Narrativas Autobiograficas de Professores

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 Práxis Educativa. Ponta Grossa, PR, v. 1, n. 1, p. 94-105, jan.-jun 2006. NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICA S DE PROFESSORES: um caminho para a compreensão  do processo de formação Esméria de Lourdes Saveli * Resumo Este estudo situa-se no campo da Historiografia, especialmente a história oral que tem abarcado pesquisas sobre história e memória, história de vida, biografia e autobiografia. Tomou memoriais escritos por profes- sores(as), um dos requisitos exigidos para participar do processo de seleção ao curso de Mestrado em Edu- cação da Universidade Estadual de Ponta Grossa, como objeto específico de análise. Teve como objetivo compreender o processo de formação da identidade profissional, a partir de experiências narradas pelos(as) professores(as) ao longo de sua trajetória pessoal e profissional.O apoio teórico para a análise do conteúdo dos memoriais, veio de estudos desenvolvidos por CIAMPA(1990), HALBWALCHS(1968), HUBER- MANN(1992), GOODSON(199 2), HOLLY(1992), DUBAR(1995). Na análise, buscou-se não perder de vista que a narrativa memorialística (re)constrói e (re)pensa a experiência vivida, obedecendo a critérios exigidos pelo contexto. A análise evidenciou, entre outros pontos, que o processo de constituição da identidade profissio- nal está intimamente relacionado com as formas pelas quais os indivíduos assumem e reagem frente às funções inerentes ao papel social de ser professor. E ainda, que a narrativa memorialística tem como refe- rência os grupos de convívio do indivíduo e as instituições formadoras do sujeito. Ao escrever o memorial o(a) professor(a) vai paulatinamente relacionando conteúdos (o que lembra) como também a forma (como lembra), sem perder de vista a quem narra (o interlocutor). Isto aponta que a memória é seletiva uma vez que está voltada tanto para fora (social) como para dentro (individual). O conteúdo da lembrança não aflora em estado puro na linguagem do narrador que lembra. Ele é selecionado em função do ponto de vista cul- tural e ideológico do grup o a quem o texto se destina. Palavras-chave:  formação de professores, subjetividade, identidade profissional, memória, memorial.  Abstract: Teachers' autobiographical narratives: a way for understanding the process of forma- tion This study locates in the field of the Historiography, especially the oral history that has been embracing re- search about history and memory, life history, biography and autobiography. It took memorial written by teachers, one of the requirements demanded to participate in the selection process to the course of Master's degree in Education of UEPG, as specific object of analysis. The research aims to understand the process of the formation of professional identity, starting from experiences narrated by teachers along theirs personal and professional path. The theoretical support for analysis of the content of the memorial, vein of studies developed by CIAMPA (1990), HALBWACHS (1968), HUBERMANN(1992), GOODSON(1992), HOLLY(1992), DUBAR. In the analysis, it was looked for not to lose of view that the narrative from the memories restored and reflected the lived experience, obeying criteria demanded by the context. The analysis evidenced, among other points, that the process of constitution of the professional identity is intimately related with the forms for the which the individuals assume and they resist front the inherent functions to the social paper of being a teacher. It is still, that the memorial narrative has as reference the groups of the individual's con- viviality and the subject's University. When writing the memorial the teacher is going relating contents gradually (what reminds) as well as the form (as they reminds), without losing of view to who narrates (the speaker). Is shows s that the memory is selective once it is returned so much outside (social) as inside (indi- vidual). The content of the memory doesn't surface in pure state in the narrator's language that reminds. It is selected in function of the cultural and ideological point of view of the group to who the text is destined. Keywords:  teachers' formation, subjectivity, professional identity, memory, memorial.  *  [email protected]. Professora do Departamento de Educação e do Mestrado em Educação da UEPG, Doutora em Educação pela UNICAMP; Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Educação Básica: políticas públicas, práticas e saberes escolares (GEPEB).

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Narrativas Autobiográficas de Professores

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  • Prxis Educativa. Ponta Grossa, PR, v. 1, n. 1, p. 94-105, jan.-jun 2006.

    NARRATIVAS AUTOBIOGRFICASDE PROFESSORES:

    um caminho para a compreenso do processo de formao

    Esmria de Lourdes Saveli *

    ResumoEste estudo situa-se no campo da Historiografia, especialmente a histria oral que tem abarcado pesquisassobre histria e memria, histria de vida, biografia e autobiografia. Tomou memoriais escritos por profes-sores(as), um dos requisitos exigidos para participar do processo de seleo ao curso de Mestrado em Edu-cao da Universidade Estadual de Ponta Grossa, como objeto especfico de anlise. Teve como objetivocompreender o processo de formao da identidade profissional, a partir de experincias narradas pelos(as)professores(as) ao longo de sua trajetria pessoal e profissional.O apoio terico para a anlise do contedodos memoriais, veio de estudos desenvolvidos por CIAMPA(1990), HALBWALCHS(1968), HUBER-MANN(1992), GOODSON(1992), HOLLY(1992), DUBAR(1995). Na anlise, buscou-se no perder de vista quea narrativa memorialstica (re)constri e (re)pensa a experincia vivida, obedecendo a critrios exigidos pelocontexto. A anlise evidenciou, entre outros pontos, que o processo de constituio da identidade profissio-nal est intimamente relacionado com as formas pelas quais os indivduos assumem e reagem frente sfunes inerentes ao papel social de ser professor. E ainda, que a narrativa memorialstica tem como refe-rncia os grupos de convvio do indivduo e as instituies formadoras do sujeito. Ao escrever o memorialo(a) professor(a) vai paulatinamente relacionando contedos (o que lembra) como tambm a forma (comolembra), sem perder de vista a quem narra (o interlocutor). Isto aponta que a memria seletiva uma vezque est voltada tanto para fora (social) como para dentro (individual). O contedo da lembrana no afloraem estado puro na linguagem do narrador que lembra. Ele selecionado em funo do ponto de vista cul-tural e ideolgico do grupo a quem o texto se destina.Palavras-chave: formao de professores, subjetividade, identidade profissional, memria, memorial.

    Abstract: Teachers' autobiographical narratives: a way for understanding the process of forma-tionThis study locates in the field of the Historiography, especially the oral history that has been embracing re-search about history and memory, life history, biography and autobiography. It took memorial written byteachers, one of the requirements demanded to participate in the selection process to the course of Master'sdegree in Education of UEPG, as specific object of analysis. The research aims to understand the process ofthe formation of professional identity, starting from experiences narrated by teachers along theirs personaland professional path. The theoretical support for analysis of the content of the memorial, vein of studiesdeveloped by CIAMPA (1990), HALBWACHS (1968), HUBERMANN(1992), GOODSON(1992), HOLLY(1992),DUBAR. In the analysis, it was looked for not to lose of view that the narrative from the memories restoredand reflected the lived experience, obeying criteria demanded by the context. The analysis evidenced,among other points, that the process of constitution of the professional identity is intimately related with theforms for the which the individuals assume and they resist front the inherent functions to the social paper ofbeing a teacher. It is still, that the memorial narrative has as reference the groups of the individual's con-viviality and the subject's University. When writing the memorial the teacher is going relating contentsgradually (what reminds) as well as the form (as they reminds), without losing of view to who narrates (thespeaker). Is shows s that the memory is selective once it is returned so much outside (social) as inside (indi-vidual). The content of the memory doesn't surface in pure state in the narrator's language that reminds. Itis selected in function of the cultural and ideological point of view of the group to who the text is destined.Keywords: teachers' formation, subjectivity, professional identity, memory, memorial.

    * [email protected]. Professora do Departamento de Educao e do Mestrado em Educao da UEPG, Doutora emEducao pela UNICAMP; Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Educao Bsica: polticas pblicas, prticas esaberes escolares (GEPEB).

  • 95Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minhabiografia, no h nada mais simples. Tem s duasdatas a da minha nascena e a da minha morte.Entre uma e outra coisa todos os dias so meus.

    Alberto Caieiro (Fernando Pessoa)

    Introduo

    Os estudos que recorrem anlise de de-poimentos, histrias de vida, memrias ou di-rios ntimos tm desconstrudo esta assertiva deFernando Pessoa: todos os dias so meus.No. Todos os dias so, alm de meus, nossose tambm vossos! Eles, os dias, que se apre-sentam aqui como metfora da vida, so re-sultados da inter-relao entre duas dimensesque se colocam como fundamentais ao homem:uma subjetiva, representada pelos sentimentosou a afetividade, e a outra, uma dimenso ob-jetiva representada pelos desafios enfrentadosno cotidiano da vida familiar e social.

    Neste sentido, a vida humana no algoque se d como um dado ou padro pr-fixado,entre o nascer e o morrer, mas como uma me-tamorfose contnua e histrica, um processo emmovimento. Nesta concepo de vida est im-plcita uma viso de homem que vai se consti-tuindo sempre, em um processo do vir-a-sercontnuo, que no se satisfaz com a contempla-o quieta e inerte entre o dia da nascena e oda morte, mas algum que luta pela transfor-mao real das condies de sua existncia narelao com os outros homens, outras mulhe-res, e nesse movimento, que envolve necessa-riamente relaes, aes, interaes sociais, que ele, o Ser Humano, Homem, vai tecendo asi-mesmo.

    O si-mesmo pode ser entendido como umamalha tecida, cujos fios procedem tanto de forapara dentro quanto de dentro para fora, tantoda cultura para a mente quanto da mente paraa cultura. Como bem o diz Bruner: as mentese vidas humanas so reflexos da cultura e dahistria(1987:116)

    As narrativas autobiogrficas ou memoriaisesto no campo da histria oral que abarcaestudos entre memria e histria, trajetriaspessoais, biografias, autobiografias e histriasde vida. O exame de narrativas memorialsticas,autobiografias, dirios vem se constituindocomo uma tendncia metodolgica no contextoda pesquisa. Essa tendncia do escrever-se temlugar na historiografia e representa esforos

    individuais no sentido de construir uma versolongitudinal do si-mesmo.

    Ao si-mesmo atribudo o papel de umcontador de histrias, construtor de narrativassobre uma vida. No entanto, importante con-siderar que a construo desta narrativa no livre, neutra. Ela est poderosamente restringi-da pelas circunstncias ou exigncias de comoapresentar o si-mesmo aos outros. So as con-dies concretas em que se realiza a apresen-tao do si-mesmo para os outros que definemos recortes (em termos de contedo) e a forma(em termos de estilo) da narrativa. Bourdieu,ratifica este posicionamento quando explica queo relato de vida tende a aproximar-se do mo-delo oficial da apresentao oficial de si (...) orelato de vida varia, tanto em sua forma quantoem seu contedo, segundo a qualidade socialdo mercado no qual ele oferecido(1998,p.189).

    Assim, o discurso escrito definido a partirde consideraes do contexto:

    - Quem fala?- Para quem se fala ?Ao se levar em considerao a destinao do

    objeto (para quem se fala) define-se o conte-do (o que se fala) e a forma (como se fala).

    Este exerccio de escrita tem dois aspectosexplicados por Bruner (op.cit): o primeiro areflexividade humana, a capacidade de nosdebruarmos sobre o passado e alterarmos opresente sob a sua luz, ou alterarmos o passa-do luz do presente. Neste exerccio de organi-zao do pensamento nem o passado, nem opresente, permanecem fixos, neutros diantedessa reflexividade. O passado pode ser tecidode diferentes modos ou pode ser mudado porreconceituao. O segundo aspecto indica quea reflexo leva a uma tomada de conscincia.Husserl (apud Sartre,1997) defende que todaconscincia conscincia de alguma coisa. Issosignifica que no h conscincia que no sejaposicionamento(p.22).

    Ao optar pelo gnero memorial, como objetode anlise, o pesquisador precisa levar em con-siderao que o narrador pretende atingir odestinatrio apresentando uma imagem de simesmo que corresponda s exigncias cir-cunstanciais do contexto.

    Nesse sentido, quando se tomam narrativasmemorialsticas ou autobiogrficas como objetode pesquisa exige-se no ignorar as intenes,os propsitos e crenas deste produtor da es-crita; que, em primeiro lugar, no escreve parasi mesmo, mas para um destinatrio (receptor

  • 96real), fato que interfere diretamente no enunci-ado. o mesmo que dizer que o discurso nar-rativo no neutro. H uma orientao da pa-lavra em funo do interlocutor. Bakhtin (1986)explica que na realidade, toda palavra com-porta duas faces. Ela determinada tanto pelofato de que procede de algum, como pelo fatode que se dirige para algum(p.113). O critriode seleo est relacionado tanto ao contedoquanto forma da narrativa. Como j foi dito,neste caso, a linguagem assume feies parti-culares em que o contedo da narrativa estorganizado em funo do interlocutor. Portanto,o ato de lembrar e de narrar o lembrado trazem si a necessidade de uma sele-o.(BOSI,1987). Esta seleo denuncia que amemria no est reduzida ao indivduo, masao contrrio, ela envolve ambas as vozes: asocial e a individual.

    Em suma, no memorial de professores(as)no h descrio do que se viveu, o que h, defato, a interpretao do passado com os olhosvoltados para o futuro que o presente dehoje, sem ignorar para quem se narra e porquese narra.

    Memoriais de professores(as) comoobjeto estudo na pesquisa educacional

    Autores como NVOA(1992) defendem quea anlise de materiais escritos por professorespode oferecer um novo campo de possibilida-des interpretativas para a pesquisa em educa-o.

    Se considerarmos que o memorial umexerccio de escrita em que o narrador buscatraar uma verso longitutidinal de si mesmo,este exerccio poder possibilitar aos professo-res(as) debaterem-se com dilemas pessoais eprofissionais em que possvel transparecerpontos de tenses e conflitos que se manifes-tam ao deixar aflorar os sentimentos, as an-gstias, as frustraes, os desejos, a esperan-a. Os defensores da histria oral como meto-dologia de pesquisa defendem que a narrativamemorialstica permite um discurso mais pr-ximo da vida, das vivncias, da experincia.Sendo assim, do contedo das lembranas po-der emergir um tnus existencial que denunciaa complexidade das situaes vividas pelos(as)professores(as) e o desejo de resistir e buscarrespostas para perguntas existenciais. Esteexerccio reflexivo um voltar-se a si-mesmo. Nosentido de refazer, reconstruir, repensar comimagens e idias de hoje as experincias do

    passado.

    sabido que a prtica docente resultadoda inter-relao entre duas dimenses: umaque integra o mundo subjetivo do professor,representado pelas suas idias, crenas queengloba tambm o afetivo, o emocional, o ex-perencial (teorias implcitas) e outro objetivo,representado pelos desafios enfrentados nocotidiano da vida familiar, social e escolar. Soestas duas dimenses que definem a maneirado(a) professor(a) planejar a sua conduta do-cente e pessoal. Toda ao do(a) professor(a) econseqente tomada de decises baseia-se noseu prprio mundo cognitivo, isto , nas inten-es, propsitos, crenas e constructos pesso-ais e nas situaes contextuais.

    E, ainda, no enfrentamento das situaesproblemticas, prprias do trabalho docente, os(as) professores(as) vem-se s voltas comverdadeiros dilemas traduzidos em pontos detenso, a partir dos quais eles tomam decises.Tais decises esto assentadas em um corpode significados, conscientes ou inconscientes,que podem ter sua gnese nas experinciasvividas, enquanto alunos, ao longo de sua car-reira escolar, ou nas crenas difusas porm,relevantes que dominam o pensamento peda-ggico da escola ou da sociedade em geral.Podem tambm, assentarem-se nas influnciassistemticas de sua aprendizagem terica noscursos de formao ou, ainda, nas primeirasexperincias que tiveram quando do incio daprofisso; como podem estar ligadas com aspresses do meio escolar, a ideologia e a formade se comportar de seus colegas de trabalho,ou presses dos pais, assim como da adminis-trao.

    Em sntese, so suas crenas e teorias impl-citas que definem a maneira de planejar a suaconduta docente e pessoal. Toda ao do pro-fessor e conseqente tomada de decises ba-seia-se no seu prprio mundo subjetivo, isto ,nas intenes, propsitos, crenas e construc-tos pessoais.

    Deste ponto de vista, a subjetividade to-mada como polifnica, plural, retomando ex-presses de Bakhtin (1986). o mesmo quedizer, que o universo subjetivo produzido porinstncias individuais, coletivas e institucionaispode vir tona quando o professor(a) se pro-pe a escrever um memorial.

    As pesquisas voltadas s narrativas de pro-fessores podem ser desenvolvidas na vertenteantropolgica. A antropologia, a partir da tradi-

  • 97o etnogrfica, forneceu aos historiadoresnovos mtodos e tcnicas de trabalho, assimcomo conceitos, temticas e problemas de es-tudos. Segundo Spradley (1979), a principalpreocupao nos estudos etnogrficos com osignificado que tm as aes e os eventos paraas pessoas ou os grupos estudados. Muitosdesses significados so diretamente expressospela linguagem. A linguagem o instrumentoutilizado pelas pessoas, para organizar sistemascomplexos de significados.

    Estes sistemas de significados constituem acultura de um grupo. Nesse sentido, a cultura o conhecimento j adquirido que as pessoasusam para interpretar experincias e gerarcomportamentos. A etnografia a tentativa dedescrio dessa cultura.

    Os pesquisadores que abraam a histriaoral como procedimento metodolgico de pes-quisa manifestam interesse pelas questesculturais e/ou simblicas, pelos estudos sobrementalidades e a formao e evoluo dasidentidades coletivas dos grupos humanos.

    Clifford Geertz, renomado antroplogo, queestuda a cultura como sistema simblico, de-fende que o conceito de cultura essencial-mente semitico. Isto quer dizer que ele estmarcado pela condio de dar sentido aos si-nais, aos indcios, pistas que constituem regrasda linguagem. So os indcios, as pistas, ossinais que possibilitam construir significados edar sentido aos elementos da cultura. O para-digma denominado indicirio" GINZBURG(1999), baseado justamente na semitica, bus-ca dar sentido aos sinais, indcios presentes nanarrativa. Esta opo de anlise parte do prin-cpio de que se a realidade opaca, existemzonas privilegiadas (sinais e indcios) que per-mitem decifr-la.(op.cit,149).

    Os estudos etnogrficos esto voltados paraa anlise interpretativa da cultura de um grupo.Nestes estudos, o homem considerado comoum animal amarrado a teias de significados queele mesmo teceu e a cultura , pois essas teias.

    Portanto, a antropologia/ a etnografia no uma cincia experimental em busca de leis,mas uma cincia interpretativa, procura dosignificado. Geertz (1989) explica que praticara etnografia estabelecer relaes, selecionarinformantes, transcrever textos, mapear cam-pos, e assim por diante. Mas no so essascoisas, as tcnicas e os processos determina-dos, que definem o empreendimento. O quedefine o tipo de esforo intelectual que elerepresenta: um risco elaborado para uma des-

    crio densa (p.15). Ele tomou emprestado otermo descrio densa do filsofo GilbertRyle, para designar o que pretende um estudoetnogrfico. O pesquisador que opta por essaabordagem de pesquisa encontra-se, muitasvezes, diante de diferentes formas de interpre-taes da vida, formas de compreenso de sen-so comum, significados variados atribudos pe-los sujeitos pesquisados s suas experincias,vivncias, e tenta traar relaes interpretativasdo fluxo do discurso.

    Os estudos etnogrficos voltados s narrati-vas de professores(as) possibilitam ao pesqui-sador provocar uma reflexo em que o profes-sor(a) compreendido(a) em relao a histriado seu tempo, a partir de escolhas e contingn-cias que se deparou ao longo da sua vida pes-soal e profissional.

    Esta pesquisa tomou como esteio o pressu-posto de que a formao pedaggica dos pro-fessores(as) tecida em uma relao scio-individual que se deu no contexto do perodoescolar, nos cursos de formao e no cotidianoprofissional. O material utilizado para a com-preenso do processo formativo foram narrati-vas autobiogrficas/memoriais de professo-res(as) que se inscreveram (e foram aprova-dos) no processo de seleo do mestrado emeducao da Universidade Estadual de PontaGrossa-UEPG/2002. Trs questes bsicasnortearam este estudo: o que , para os candi-datos, um memorial? possvel compreender oprocesso identitrio do(a) professor(a) seolharmos para a forma como traa, em seumemorial, suas caractersticas pessoais e suatrajetria profissional? Qual a validade e /ouobjetivo de se exigir o memorial para a seleodo mestrado?

    O suporte terico para a anlise

    A obra Memria Coletiva de Maurice Hal-bwachs (1968) foi fundamental para enfrentara tarefa de entendimento das narrativas me-morialsticas dos(as) professores(as). Hal-bwachs, estudioso das relaes entre memriae histria pblica, defende a tese de que lem-brar no reviver, mas refazer, reconstruir,repensar, com imagens e idias de hoje, asexperincias do passado. Para ele a memriado indivduo depende de seu relacionamentocom a famlia, com a classe social, com a esco-la, com a igreja, com a profisso; enfim, comos grupos de convvio e os grupos de refernciapeculiares a esse indivduo. O autor argumenta

  • 98que a lembrana uma imagem construdapelos materiais que esto, no presente, dis-posio do indivduo, no conjunto de represen-taes que povoam sua conscincia atual. Pormais ntida que possa parecer a lembrana deum fato antigo, no a mesma imagem que seexperimenta na infncia, porque a pessoa no a mesma de ento e porque sua percepoalterou-se e, com ela, suas idias, seus juzosde realidade e de valor. O simples fato de lem-brar o passado no presente, exclui a identidadeentre as imagens de um e de outro tempo, eprope a sua diferena em termos de ponto devista. O que rege a atividade mnemnica afuno social exercida aqui e agora pelo sujeitoque lembra. A exigncia aos professores(as) daelaborao do memorial traz consigo a oportu-nidade dos mesmos revisitarem o passado mas,com olhos outros, em que o passado ajustados exigncias e aos ideais do presente.

    Dizendo de uma outra maneira, o contedoda lembrana no aflora em estado puro nalinguagem do narrador que lembra, ela trata-da, s vezes estilizada, pelo ponto de vistacultural e ideolgico do grupo em que o sujeitoest inserido e pelas intenes do sujeito quenarra, em funo do interlocutor. ParaChau(apud BOSI, 1995):

    (...) o modo de lembrar individual tantoquanto social: o grupo transmite, retm erefora as lembranas, mas o recordador,ao trabalh-la, vai paulatinamente indivi-dualizando a memria comunitria, noque lembra e no como lembra (...). Otempo da memria social, no s por-que o calendrio do trabalho e da festa,do evento poltico e do fato inslito, mastambm porque repercute no modo delembrar(p.84).

    Desta forma, os memoriais valem tanto peloque contam quanto pelos seus silncios e pelassuas lacunas. Como bem o diz Jorge Lus Bor-ges, nosso poeta argentino: a memria e oesquecimento so igualmente inventi-vos.(1970,p.30). Portanto, esse discurso me-morialstico no neutro. H uma orientaoem funo do interlocutor.

    O que dizem os memoriais dos(as)professores(as)

    Nem sempre sou igual no que digo e escre-vo. Mudo, mas no mudo muito.

    Fernando Pessoa

    Os professores pinam, na memria, o fio dasua infncia e tecem a escrita de suas caracte-rsticas pessoais e profissionais, com os olhosvoltados para as exigncias do presente,

    (...) filha de filhos de imigrantes italianose alemes, espanhis e portugueses, her-do entre tantas outras coisas, a sensibili-dade e a tenacidade; a valentia e a aud-cia de meus antepassados, a tudo melanando com rigor e emoo para tam-bm desbravar a terra, no mais geo-grfica como predominantemente signifi-cava para eles esta expresso mas, agoradesbravar a terra do conhecimento paraser o melhor que puder e levar outraspessoas a isto. (Mari)

    meu comportamento com a busca de sa-beres inquieta-me (...). Sempre fui umaaluna respeitosa, de boa convivncia comprofessores e colegas, at hoje no gostode faltar aulas. (Liz)

    (...) ingressei na primeira srie e lembroque a professora era muito carinhosa ecompreensiva. Usvamos a cartilha Cami-nho Suave, no tive dificuldades para aaprender a ler e a escrever. No entanto,no tenho lembranas da professora utili-zar outros recursos didticos.(...) Hoje,como pedagoga, procuro transmitir aosprofessores que o livro um dos vriosrecursos e no somente o nico. (Luca)

    Esses recortes de narrativas possibilitamcompreender a carreira desses profissionais, opapel das organizaes, dos acontecimentosmarcantes e de outras pessoas que exerceraminfluncias significativas na moldagem das defi-nies pessoais e profissionais deles.

    O contedo da memria, ainda que sejaconstrudo em nvel individual, o que a memriagrava, recalca, exclui, relembra, resultado deum trabalho de organizao, de (re)construo.Uma reconstruo psquica e intelectual queacarreta, de fato, uma representao seletiva

  • 99do passado. Como j foi dito, o contexto pre-sente, seleo ao curso de mestrado, exigeindivduos, na tica dos candidatos, tenazes,perseverantes, responsveis, abertos para onovo. So estes adjetivos relativos que os(as)professores (as) lanam mo para definir suascaractersticas pessoais e profissionais. Portan-to, a seleo daquilo que includo na narraoobedece a critrios determinados pelo contextopresente.

    O que para os(as) professores(as)escrever um memorial?

    Olhando para a direita e para a esquerda,E de vez em quando olhando para trs...

    E o que vejo a cada momento aquilo que nunca antes eu tinha visto,

    E eu sei dar por isso muito bem...

    Fernando Pessoa

    As formas como as professoras definem seusentimento para a escrita do memorial apontamque a recuperao da experincia sempreprovocada. Na maior parte das vezes, lembrarno reviver, mas refazer, reconstruir, repen-sar com imagens e idias de hoje as experin-cias do passado.

    Como diz a professora Liz:

    a necessidade de estruturar e registrarpor escrito as experincias vividas, (...)obriga a evocar fatos e acontecimentosda minha vida pessoal e profissional.

    Ou ainda o registro da professora Luca:

    Escrever este memorial representa, aci-ma de tudo, o resgate das lembranas daminha formao acadmica e intelectual ea minha insero num campo maisabrangente do conhecimento.

    No entanto, alguns professores no conse-guem ir ao passado a no ser de uma formafragmentada, sem estabelecer elos de ligaocom o presente. O memorial apresenta-secomo se fosse um roteiro cronolgico da vidaacadmica.

    conclu o ensino superior, Curso de His-tria, em 1974 (...). Em 1979, participeido Ensino de promoo do Magistrio P-blico do Paran. Em 1984, fui convidada a

    integrar a equipe de Ensino do NRE.(Leni)

    Em 1992 passei no vestibular para oCurso de Licenciatura em Geografia. Em1993 ministrava aulas no cursinho. Em1995... Em 1996... (JP)Em 1990 inicio o magistrio (...) Em1993 deparei-me com um contexto novoiniciei o Curso de Pedagogia na UEPG.(GI)

    Esses memoriais se constituem em umanarrativa linear, assptica, pressa a uma se-qncia cronolgica, simplesmente apoiada nosmarcos referendados pelos documentos com-probatrios do curriculum vitae. No se extraidas experincias vividas o mais provisrio dossignificados.

    Rememorar tambm ajuizar

    No quero recordar nem conhecer-meSomos demais se olharmos em que somos.

    Fernando Pessoa

    Os relatos abaixo ilustram como a escrita domemorial no um processo inconsciente. Ele carregado de um contedo existencial. Re-gistra um balano dos momentos significativose percursos pessoais e profissionais de cadaprofessor(a).

    Explicitar os aspectos relevantes da tra-jetria acadmica e profissional pressu-pe uma tomada de conscincia sobre ascapacidades cognitivas, os saberes adqui-ridos e as necessidades de superaes eavanos pessoais. (Gil)

    falar sobre a trajetria acadmica certa-mente nos faz refletir sobre muitos as-pectos que hoje parecem transparentes,mas que na poca em que ocorreram flu-ram quase que de forma imperceptvel.(Sil)

    A memria tem como referncia os gruposde convvio do indivduo e as instituies for-madoras desse sujeito. Halbwachs (op.cit.) ex-plica que essa percepo difere conforme olugar que o indivduo ocupa no grupo social. Seo carter coletivo de toda memria individual

  • 100parece evidente, o mesmo no se pode dizer daidia de que existe uma memria coletiva ni-ca, Isto , uma presena e, portanto uma re-presentao do passado que sejam comparti-lhados nos mesmos termos por toda uma cole-tividade.

    A escolha profissional

    (...) eu sou do tamanho do que vejoE no do tamanho de minha altura....

    Fernando Pessoa

    Muitos professores retratam em seus me-moriais o carter vocacionado da prtica domagistrio. A influncia da famlia e de outrosprofessores na definio da profisso. Muitasvezes, uma viso ingnua e romntica impreg-na o contedo narrativo quando o professorfala da escolha profissional. Os fragmentosabaixo ilustram essa afirmativa:

    Antes mesmo de me conhecer porgente, j estava envolvido como o meioeducacional formal. Minha me era pro-fessora. (Gil)

    O que voc quer ser quando crescer?Inmeras vezes respondi com muita con-vico que seria professora. Desde pe-quena alimentava este sonho, talvez, in-fluenciada pela famlia em que a maioriaera professora ou pela admirao quesentia ao ver as professoras chegar es-cola de sapato de salto alto, cabelos ar-rumados, exalando perfume. (Ro)

    Aprender e ensinar sempre significoupara mim oportunidade nica de conviverde forma harmoniosa com crianas, jo-vens e colegas professores. (Leni)

    Talvez, inconscientemente, por fazerparte de uma famlia de professores essanecessidade de aprender e ensinar veio tona. Nasci e cresci num ambiente emque a vida girava em torno da escola.(Liz)

    A escolha para a docncia foi uma de-ciso que no se distanciou das experin-cias vividas no mbito familiar. (Sil)

    O desejo da Famlia

    Meu pai matriculou-me no Curso de Ma-gistrio. Inicialmente no era o meu de-sejo freqentar o Curso, mas com o pas-sar do tempo acabei me identificando eme deslumbrei com a futura profisso.(Luca)

    A influncia de outros professores paraa escolha da profisso

    Quando ingressei no 2 Grau no cursode tcnica em contabilidade, tive contatocom um excelente professor de Histriaque acabou me ensinando a gostar equerer fazer o Curso de Histria. (Roger)

    Na primeira srie tive uma professoraespetacular que acompanhou a turma ata segunda srie. Exemplo vivo, procuroespelha-me em suas atitudes, pois trata-va-nos com respeito e muito carinho.Nunca discriminou seus alunos. Foi porseu incentivo que mais tarde optei por fa-zer o magistrio e depois Pedagogia.(Arisa)

    Halbwachs (op.cit), ao explicar o processode reconstruo do passado, compara este pro-cesso com a reeleitura que um adulto faz deum livro de narrativas lido h muito tempo. Dizo autor, que o leitor adulto entremeia com suasreflexes a percepo das imagens relidas eesse convvio de lembrana e crtica alteraprofundamente a qualidade da segunda leitura.Nessa linha de pensamento, elaborar um me-morial reviver a experincia da releitura. Damesma forma, como no se l, do mesmo jeito,duas vezes o mesmo livro, no se revive damesma maneira uma experincia de vida. Adiferena maior est no teor da idias e dasreflexes sugeridas pela nova leitura. Assim,como em uma segunda leitura o leitor entre-meia com suas reflexes a percepo das ima-gens relidas, o conjunto de nossas idias atuaisnos impede de recuperar exatamente as im-presses e sentimentos experimentados pelaprimeira vez. No nos resta seno reconstruir,no que for possvel, a fisionomia dos aconteci-mentos.

    Nos relatos abaixo os(as) professores(as)deixam transparecer a preocupao de darsentido, de tornar razovel, de extrair uma lgi-

  • 101ca ao mesmo tempo retrospectiva e prospectivaestabelecendo relaes intelegveis entre asexperincias vividas e suas opes profissio-nais.

    Escreve a professora Edi:

    Hoje conheo o termo correto, mas na-quela poca eu s sabia que o Jnior eraparaltico. Vi este menino crescer, aju-dando-o, brincando e arrastando-o pelocho (...) eu gostava de estar com ele,apesar dele ser muito mimado pelos paise s vezes era muito chato ir em sua casae ficar a tarde toda com ele. Talvez, esti-vesse ali delineando-se em mim a voca-o para trabalhar com crianas porta-doras de necessidades especiais. Somentehoje, vivenciando o presente, consigocompreender certos acontecimentos dopassado.

    Outro relato:

    Nesses colgios comecei a conhecer aescola pblica, seus problemas, suas difi-culdades e me identifiquei com isso. Per-cebi que a escola particular no dava li-berdade para os professores se expres-sarem e na escola pblica isso era poss-vel. Hoje eu sou professora e defensorado ensino pblico, apesar de todas as di-ficuldades. Interesso-me pela escolacomo um conjunto, procuro sempre meinformar sobre os acontecimentos e mu-danas ocorridas, quando possvel, atparticipar. (Tyner)

    Houve, durante a graduao, um sen-timento de que o curso de Pedagogia eradescontextualizado. Esta era uma questopercebida e comentada entre os acadmi-cos, mas que nunca foi claro objeto dereflexo e discusso. (Sil)Percebi alguma falhas no curso de gra-duao, a maior delas era a noo insufi-ciente do que uma sala de aula, poisdurante o curso tudo d certo: o plane-jamento, o tempo programado, masquando assumimos a nossa primeira tur-ma a realidade outra. (Tyner)

    A experincia de simultaneamente mi-nistrar aulas no ensino mdio, funda-mental, cursinho e superior permitiu-me

    analisar a educao com maior amplitudee conexo entre os diferentes nveis. Mi-nha preocupao maior era e, ainda , adistncia entre o curso de Licenciatura eas realidades do ensino mdio e funda-mental. Com clareza percebi que no huma preocupao para ser professor eeducador. Prepara-se apenas para ser umrepassador de contedos, em grandeparte, distantes do cotidiano dos alunos.(JP)(...) percebi que as informaes e o co-nhecimento construdo durante os quatroanos de Universidade no eram suficien-tes para encontrar solues aos proble-mas que encontrava na escola. (Gil)

    O processo de construo da identida-de profissional

    Procuro despir-me do que aprendi,Procuro esquecer-me do modo de lembrarque me ensinaram,E raspar a tinta com que me pintaram ossentidos,Desencaixotar as minhas emoes verda-deiras,Desembrulhar-me e ser eu(...).Fernando Pessoa

    Desejos, aes, pensamentos, sentimentos,condies materiais de vida, so conjugados oufundidos ao longo da existncia da pessoa,permitindo que outras pessoas diferenciem-nae reconheam-na em sociedade. Nesta linha deraciocnio, identidade pode ser definida, emtermos de aproximao, como uma fuso di-nmica de traos que caracterizam no tempo eno espao, de maneira inconfundvel, uma pes-soa, um objeto ou qualquer outra entidadeconcreta.

    Ao puxar dos memoriais dos(as) professo-res(as) o fio das experincias profissionais vivi-das e narradas possvel tecer a malha do co-nhecimento construdo por eles ao longo de suatrajetria pessoal e profissional. o mesmo quedizer que nas histrias narradas em seus me-moriais h muitas possibilidades de entrar nocerne do processo identitrio. O processo iden-titrio vai sendo construdo nos movimentosque o sujeito professor(a) consegue realizarpara superar os desafios que enfrenta no con-texto profissional, social e familiar.

    Em seus memoriais, os (as) professores(as)deixaram aflorar, nas narrativas, a maneira

  • 102como cada um se tornou no(na) professor(a)que hoje. Quando se puxa o fio das experin-cias pessoais, formativas e profissionais des-tes(as) professores(as), aparece a identidadeprofissional no como um dado adquirido, umapropriedade ou um produto, mas como algoque foi construdo num lugar de lutas e confli-tos. A partir desta afirmao entende-se que aidentidade constituda por mltiplas determi-naes e no h dicotomia entre identidadepessoal e profissional. E tem mais, a identidadeprofissional um espao de construo cons-tante, portanto, marcado por uma provisorie-dade em que a identidade vai se realando, aospoucos, atravs da busca de novos conheci-mentos. A conscincia da inconclusividade, pro-visoriedade, inacabamento do Ser e do conhe-cimento, concorre para que o(a) professor(a)exera com autonomia o seu trabalho e tenha osentimento de que ele(a) quem controla assuas decises e aes. esse sentimento queinstaura o processo de busca de novos conhe-cimentos e o enfrentamento de novos desafios.

    Isso pode ser percebido nas narrativas abai-xo:

    Na dcada de 60, adolescente, fiz meusestudos do Ensino Fundamental no Col-gio Regente Feij e, mais tarde, em 1965estudei no Instituto de Educao ondeobtive o diploma de professora primria.Comecei a lecionar na Escola So Jorge.Este trabalho foi interrompido pelo casa-mento e mais tarde, pelo nascimento dosfilhos. Retomei os estudos quando as im-posies da maternidade j no eram toabsorventes. Em 1985 prestei vestibularpara o Curso de Pedagogia. O Curso dePedagogia veio aprimorar a minha forma-o pedaggica. (...) Em 1989 assumi adireo do Colgio Estadual Santa Mariaat 1997. Tentando conciliar a formaopedaggica que tinha com as contingn-cias da prtica educativa na qualidade degestor de instituio pblica de ensino,senti necessidade de aprofundar meusconhecimentos. Desta forma, retornei Universidade para fazer uma nova habili-tao que possibilitaria melhores condi-es para eu administrar com seguranae competncia a Escola. A experincia nadireo da escola foi muito importantepara a minha formao profissional. Tiveoportunidade de participar da educaotanto em sala de aula como fora. De um

    lado o espao mais restrito e do outro, aviso do todo, onde o administrador atuaem todas as frentes: pedaggicas, admi-nistrativas, financeiras, polticas e sociais.(...) A escola de uma forma geral comple-xificou muito. A complexidade alcanadaexige cada vez mais profissionais compe-tentes para enfrentar os desafios que asociedade e o desenvolvimento impem.Da a nossa busca constante do aperfei-oamento. (Leni)

    Outro relato:

    Diante dos questionamentos e dassituaes enfrentadas no cotidiano dasala de aula, buscava subsdios para me-lhorar a minha prtica por acreditar quepoderia aprofundar os conhecimentos atento adquiridos, cursando pedagogia.(...) comecei a perceber que desenvolviauma ao isolada no interior da sala deaula. Estava apropriando-me de conheci-mentos tericos, mas no havia a articu-lao destes conhecimentos com a equipepedaggica da escola. Passo ento, a tera percepo de que a atuao do profes-sor no interior da escola no pode serisolada ele precisa de um suporte espec-fico no aspecto pedaggico para o en-frentamento dos problemas e implemen-tao de novas prticas. Instaura em mimum olhar diferente sobre o papel do su-pervisor escolar. (...) no momento deoptar pela habilitao no Curso de Peda-gogia, no tive dvidas, a minha opofoi pela superviso escolar. (Denis)

    O contexto histrico e social, de onde pro-vm as determinaes do ser humano, podefacilitar ou dificultar as vivncias necessriaspara o desenvolvimento dos componentes es-senciais que configuram a identidade profissio-nal. Os relatos acima apontaram que a identi-dade profissional foi se constituindo no movi-mento do estar sendo, movimento este deidentificao, negao e superao de valores esignificados, sejam eles conscientes ou no.

    Em resumo, a identidade profissional vai seplasmando em um processo de construopermanente que s acontece no horizonte daconquista da auto-determinao e do vir-a-sercontnuo. O(A) professor(a) ao ingressar naprofisso conhece aspectos do ritual da escolae do profissional que l atua, pois j interagiu

  • 103neste espao, de algum modo, como aluno,estagirio ou como observador. A formao daidentidade profissional traz imbricada a neces-sidade de se instaurar um processo de des-construo e reconstruo do modelo social doque ser professor e, em muitas situaes doque escola e at mesmo, o que aula ou salade aula.

    E, ainda, outro relato:

    (...) o Curso de Geografia me chamavamuito a ateno. Estimulado, talvez, pelacuriosidade de conhecer o mundo. (...)decidi ento, fazer vestibular para o Cursode Licenciatura em Geografia. Desde oprimeiro ano do curso busquei envolver-me e valorizar o curso. Na medida dopossvel fazia cursos e atividades parale-las que viessem ao encontro daquilo queestava estudando. Mas, foi s a partir doterceiro ano que percebi a possibilidadede realizao profissional. Em 1995 fuiselecionado para participar do ProjetoUniversidade Solidria. Pude conhecer umpouquinho os Estados do Rio Grande doNorte e Paraba e vivenciei o cotidianodas pessoas que l moravam.Essa experi-ncia fortaleceu a linha que eu j delinea-va para meu futuro profissional.Trabalhara Geografia numa linha crtica. No ltimoano do Curso dois momentos foram mar-cantes. A participao no Projeto de Ex-tenso desenvolvido com crianas de 5srie de uma escola pblica e o convitepara docente em um curso pr-vestibular.O que parecia ser opostos, na verdade,expressaram-se como duas experinciasque me fortaleceram e me auxiliaram nadeciso do caminho que eu desejava se-guir. Desde as primeiras aulas ministradasno cursinho ou nos encontros do projetoeu tinha duas preocupaes: estar bempreparado para trabalhar o contedo eisso eu conseguia atravs de muita leiturae a outra preocupao era a de que atra-vs deste contedo os alunos tivessem aoportunidade de refletir e entender umpouco mais sobre o processo histrico egeogrfico onde estvamos inseridos.(Gil)

    A minha trajetria como docente inicia-se ainda no Curso de Administrao deEmpresas. Precisei cursar trs anos para

    perceber que o meu ramo no era omundo dos negcios. (...) Foi quando in-gressei no movimento ambientalista, pre-cisamente no Grupo Ecolgico dos Cam-pos Gerais, onde me foi designado a mis-so de ministrar pequenas palestras so-bre ecologia, reciclagem de lixo e temasdo gnero, ento em modo no incio dosanos 90. Esta ao foi fundamental paraum redirecionamento na perspectiva pro-fissional. Em 1992 passei no vestibularpara o Curso de Licenciatura em Geogra-fia. Da em diante realizei-me como aca-dmico e como profissional. ( JP)

    Estas narrativas autobiogrficas de profes-sores e professoras evidenciaram, na escritafeita em primeira pessoa, um tempo de balanoem que se registrou momentos significativosdos percursos pessoais e profissionais que osconstituram como professor ou como profes-sora. Indicaram que o processo de constituiodo sujeito-professor est intimamente relacio-nado com as formas pelas quais os indivduosassumem e reagem frente s funes inerentesao papel social de ser professor. o mesmoque dizer, que a identidade profissional construda em uma relao meditica com ooutro em que o sujeito professor se apropria,nega, supera conhecimentos e experinciasenfrentados no espao cotidiano do seu traba-lho.

    A constituio desse sujeito-professor exigeque alm da identificao com a profisso nosseus modos de pensar e agir, os seus modos desentir sejam tambm contemplados pela refle-xo, pela auto-determinao e pela emancipa-o intelectual.

    Das narrativas emergiram contedos simb-licos que possibilitaram lanar um olhar paracompreender e categorizar os processos subje-tivos e metacognitivos em que os(as) profes-sores(as) se apoiaram quando da elaborao domemorial. O apoio estava centrado em doiseixos: um biogrfico dimensionado na subjetivi-dade (identidade para si) marcado por crises,mudanas, rupturas e confirmaes e o outrodimensionado na objetividade (identidade parao outro) que est intimamente ligado com asrelaes sociais que ocorre no espao profissio-nal.

    Estas duas expresses identidades para sie identidade para o outro so utilizadas porDUBAR(1995) para explicar os mecanismos queo sujeito lana mo para expressar a imagem

  • 104que tem de si (ou seu projeto de ser) e a quedeseja que os outros tenham dele. Ao escreveros seus memoriais os (as) professores(as) fi-zeram um recorte de suas lembranas paraexpressar uma imagem de si e, ao mesmotempo tinham como foco o objetivo daquelaescrita, no era uma escrita espontnea,eles(as) buscavam dar elementos para que ooutro, o leitor, que representava um avaliador,construsse a imagem que desejavam que ti-vessem deles(as).

    guisa de concluso:

    De quem o olharQue espreita por meus olhos?Quando penso que vejo,Quem continua vendoEnquanto estou pensando

    Fernando Pessoa

    E por falar no olhar... Sartre, no ensaio deontologia O Ser e o Nada inspira-me para com-preender este sujeito que se define, conscien-temente, em relao ao mundo (contexto) e amim (destinatrio) quando se prope escreverum memorial como exigncia acadmica.

    O interessante que se estabelece, nesseexerccio de escrita, um jogo em que o olharque o outro me lana, ao escrever o memorial, ao mesmo tempo olhar-sujeito porque ele o emissor, mas sua escrita est em relaodireta com a forma como sou visto (receptor)desta forma, mostra tambm um olhar-objetoquando recorta as lembranas, define estilosem funo das exigncias e da avaliao queespera fazer dele. Melhor dizendo, em funodas exigncias e avaliao do outro.

    Pode-se perguntar: Quem o outro? O outro, por princpio, aquele que me olha. Transfor-mo-me em objeto, porque fao o que tenho quefazer, a partir de definies do contexto em queest explcito o outro. Como diz Sartre : Nosou para mim mais do que pura remisso aooutro (1997, p. 336).

    Este jogo de olhar e ser olhado, aqueles aquem destino o memorial, so fixados em mimcomo objetos e, sou em relao a eles, tam-bm objeto. Consciente disso, o contedo danarrativa vai se tecendo com o fio de argu-mentaes que desvelam mais as minhas pos-sibilidades do que os meus limites. A pesquisaapontou que as narrativas memorialsticas nodeixaram transparecer quaisquer elementoscircunstancias que pudessem dificultar ao(a)

    candidato(a) realizao de seu objetivo (aentrada no curso de mestrado), fossem elesrecursos financeiros, disponibilidade de tempo,trabalho... .

    Isto posto, possvel afirmar que a anlisepossibilitou articular significados, ainda queprovisrios, em que a memria tem uma di-menso de preservao da lembrana, mastambm do esquecimento, da omisso. omesmo que dizer: s se lembra porque pos-svel esquecer, uma vez que a principal ca-racterstica do ato de lembrar a seleo queest voltada para a dimenso soci-al.(Halbwachs,1968). Em funo do destinat-rio h uma (re)arrumao da lembrana. Umtrabalho de construo que transforma reminis-cncias em um discurso organizado, que traauma auto-imagem, modelo de identidade, emfuno daquilo que (o narrador) supe esperardele.

    Desta forma, a exigncia do memorial naprimeira fase de seleo ao curso de mestrados tem razo de ser se esta narrativa for consi-derada como um exerccio reflexivo de escritasustentada por um contedo subjetivo em queo(a) candidato(a) se revela na forma como Fer-nando Pessoa nos inspira: Sim, sou eu, eumesmo, tal qual resultei de tudo.../ Quanto fui,quanto no fui, tudo isso sou.../ Quanto quis,quanto no quis, tudo isso me forma... Issoexigiria do sujeito/narrador a no negao datrajetria que teve, das experincias que viveu,dos seus medos e angstias, das dificuldades edesejos, que pautaram as suas buscas.

    Enfim, essa exigncia s tem sentido se noestiver, apenas, atrelada idia de julgamento,avaliao, mas como um exerccio reflexivo deescrita do(a) candidato(a) no qual ele(a) possalanar um olhar sobre-si-mesmo para acima detudo registrar o exerccio de pensar a trajetriapessoal e nela os processos de construo,desconstruo e elaborao de novos conhe-cimentos para alterar o nvel de conscincia desi-mesmo.

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    Recebido em 30/05/2005Aceito para publicao em 09/09/2005