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Não de sv ie o ol ha r de . . .

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título original  The Warden© 2016 by HarperCollins Publishers. Publicado com a autorização da  HarperCollins Children’s Books, uma divisão da HarperCollins Publishers. © 2017 Vergara & Riba Editoras S.A.

Plataforma21 é o selo jovem da V&R Editoras

edição  Fabrício Valério e Flavia Lago editora-assistente  Natália Chagas Máximopreparação  Juliana Bormio de Sousarevisão  Luciana Araujodireção de arte  Ana Soltdiagramação  Juliana Pellegrinicapa © 2013 by Dougal Waters / Getty Images

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Roux, Madeleine

O diretor / Madeleine Roux  ; tradução Alexandre Boide  

-- São Paulo : Plataforma21, 2017. (Coleção asylum)

Título original: The warden.

ISBN 978-85-92783-06-8

1. Ficção juvenil 2. Suspense - Ficção I. Título. II. Série.

16-08267   CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção : Literatura juvenil 028.5

Todos os direitos desta edição reservados à 

VERGARA & RIBA EDITORAS S.A.Rua Cel. Lisboa, 989 | Vila MarianaCEP 04020-041 | São Paulo | SPTel.| Fax: (+55 11) 4612-2866vreditoras.com.br | [email protected]

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A última tentação é a traição em redobrado:

Praticar o que é certo por motivo errado.

– t. s. eliot, Murder in the Cathedral

Sabe como eu defino “idealismo”? 

O último luxo da juventude.

– doug Wright, Quills

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E ssa inquietante menina ainda exibe uma forte tendência ao altruísmo. Sua

ingênua obsessão em fazer o bem pode se revelar um incômodo ou uma ajuda

– só preciso convencê-la de que, aceitando minha visão, ela vai estar de fato fa-

zendo o bem. Minha observação sobre o comportamento dela continua, em especial

no que diz respeito ao Catalisador. Considerei sua compaixão pela condição dele

perturbadora a princípio, mas não, vou usar a proximidade cada vez maior entre os

dois a meu favor.

– Trecho dos diários do diretor Crawford (junho)

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Hospital Brookline, segundo trimestre de 1968

E stava chovendo. Caindo um temporal, na verdade – um 

fato que Madge, que viajou de ônibus ao lado de Jocelyn 

durante as seis horas anteriores, fazia questão de reiterar a cada 

dois minutos. 

– Sabe quanto tempo demorei para ajeitar meus cachos hoje? 

– suspirou Madge, de pé ao lado de Jocelyn sobre o asfalto, se-

gurando  uma  cópia  da  revista  Photoplay  sobre  a  cabeça  para  

tentar deter os pingos de chuva. A revista estava dobrada no meio, 

fazendo a água escorrer para a parte frontal do casaco dela. – Lá 

se vai minha ideia de causar uma boa impressão. 

Jocelyn deu uma risadinha irônica, quentinha e seca debai-

xo  de  um  horroroso,  mas  inegavelmente  prático,  capuz  im-

permeável de plástico. “Parece que tem um preservativo na sua 

cabeça, sua tonta”, Madge dissera no ônibus, franzindo o nariz 

atrás  de  sua  Photoplay,  para  que  tanto  ela  como  a  imagem  co-

lorida  de  Jackie  Kennedy  estampada  na  revista  mostrassem  a 

Jocelyn sua expressão de desaprovação.

– Quem é a tonta agora? – comentou Jocelyn, quando elas se 

viraram para percorrer o caminho até a entrada, atravessando a 

nuvem de fumaça que o escapamento do ônibus deixou para trás 

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como uma última e indiferente despedida. O motorista olhou 

para as duas várias vezes durante a viagem. Jocelyn não deu mui-

ta  atenção  a  princípio,  e  depois  pensou  que  talvez  ele  apenas 

estivesse admirando Madge. A garota era mesmo admirável.

Depois de alguns resmungos de Madge, elas estavam baten-

do os saltos pelo calçamento de pedra da entrada do hospital.  

O local parecia… bom, menos alegre do que nos panfletos que os 

recrutadores entregaram a elas nas entrevistas anteriores à con-

tratação. Jocelyn e Madge tinham se formado juntas na Grace 

Point, em Chicago, de onde saíram com bacharelado em Ciên-

cia da Enfermagem – Jocelyn com honras, Madge com estilo.

No panfleto, o Brookline brilhava como um farol no alto de um 

rochedo, com janelas brancas, imaculadas e cintilantes, e grama-

dos bem aparados. Os pacientes sorriam nos leitos e nas cadeiras 

de rodas. As enfermeiras exibiam expressões radiantes de modés-

tia e sabedoria nos corredores. Os médicos examinavam atenta-

mente os prontuários, com os bigodes franzidos para demonstrar 

toda sua concentração.

– Minha nossa – murmurou Madge, parando exatamente ao 

lado de Jocelyn.

– Não é tão ruim – argumentou Jocelyn. Ela forçou um sor-

riso, primeiro para o hospital, depois para Madge. – Se anima, 

flor. Estamos contratadas. Somos profissionais. 

– Profissionais solteiras – disse Madge, com uma risadinha. – 

Ai, eu fiquei vermelha, não é? Acho que estou vermelha. É bom 

demais para ser verdade. – Ela deu uma boa olhada ao redor, 

mas seu sorriso esmaeceu um pouco quando mais uma rajada 

de vento chuvoso atingiu seu rosto. Jackie Kennedy estava em 

um estado ainda pior. – E, agora, está na hora de dizer o que eu 

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tanto queria: nós não estamos mais no Kansas. Ou melhor, em 

Chicago. Você entendeu. Mas a chuva ainda é a mesma.  

–  Está  falando  sério?  Somos  praticamente  nova-iorquinas 

agora – provocou Jocelyn. Grades de ferro fundido cercavam a 

frente do hospital. A construção ficava afastada da cerca de pro-

teção, em um ponto mais elevado, talvez um pouco desnivelada, 

o que poderia ser uma impressão causada pela proximidade das 

nuvens escuras ou por um problema nas fundações do edifício. 

À  esquerda,  ficavam  os  prédios  do  New  Hampshire  College, 

mas  apenas  alguns estudantes perambulavam pela parte  cen-

tral do campus, com as cabeças escondidas pelos guarda-chu-

vas. Jocelyn voltou-se para a grade e se aproximou do portão, 

empurrando-o pela maçaneta, fazendo uma careta ao ouvir o 

som de dobradiças enferrujadas. – Ah, sim. Bem cosmopolita.  

– Vai querer ser a estraga-prazeres? Vem, vamos entrar. Es-

tou encharcada. – Madge foi na frente, segurando com uma das 

mãos a revista sobre os cabelos loiros e com a outra arrastando 

sua única mala. – O que você está esperando? Quero conhecer 

os outros funcionários. E os médicos! E o meu futuro marido! 

Jocelyn revirou os olhos, mas não conseguiu conter o sorri-

so; Madge tinha razão, era um dia importante para as duas. Ela 

apertou o passo sobre o calçamento de pedra, e o que parecia 

ser uma silhueta atraiu o seu olhar para uma janela mais aci-

ma. Apesar de desaparecer num instante, Jocelyn não conse-

guiu evitar a sensação de que estava sendo observada enquanto 

entrava no hospital.

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O diretor Crawford ergueu os olhos rapidamente ao virar 

a página de sua ficha de candidatura.

Jocelyn se remexeu na cadeira. Não estava tudo acertado? Ela 

acreditava que já estivesse contratada. Por que mais faria uma 

viagem tão cansativa de Illinois até New Hampshire? O trajeto 

de  ônibus  até  lá,  sofrendo  com  o  frio  e  os  sacolejos,  não  foi 

exatamente uma excursão de férias.

Não fica se remexendo, pensou consigo mesma. E não abaixa os olhos.

A  sala  do  diretor  era  um  tanto  apinhada  para  o  espaço  de 

trabalho  de  um  médico.  Ela  sempre  imaginou  que  homens  

como ele mantivessem a disciplina e a rigidez em todos os aspec- 

tos da vida. Mas havia papéis transbordando de todos os arquivos e  

gavetas, e de forma quase aleatória. Seus olhos palpitaram. Ela era 

uma pessoa ordeira por natureza, uma característica que segundo 

sua orientadora na faculdade a tornava uma excelente candidata 

a enfermeira. A atenção aos detalhes era absolutamente necessá-

ria – a enfermagem era uma carreira difícil e rígida, com longas 

horas de trabalho e níveis imensos de pressão e estresse. 

“Se um chapeiro se esquecer de virar o hambúrguer e a carne 

queimar, grande coisa”, sua orientadora costumava dizer. “Se 

você cometer um erro, um paciente pode morrer. Você enten-

de, Ash? Vai esquecer a carne no fogo?”.

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Jocelyn mordeu o interior das bochechas. Ela detestava aque-

la comparação. Detestava pensar em seres humanos, pessoas vi-

vas, como pedaços de carne.

– Chicago é bem longe daqui – comentou o diretor Crawford. 

Havia um tom brincalhão em sua voz, como se cada afirmação 

sua pudesse se  transformar em piada a qualquer momento. – 

Acho que a pizza daqui é bem diferente. 

– Isso não é problema – ela rebateu de imediato. – Eu sempre 

gostei mais de sopa de marisco. 

Sua resposta arrancou dele uma risada amigável. O diretor 

se recostou na cadeira revestida de couro e baixou os papéis, 

tirando os óculos e colocando-os no bolso do jaleco.

– Você tem senso de humor. Que bom. Isso vai ser necessário 

aqui. Este trabalho pode ser bem mórbido, srta. Ash. Às vezes é 

preciso rir, para não correr o risco de enlouquecer. 

Jocelyn  fez  uma  careta.  Sim.  O  humor  do  carrasco.  Madge 

avisara que os médicos podiam ser pessoas ásperas, quase rudes. 

“É só um jeito de falar”, segundo ela. “Para aliviar a tensão.” De 

qualquer forma, Jocelyn não tinha o direito de protestar; os mé-

dicos eram tratados como deuses. As enfermeiras eram orientadas 

a se levantar na presença deles, como se estivessem diante de mem-

bros da realeza ou coisa do tipo. Era uma coisa tremendamente 

absurda. Ninguém se levantava para as moças que trocavam as co-

madres todos os dias?

– Você é  jovem – ele comentou. Jocelyn fez mais uma careta. 

Os lábios dele estavam franzidos de uma forma que não deixava cla-

ro se era um sorriso ou uma reprimenda. – Talvez jovem demais. 

– Minhas avaliações falam por elas mesmas – respondeu, a 

voz assumindo um tom mais agudo.

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A tensão daquele momento fez sua nuca latejar. Acontecesse o 

que fosse, ela não iria pegar um ônibus de volta para Chicago. 

O diretor Crawford mexeu um pouco nos óculos, tirando-os 

do bolso, dobrando e desdobrando as hastes e, em seguida, co-

locando-os de volta onde estavam. 

– E o que a atraiu para essa profissão?

– Eu quero…

– Não me diga que quer ajudar as pessoas – ele deu uma risa-

dinha, e o tom brincalhão em sua voz voltou quando ela se in-

terrompeu e ficou em silêncio. – Isso é o que todo mundo fala.

– E deve ser verdade – respondeu Jocelyn, talvez com certa 

impertinência. Ela nunca sabia quando manter a boca fechada, 

e naquele momento sentiu que as palavras estavam saindo mais 

depressa do que deveriam. – Sou obrigada a dizer para o se-

nhor que estou confusa. Na Grace Point me disseram que havia 

um emprego para mim aqui. Por acaso foi engano? 

O diretor Crawford  jogou a  cabeça para  trás. Se  ele  estava 

surpreso  ou  ofendido,  ela  não  conseguiu  determinar.  A  jul-

gar  pelo  rosto,  ele  parecia  jovem,  mas  os  cabelos  grisalhos 

nas  têmporas  sugeriam  certa  maturidade.  Ele  era  bonitão,  o 

tipo de médico sério e gentil que Madge com certeza esperava 

atrair.  Ela  desviou  os  olhos  para  a  mão  esquerda  do  diretor. 

Sem aliança. Parecia estranho que um homem daquela  idade 

fosse solteiro. Deixando de lado as brincadeiras, Camford não 

era exatamente uma metrópole  fervilhante de  agitação. Com 

certeza  devia  haver  muitas  mulheres  ansiosas  para  fisgar  um 

médico boa-pinta, não? 

Ele remexeu os papéis e os enfiou em uma das gavetas bagun-

çadas da mesa. 

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– Terrence, do departamento pessoal, vive me alertando para

não contratar ruivas. São bocudas, segundo ele. Irritadiças. – 

O diretor Crawford ficou de pé, voltando a rir, e estendeu a 

mão para o outro lado da mesa. – Mas nós estamos precisando 

de um pouco de coração aqui. Não é lugar para espíritos fracos, 

o que me diz que você vai se adaptar bem, srta. Ash.

Ufa. O emprego estava garantido, e ela poderia respirar de

novo e parar de  segurar o capuz  impermeável  como quem se 

agarra a um colete salva-vidas.

– Obrigada. Muito obrigada mesmo. E é verdade, sabe. Eu

quero mesmo ajudar as pessoas. 

– Não é isso que todos queremos? – ele murmurou, e um brilho

frio e intenso surgiu em seus olhos. – É o que todos queremos. 

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