Não caia no trote, integre-se!

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  • 7/28/2019 No caia no trote, integre-se!

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    O assunto desse texto a integraouniversitria. Nosso objetivo questionar os moldes em que ocorremalguns trotes universitrios, que apesarde supostamente pretenderem certaintegrao estudantil, esto maisfocados em reproduzir hierarquias que,muitas vezes, vo alm da supostasuperioridade de veteranos sobrecalouros. Por isso, gostaramos de,

    primeiramente, parabenizar amanifestao de calouros e calouras daTurma 186, que questionaram @sveteran@s em relao ao Trote do

    Tnis, ocorrido na ltima quinta-feira.

    Recentemente, vimos inmerasmanifestaes dos movimentosfeministas contra vrios trotes ocorridosnas Faculdades, em especial na Poli e naUSP So Carlos. Na Poli, a crticaestava centrada em algumasbrincadeiras do IntegraPoli, que

    traziam uma clara inteno desubordinar calouras aos veteranos (ou,mais claramente, subordinar asmulheres aos homens), como ocumshot e o tiro de elstico. Na USP-So Carlos, o Miss Bixete procuravaselecionar as calouras consideradasmais belas para desfilar em um salorepleto de veteranos, que em coro asincentivavam a danar e expor seus

    corpos o mximo possvel,evidenciando-as como as mais novas

    possveis pegaes.

    A existncia de trotes como estes refletea forma como as calouras so vistas porgrande parte dos veteranos, muito maiscomo carne nova no pedao do que

    como novas integrantes da comunidadeacadmica. A caloura, nesse sentido,

    vista como uma mulher inexperiente,

    capaz de qualquer coisa para se sentiraceita e desejada por seus novosmestres, como se ela ainda precisasse

    da aprovao de um veterano sobre seucorpo mesmo depois de ter passado pelomeritocrtico crivo do vestibular. Dissodecorre a referncia s calouras comovadias e vagabundas, esteretiposamplamente difundidos por muitasmsicas cantadas em trotes, jogos efestas universitrias.

    O Trote do Tnis

    A So Francisco no est imune a estarealidade. O Trote do Tnis, apesar deconsiderado por muitas pessoas comoum trote bem mais leve em

    comparao com os organizados emoutras faculdades, tambm evidencia omachismo presente nos trotes maistensos. Ainda que calouros e calouras

    sejam colocados em uma mesmaposio de constrangimento,

    questionamos se as atividadesdirecionadas a ambos os sexosadquirem o mesmo status simblico.Ser que a menina que responde secospe ou engole vista da mesma

    forma que um menino chamado pararesponder questes relativas ao sexo?Ser que a menina que beija o colegaem cima da mesa vista da mesma

    forma que o menino numa mesmasituao?

    O veterano que ficou responsvel pela

    apresentao comeou a falar para ascalouras formosas subirem na mesa.

    Algumas meninas foram e ele comeoua entrevistar uma a uma. O que meincomodou mais foi que ele ficava

    passando a mo nelas e fazendo

    perguntas indiscretas do tipo t naativa?.

    No caia no trote inte re-se!

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    Mesmo com grandes avanos naconquista da autonomia da mulher, asua sexualidade ainda um tabu dentrode nossa sociedade. A mulher continuasendo julgada moralmente por conta desua sexualidade, fato que muito menosevidente quando se trata da sexualidadedo homem heterossexual. Enquanto osmeninos so incentivados a expressarsua sexualidade em pblico, como algoque os engrandecesse, as meninas forameducadas para serem reservadas nesteaspecto, como uma forma de

    preservao da reputao. Assim, o

    impacto das atividades do trote ganhadimenses diferentes para calouras ecalouros, uma vez que a referncia

    pblica sobre a sexualidade da mulherainda encarada como algoconstrangedor, que as diminui e que asexpe a julgamentos morais. J oshomens tendem a encarar as

    brincadeiras como simples zoao.

    Quando elas se recusavam a beber,todos os veteranos presentes insistiamem coro e a menina acabava bebendo.

    A eles queriam que elas danassem eele ficou ali entre elas para encorajar,mas na verdade ele s ficava meio quedanando atrs delas, no vou dizerque ele ficou se esfregando porquetalvez seja um exagero. Perto de ondeeu estava sentada tinha uns doisveteranos com bebida e eles insistiam

    muito para as pessoas beberem. Nesseeu j estava bem desconfortvel com o

    formato do trote e me senti mal de ficarali sentada assistindo, sendo conivente,ento sa da sala.

    Esses exemplos de insistncia vototalmente na contramo da autonomiada mulher; tratando-a como se ela fossede fcil convencimento ou como se notivesse opinio. uma forma de coao,tanto ao forar a beber, como a danar.Se esse tipo de situao desconfortvelocorre em um trote, j percebemos que

    ele no to leve assim. A vontade dequem participa desse trote seriarealmente livre ou seria condicionada

    pelo desejo de se sentir parte deste"novo" grupo?

    Depois eles colocaram os meninos l

    em cima, talvez tenha sido umatentativa de equilibrar a coisa. Mas eu

    fiquei sabendo que eles insistiam para

    os calouros se beijarem (inclusive beijotriplo) e a maioria ali no estava comvontade.

    Enquanto o constrangimento dasmulheres se d pela sexualizao deseus corpos, o constrangimentomasculino passa principalmente pelainsinuao da homossexualidade. Equando passam pasta de dente no

    abdmen dos calouros - e eles tm quese abraar bem forte e se esfregar paracarimbar o desenho no outro -,

    perceptvel certa ridicularizao porparte dos veteranos, o que,evidentemente, no decorre do fato deos calouros estarem sujos e lambuzados.O que causa o riso a insinuao de umcontato homossexual, como se a

    homossexualidade fosse digna de pena echacota. Nesse sentido, calouros e

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    calouras so expostos mais uma vezpara reforar uma suposta liberdade deexpresso dos veteranos - ou seria umaliberdade conquistada sobre oaprisionamento de outros?

    Ouvi vrias histrias de pessoas que

    foram levadas arrastadas pra subir namesa, etc. s vezes eu acho que soulouca por ter ficado to desconfortvel

    porque muita gente gostou dabrincadeira e no viu nada de

    preconceituoso, mas eu no fui a nicaque no gostou, eu sa com algunsamigos meus e l fora encontrei vrias

    pessoas.

    Nos anos anteriores, muitos calouros ecalouras tambm se sentiramdesconfortveis com o Trote do Tnisquando passaram pela experincia.Alguns preferiram no emitir nenhumaopinio a respeito para no passarem

    por vacilo, escroto ou histrica,

    puritana. E esse receio, que reproduzo silncio, gera um consenso sobre otrote como uma atividade livre decriticas e violncia simblica. Outroschegaram a manifestar suas opiniescontrrias aos moldes do trote, mas seviram silenciados pelo mesmo discursoque temiam aqueles que preferiam ficarcalados. Esse ano, no entanto, oscalouros insatisfeitos se manifestaram ese organizaram, dando voz a um

    movimento contrrio s prticasvivenciadas no dia do trote e abrindocaminho para que sejam pensadasalternativas concretas a ele.

    Muita gente s no ia embora porqueprecisava do sapato. Se a ideia eraintegrar e divertir, o trote falhouimensamente. No dia da matrcula euno senti esse mesmo clima hostil e

    fiquei muito feliz em saber que na SoFrancisco as pessoas eram sensatas nahora de lidar com os calouros, masdepois de quinta feira eu no tenho

    mais tanta certeza. Ainda, o fato de o evento ser surpresa edificultar a sada dos calouros por contada retirada do tnis gera oquestionamento sobre o argumento dalivre participao deste trote. Issosignifica que, uma vez que se consenteem entregar os sapatos, os veteranosadquirem plenos poderes para decidir a

    hora em que @s calour@s recebero devolta o prprio tnis? Se fosse um troteque realmente divertisse @s calour@s,

    por que a necessidade de tanta surpresae insistncia pra participar e ter queficar at o final?

    Muitos diriam que a tradio, que fazparte do repertrio da faculdade,daquilo que representa o "serfranciscano. A So Francisco feita

    de tradio, dizem alguns. Invejosos,

    dizem outros. E no final, o querealmente necessrio para fazer partedo mundo franciscano? Um tanto decrtica, diramos. Entrar em umainstituio pblica de nvel superior,infelizmente, no est ao alcance detod@ brasileir@. Aquilo que fazemos

    dentro da faculdade se reflete l fora,em nossa formao cidad e capacidade

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    de transformao social. O trote, nessesentido, alm de promover a integraodentro da universidade, deve estimular a

    percepo d@s calour@s em relao diversidade, lembrando-@s daexistncia de um mundo que transcende individualidade de cada um(a).

    Debatendo democracia, minorias e

    respeito na So Francisco

    Algumas pessoas acreditam que sedeterminada conduta ofende apenasuma minoria, ela no deve ser

    repensada, uma vez que seriaimpossvel agradar a todos. Essapostura, um tanto quanto ingnua, tomacomo pressuposto a ideia equivocada deque os comportamentos e aes soneutros, destitudos de significadosimblico, e ignora que asdesigualdades so evidentes na nossasociedade. Se o trote j existe e surpresa, no se discute se ele deveria

    passar por votaes consensuais ou

    sistemas eleitorais democrticos para

    sua aprovao, mas sim se ele est deacordo com o direito autonomia,

    respeito e igualdade material de

    seus participantes.

    Esperamos que os pontos levantados aolongo do texto contribuam para uma

    reflexo acerca do Trote do Tnis edemais trotes que se baseiam nesses

    mesmos parmetros desiguais. Sabemosque o simples boicote ao trote no tornaa comunidade franciscana menosmachista e homofbica. Por isso,gostaramos de encerrar esse texto como trecho de uma msica amplamentetocada no nosso meio:

    Caloura, vagabunda, eu j comi sua

    bunda e a buceta, lererelerererere...Vou chupar suas teta...

    Veterano incompetente, voc impotente, broxa na hora, lererelerererere...Corta e joga fora!

    Se voc se sente franciscano" ou

    "franciscana cantando essa msica,

    talvez seja um bom momento pararefletir criticamente sobre essas

    posturas. Esperamos que osquestionamentos feitos sejam tambmaplicados s nossas atitudes cotidianas,expandindo o debate de forma a

    contribuir para a construo de relaesverdadeiramente iguais entre @salun@s.

    Por fim, o Coletivo Feminista Dandaracoloca-se a disposio daquel@s quedesejam repensar um trote maisigualitrio e, por que no, maisdivertido?

    Depoimento de uma caloura da Turma186

    Coletivo Feminista Dandara

    [email protected]