Nardi, Teixeira - Terapia Gênica

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109 Terapia gênica Gene therapy 1 Departamento de Genética, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Av. Bento Gonçalves 9.500. Caixa Postal 1.5053 91501-970 Porto Alegre RS. [email protected] 2 Pesquisa Básica, Divisão de Medicina Experimental, Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro. Nance Beyer Nardi 1 Leonardo Augusto Karam Teixeira 2 Eduardo Filipe Ávila da Silva 1 Abstract Gene therapy is a medical interven- tion that involves modifying the genetic mate- rial of living cells to fight disease. Genes influ- ence virtually every human disease, either by encoding for abnormal proteins, which are di- rectly responsible for the disease, or by causing a susceptibility to environmental agents which induce it. Gene therapy is still experimental, and is being studied in clinical trials for many different types of diseases. The development of safe and effective methods of implanting nor- mal genes into the human cell is one of the most important technical issues in gene therapy. Al- though much effort has been directed in the last decade toward improvement of protocols in hu- man gene therapy, and in spite of many con- siderable achievements in basic research, the therapeutic applications of gene transfer tech- nology still remain mostly theoretical. The po- tential for gene therapy is huge and likely to impact on all aspects of medicine. Key words Viral and nonviral vectors, Gene therapy protocols, Gene transfer Resumo Terapia gênica é um procedimento médico que envolve a modificação genética de células como forma de tratar doenças. Os ge- nes influenciam praticamente todas as doen- ças humanas, seja pela codificação de proteí- nas anormais diretamente responsáveis pela doença, seja por determinar suscetibilidade a agentes ambientais que a induzem. A terapia gênica é ainda experimental, e está sendo es- tudada em protocolos clínicos para diferentes tipos de doenças. O desenvolvimento de méto- dos seguros e eficientes de transferência gênica para células humanas é um dos pontos mais importantes na terapia gênica. Apesar do gran- de esforço dirigido na última década para o aperfeiçoamento dos protocolos de terapia gê- nica humana, e dos avanços importantes na pesquisa básica, as aplicações terapêuticas da tecnologia de transferência gênica continuam ainda em grande parte teóricas. O potencial da terapia gênica é muito grande, devendo ain- da causar grande impacto em todos os aspec- tos da medicina. Palavras-chave Vetores virais e não-virais, Protocolos de terapia gênica, Transferência gê- nica

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    Terapia gnica

    Gene therapy

    1 Departamento deGentica, UniversidadeFederal do Rio Grande doSul. Av. Bento Gonalves9.500. Caixa Postal 1.505391501-970 Porto Alegre [email protected] Pesquisa Bsica, Divisode Medicina Experimental,Instituto Nacional doCncer, Rio de Janeiro.

    Nance Beyer Nardi 1

    Leonardo Augusto Karam Teixeira 2

    Eduardo Filipe vila da Silva 1

    Abstract Gene therapy is a medical interven-tion that involves modifying the genetic mate-rial of living cells to fight disease. Genes influ-ence virtually every human disease, either byencoding for abnormal proteins, which are di-rectly responsible for the disease, or by causinga susceptibility to environmental agents whichinduce it. Gene therapy is still experimental,and is being studied in clinical trials for manydifferent types of diseases. The development ofsafe and effective methods of implanting nor-mal genes into the human cell is one of the mostimportant technical issues in gene therapy. Al-though much effort has been directed in the lastdecade toward improvement of protocols in hu-man gene therapy, and in spite of many con-siderable achievements in basic research, thetherapeutic applications of gene transfer tech-nology still remain mostly theoretical. The po-tential for gene therapy is huge and likely toimpact on all aspects of medicine.Key words Viral and nonviral vectors, Genetherapy protocols, Gene transfer

    Resumo Terapia gnica um procedimentomdico que envolve a modificao gentica declulas como forma de tratar doenas. Os ge-nes influenciam praticamente todas as doen-as humanas, seja pela codificao de prote-nas anormais diretamente responsveis peladoena, seja por determinar suscetibilidade aagentes ambientais que a induzem. A terapiagnica ainda experimental, e est sendo es-tudada em protocolos clnicos para diferentestipos de doenas. O desenvolvimento de mto-dos seguros e eficientes de transferncia gnicapara clulas humanas um dos pontos maisimportantes na terapia gnica. Apesar do gran-de esforo dirigido na ltima dcada para oaperfeioamento dos protocolos de terapia g-nica humana, e dos avanos importantes napesquisa bsica, as aplicaes teraputicas datecnologia de transferncia gnica continuamainda em grande parte tericas. O potencialda terapia gnica muito grande, devendo ain-da causar grande impacto em todos os aspec-tos da medicina.Palavras-chave Vetores virais e no-virais,Protocolos de terapia gnica, Transferncia g-nica

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    A possibilidade de descrio gentica do ho-mem representa talvez o ltimo nvel de umabusca de autoconhecimento que teve incio hmilnios. A primeira etapa representada pe-los grandes filsofos da Antigidade, que bus-cavam identificar a relao do homem com ouniverso. O segundo e terceiro grandes passosforam dados no sculo passado, quando Char-les Darwin colocou o ser humano em perspec-tiva na escala evolutiva e Sigmund Freud reve-lou seu interior psquico. Nos ltimos cem anos,rgos, tecidos, clulas e seus componentes fo-ram revelados com um grande nvel de deta-lhamento. Quarenta anos aps a descoberta daestrutura do DNA por James Watson e FrancisCrick, conclumos a primeira etapa do conhe-cimento humano ao nvel molecular, que per-mite a identificao gentica nica de cada in-divduo.

    O conhecimento dos genes responsveispor caractersticas normais ou patolgicas per-mite a plena aplicao dos princpios da medi-cina genmica, que dever modificar os proce-dimentos mdicos no diagnstico e tratamentode vrias doenas e onde se inclui a terapia g-nica. Os princpios desta nova metodologia en-volvem a introduo, no paciente portador dedoenas genticas ou outras, de genes respon-sveis por protenas que podero ser benficas.Em doenas causadas por mutaes gnicas, aintroduo de um gene normal poder revertero quadro clnico; em uma ampla gama de ou-tros tipos de doenas, clulas geneticamentemodificadas podero ativar mecanismos de de-fesa naturais do organismo (como o sistemaimune) ou produzir molculas de interesse te-raputico.

    A terapia gnica idealmente visaria substi-tuir um gene defeituoso por um gene normal.A remoo de um gene do organismo , entre-tanto, algo muito difcil de ser realizado, e des-necessrio na maioria das vezes. Assim, os pro-cedimentos envolvem, em geral, a introduodo gene de interesse, que deve ser completa-mente conhecido.

    O gene de interesse (tambm chamado detransgene) transportado por um vetor e estcontido em uma molcula de DNA ou RNAque carrega ainda outros elementos genticosimportantes para sua manuteno e expresso.As formas de transferncia deste vetor conten-do o gene so muito variadas. Em primeiro lu-gar, importante definir se mais apropriadointroduzir o gene diretamente no organismo(in vivo) ou se, alternativamente, clulas sero

    retiradas do indivduo, modificadas e depoisreintroduzidas (ex vivo). Conforme detalhadoa seguir, algumas das formas de transfernciautilizam vrus, dos quais os principais so osretrovrus, os adenovrus e os vrus adeno-as-sociados. Outras formas de transferncia in-cluem a injeo direta do gene no organismo,bem como mtodos utilizando princpios fsi-cos (biolstica, eletroporao) ou qumicos (li-pofeco). A avaliao do sucesso do procedi-mento envolve a anlise da manuteno de ex-presso do gene nas clulas transformadas e acorreo da doena.

    Um dos tipos celulares mais visados pela te-rapia gnica so as clulas chamadas tronco doorganismo. Estas clulas so mantidas durantetoda a vida do indivduo, e apresentam a pro-priedade de poder originar mltiplas linhagensde clulas maduras. As clulas-tronco hemato-poiticas, por exemplo, originam todas as clu-las do sangue, de modo que a introduo nelasde um gene teraputico garante que muitos ti-pos celulares diferentes expressem este gene eproduzam a protena de interesse. Outra abor-dagem da terapia gnica, bem como de outrasformas de manipulao gentica, pode envol-ver clulas-tronco embrionrias. Estas clulasapresentam maior potencial que as clulas-tron-co do adulto, j que delas se originam no ape-nas alguns, mas sim todos os tipos de clulasque compem o organismo. Alm disso, as c-lulas-tronco do adulto so muitas vezes difceisde serem localizadas in vivo e manipuladas invitro, o que no acontece com as embrionrias.A utilizao de clulas-tronco embrionrias,entretanto, depende da destruio de um em-brio, em uma fase extremamente precoce dedesenvolvimento (poucos dias). As questesticas, que se impem imperativamente frentes inmeras possibilidade de utilizao destasinformaes, so especialmente pertinentes aose tratar das clulas-tronco embrionrias.

    Vetores de transferncia gnica

    Apesar do acmulo de conhecimento sobre aconstituio gentica do homem e as metodo-logias para a manipulao gnica, a aplicaoda terapia gnica como uma rotina clnica temesbarrado em diversos problemas de ordemtcnica. Assim, importante que mais esforossejam aplicados na pesquisa e desenvolvimentode novos procedimentos, bem como no apri-moramento dos mtodos disponveis at o mo-

  • mento. Nesta seo discutiremos um dos ele-mentos mais importantes no estabelecimentode um protocolo de terapia gnica, que a uti-lizao de vetores visando efetiva correo depatologias com base molecular.

    Transferncia gnica um termo que incluitodos os procedimentos que visam entrada dealgum material gentico (na forma de DNA,RNA ou oligonucleotdeos) em clulas-alvo. Osagentes utilizados para esta entrada so conhe-cidos como vetores, palavra que vem do latimvector significando aquele que entrega. Ovetor ideal possui algumas caractersticas alta-mente desejveis, entre as quais podemos des-tacar as seguintes: capacidade de acomodaode um transgene de tamanho ilimitado, baixaimunogenicidade e citotoxicidade, expressoestvel do transgene, direcionamento para ti-pos especficos de clulas ou tecidos, baixo cus-to, fcil produo e manipulao e ainda possi-bilidade de regular a expresso do gene exge-no no tempo e/ou na quantidade. At o presen-te momento, este vetor no pode ainda ser ob-tido. No entanto, entre as alternativas dispon-veis, podemos sempre escolher aquele que me-lhor se adapte s caractersticas teraputicasdesejadas no tratamento.

    O material gentico a ser utilizado em ex-perimentos de transferncia gnica mais co-mumente encontrado em duas formas: na for-ma plasmidial, onde um gene de interesse in-serido em um plasmdio de expresso eucario-ta, promovendo assim a sntese da protena de-sejada nas clulas ou tecidos alvos, ou na formaviral, onde o transgene substitui regies gni-cas de certos vrus. Estas sequncias virais soquase sempre as responsveis pela patogenici-dade nos hospedeiros. Assim, nestes vetores vi-rais, o vrus ao ser modificado atenuado e in-capaz de causar qualquer quadro patolgico. Omaterial gentico a ser introduzido tambmpode ser encontrado em algumas outras for-mas, como uma sequncia de DNA linearizada(pouco til pela baixa estabilidade na clula, jque este este tipo de material facilmente de-gradado por nucleases citoplasmticas) ou umoligonucleotdeo. Alm deste, DNA mitocon-drial ou mesmo cromossomos artificiais (Har-rington et al., 1997) j foram estudados. Taisformas so ainda pouco empregadas, mas pos-suem um potencial de aplicao no futuro.

    Os mtodos de transferncia gnica so ge-ralmente divididos em trs categorias: mtodosfsicos (o transgene introduzido de maneiramecnica na clulas), mtodos qumicos (o ve-

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    tor alguma substncia de origem qumica) emtodos biolgicos (emprego de organismosque naturalmente possuem a capacidade detransferir material gentico, como os vrus oualgumas bactrias). A escolha do mtodo a serempregado feita de acordo com a patologia, aclula ou tecido-alvo, o tamanho e tipo de trans-gene a ser expresso e o tempo e quantidade deexpresso que se deseja obter, entre outros fa-tores. Atualmente, os mtodos virais so os maisamplamente utilizados, mas as demais aborda-gens tambm possuem aplicaes significativas.

    Os mtodos fsicos so utilizados para in-troduo principalmente de plasmdios em c-lulas, j que o DNA transferido por esses mto-dos encontra-se preferencialmente nesta forma(Dani, 1999). Um dos mtodos mais antigos, ecom menor utilizao prtica at hoje, o damicroinjeo. Este sistema consiste na introdu-o de uma pequena quantidade de DNA dire-tamente no ncleo da clula-alvo com o aux-lio de um aparelho denominado micromani-pulador. Apesar de algumas vantagens, como apequena quantidade de DNA necessrio, estemtodo no alcanou sucesso porque o nme-ro de clulas que pode ser transformado ge-ralmente muito baixo. Alm disso, a operaode um micromanipulador muito delicada erequer pessoal treinado e especializado. Em al-guns tecidos, a injeo direta de DNA na formaplasmidial (mtodo conhecido com injeo deDNA nu) com o auxlio de uma seringa mos-trou algum sucesso na transferncia gnica pa-ra um nmero limitado de clulas. As vanta-gens deste sistema so a facilidade de aplicaoe a simplicidade, embora um nmero muitopequeno de clulas (geralmente restritas ao lo-cal de aplicao da injeo) seja transformada(Kalil et al., 2001). Alm disso, a aplicao estrestrita a tecidos com um nvel baixo de endo-nuclease (como msculo e crebro). Um outromtodo fsico bastante conhecido a eletropo-rao. Neste sistema, pulsos eltricos alterna-dos so aplicados a clulas que esto em conta-to com uma soluo de DNA plasmidial. A cor-rente gerada capaz de formar poros na super-ficie celular, facilitando a entrada do materialgentico nas clulas. Este mtodo foi recente-mente adaptado para utilizao in vivo, au-mentando a eficincia da injeo de DNA nu.Entretanto, a introduo de plasmdios in vivogeralmente acarreta uma elevada resposta imu-ne contra o transgene, bem como contra toda amolcula de DNA. Por isto, estes sistemas vmsendo muito utilizados atualmente para o de-

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    senvolvimento de vacinas de DNA. Um outromtodo fsico de grande importncia a biols-tica ou gene gun (do ingls, arma gentica), on-de microesferas de ouro ou tungstnio cober-tas com DNA so aceleradas por um gs car-reador, que projeta estas esferas contra clulas,promovendo a entrada deste DNA no ncleodas clulas bombardeadas. Este sistema bas-tante eficiente, apesar de causar uma morte ce-lular elevada, e vem sendo adaptado para utili-zao in vivo nas vacinas de DNA.

    Os mtodos qumicos utilizam caractersti-cas do DNA e das membranas celulares para,utilizando compostos qumicos, garantir a en-trada de material gentico nas clulas. Em ge-ral, os compostos utilizados so catinicos, ouseja, possuem carga total positiva. Assim, estescompostos interagem com as cargas negativasdos grupamentos fosfato do DNA e formamcomplexos. Tais complexos tm tambm umacarga geral positiva, eliminando a repulso decargas existente entre o DNA e os domnios ex-tracelulares da maioria das protenas de mem-brana, que tambm tm carga negativa. Assim,a entrada do complexo na clula por mecanis-mos celulares normais, como a endocitose, facilitada. A co-precipitao de DNA com fos-fato de clcio foi um dos primeiros sistemasdescritos, e apresenta algumas vantagens pelasegurana, simplicidade e custo. No entanto, aeficincia e reprodutibilidade deste mtodo somuito baixas. Apesar disso, procedimentos detransferncia gnica com fosfato de clcio soimportantes at hoje, sendo bastante utilizadasna produo de vetores virais. Alguns dos pro-tocolos mais modernos de transferncia gnicaincluem a utilizao de compostos catinicosde origem lipdica, protica e amidoprotica(Brown et al., 2001). Tais mtodos apresentameficincias variveis, mas que podem ser bas-tante elevadas (Teixeira et al., 2001), alm defacilitar o escape do material nuclico da aodas enzimas degradativas lisossomais. A expres-so na maioria dos casos transiente, mas al-guns plasmdios j foram desenvolvidos e mos-traram uma expresso estvel. Entre as vanta-gens da utilizao de lipossomos e protenas po-demos citar a simplicidade, baixa imunogeni-cidade e, em certos casos (dependendo da com-posio do complexo), capacidade de direcio-namento destes vetores para clulas especficas.No entanto, a utilizao in vivo ainda limita-da pela especificidade reduzida e pela opsoni-zao dos complexos por protenas plasmticas,que diminuem muito a eficincia da transfeco.

    De todos os sistemas de transferncia gni-ca, os virais so os atualmente mais utilizadosnos estudos para desenvolvimento de protoco-los de terapia gnica, devido principalmente alta eficincia de transduo obtida com estesvetores. Todos os sistemas virais utilizados tra-balham com vrus deficientes em replicao,que so capazes de transferir seu material ge-ntico para clulas-alvo mas no conseguem re-plicar-se e continuar seu ciclo infeccioso (Ro-mano et al., 2000). Esta incapacidade de repli-cao obtida atravs da deleo de genes vi-rais indispensveis para a proliferao viral ecom substituio destes por genes de interesseteraputico. Os genes que apresentam algumafuno importante no desenvolvimento da pa-tologia tambm so deletados. Assim, as ques-tes referentes seguranca de vetores virais po-dem ser administradas de maneira a diminuiros riscos destes vetores. Inmeras famlias devrus j foram utilizadas como vetores de trans-ferncia gnica, mas grande nfase vem sendodada principalmente a quatro famlias: os ade-novrus, retrovrus (incluindo os lentivrus),vrus adeno-associado e, mais recentemente, osherpesvrus.

    Os adenovrus so bastante utilizados prin-cipalmente devido pouca patogenicidade e aotropismo amplo por clulas humanas. No en-tanto, a grande imunogenicidade e a expressognica transiente relacionadas a estes vetores li-mitam suas aplicaes. Atualmente, os adeno-vrus tm uma aplicao importante na trans-ferncia de genes suicidas a tumores. Os retro-vrus so outro grupo de importncia bastanteacentuada em estudos de terapia gnica. Suapropriedade de integrao ao genoma hospe-deiro acentua a possibilidade de garantir umaexpressso estvel do transgene. O procedi-mento de terapia gnica em seres humanos cu-jos resultados foram mais satisfatrios, at opresente momento, foi realizado utilizando ve-tores virais pertencentes a esta familia (Vrusda Leucemia Murina de Moloney) (Cavazzana-Calvo et al., 2000). Nos ltimos anos, o gnerolentivrus desta famlia tem recebido muitaateno, principalmente pela capacidade de in-fectar tambm clulas quiescentes. A produode retrovrus recombinantes onde ocorre asubstituio das protenas de envelope do vrusoriginal possibilitou a ampliao do tropismocelular destes vetores. No entanto, questes desegurana ainda so importantes na manipula-o de vetores virais baseados em vrus como oHIV. Assim, os lentivrus de mamferos no pri-

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    matas (como o Vrus da Imunodeficincia Feli-na FIV) tm tido uma importncia cada vezmaior, e so uma das alternativas mais interes-santes no desenvolvimento de novos vetores.Ainda assim, problemas como a mutagneseinsercional (causada pela integrao aleatriados retrovrus no genoma hospedeiro) e o silen-ciamento da expresso do transgene so ques-tes que merecem um estudo mais aprofundado.

    Os vrus adeno-associados (famlia Parvovi-ridade) possuem algumas vantagens em relaoaos demais sistemas virais, como integrao s-tio-especfica, tropismo ampliado e ausncia depatogenicidade. No entanto, a limitao do ta-manho do transgene carreado, a necessidade devrus auxiliares para a produo destes vetorese, em certos casos, a perda da capacidade de in-tegrao stio-dirigida tm limitado a utilizaodestes vetores. Por ltimo, devemos destacar aimportncia dos vetores baseados em herpesv-rus, que vm ganhando um destaque grandepelo seu tropismo bastante elevado por clulasnervosas. Assim, acredita-se que a utilizaodestes vrus para procedimentos de transfern-cia gnica em clulas do sistema nervoso sejauma alternativa bastante vivel no futuro.

    Os principais alvos da terapia gnica

    Tanto doenas hereditrias como adquiridastm sido alvos constantes de estratgias de te-rapia gnica. O tratamento de doenas huma-nas atravs da transferncia de genes foi origi-nalmente direcionado para doenas heredit-rias, causadas normalmente por defeitos emum nico gene, como a fibrose cstica, as he-mofilias, hemoglobinopatias e distrofias mus-

    culares. Entretanto, a maioria dos experimen-tos clnicos de terapia gnica atualmente emcurso est direcionada para o tratamento dedoenas adquiridas como a Aids, doenas car-diovasculares e diversos tipos de cncer (de ma-ma, de prstata, de ovrio, de pulmo e leuce-mias). Isso se deve basicamente ao fato de asdoenas adquiridas apresentarem uma alta in-cidncia na populao mundial quando com-parada com as freqncias das doenas mono-gnicas. Dessa forma, ensaios clnicos bem-su-cedidos para essas enfermidades poderiam tra-zer benefcios a um nmero muito maior depacientes. Mais da metade dos protocolos cl-nicos de terapia gnica hoje em curso apontampara o tratamento de algum tipo de cncer co-mo doena-alvo. Em segundo lugar, aparecemas doenas monognicas, correspondendo a12% dos protocolos clnicos aprovados, segui-das, em um grande crescente, pelas doenas in-fecciosas, contribuindo com 6% dos protoco-los, basicamente voltados para o combate daAids. Esses trs grandes grupos englobam quase90% de todos os pacientes que esto sob algumtipo de tratamento atravs da terapia gnica aoredor do mundo (Tabela 1) (Dani, 2000; TheJournal of Gene Medicine Website).

    Como toda nova proposta de tratamento, aterapia gnica deve ser testada em protocolospr-clnicos estudos in vitro, com clulas emcultura, seguidos por experimentao em mo-delos animais e em protocolos clnicos, quese desenvolvem em uma srie de etapas ou fa-ses. Na fase I, os estudos envolvem um peque-no nmero de pacientes e avaliam sua reao adiferentes formas de administrao do trata-mento (via, dose, freqncia), principalmentecom relao a aspectos de segurana. Os proto-

    Tabela 1Nmero de protocolos clnicos em curso e nmero de pacientes em tratamento por grupo de doenas-alvo para a terapia gnica.

    Doena-alvo Nmero de Porcentagem (%) Nmero de Porcentagem (%)protocolos pacientes

    Cncer 376 63.1 2.389 69.0Doenas monognicas 75 12.6 309 8.9Doenas infecciosas 38 6.4 408 11.8Doenas vasculares 46 7.7 59 1.7Outras doenas 11 1.8 19 0.5Uso de genes marcadores 48 8.1 274 7.9Voluntrios saudveis 2 0.3 6 0.2Total 596 100 3.464 100

    Fonte: The Journal of Gene Medicine Website, setembro 2001.

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    colos de fase II envolvem um nmero de pa-cientes um pouco maior (cerca de 20 a 50) e,alm de continuar a anlise de aspectos de se-gurana, iniciam a avaliao da eficincia dotratamento. Tendo sido aprovado nesta fase,tem incio a fase III do protocolo, que atingeum nmero bem maior de pacientes (podendochegar a milhares) e compara, empregando m-todos estatsticos adequados, a nova propostaem estudo com um tratamento padro, j bemestabelecido. E assim, um protocolo clnico po-de alcanar a quarta e ltima fase onde a tera-pia a ser disponibilizada passa a ser produzidaem larga escala com o objetivo de comerciali-zao e entrada no mercado consumidor.

    O primeiro protocolo a alcanar a terceirafase de ensaio clnico visa ao tratamento de umtumor cerebral maligno, o glioblastoma. Nesseprocedimento, clulas de camundongos modi-ficadas in vitro para produzir partculas retro-virais especficas so injetadas diretamente nolocal exato do tumor no crebro do paciente.Os retrovrus produzidos por essas clulastransduzem somente clulas em diviso, e, por-tanto, atingem diretamente as clulas tumoraise as clulas vasculares que irrigam essa regio.Uma vez dentro das clulas em diviso, os re-trovrus codificam um gene especfico (HSTk,gene da timidina quinase do vrus herpes sim-plex) que ir afetar e bloquear a sntese de DNAnessas clulas, levando-as a morte. Outra abor-dagem interessante no tratamento do cncer o uso de vetores de transferncia gnica comovacinas tumorais. Alguns protocolos clnicospara melanomas malignos e carcinomas de ca-bea e pescoo baseiam-se na injeo de deter-minados vetores na massa tumoral, capazes deexpressar antgenos especficos de leuccitoshumanos (HLA, human leukocyte antigen). Es-ses antgenos rotulam as clulas tumorais co-mo estranhas ao ambiente do organismo emquesto e permitem o recrutamento de clulasdo sistema imunolgico do prprio indivduopara combater o cncer. As abordagens para otratamento da Aids atravs da terapia gnicatambm tm se aproveitado do modelo de ve-tores vacinais, onde retrovrus que codificampara segmentos gnicos do HIV so injetados,em via intramuscular, induzindo um aumentona resposta imunolgica de linfcitos T citot-xicos contra o vrus. Outros protocolos quetambm tm avanado com um sucesso consi-dervel so direcionados para o tratamento dasdoenas monognicas, como 1) a deficincia daenzima adenosina desaminase (ADA) que oca-

    siona um comprometimento severo do sistemaimunolgico do indivduo; 2) a fibrose csticaque a doena hereditria letal mais comumnos Estados Unidos e; 3) as hemofilias A e Bque ocupam uma posio de destaque no cen-rio mundial de doenas hereditrias e apresen-tam uma srie de vantagens como modelo deestudo para a terapia gnica (Anderson, 1998).

    Em 1994, 50 protocolos de terapia gnica jtinham sido aprovados e eram administrados a200 pacientes. Hoje, sete anos mais tarde, pertode 600 ensaios clnicos esto em curso e dispo-nveis a aproximadamente 3.500 pacientes. OsEstados Unidos e a Inglaterra juntos respon-dem por mais de 85% dos protocolos e somen-te 5% de todos os protocolos aprovados sorealizados fora dos Estados Unidos ou da Eu-ropa. O Brasil no apresenta qualquer protoco-lo clnico em curso aprovado no campo da te-rapia gnica at o presente momento. O papelnacional no mbito mundial da transfernciagnica ainda bastante incipiente, porm pro-missor. Estudos pr-clnicos in vitro j estosendo desenvolvidos nas principais universida-des e centros de pesquisa do pas, basicamenteem So Paulo, no Rio de Janeiro e no Rio Gran-de do Sul, com amplas perspectivas de expan-so para modelos in vivo e talvez, futuramente,para a proposta de protocolos clnicos. Aindana Amrica do Sul, o Chile e principalmente aArgentina tm desenvolvido estudos pr-clni-cos consistentes e avanando para modelos ani-mais com resultados extremamente promisso-res na terapia contra o cncer atravs da vaci-nao. Fora do eixo Amrica do Norte e Euro-pa, pases como Japo, Austrlia e Israel tam-bm tm contribudo significativamente narea da terapia gnica para algumas doenas(OBA, Office of Biotechnology Activities).

    Passados mais de dez anos desde a realiza-o do primeiro protocolo clnico, em maio de1990, no National Institutes of Health (NIH,Bethesda, EUA), o panorama das fases dos pro-tocolos clnicos aprovados em curso bastantedesfavorvel. Menos de 1% dos protocolos cl-nicos (apenas quatro at o momento) avana-ram pelas fases I e II que testam a segurana e aeficcia do mtodo, respectivamente (Tabela2). Alm disso, no existe um nico procedi-mento que tenha obtido xito considervel,atingindo a fase IV e que esteja consequente-mente na iminncia de alcanar o mercado pa-ra comercializao. Alguns dos pontos crticosque tm dificultado o avano da terapia gnicaso discutidos no tpico seguinte.

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    Problemas, perspectivas e o futuro da terapia gnica

    Apesar dos diversos protocolos clnicos apro-vados para a transferncia de genes em huma-nos, os benefcios reais alcanados at o mo-mento com a terapia gnica so frustrantes eesto muito aqum das propostas iniciais.Muitas barreiras ainda necessitam ser trans-postas para que sejam alcanados resultadossatisfatrios. Os mtodos de transferncia g-nica disponveis, ainda que variados, so pou-co eficientes e apresentam srias limitaesquanto ao direcionamento celular. O desenvol-vimento de sistemas de transferncia gnicahbridos que somem vantagens de vetores vi-rais e no-virais pode proporcionar uma me-lhora na eficincia de transfeco e na manu-teno a longo prazo da expresso do gene deinteresse in vivo. Alm disso, a utilizao de ve-tores virais em ensaios clnicos em humanoslevanta questes sobre a segurana do mtodoem relao a mutagnese insercional e o altopotencial imunognico desses vrus. A baixaexpresso e a ausncia de mecanismos precisosde regulao do gene de interesse na clula-al-vo dificultam ainda mais o avano da terapiagnica como ferramenta teraputica. O estudodos mecanismos relacionados regulao daexpresso gnica pode permitir uma modula-o mais refinada das regies promotoras e aconseqente ativao/represso do gene de in-teresse in vivo. Outro ponto importante e quetambm requer maior ateno se refere bio-logia da clula-alvo. Uma melhor caracteriza-o e o desenvolvimento de tcnicas para aidentificao e o isolamento dessas clulas po-der facilitar o direcionamento dos vetores eaumentar a eficincia de transfeco (Verma &Somia, 1997).

    Alm disso, a exemplo do que ocorre comtoda nova tecnologia, a terapia gnica tambmtem levantado diversas discusses nos planosticos e filosficos que permanecem em deba-te. Existem hoje grandes discusses acerca daspropostas para a aprovao dos primeiros en-saios clnicos de terapia gnica a serem realiza-dos durante a vida intra-uterina ou ainda emclulas germinativas como forma de tratamen-to para doenas hereditrias. Muitos esforosno campo da pesquisa bsica ainda so neces-srios para que a terapia gnica possa realmen-te proporcionar uma melhora significativa esem riscos aos pacientes e, alm disso, repre-sentar uma prtica rotineira bem-sucedida nofuturo. Infelizmente, os conceitos e as idias emtorno da terapia gnica esto, hoje, muito maisavanados do que as metodologias necessriaspara satisfazer seus objetivos (Zanjani & An-derson, 1999).

    Interaes entre reas multidisciplinarescomo a biologia molecular, biologia celular,imunologia, fisiologia e gentica clnica serode extrema importncia para uma melhor com-preenso dos processos relacionados terapiagnica. O aprendizado nesses mais de dez anosde estudo em todas essas reas foram impres-cindveis para a reformulao das perguntas eo redirecionamento dos objetivos a serem al-canados com a terapia gnica. Apesar das atuaisdificuldades e da falta de conhecimento em di-versos tpicos, a continuidade da prtica da te-rapia gnica ir certamente revolucionar a pre-veno e o tratamento de diversas doenas quehoje assolam a humanidade.

    O conhecimento cientfico deve ser acom-panhado pela sabedoria, o que no tem sidohabitual na histria da humanidade. Grandesempresas tm desenvolvido e tomado possedessas descobertas, e seu emprego em ativida-

    Tabela 2 Nmero de protocolos clnicos em curso e nmero de pacientes em tratamento por fase de andamento dos ensaios.

    Fase do protocolo Nmero de Porcentagem (%) Nmero de Porcentagem (%)clnico protocolos pacientes

    Fase I 395 66.3 1.802 52.0Fase I/II 125 21.0 904 26.1Fase II 68 11.4 507 14.6Fase II/III 4 0.7 Fase III 4 0.7 251 7.2Total 596 100 3.464 100

    Fonte: The Journal of Gene Medicine Website, setembro 2001.

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    des economicamente importantes pode noacompanhar o interesse da sociedade como umtodo. Estes assuntos devem ser discutidos am-plamente, de modo a permitir um maior nvelde conscincia da populao em geral. Nos pa-ses mais desenvolvidos, onde a comunidadeacompanha melhor o progresso cientfico, temsido observada uma diviso muito grande comrelao s opinies sobre a terapia gnica. Osopositores temem, por um lado, as conseqn-cias de um processo novo e pouco previsvel, epor outro sua utilizao em uma nova onda deeugenia, colocando freqentemente a questoestamos brincando de ser Deus?. A corrente afavor da experimentao gentica argumenta

    que esta questo deveria ser igualmente aplica-da utilizao de medicamentos e outros pro-cedimentos clnicos que alteram o curso nor-mal de qualquer doena, e que o j extenso de-senvolvimento destas pesquisas e seu grandepotencial para a cura de doenas que afetamgrande parte da humanidade continuam justi-ficando o investimento. A grande questo seria:existem limites para a experimentao cientfi-ca? Finalmente, deve ser lembrado que qual-quer mal que possa resultar da pesquisa para aespcie humana no ser causado por qualquerdescoberta, mas sim da utilizao que o ho-mem fizer dela.

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