou a

roupa de Jeca Tatu – como diria Adriana – para vestir terno e gravata, caminhar pela

nave de uma igreja evangélica e se casar com sua companheira de tratamento, de

associação, de culto religioso e para toda a vida.

Ao falar dos planos para o futuro, Emerson levanta a cabeça, seu corpo cresce e

os ombros se afastam. Ele é tomado por uma energia que irradia através de seus olhos e

explode novamente num belo sorriso:

– A gente quer ter um bebê!

Para isso, Emerson e Adriana iniciaram uma busca por maneiras próprias para

sustentar o sonho de recém-casados. Além da associação, que ainda não havia rendido

vintém algum, eles vendiam panos de prato de porta em porta. E Emerson pretendia

recolher materiais recicláveis pelas ruas, apesar de Adriana não concordar. “Meu

marido, catador de papel?! Não gosto da idéia, não!” As vontades do casal pareciam ir

de encontro com a do homem que acompanha Zé Alfredo e Camilo no cinema.

O negro de estatura baixa, magro, trajado com uma roupa simples, porém

elegante – calça social, sapatos e camisa bem passada – é José Carlos da Silva. Com

aparência muito mais jovem do que seus 40 anos de idade, o ex-presidente da Pirassis

segura um envelope pardo sob o braço esquerdo e entrelaça os dedos das mãos atrás do

corpo enquanto discute política com o atual líder da associação, que estuda a

possibilidade de se candidatar a vereador.

Aos poucos, os estudantes de psicologia chegam ao cinema acompanhados de

profissionais da saúde mental. Entre eles, está um homem muito simpático, de cabelos

bem penteados e sorriso largo no rosto. O psiquiatra capixaba Paulo Amarante,

considerado um dos maiores nomes do país na luta antimanicomial, assistiria ao filme e

comentaria a história de Aparecido Galdino, o líder religioso do pequeno município de

Rubinéia, na fronteira de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, que foi

injustiçado, dado como louco e internado no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha

durante a ditadura.

Ao notar a presença de Amarante, Zé Carlos, que também faz tratamento no

Caps e tinha acabado de comprar o último livro do psiquiatra, desvia sua atenção da

conversa e se mostra um pouco nervoso:

– Será que ele assina meu livro pra mim? – diz o negro, com um grande sorriso

no rosto enquanto Amarante bate papo com um grupo de professores.

Logo em seguida, o famoso psiquiatra se aproxima, cumprimenta todos os

colegas de Zé Carlos e diz para ele: “Eu me lembro de você lá do Caps!”. Este é o

momento para Zé pedir um autógrafo no livro “Saúde Mental e Atenção Psicossocial”.

Os temas abordados nas publicações de Amarante sempre rondam os assuntos

relacionados à reforma psiquiátrica no país. Esta complexa mudança teve origem no

Brasil na década de 1970 e prossegue como uma verdadeira batalha até os dias atuais.

Ela começou a apresentar resultados concretos a partir 1992, com a ação de movimentos

sociais que, inspirados no Projeto de Lei Paulo Delgado, conseguiram aprovar as

primeiras normas que determinaram a substituição progressiva de leitos psiquiátricos

por uma rede integrada de atenção à saúde mental. Foi aí que surgiram os Caps.

Este projeto inspirador entrou no Congresso Nacional em 1989 com a proposta

de extinguir os manicômios do país, mas a Lei 10.216 se arrastou por 12 longos anos e

só foi sancionada no dia 6 de abril de 2001.

Enquanto Zé Carlos permanecia no hall do cinema, foi possível notar que ele

também é conhecido naquele meio. Psicólogos, funcionários da saúde mental,

professores, estagiários e estudantes cumprimentam Zé de forma carinhosa. E ele, com

um jeito meio tímido e de olhar voltado ao chão, responde.

Ao perceber de quem se trata, pergunto:

– Você é o Zé Carlos, aquele que pinta telas?

Zé rebate de forma positiva e, com o mesmo jeitão retraído, me conta sobre sua

boa relação com a pintura, mas lamenta não ter concluído nenhum quadro nos últimos

meses. “Eu tenho estilo surrealista. Sempre gostei muito de Salvador Dalí, mas depois

que li um livro sobre a história dele... (Zé entorta a cabeça para o lado e comprime os

lábios num sinal negativo) Não dá pra mim, é muita loucura!”, completa. Mesmo com o

bloqueio ao surrealismo, Zé Carlos afirma que tem observado a obra de Renoir e que

gostaria de ensaiar umas pinceladas no impressionismo.

Dedicado ao aprendizado e à leitura, Zé se distanciou das atividades tanto do

Caps quanto da Pirassis. “Foi por causa do trabalho. Sou pintor... (jeitão retraído

novamente) de parede. E tô fazendo uns trabalhos fora da cidade”, explica. Mas, apesar

disso, ele diz que raramente deixa de lado as oficinas de jornal do serviço de saúde. “Eu

gosto de ler, escrever e de artes. Acho importante a gente aprender sobre o que nos

interessa e sobre o que faz parte da nossa vida! Agora mesmo estou lendo muito sobre

saúde mental! Você sabe, né!” – Ele me olha com uma expressão de cumplicidade e

aponta para o livro de Amarante em sua mão.

Da mesma maneira que Austregésilo Carrano Bueno, integrante do Movimento

da Luta Antimanicomial, autor do livro “Canto dos Malditos” e protagonista da história

que originou o filme “Bicho de Sete Cabeças”, dirigido por Laís Bodanzky, Zé Carlos

tem uma postura firme e ataca os tratamentos considerados desumanos. Suas principais

armas são seus textos e telas.

– Oi, Zé! Muito bom aquele artigo no último jornalzinho do Caps! Acho que é

isso mesmo! – Tudo bem, Zé? Tem escrito alguma poesia? – E SEUS QUADROS, ZÉ?

EU NÃO VI MAIS!

Zé Alfredo e Camilo se antecipam em busca de bons lugares enquanto minha

conversa com Zé Carlos prossegue. Caminhando para nossas poltronas no cinema, o

inteligente, tímido, artista plástico, poeta e usuário do Caps observa a chegada das

jovens estudantes de psicologia e comenta em tom bem-humorado:

– Olha só estas meninas! Quanta mulher bonita! Depois não sabe porque o

sujeito fica louco! – E dá uma gargalhada gostosa e sincera enquanto as luzes se apagam

e o filme começa.

O novo norte

O relógio aponta 10h da manhã. A estagiária Rosana Marcílio de Freitas, de 24

anos, pergunta: “Será que não vem mais ninguém?” A jovem morena, de cabelo liso

preso numa trança única, sapatinho de boneca e um descolado blazer colorido de

flanela, se debruça sobre um enorme pedaço de papel pardo enquanto risca um

calendário de outubro.

Camilo se senta numa das cadeiras postas em torno da mesa de reuniões

improvisada do galpão. Com os dedos entrelaçados entre os joelhos, as costas curvas e

os cotovelos apoiados nas coxas, ele contrai os lábios feito um peão que masca fumo.

Cansado. Respira fundo.

Wilson gasta a sola da botina ao andar impaciente de um lado para o outro. Zé

Alfredo roda um envelope plástico nos dedos com os braços sobre a mesa. Sônia e a

também estagiária Elaine Cristina Silva, de 27 anos, observam o vai-e-vem de Wilson

que, de repente, pára e diz:

– Vô lá no Caps!

– Nossa, Wilson! Você não vai participar da reunião? O que você vai fazer lá no

Caps? – Lamenta Sônia.

– Eu vou buscar remédio! Eu tenho que ir lá buscar remédio! Eu num fui hoje! É

rapidim! Vai tê almoço, num vai? Eu vô almoçá aqui também! Já volto! É rapidim! –

Ele monta na bicicleta e voa desengonçado em direção à linha do trem.

A baixa participação dos associados deixou uma pesada nuvem de desâmino

sobre a cabeça das estagiárias. Nos dias anteriores, a Pirassis havia somado R$ 204 na

venda de seus produtos, mas Emerson, que estava em dúvida se assumiria o posto de

novo tesoureiro da associação, também não apareceu.

– Eles ainda estão no clima de casório! Deve ser isso! – diz Zé Alfredo,

segurando o envelope que servia de caixa-forte para guardar todo o dinheiro arrecadado.

Desde o início dos pequeninos passos da Pirassis, nenhum dos associados havia

recebido qualquer quantia de dinheiro. Com seu jeito simples, mas com um discurso de

experiente economista, Zé explicaria o motivo: “Até o momento, apenas somamos

recursos para compor o nosso capital de giro”.

Antes mesmo que o almoço começasse a ser preparado, Wilson retorna:

– Olha o que eu trouxe pá nóis! – E aponta para um saco plástico recheado de

lingüiças cruas.

Sônia fecha o rosto. Cruza os braços e diz:

– Wilson... onde você arrumou essa lingüiça? A gente não combinou que não era

para pedir nada para os outros?

– Mas eu ganhei de um açougueiro amigo meu!

Zé Alfredo entra no assunto e comenta com cautela:

– É, Wilson! Mas essa história de pedir vai contra nossa origem. A gente tem

que trabalhar pra conseguir nossas coisas.

– Tá! Tá bom! – diz o vocalista da Lokonaboa, ainda meio desconsertado –

Desculpa, Zé! Desculpa, Camilo! Desculpa!

Camilo, que parece estar bem distante dali, faz um lento e curto sinal positivo

com a cabeça. Situação resolvida. Sônia volta a sorrir e encaminha as lingüiças à

frigideira. Minutos depois, o cheiro do macarrão à bolonhesa e da lingüiça frita tomam

conta da cozinha improvisada do Galpão Cultural. O almoço está servido.

Wilson se sujava de molho ao devorar uma pratada de macarrão enquanto

Elaine, a morena de dentes bem alinhados, corpo curvilíneo e faixa no cabelo, se

apresentava visivelmente incomodada com a pouca freqüência dos associados:

– Precisamos repartir esse dinheiro logo! Assim as pessoas vão participar mais

das reuniões. Vão ver que o trabalho na associação rende!

Elaine foi imediatamente apoiada pelas amigas e por Zé Alfredo. Camilo repetiu

o sinal com a cabeça, mas permanecia quieto em sua viagem a 20 km/h só com as

lanternas acesas. O silêncio toma o galpão por algum tempo. Sônia lava a louça dos que

já terminaram de comer. Zé ainda ensaia umas belas garfadas. Camilo mantém o corpo

envergado sobre a mesa.

Wilson já ronca alto estirado no velho sofá do outro lado do galpão quando Zé

Alfredo abandona os talheres, limpa o molho no canto da boca e quebra o marasmo pós-

refeição:

– Vamos separar uma parte do dinheiro de capital de giro pra comprar material.

A outra a gente divide entre os associados.

Camilo arregala os olhos e endireita o corpo. Começava naquele instante mais

um lento e pequeno passo para a inserção da loucura.

(Setembro – 2007)

* Agradecimentos para Raquel Maria Nelli Nóbrega

Anexo 2

Em busca de Ananda1

Um ensaio sobre o Jornalismo Literário Avançado

e a transformação pessoal e coletiva

Eduardo Reis

“Você sabe o que está acontecendo com o mundo? O que

está acontecendo com o mundo é uma projeção do que

está ocorrendo dentro de cada um de nós: o mundo é o

que nós somos. A maioria de nós está em conflito; somos

cobiçosos, possessivos, somos ciumentos e julgamos as

pessoas; e é isto exatamente o que ocorre no mundo,

apenas de forma mais dramática e brutal... E a única

chance que temos de uma revolução total para criar um

mundo novo é pensar nestas coisas diariamente. E eu lhes

afirmo, um mundo novo tem de ser criado.” - Jiddu

Krishnamurti

À procura

Desde a adolescência carrego uma certa inquietação. Não entendia por que

tudo tinha de ser tão desigual, por que tinha de haver tanto sofrimento. Eu morava numa

casa grande, num bairro bom, na cidade de Assis – interior do Estado de São Paulo – e,

numa sinceridade um tanto quanto infantil, me sentia culpado e não compreendia a

razão de possuir tantas coisas enquanto pessoas moravam nas ruas ou morriam de fome.

1 Ananda é um termo sânscrito que significa sentimento ou felicidade suprema. A expressão é

frequentemente utilizada nos ensinamentos do hinduísmo monástico. Segundo o mestre hindu Swami Dayananda Saraswati, Ananda é um substantivo formado da raiz nand, “regozijar-se”, com o prefixo á, que significa “completo”. Portanto, ananda quer dizer “completa felicidade, ou plenitude”. “Qualquer coisa que seja completa deve ser livre de todas as limitações de tempo, espaço e qualidade. Uma vez que é infinita e indescritível, não é um mero estado mental, uma experiência, ou uma forma de alegria. Todas essas condições estão sujeitas a mudanças, enquanto a plenitude deve ser imutável.”

A verdade é que minha vida doía. Isolava-me. Fechava-me no quarto e, sentado

no chão, com as costas apoiadas na lateral da cama, buscava nos livros e em

pensamentos anotados uma saída para todo aquele tormento que me apunhalava na

altura do umbigo, me rasgava até a garganta e, não raramente, explodia nos meus olhos

no formato de lágrimas.

Foi mergulhado num clima borbulhante de revolta e solidão que, ainda no final

da adolescência, um pingo de esperança me fez acreditar que não haveria caminho

melhor para buscar uma mudança social e no meu próprio estilo de vida que a

comunicação, o jornalismo. “O que as pessoas precisam é de informação! Assim elas

conseguirão subverter a ordem burguesa predominante!”, dizia, com um vocabulário

alimentado pelo conteúdo de discursos anarquistas e letras de punk rock.

Ainda muito jovem e sem conhecer o verdadeiro teor das redações, comecei a

acreditar que a combinação entre educação e informação seria a melhor forma de

contribuir com a transformação social de tudo aquilo que parecia saltar em meus olhos e

passar despercebido às vistas da maioria. Minha fórmula era simples: some um texto de

qualidade, que vai estimular a leitura, e informações que possam educar as pessoas de

uma forma justa e honesta. Pois bem, mas isso foi antes mesmo de o professor

universitário nos explicar quais eram as seis perguntas básicas que compunham um lide.

Passei os quatro anos da graduação vendo a criatividade e o pensamento sendo

encurralados em padrões, linhas editoriais, modelos, fórmulas, pirâmides invertidas,

formas de trabalho condicionadas, idéias empresariais em defesa do lucro do patrão e

maneiras de crescer na profissão que não tinham nada a ver com o desenvolvimento em

conjunto que tanto procurava.

Meus primeiros contatos com o jornalismo que realmente me daria um norte

demorariam a acontecer. Somente no último ano de faculdade, quando – acompanhado

do editor de programas jornalísticos de rádio André Thieful2 – iniciei as pesquisas sobre

a grande-reportagem associada ao Jornalismo Investigativo.

No decorrer dos trabalhos nos deparamos com termos como New Journalism,

livro-reportagem, texto e histórias de profundidade, Jornalismo Social, Jornalismo

2 André Thieful formou-se em jornalismo em 2003. Porém, na época, já era coordenador de jornalismo da

Rádio Cultura de Assis. Atualmente, exerce a mesma função na Rádio Dirceu de Marília

Comunitário e, finalmente, Jornalismo Literário. Nossas pesquisas e a leitura de livros

que somavam várias destas características nos auxiliaram a fechar a graduação com o

gás renovado, além da conclusão da reportagem “A história de um rio que morreu”3 –

onde relatamos a importância histórica e ambiental do Córrego do Jacu, na cidade de

Assis, desde o início do município às suas margens até o estado de degradação total em

que se encontra atualmente.

Nessa época, André e eu tínhamos um costume que ainda é muito preservado

por jornalistas que trabalham juntos. Qualquer pauta sempre começava a ser discutida e

sempre era concluída na mesa de um bar. O que não sabíamos é que, o que tentávamos

fazer em nossas reportagens – como narrar histórias com riqueza de detalhes, com um

cunho de transformação social, cheias de características físicas, psicológicas, cores, sons

e odores – ia muito além do que pensávamos.

No início de 2004, fiz um curso de Redação Criativa, ministrado pela

professora Mônica Martinez4. Durante aquelas aulas, baseadas em pesquisas já muito

avançadas, provei o primeiro pedaço do universo de possibilidades que a reportagem

pode nos oferecer como agente transformador. E iniciei uma nova descoberta. O que

André e eu acreditávamos fazer era apenas uma parte ínfima de onde a produção

jornalística com um caráter transformativo e educativo pode chegar.

Porém, meu contato mais aprofundado com o tema só viria, finalmente, em

2007, com o ingresso no curso de pós-graduação da ABJL (Academia Brasileira de

Jornalismo Literário). Enquanto isso, eu conhecia o verdadeiro sabor das redações de

alguns jornais do interior de São Paulo e do Norte do Paraná, sempre acreditando que

era possível mudar a forma de agir de repórteres e editores com o intuito de dar vida a

um jornalismo mais humano e criativo. Mas a idéia nunca era posta em prática e não

passava dos debates com os colegas de profissão no balcão do boteco.

Logo no início do curso de especialização, ouvia falar sobre as principais

estruturas do Jornalismo Literário. “Para que uma reportagem narrativa tenha o melhor

estilo do Jornalismo Literário, ela precisa estar sustentada por sete pilares: imersão,

3 Grande-reportagem realizada como prática no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) “Jornalismo

Investigativo: Os perigos e respostas das grandes-reportagens”, apresentado em 2003 na Fema (Fundação Educacional do Município de Assis) por André Thieful e Eduardo Reis 4 Mônica Martinez é jornalista, doutora em Ciências da Comunicação pelo Núcleo de Epistemologia da

Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

humanização, voz autoral, linguagem simbólica, exatidão, responsabilidade e

digressão”, dizia o professor Sérgio Vilas Boas5.

“O repórter tem que ir a fundo à história, acompanhar os personagens,

pesquisar muito, conviver com o tema. É preciso humanizar as pessoas e histórias,

analisando a forma humana como ela é, sempre com muita precisão e responsabilidade.

Afinal isso é jornalismo e não ficção”. Além desses pontos de sustentação, o bom texto

deveria ser rico em linguagens simbólicas, em reflexões do próprio autor e, é claro, com

uma voz autoral única. No entanto, dentro de todos os assuntos debatidos e estudados

ali, um em específico me atraiu rapidamente: a Narrativa de Transformação.

A caminho da mudança

Há alguns anos, começamos a ouvir – principalmente em relação às questões

ambientais, como o efeito estufa, o aquecimento global, a proliferação de doenças

infecciosas – que o ser humano precisa passar por uma transformação na sua maneira de

pensar e de agir. Os jornais começam a apresentar pequenas soluções para os problemas

relacionados ao meio ambiente ao invés de acusar, julgar e condenar.

Eu vibrava com aquela possibilidade de mudança de paradigma, mas

preservava um olhar radical e hipócrita na minha maneira de ver o mundo.

Simplesmente preferia debater as idéias a colocá-las em prática. Seguia aquele

estereótipo dos jornalistas que debatem sobre Deus e o mundo, se consideram cheios de

opinião e moral, mas se isentam quanto às decisões e permenecem imersos numa eterna

inércia.

Um exemplo claro disso estava em minha posição contra a mente condicionada

das pessoas. “Vocês ficam aí parados na frente da TV engolindo tudo o que a novela diz,

comprando tudo o que eles têm para oferecer e deixando a convivência em grupo e a

própria vida para trás”, afirmava, com punho rígido e indicador acusador e, em seguida,

saía para tomar diversas garrafas de cerveja sem perceber o que acontecia comigo.

Ao começar a pesquisar o tema Narrativa de Transformação, estilo que integra

as propostas de Edvaldo Pereira Lima6 para um Jornalismo Literário Avançado, me

5 Sérgio Vilas Boas é jornalista, especialista em biografias e perfis, editor executivo do site Texto Vivo e

professor da ABJL (Academia Brasileira de Jornalismo Literário) 6 Edvaldo Pereira Lima é jornalista, doutor em Ciências da Comunicação e criador da técnica da Escrita

Total e do Jornalismo Literário Avançado. Lima é também o coordenador pedagógico da ABJL

deparei com uma ciência que defende o uso da transdiciplinaridade entre os mais

diversos campos de pesquisa, como a comunicação social, psicologia, biologia,

medicina, ecologia e a física quântica.

A base de sustentação do Jornalismo Literário Avançado ultrapassa a uso de

técnicas narrativas e da escrita literária e propõe uma abordagem pró-ativa e holística de

conhecimentos de todas as linhas e épocas na produção jornalística, sempre com o

objetivo de apresentar novos caminhos da compreensão humana, que vão além do

tradicional pensamento reducionista e separatista vigente.

Numa visão simplista, eu ainda acreditava que a narrativa transformadora era

apenas um estilo de reportagem que poderia contribuir com mudanças na sociedade.

Este pensamento estava correto, mas eu não visualizava as barreiras que precisava

derrubar para compreender que minha atividade de jornalista nunca poderia ser

desvinculada de quem eu sou em tempo integral – com as pessoas que me relaciono, o

estilo de vida que levo e a forma que penso e tomo minhas decisões. Aquela postura de

combate ao observar o mundo levava à minha própria derrota.

Era como a mosca que entra em casa pela porta aberta e vai dar direto na janela

fechada. E, apesar de ver que não consegue ultrapassar aquela barreira, insiste em bater

de frente com ela. Sabia o que queria, mas desconhecia a forma de fazer. Não percebia

que bastava mudar de direção para conseguir expandir os horizontes.

Em julho de 2007, uma necessidade de mudança atingiu, literalmente, meu

corpo. A soma de má alimentação, bebidas alcoólicas em excesso, estresse no trabalho,

solidão, sintomas de depressão e pensamentos desconexos sobre como deveria controlar

minha vida foi diagnosticada, após quatro dias de internação, como uma pan-gastrite

moderada (inflamação em toda a mucosa que reveste o estômago). Eu estava tomado

pelo pensamento improdutivo. Teria de aprender a fazer o caminho inverso. Teria de

escalar as paredes do poço. Precisava ter uma postura inovadora.

A idéia de pensamento produtivo e improdutivo aparece em diversos campos

da ciência. Entre eles, na psicologia social e humanista de Dante Moreira Leite e Carl

Gustav Jung7, na Teoria dos Campos Morfogenéticos – criada por biólogos na década de

7 Carl Gustav Jung foi o psiquiatra fundador da escola analítica de psicologia. Criador de termos como

inconsciente coletivo, Jung ampliou as visões psicanalíticas de Freud, interpretando distúrbios mentais e emocionais como uma tentativa do individuo de buscar a perfeição pessoal e espiritual

1930 e utilizada por Rupert Sheldrake8 – e na física quântica. O pensamento produtivo é

aquele que contribui para uma alteração positiva no significado da realidade. Já o

pensamento improdutivo gera o oposto, através das idéias negativas que limitam,

bloqueiam e, até mesmo, geram pânico ao não fornecer possibilidades de novos rumos.

Veja a definição de Edvaldo Pereira Lima em seu livro “Páginas Ampliadas – O livro-

reportagem como extensão do jornalismo e da literatura”:

(...) enquanto o pensamento produtivo – o que dá origem à solução de

um problema – requer um trabalho de reelaboração e reordenamento da

realidade, o improdutivo exige uma constatação aparentemente fácil, porque é

inerente ao ser humano o olhar crítico sobre as imperfeições de seus

semelhantes e da existência. Ao mesmo tempo, a postura improdutiva camufla,

muitas vezes, uma certa inércia. Em sua base, reside uma dose de

determinismo e um reducionismo na visão da realidade, mediante os quais se

adota a posição de negação da realidade, como forma de combatê-la, sem no

entanto, trabalhar-se construtivamente uma alternativa de substituição. (p.

321 e 322)

Ao sair do hospital, decidi que aquela transformação que vinha sendo adiada

havia anos, agora aconteceria. Num belo sincronismo, assunto que vamos tratar mais

adiante, me encontrei com um livro do mestre espiritualista Eckhart Tolle9 – “O

despertar de uma nova consciência” – nas mãos. O título do livro me chamou a atenção

e o conteúdo de suas páginas me mostrou, mais uma vez, que não é possível tratar de

transformações na realidade coletiva se não houver uma alteração inicial na forma

individual de compreender o mundo.

Em poucos dias, substitui o costume de me empanturrar de carne vermelha,

sanduíches e refrigerantes por uma alimentação ovo-lacto vegetariana. As noitadas

regadas a álcool e as ressacas do dia seguinte deram lugar às caminhadas no parque, à

retomada do velho hábito da leitura e de uma nova prática: a atenção plena, com uma

visão holográfica e associada à meditação. Substitui o péssimo humor pela

8 Rupert Sheldrake é o biólogo e pesquisador que formulou o conceito hipotético dos Campos

Morfogenéticos, que seriam a memória coletiva a qual recorre cada membro de uma espécie e para a qual cada um deles contribui 9 O alemão Eckhart Tolle é professor de espiritualismo contemporâneo, considerado mestre e conselheiro

espiritual, obteve maior destaque em seu primeiro livro “O Poder do Agora”, onde propõe uma mudança na forma de viver por meio da atenção ao momento presente

tranqüilidade. Começava uma nova jornada, o despertar para uma nova consciência,

baseada em minha transformação pessoal.

Uma das propostas, da literatura espiritualista de Tolle é controlarmos nossas

próprias vidas por meio do acesso a uma consciência elevada e da atenção voltada ao

momento presente. Segundo o mestre, o ser humano se perde facilmente em lembranças

do passado ou planos para o futuro, esquecendo completamente de dar a devida atenção

ao Agora.

Tolle usa uma metáfora para explicar o resultado obtido com a alteração do

foco de nossos pensamentos. “Se voltamos nossa atenção ao presente, nos tornamos

um oceano. As coisas que ocorrem ao nosso redor atingem somente a superfície,

gerando a agitação das ondas, porém, em nossa parte mais profunda, no fundo do nosso

mar interior repleto de vida, temos o silêncio, a tranqüilidade.”

Além da literatura espiritualista, busquei em outros campos possíveis caminhos

para a evolução pessoal e me vi num mundo de novas experiências, que vão desde as

possibilidades de criação da realidade, como sugere a física quântica, até a prática da

meditação e dos ensinamentos budistas do estudo Kadampa10

, que propõe a

harmonização de todos os seres vivos para o desenvolvimento coletivo de uma vida

melhor. Cerca de seis meses depois, eu já me via como uma pessoa mais feliz, disposta

e criativa. E parte de minhas relações em grupo já havia melhorado naturalmente.

A união de todos estes elementos me fez perceber que a minha maneira de

observar o mundo estava mudando. O ponto de vista não tinha mais tantos obstáculos e

névoas para distorcê-lo. Além disso, minha capacidade de integração com tudo ao meu

redor havia se tornado maior, desde o aumento da concentração, melhoria da memória e,

principalmente, da compreensão de elementos sutis que compõem as nossas vidas.

Segundo o físico quântico Amit Goswami11

, em seu livro “A Janela

Visionária”, esta mudança de foco, ou redução da mente condicionada, tem origem na

quebra, ou redução, da identidade com o ego:

10

Linha do budismo indiano, criada pelo mestre Atisha e adaptada pelo monge Geshe Kelsang Gyatso para

o estilo de vida ocidental 11

O indiano Amit Goswami é um físico nuclear que tem buscado por meios acadêmicos traçar uma ponte

entre a ciência e a espiritualidade. É PHD em física quântica e professor titular de física da Universidade de Oregon

Embora todos nós, durante os estágios de desenvolvimento

formadores de ego, tomemos parte tanto em ações criativas quanto em ações

condicionadas, quando somos adultos os padrões de hábito que formam o

nosso caráter podem vir a dominar de tal forma a nossa auto-identidade que

resistamos a qualquer mudança nesses padrões. (...) No entanto, se estiver

atento, você estará livre para escolher que decisão tomar. Todos nós já

notamos como o nosso comportamento adota o curso mais condicionado

quando não estamos prestando atenção, mesmo quando temos várias opções à

nossa frente; mas, quando estamos atentos, somos livres para escolher a

opção que quisermos. (...) É adequado, portanto, pensar em termos de um ego

tendo livre-arbítrio para dizer não ao condicionamento, ou, de modo mais

geral, tendo liberdade para escolher entre as alternativas condicionadas,

abrindo as portas, assim, para uma mudança criativa de caráter – processo

que denomino criatividade interior. (p. 67 e 68)

Tanto para Goswami quanto para Tolle qualquer transformação deve ter uma

origem em nosso eu interior, pois só assim haverá um rompimento da visão egóica do

ser humano. Este elo entre a física quântica e a espiritualidade nos propõe um salto

criativo em direção à compreensão do universo como um todo, ou seja, cada pessoa,

cada consciência individual, integra uma vida maior. Como defendem os cientistas

James Lovelock e Lynn Margulis12

, que criaram a Teoria de Gaia, o mundo seria um

organismo vivo; e nós, células que fazem parte desta forma de vida imensa e complexa.

Este próprio organismo agiria de forma ativa e reativa para se adaptar às condições

mutantes de sua realidade.

Do pessoal ao coletivo

Atualmente, esse enorme organismo vivo, o Planeta Terra, tem mostrado sinais

claros de desequilíbrio. Mudanças climáticas, catástrofes naturais, guerras, conflitos

armados, a violência urbana, aumento de epidemias, de transtornos mentais, entre

outros, são a demonstração de que o mundo chegou a um ponto elevadíssimo de tensão.

Na visão de Tolle, em seu livro “O Poder do Agora”, “a humanidade está sobre uma

grande pressão para se desenvolver, porque é sua única chance de sobreviver como raça.

12

James Lovelock é o pesquisador independente e ambientalista que criou a Teoria de Gaia, com base nos estudos da bióloga e professora da universidade de Massachusetts Lynn Margulis para explicar o comportamento sistêmico do planeta Terra. Nesta teoria, o planeta é visto como um superorganismo

Isso vai afetar cada aspecto de nossa vida e de nossos relacionamentos”. É neste

momento em que aprofundamos na relação entre a transformação individual e a

coletiva.

Para compreender melhor o valor da interconexão entre os pequenos

fragmentos (todos os seres e a natureza) da imensa vida que é o Planeta Terra, volto a

citar os físicos. Pesquisas realizadas por estes cientistas apontam que os objetos

quânticos, como o pensamento ou a consciência, por exemplo, não ficam somente

presos em nossas cabeças, mas se expandem como ondas. E quando duas ondas se

encontram, elas se interconectam e interferem uma na outra. Indo além, segundo

Goswami, “a consciência, por meio da intenção, pode correlacionar dois objetos, dois

cérebros, e causar o colapso de atualidades semelhantes nos dois”. O experimento

realizado pelo neurofisiologista mexicano Jacob Grinberg-Zylberbaum explica como

isso pode ocorrer:

Dois voluntários se correlacionam meditando juntos com a intenção

de estabelecer uma comunicação direta. Depois de instruídos a manter uma

comunicação direta, eles são separados, postos em câmeras

eletromagneticamente isoladas e ligados a máquinas de eletroencefalograma

(EEG) diferentes. Quando um dos dois vê uma série de flashes de luz, o que

produz um potencial evocado no EEG de seu cérebro, surge também, no EEG

do outro voluntário, um potencial transferido, semelhante ao potencial

evocado em fase e intensidade. (...) A conclusão é imediata: a consciência

causa o colapso de estados de atualidades semelhantes nos dois cérebros

porque os cérebros estão correlacionados por meio de uma intenção

consciente (Grinberg-Zylberbaum et al. 1994). (Goswami p. 76 e 77)

Se víssemos o resultado deste experimento em um gráfico onde estariam

registradas as ondas emitidas pelos dois cérebros, veríamos que elas estariam

praticamente sincronizadas, sobrepostas, como as notas harmônicas de uma música que

viajam no tempo e no espaço na mesma freqüência. Já o grupo de controle do

experimento de Grinberg-Zylberbaum, que não foi instruído a buscar a comunicação

direta, apresentou ondas totalmente incompatíveis e desconexas. O físico Fritjof Capra13

13

O austríaco Fritjof Capra é um físico teórico que desenvolve trabalho na promoção da educação ecológica. Em seu livro “O Tao da Física”, relaciona pontos comuns entre as abordagens oriental e ocidental da realidade. Em “O Ponto de Mutação”, Capra compara o pensamento cartesiano, reducionista, modelo para o

relaciona, em seu livro “O Ponto de Mutação”, este desequilíbrio aos diversos níveis da

saúde:

A experiência de doença, do ponto de vista sistêmico, resulta de

modelos de desordem que podem se manifestar em vários níveis do organismo,

assim como nas várias interações entre o organismo e os sistemas mais vastos

em que ele está inserido. (...) Assim, a concepção sistêmica de saúde pode ser

aplicada a diferentes níveis de sistemas, com os correspondentes níveis de

saúde integrados. Podemos discernir, em especial, três níveis interdependentes

de saúde: individual, social e ecológico. O que não é saudável para o

indivíduo tampouco é saudável, geralmente, para a sociedade e para o

ecossistema global. (...)

O equilíbrio natural dos organismos vivos inclui um equilíbrio entre

suas tendências auto-afirmativas e integrativas. Para ser saudável, um

organismo tem que preservar sua autonomia individual, mas, ao mesmo

tempo, estar apto a integrar-se harmoniosamente em sistemas mais vastos. (p.

316 e 317)

Da mesma forma que o grupo de controle da pesquisa e a análise de Capra, é

possível notar a falta de integração em nossos espaços coletivos, que, além de não

possuir harmonia, estão doentes e condicionados a tomar atitudes pré-estabelecidas.

A autonomia individual citada por Capra pode ser vista também como uma

postura egoísta. Porém, é a partir do pensamento e das atitudes individuais que surgem

as novas propostas criativas, que não seguem conceitos pré-determinados, que escapam

da prisão gerada pela improdutividade em que está imerso o inconsciente coletivo. Em

outras palavras, é esta separação que possibilita o ser humano tomar decisões

livremente.

Segundo Lima, a exposição dos indivíduos a um determinado padrão percebido

de realidade tende a perpetuar aquele padrão, enraizando-o no chamado inconsciente

coletivo, de Carl Jung. “Quanto mais exposição a temas de violência, (por exemplo)

mais a mente coletiva da sociedade fica presa a ela”, afirma, em seu ensaio “O valor do

silêncio”, publicado no site Texto Vivo. É por isso que o ser humano precisa obter o

método científico desenvolvido nos últimos séculos, e o paradigma emergente do século 20, holista ou sistêmico (que vê o todo como indissociável), em vários campos da cultura ocidental atual

livre-arbítrio, para poder tomar as rédeas de sua própria evolução criativa, e conquistar a

capacidade de integrar-se ao contexto social e ecológico coerentemente.

Agente transformador

Com essa necessidade de mudança de paradigmas no âmbito individual e

coletivo, acredito que, como em alguns campos já citados neste ensaio, o jornalismo

deve assumir uma postura pró-ativa e uma abordagem prática holística, integrativa.

Assim, as propostas de um jornalismo que ofereça ao leitor novas idéias e novas formas

de compreender o mundo são essenciais. É o que defende o Jornalismo Literário

Avançado. Segundo Lima, em seu ensaio “Narrativas de Transformação”, publicado no

site Texto Vivo, este jornalismo deve ser:

Um jornalismo que não fica à mercê do relato passivo dos

acontecimentos mas que percebe o eclodir de tendências e probabilidades, que

acompanha a gestação de visões inovadoras, que sai do lugar-comum; que

focaliza uma visão complexa, buscando uma compreensão ampla, ajudando o

ser humano a encontrar novos significados, auxiliando-o a ampliar seu grau

de consciência de si mesmo, do outro, da existência. Um jornalismo baseado

no presente mas voltado ao futuro (...) Um jornalismo e uma literatura do real

de transformação. Que trabalham em prol da transformação individual e

coletiva. (...) O jornalismo não pode fugir de seu compromisso com a vida.

O intuito do Jornalismo Literário Avançado é transmitir a informação associada

às técnicas narrativas da literatura do real e uma visão de mundo que não seja somente a

objetiva. O universo é um todo complexo cheio de sutilezas. Então, para produzir a

informação de uma maneira que gere o pensamento produtivo em seu leitor, o jornalista

também deve estar aberto para uma possível mudança, um novo aprendizado, durante

sua abordagem jornalística.

No decorrer do curso de pós-graduação, realizei uma reportagem com um

grupo de portadores de transtornos mentais de Assis. Estas pessoas, excluídas

socialmente, montaram uma organização não-governamental chamada Pirassis, com o

objetivo de criar formas de trabalho autônomo e transformar o que era tratamento

psiquiátrico e terapêutico em profissão – como a produção de sabonetes artesanais, por

exemplo.

Ao ingressar nas pesquisas sobre o tema, me sentia fragilizado por não saber

como tratar aquelas pessoas, por me considerar diferente ou, até mesmo, superior. Em

suma, queria escrever uma reportagem com o objetivo de desmistificar uma diferença

social, um preconceito, que eu mesmo alimentava. Bastou acompanhar o grupo por

alguns dias e gerar uma proximidade sincera com aquelas pessoas para notar que minha

visão precisava mudar para conseguir uma abordagem mais verdadeira sobre a

“loucura” e sobre a realidade dos integrantes da Pirassis. Para minha felicidade, a

ampliação de meu campo visual ocorreu bem no meio de uma das entrevistas.

Assim que tive o primeiro contato com o grupo, senti que um senhor de 52

anos, portador de transtornos mentais e analfabeto, chamado Camilo Leite, tinha uma

grande sensibilidade e, por isso, o tornei peça-chave para a reportagem antes mesmo de

conhecê-lo a fundo. Minha intuição foi comprovada. Acompanhe um trecho da

entrevista, com ele, na reportagem “A Inserção da Loucura”:

Ahhhh, eu gosto de poesia! Eu gosto de fazê poesia! ... Sabe? Tudo na

vida, as coisa mais simpre, é poesia! Pru quê é nelas que tá a sabedoria! ... É

nelas que tá as coisa que tem experiência pá passa pá nóis! ... Sempi que eu

vejo alguma poesia, tipo as flor, as pessoa, as construção, eu saio ditano e

peço pra alguém escrevê pra mim... Na minha pasta de poesia tem mais de um

livro! ... Ahh, eu tenho mais de um livro! ... Tem bastante assim! Sabe? Eu

trabaiava com sacaria! Com trabaio pesado! ... Só que eu não era home bão,

não! ... Não era, não! ... Eu fumava, eu bebia! ... Eu era assim ó! É isso que eu

era... Ingual esse graveto. Era quebrado. Despois que bati a cabeça, comecei

tratá. Mai não é só remédio que trata a gente não... é sabedoria! Conversá

com as pessoa mai insperiente, que tem sabedoria! Quando eu era quebrado...

num sabia o que a gente sinifica. Agora eu sei! A gente tem que aprendê com

os otro e se ajudá! ... Uns e os outro! Sem apavoramento! Sem maltratá! Por

isso, minha felicidade é tá aqui com vocês.

Assim que Camilo concluiu essa fala, notei que meu próprio condicionamento

impunha um limite desnecessário na relação com aquelas pessoas. Ao derrubar esta

barreira, sabia que teria de transmitir a lição que recebi daquele senhor analfabeto

apaixonado por poesia para o leitor. A transformação não estava somente na ação dos

personagens e na busca pela própria inserção na sociedade, ela se expandia à minha

mudança de visão e à compreensão daquele universo complexo pelo leitor. Uma

abordagem objetiva e isenta ignoraria todas aquelas sutilezas.

Como afirma Lima no ensaio “O Valor do Silêncio”:

O sentido de qualquer coisa é mais profundo do que sua proporção concreta.

Abrange aspectos subjetivos, que não podem ser considerados inferiores, de segunda

categoria. Ao contrário, são os aspectos subjetivos que nos revelam a integração entre

as coisas, bem como sua participação num processo maior que a tudo abrange, como

uma rede extraordinária de processos.

O narrador da vida real precisa, obrigatoriamente, dar vazão a essa

busca ampliada de compreensão.

O jornalista italiano Tiziano Terzani14

, especializado na cobertura de conflitos

armados no oriente, se propôs a passar por uma grande mudança em sua vida para

realizar a grande-reportagem que daria origem ao livro-reportagem “Um adivinho me

disse: Viagens pelo misticismo do oriente”. Ao ouvir de um adivinho que deveria

abandonar seus rotineiros vôos de avião porque poderia ser vítima de um acidente aéreo

no ano de 1993, Terzani, se divertiu com a história, porém, acatou a sugestão.

Além de ficar o ano todo viajando em trens, carros, ônibus, navios e a pé

apresentando diversos lugares do oriente, Terzani se propôs a consultar adivinhos por

onde passasse. Cético, o jornalista ouvia as diferentes análises e visões feitas por estas

pessoas em relação à sua vida. Ao término da viagem, o repórter, especialista na

cobertura de guerras, havia se tornado um mestre espiritualista defensor da paz. O

italiano abraçou uma postura pró-ativa e iniciou “peregrinações de paz”, além de

escrever o livro “Lettere contro la guerra” (Cartas contra a guerra), que avalia a posição

norte-americana após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.

Atualmente, uma associação que leva o nome do jornalista, que morreu em

2004, dá continuidade aos trabalhos iniciados por ele através da divulgação de seus

pensamentos, livros e entrevistas em todo o mundo. O que aconteceu com Terzani é um

14

O italiano Tiziano Terzani foi correspondente da revista alemã Der Spiegel no Oriente e trabalhava na cobertura de guerras e conflitos armados até passar por uma grande transformação pessoal e se tornar um líder pacifista

exemplo claro da transformação individual em prol do desenvolvimento coletivo. E isso

refletiu também, é claro, na maneira de produzir jornalismo do repórter.

Ainda é raro encontrar exemplos deste jornalismo transformativo. No Brasil,

no entanto, é possível notar algumas de suas características no trabalho de jornalistas,

como Eliane Brum, da revista Época. Com todos os elementos do Jornalismo Literário,

Eliane propõe em suas reportagens novas maneiras de compreender o mundo abordado

com atitudes simples.

No livro “A vida que ninguém vê”, Eliane sugere que os jornalistas olhem para

o que, normalmente, não é visto. Ela conta a história de um senhor que pede esmolas

sem nunca sair do chão. Em vez de observá-lo de cima, como fazem todas as pessoas

que passam pelo pedinte, Eliane abaixa para ter a mesma visão do homem, que possui

problemas nas pernas, dificuldade de locomoção e, por isso, é chamado de Sapo.

Entre outras histórias, Eliane mostra que um rapaz que trata um pedaço de

madeira como um cavalo alazão não tem nada de louco e também narra a primeira

viagem de avião de um funcionário de aeroporto que sempre sonhou em voar.

Além de mergulhar nas histórias, os textos de Eliane possuem uma

característica inspiradora para quem lê. São textos que estimulam as pessoas a observar

o universo à sua volta de forma mais humana e nos lembra de que nosso agir e pensar

são fundamentais para o bom funcionamento das engrenagens sociais. Como neste

trecho de “O cativeiro”, retirado do livro “A vida que ninguém vê”, em que Eliane conta

a história de um macaco que, ao conseguir escapar de sua jaula, não fugiu e sim agiu

como um ser humano, domesticado:

Em um domingo de sol, Alemão conseguir abrir o cadeado e escapou.

Ele tinha o largo horizonte do mundo à sua espera. Tinha as árvores do

bosque ao alcance de seus dedos. Tinha o vento sussurrando promessas em

seus ouvidos. Alemão tinha tudo isso. Ele passara a vida tentando abrir

aquele cadeado. Quando conseguiu, virou as costas. Em vez de mergulhar na

liberdade, desconhecida e sem garantias, Alemão caminhou até o restaurante

lotado de visitantes. Pegou uma cerveja e ficou bebericando no balcão. Os

humanos fugiram apavorados.

Por que fugiram?

O macaco havia virado um homem.

O perturbador desta história real não é a semelhança entre o homem

e o macaco. Tudo isso é tão velho quanto Darwin. O aterrador é que, como

homem, o macaco virou as costas para a liberdade.

Após expor a situação de diversos animais de um mesmo zoológico que

começaram a agir como seres humanos, Eliane conclui e pergunta ao leitor:

A revelação dessa visita subversiva ao zoológico é que, no cativeiro,

os animais se humanizam. O cárcere lhes arranca a vida, o desejo e a busca.

E mais e mais vão se parecendo com os homens que os procuram na certeza

de um álibi. Perigosa é a pergunta.

O que aconteceria se você encontrasse a chave do cadeado invisível

de sua vida? (p. 54 a 57)

Eliane aborda o leitor num momento único, em que ele compartilha seus

pensamentos somente com o texto lido, e propõe uma nova reflexão. “Até onde vai sua

liberdade? E o que você faz com ela?” - são perguntas como estas as provocadas pela

narrativa escrita após uma visita ao zoológico de Sapucaia do Sul (RS). O texto, de

forma simples e bela, leva o leitor a uma nova visão e uma reflexão à própria maneira

de ver e sentir o mundo à sua volta.

Como peça essencial na comunicação social, o jornalismo precisa ser cada vez

mais voltado para este tipo de enfoque, preocupado com uma informação que apresente

novas propostas, que contribua com a mudança de visão, que eduque, que seja

inspirador para a alteração de atitudes enraizadas no inconsciente coletivo.

Campos sutis

Para obter uma reportagem narrativa de qualidade, Lima destaca dois

momentos. O primeiro deles é o de captação e observação, quando o repórter mergulha

no cenário de ações, no contato com o ambiente e os personagens. Este momento está

relacionado ao lado esquerdo do cérebro, responsável pelo pensamento lógico, concreto

e objetivo. O segundo é quando o autor se afasta e deixa que o lado direito do cérebro,

que trabalha com a subjetividade e a não-linearidade, entrar em ação.

Neste segundo momento, Lima cita quatro caminhos possíveis na busca pelo

sentido das informações sutis: o sonho lúcido, a meditação, a visualização criativa e a

observação das sincronicidades.

No meu caso, optei, principalmente, por utilizar a meditação e a visualização

criativa com ferramentas para alcançar os sentidos ocultos.

A meditação contribui, inicialmente, com a melhoria da atenção e,

posteriormente, com uma maior facilidade para recordar de determinados elementos

sutis e também de estabelecer novas relações no entendimento de um mesmo conteúdo.

A visualização criativa – técnica que consiste em manter-se em estado meditativo e

projetar imagens espontâneas ou induzidas numa tela mental –, me auxilia

principalmente na revisão e construção de cenas que pretendo descrever na narrativa.

Nesta segunda técnica, me adaptei com sua forma induzida. Antes mesmo de

entrar em estado meditativo, observo papéis com anotações sobre o tema, fotos, objetos

adquiridos, e lembro de determinadas situações, porém sem me prender ao pensamento

lógico. Em seguida, deixo as imagens projetadas na tela mental me levarem novamente

aos cenários e diálogos podendo, assim, me trazer novas informações.

Os sincronismos são os notados com mais facilidade. Para ter acesso a eles,

basta manter a atenção a tudo que ocorre ao nosso redor. Os sincronismos aparecem

quando menos se espera. Você pode estar em busca de um personagem quando, de

repente, sem mesmo saber, um amigo comenta sobre a história de uma determinada

pessoa que seria ideal para o que deseja. Normalmente, os sincronismos te fazem pensar

assim: “Olha, que coincidência!”

Na busca que tenho feito na tentativa de ampliar minhas pesquisas nos campos

sutis, até a conclusão deste ensaio, não tive experiências relevantes nos sonhos. Talvez

por algum bloqueio ou por já ter feito escolhas neste mergulho interior, que envolve os

sentidos, o pensamento descontinuo e a intuição.

Apesar de parecerem estranhas num primeiro momento e muito diferentes das

utilizadas nos trabalhos diários dos jornalistas, estas ferramentas são extremamente

acessíveis e realmente funcionam como portais para uma compreensão mais complexa

dos temas e universos com os quais podemos nos deparar durante as reportagens e no

decorrer de nossas vidas. Veja o que conclui Lima, em “O Valor do Silêncio”, sobre

estas técnicas do Jornalismo Literário Avançado:

No ato de observação da realidade, o repórter não está captando

apenas os sinais objetivos que estão ao redor, chamando tanto a atenção dos

seus sentidos. Em segundo plano, sutilmente, outra esfera da mente está

também captando os sinais subjetivos, mesmo que você não perceba ou não os

compreenda de imediato. Mais tarde, quando você sossega o cérebro, relaxa e

usa os recursos aqui apontados, está convidando uma outra parte do seu ser

mais profundo para vir à tona, trazendo-lhe um presente preciosíssimo. O

presente impagável da compreensão empática da rede de conexões que nos

permite compreender a realidade como um processo contínuo de criação.

Esse processo abrange nós todos, para o bem ou para o mal,

queiramos ou não, num oceano ampliado de uma consciência complexa maior

do que os indivíduos. A prudência sugere que, no mundo medonho de nossos

dias, aprendamos rapidinho a nos sintonizar com o fluxo sadio do processo,

deixando a parte destrutiva consumir-se na própria cegueira voraz que se

recusa a ver.

Então, se o objetivo é buscar uma integração cada vez maior entre repórteres,

personagens e temas abrangidos, essas ferramentas passam a ser peças fundamentais em

busca de um jornalismo que entrelaça o mundo objetivo e o subjetivo numa relação

profunda que, se bem praticada, pode vir a ser a inspiração para grandes mudanças no

pensamento coletivo atual.

O portal de Ananda

Como citado anteriormente neste ensaio, o mundo atingiu um ponto claro de

necessidade de mudança e, como também é proposto aqui, o novo caminho para a

sobrevivência deve estar sustentado na visão holística, numa intenção de ampliar a

integração entre os campos de conhecimento. O grande quadro de relações entrelaçadas

que se tornou o mundo não pode ser equilibrado por meio de métodos cartesianos,

reducionistas e separatistas.

A missão do jornalismo dentro deste todo é primordial nesta busca por uma

sociedade mais justa e harmônica. Uma alteração na abordagem jornalística pode vir a

ser um catalisador da transformação social positiva. Porém, para que isso seja obtido, é

necessário que a consciência de cada ser humano, de cada jornalista, consiga encontrar

novos caminhos, novas formas de auto-conhecimento, pois, não existe a possibilidade

de uma real mudança de paradigma, se o ser humano não se propor a criar uma nova

consciência em si.

A transformação pessoal, como um primeiro passo, facilitaria o acesso à

ampliação da visão de mundo, o que estaria diretamente associado à melhoria da

qualidade de vida individual e coletiva. Assim como – posso afirmar – vem ocorrendo

comigo num intenso processo transformativo, que abrange todas as áreas de minha vida.

Pesquisas relacionadas ao cérebro humano comprovam que as intenções

geradas através do pensamento podem influenciar e criar nossas realidades individuais e

coletivas. Portanto, nossa maneira de pensar e agir é decisiva para a realidade concreta e

o pensamento coletivo, como afirma Lima no artigo “Da vigília ao sonho lúcido”,

relacionando essa visão ao Jornalismo Literário Avançado:

O JLA concede uma atenção fundamental à questão da consciência e

do seu despertar nos seres humanos. Sua crença reside no poder gerador de

realidades que está armazenado no pensamento. O mundo material é apenas

um reflexo do que construímos, consciente ou inconscientemente, no plano

mental. O desafio para a humanidade, agora, é aprender a gerar

conscientemente realidades construtivas harmônicas, integrativas,

cooperativas. Para isso, o homem deve ser direcionado a testar e trabalhar,

do leque de tecnologias de auto-conhecimento disponíveis, as variantes que

melhor lhe sirvam no processo de reconstrução de si próprio.

Então, diz Lima, a produção jornalística, para contribuir com a aceleração

desse processo de integração, deve antecipar ao seu leitor ou receptor o sentido das

transformações profundas que o mundo está passando. Isso possibilitaria a inversão do

atual condicionamento social alimentado por uma imprensa amarrada aos interesses

comerciais, ao conservadorismo do mercado editorial e, principalmente, à falta de

compromisso com seu caráter educativo e transmissor do conhecimento de qualidade.

A idéia é fazer com que o maior número possível de pessoas compreenda que a

possibilidade das mudanças está nas mãos de cada um. E, assim, gerar novas formas

individuais de pensar – novas consciências – capazes de interagir com uma freqüência

mais elevada, com uma consciência cósmica.

A proposta final deste ensaio é para que, tanto leitores quanto jornalistas,

estejam abertos ao infinito de possibilidades para adquirir – e também transmitir –

novos conhecimentos que vão além do mundo objetivo e de uma postura negativa e

destruidora. Este é um convite para mergulhar num mundo de mudanças reais, baseadas

em atitudes simples, positivas e fundamentadas no interesse individual e coletivo; que

valorizem a intuição, as informações subjetivas que recebemos a todo o momento e à

nossa capacidade de agir em prol do bem comum em todos os campos de nossas vidas.

Desta forma, buscaremos uma melhor relação com nós mesmos, com a

sociedade e com o imenso organismo vivo do qual somos peças fundamentais.

Estaremos, finalmente, caminhando pelo trajeto que nos leva ao portal de Ananda; na

direção certa para ultrapassar limites e atingir a felicidade plena através de nosso

próprio estado elevado de consciência.

REFERÊNCIAS

Livros, artigos, ensaios e teses

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