Nao Reconhecimento Da Uniao de Facto

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Não reconhecimento da União de Facto: uma forma de discriminação contra as mulheres Ana Cristina Monteiro Publicado em Outras Vozes, nº 20, Agosto de 2007 Os antecedentes No passado dia 29 de Julho, no canal televisivo STV, a cidade de Maputo foi colhida de surpresa perante um caso que, embora não sendo uma ocorrência rara, normalmente não é falado nem divulgado nos media nacionais. Trata-se do sucedido a Catarina, de 30 anos, que vivia numa união de facto há doze anos. Com efeito, a decisão de coabitar foi resultado de uma gravidez que também a afastou dos estudos. Durante todo o tempo em que moraram juntos, o seu companheiro prometeu e garantiu a ela e à família que se casaria assim que as condições financeiras o permitissem. Nos primeiros anos de casada, devido ao desemprego do companheiro e tendo que sustentar a família que entretanto crescia ainda mais (actualmente tem três filhos desta união), desenvolveu pequenas actividades lucrativas no sector informal. Viajava por vezes de comboio durante longas horas para a África do Sul, a fim de trazer de lá pequenas quantidades de produtos alimentares para revender. Por volta de 2004 o companheiro da Catarina finalmente conseguiu ter um emprego e desde então a vida do casal mudou bastante, tendo podido arrendar uma casa maior, adquirido vários bens e inclusive iniciado uma obra no bairro Patrice Lumumba, no município da Matola. Perante o evidente aumento dos rendimentos, Catarina esperava que finalmente se pudessem casar mas, quando indagado sobre o assunto, o companheiro respondia que estava a organizar-se. Enquanto esperava ela engravidou pela terceira vez, o que foi mais um pretexto acrescido: “agora não porque estás grávida!” Finalmente no dia vinte e oito de Junho, conforme conta Catarina, o companheiro chegou bastante cedo a casa e depois do jantar pediu-lhe que o abraçasse com muita força e sussurrou-lhe ao ouvido: “Eu sempre te vou amar”! Ela ficou feliz e pensou que o dia do casamento estivesse para breve. No dia seguinte o companheiro saiu logo pela manhã para o trabalho e a Catarina recebeu uma visita que a informou que aquele homem que lhe prometera casamento havia 12 anos e com o qual teve três filhos, ia contrair matrimónio com outra mulher. Apesar de ter ido à Conservatória tentar impedir o casamento não teve sucesso nesta diligência, pois o reconhecimento das uniões de facto 1

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  • No reconhecimento da Unio de Facto: uma forma de discriminao contra as mulheres

    Ana Cristina Monteiro

    Publicado em Outras Vozes, n 20, Agosto de 2007 Os antecedentes No passado dia 29 de Julho, no canal televisivo STV, a cidade de Maputo foi colhida de surpresa perante um caso que, embora no sendo uma ocorrncia rara, normalmente no falado nem divulgado nos media nacionais. Trata-se do sucedido a Catarina, de 30 anos, que vivia numa unio de facto h doze anos. Com efeito, a deciso de coabitar foi resultado de uma gravidez que tambm a afastou dos estudos. Durante todo o tempo em que moraram juntos, o seu companheiro prometeu e garantiu a ela e famlia que se casaria assim que as condies financeiras o permitissem. Nos primeiros anos de casada, devido ao desemprego do companheiro e tendo que sustentar a famlia que entretanto crescia ainda mais (actualmente tem trs filhos desta unio), desenvolveu pequenas actividades lucrativas no sector informal. Viajava por vezes de comboio durante longas horas para a frica do Sul, a fim de trazer de l pequenas quantidades de produtos alimentares para revender. Por volta de 2004 o companheiro da Catarina finalmente conseguiu ter um emprego e desde ento a vida do casal mudou bastante, tendo podido arrendar uma casa maior, adquirido vrios bens e inclusive iniciado uma obra no bairro Patrice Lumumba, no municpio da Matola. Perante o evidente aumento dos rendimentos, Catarina esperava que finalmente se pudessem casar mas, quando indagado sobre o assunto, o companheiro respondia que estava a organizar-se. Enquanto esperava ela engravidou pela terceira vez, o que foi mais um pretexto acrescido: agora no porque ests grvida! Finalmente no dia vinte e oito de Junho, conforme conta Catarina, o companheiro chegou bastante cedo a casa e depois do jantar pediu-lhe que o abraasse com muita fora e sussurrou-lhe ao ouvido: Eu sempre te vou amar! Ela ficou feliz e pensou que o dia do casamento estivesse para breve. No dia seguinte o companheiro saiu logo pela manh para o trabalho e a Catarina recebeu uma visita que a informou que aquele homem que lhe prometera casamento havia 12 anos e com o qual teve trs filhos, ia contrair matrimnio com outra mulher. Apesar de ter ido Conservatria tentar impedir o casamento no teve sucesso nesta diligncia, pois o reconhecimento das unies de facto

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  • na nova Lei de Famlia tem um alcance limitado e no se prev que possa constituir impeditivo de casamento. Infelizmente, o caso da Catarina no est isolado. A lei no est a proteger a forma de unio mais comum no pas.

    O processo de elaborao da Lei de Famlia A reviso e aprovao da lei da famlia em 2004, surge na sequncia de presses pela sociedade civil porque a lei ento em vigor continha alguns dispositivos discriminatrios contra as mulheres, estatuindo por exemplo, que o homem era o chefe da famlia, que cabia a ele administrar os bens do casal, incluindo os dotais. Estes e outros artigos da lei chocavam com os princpios da igualdade de direitos e de tratamento entre mulheres e homens preconizados na Constituio da Repblica, assim como nos diversos instrumentos internacionais ratificados pelo governo de Moambique. Outro aspecto importante que impulsionou a reviso desta lei foi sem dvida o no reconhecimento legal das relaes entre pessoas no unidas por via do matrimnio, mesmo vivendo longos anos. Para esta lei, no havendo matrimnio, e chegada a hora da dissoluo da relao, no era possvel fazer-se partilha de bens, embora estes tivessem sido adquiridos por duas pessoas, o que por sua vez dificultava o exerccio de uma justia equitativa e a favor do cidado. Paralelamente, as estatsticas mostravam e mostram at hoje que a maioria das nossas famlias com ou sem instruo, nas zonas urbanas ou rurais, no se constitua somente atravs do matrimnio, mas sim de outras formas, ainda que no registadas ou legalmente reconhecidas. Esta era mais uma forma de discriminao contra as mulheres, acompanhada de uma continuidade da violncia. Esta era praticamente legitimada pelo poder legislativo uma vez que elas eram obrigadas a suportar as situaes mais complicadas de violao dos seus direitos humanos, pois, em caso de separao, no se falava em diviso de bens e eram obrigadas a ir-se embora sem absolutamente nada para recomear com uma nova vida, mesmo que, como em alguns casos, tivessem tido vinte anos de vida em comum. Para contornar esta situao que perpetuava a excluso das mulheres do acesso aos recursos, as organizaes femininas de defesa dos direitos humanos das mulheres, a bem de uma cultura jurdica em Moambique, no mbito da assistncia jurdica e patrocnio judicirio, socorriam-se do instituto da co-propriedade (artigo 1403 e seguintes do Cdigo Civil, verso anterior aprovao da Lei de Famlia), interpondo aco de diviso de coisa comum segundo o artigo 1052 e seguintes do Cdigo de Processo Civil, fazendo valer que determinado bem mvel ou imvel era da pertena de duas pessoas, neste caso a mulher e o homem. Porm, este pretexto no era visto com bons olhos pelo juiz cvel, imbudo de valores culturais e tradicionais, segundo os quais a mulher que no tem um emprego formal em nada contribui para as despesas do lar e por conseguinte a partilha de bens no faz sentido, pois estes pertencem ao homem.

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  • As grandes alteraes que se propuseram centravam-se fundamentalmente na definio de famlia, nas modalidades do casamento e seus efeitos quanto chefia, ao nome, representao e administrao dos bens do casal, entre outras. O que importa frisar que a sociedade civil necessitava de encontrar um enquadramento legal para as famlias no constitudas por via do matrimnio, de modo a que em caso de dissoluo a diviso de bens fosse feita por igual, por um lado, e por outro que esta unio tivesse os mesmos efeitos que um casamento civil, constituindo, por exemplo, impedimento para a celebrao de um outro casamento. Esta posio constitua a proteco absoluta para os direitos das mulheres j que este tipo de unio maioritria(1) e porque a deciso de registar ou no o casamento no depende delas. Em muitos casos, as mulheres vivem durante anos sem poder persuadir os companheiros a contrair matrimnio. Vrias ideias foram surgindo no processo de discusso e para uns, sendo o casamento um acto voluntrio, as partes deviam decidir sobre o destino a dar sua relao, vivendo no unido por matrimnio quem assim o pretendesse, por conta e risco prprio. Nesta ordem de ideias, defendia-se que a sociedade devia compreender que a forma normal de estar era na situao de casamento, sendo penalizadas as pessoas que vivessem em condio diferente. Esta linha de raciocnio penaliza directamente as mulheres que, como vimos, no tm o poder de negociar a sua condio, a sua posio social, cabendo sempre ao homem decidir quando e com quem pretende contrair matrimnio. A mulher contrai matrimnio porque o homem assim o quer ou porque a Igreja que ambos frequentam assim o definiu, mas quase nunca por sua deciso, mesmo sabendo que esta a nica forma de estar que lhe garante segurana jurdica. Foi considerando estas situaes que as organizaes de defesa dos direitos das mulheres se posicionaram a favor de uma lei que previsse um instituto para regulamentar as formas de estar que no fosse simplesmente o casamento, mas com os mesmos efeitos que este, de modo a dar maior proteco jurdica s mulheres.

    A Unio de Facto na lei e os seus efeitos Finalmente, no ano 2004, a Lei da Famlia foi aprovada, prevendo no seu artigo 202 a unio de facto e os seus efeitos no artigo 203, que estatuem o seguinte: Artigo 7 Noo de casamento O casamento a unio voluntria entre um homem e uma mulher, com o propsito de constituir famlia, mediante comunho plena de vida. Artigo 202 Unio de facto noo 1. A Unio de facto a ligao singular existente entre um homem e uma mulher, com

    carcter estvel e duradouro, que sendo legalmente aptos para contrair casamento no o tenham celebrado.

    2. A Unio de facto pressupe a comunho plena de vida pelo perodo de tempo superior a um ano sem interrupo.

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  • Da leitura destas definies podemos concluir que os requisitos da unio de facto so a idade igual ou superior a 18 anos, a coabitao por mais de um ano e que esta relao seja singular e de domnio pblico. Os requisitos do casamento so igualmente a idade igual ou superior a 18 anos e que no conste nenhum dos impedimentos preconizados pela lei como: A demncia notria, a interdio ou inabilitao por anomalia psquica, o casamento anterior no dissolvido, o parentesco na linha recta, o parentesco no segundo grau da linha colateral, a afinidade na linha recta, a condenao de um dos nubentes, o prazo internupcial, o parentesco at ao quarto grau da linha colateral, o vnculo da tutela, curatela ou administrao legal de bens, o vnculo que liga o acolhido aos cnjuges da famlia de acolhimento, pronncia do nubente pelo crime de homicdio doloso, ainda que no consumado, contra o cnjuge do outro, enquanto no houver despronncia ou absolvio por deciso passada em julgado e a falta de consentimento dos pais ou tutor do nubente menor. importante constatar que o casamento anterior no dissolvido constitui impedimento para a celebrao de outro, mas a unio de facto j no consta da lista dos impedimentos ao casamento. Por outras palavras, pode dizer-se que se A e B vivem em unio de facto h 20 anos, nada impede que A contraia matrimnio com C, o que no poder acontecer no caso de A ser casado com B, pois o vnculo matrimonial vai constituir impedimento. Significa ento que os efeitos do casamento so diferentes dos efeitos da unio de facto, embora os dois institutos, a nosso ver, concorram para a constituio da famlia, ou seja, constituem fonte das relaes de famlia. Vejamos o que diz a lei: Artigo 203 Efeitos da Unio de Facto 1. A Unio de Facto releva para efeitos de presuno de maternidade e paternidade, nos

    termos do disposto na alnea c) do n 2 do artigo 225 e na alnea c) do n 2 do artigo 277.

    2. Para efeitos patrimoniais, a unio de facto aplica-se o regime da comunho de adquiridos.

    Artigo 413 Pessoas obrigadas a alimentos b) O que se encontre em unio de facto. Artigo 424 Apangio em caso de unio de facto ou comunho de vida 1. Em caso de unio de facto ou de comunho de vida por mais de 5 anos, sempre que se

    mostrar necessrio para a subsistncia, o companheiro sobrevivo tem direito a ser alimentado pelo correspondente a um oitavo dos rendimentos deixados pelo autor da sucesso.

    Artigo 93 Efeitos do casamento quanto s pessoas dos cnjuges Os cnjuges esto reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, confiana, solidariedade, assistncia, coabitao e fidelidade.

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  • Efeitos do casamento quanto aos bens Quando se fala dos efeitos do casamento quanto aos bens est-se a referir aos regimes de bens no casamento e sua implicao na partilha aquando da dissoluo do mesmo. Frise-se que no existe um regime obrigatrio, cabendo s partes escolher livremente o regime que lhes aprouver, de entre os seguintes:

    Regime da comunho de adquiridos Regime da comunho geral de bens Regime da separao

    Como nos referimos anteriormente, o casamento e a unio de facto diferem principalmente quanto aos efeitos, pois segundo o artigo 203, nmeros 1 e 2, a unio de facto importa para efeitos de paternidade e maternidade, assim como para a partilha de bens. Por outras palavras, equivale a dizer que nenhuma das partes pode recorrer justia para evocar todos os pressupostos previstos no artigo 93. Significar ento que quem vive em unio de facto pode faltar com a confiana, o respeito, fidelidade e a solidariedade? Continuando, de assinalar que na unio de facto o regime da comunho de adquiridos tem carcter imperativo, sendo que as partes no tm o direito livre escolha. De igual maneira, na unio de facto, o direito a alimentos cessa aps o trmino da mesma e o companheiro que deles carea no tem o direito a reclam-la, diferentemente do que acontece entre pessoas unidas pelo vnculo matrimonial. No que diz respeito ao direito sucessrio, tambm o companheiro sobrevivo no tem direito herana, havendo necessidade de regulamentao na reviso que decorre sobre a lei das sucesses; o mesmo j no acontece no casamento, onde o sobrevivo meeiro.

    As outras formas de unio tambm no esto protegidas Embora a Lei de Famlia, no seu prembulo, refira que tem como princpio o respeito pela diversidade cultural do pas, os chamados casamentos tradicionais ou religiosos s so plenamente reconhecidos aps a sua transcrio. Portanto, o reconhecimento destas formas de unio depende da transcrio, uma deciso que pouco provavelmente as pessoas que no tiverem escolhido o casamento civil tomaro. Neste contexto, se no forem transcritos, os casamentos tradicional e religioso tm o mesmo efeito da unio de facto. Ou seja, em termos prticos, no se verifica o respeito e a dignificao que a lei pretende atribuir a estas formas de casamento.

    Concluses Est claro que h necessidade de regulamentar a unio de facto ou outro instituto que regule as relaes entre pessoas no unidas por matrimnio. O ideal seria que este instituto tivesse os mesmos efeitos jurdicos que o casamento civil, tanto ao nvel das pessoas envolvidas como ao nvel de bens, a bem de uma justia equitativa.

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  • O argumento de que se deve dar s pessoas que no pretendam contrair matrimnio a oportunidade de viver em unio de facto no aceitvel, se tivermos em conta que, como dissemos anteriormente, a maior parte das mulheres na nossa sociedade no tem capacidade de negociar a sua condio social, sujeitando-se vontade do parceiro. Olhando para os efeitos da unio de facto (Artigo 203 da Lei de Famlia), constatamos que o n 1, sobre a presuno de maternidade e paternidade, embora resolva o problema imediato do registo dos menores e a consequente penso de alimentos, pode ser sanado atravs da impugnao da maternidade e da paternidade (artigos 214 e 231 in fine), o que significa que se trata de uma soluo apenas aparente (vide artigo 204 e seguintes sobre a filiao). Quanto aos efeitos patrimoniais da unio de facto (artigo 203, n 2), encontramos sim uma verdadeira revoluo e de aplicao mais prtica em relao co-propriedade pois, para esta, as partes tem de ser simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa, enquanto que na unio de facto no importa a titularidade da coisa, desde que tenha sido adquirida na constncia da unio. O problema que surge ento em relao prova da unio. Haver ou no necessidade de registo da mesma e quem tem competncia para tal? O registo, o notrio ou apenas o bairro onde residem as partes? Certamente o legislador estaria a obrigar o registo de toda a relao e talvez se colocasse o problema da vontade das partes. Seja como for, julgamos que estas questes merecem muita ateno e reflexo sob pena de continuarmos a discriminar as mulheres. Constata-se ainda que a diferena de tratamento resultante da prpria lei traduz-se por sua vez na desigualdade de direitos entre os cidados (principalmente do sexo feminino), uma vez que s no casamento existe a segurana absoluta em termos legais. Portanto, a lei continua a tratar o casamento civil como um privilgio e as pessoas casadas civilmente so privilegiadas em relao s que vivem em unio de facto, uma vez que a prpria Lei da Famlia (2, n 2) estabelece que a unio singular, estvel livre e notria entre um homem e uma mulher apenas reconhecida para efeitos patrimoniais. No nosso entender esta situao abre espao para o desrespeito para com as mulheres em particular e para com a sociedade em geral. Por ltimo, gostaramos de fazer notar em resumo que com a unio de facto o problema do nosso grupo alvo continua, havendo necessidade de garantir a este grupo maior dignidade e o desfrute dos seus direitos humanos. Notas: 1 Segundo o Inqurito Demogrfico e de Sade (INE), 2003, 54,8% das mulheres inquiridas declararam viver em unio de facto, contra 30,8 dos homens (http://www.ine.gov.mz/populacao/estatisticas_genero/populacao/estatisticas_genero/distri_percent).

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