Não basta reformar

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O agregador da advocacia 36 Julho de 2011 www.advocatus.pt Mais do que simplesmente se pretender agilizar, simplificar e descongestionar, exige-se que o legislador tenha, acima de tudo, uma visão do que quer para a Justiça – ganha a Justiça – e que seja sensato na forma como introduz as alterações – ganhamos todos Vivemos num mundo perversa- mente (des)organizado e numa época de tensão económica e social. Se a isto adicionarmos a “condição” mediterrânea de fe- rozes litigantes – em que os pro- blemas só podem ser resolvidos em tribunal –, apercebemo-nos da nossa natural propensão para os conflitos e da tendência para o respectivo aumento. Os tribunais, em especial as nor- mas processuais civis, têm de estar preparados para respon- der a este desafio. Este cenário, porém, não é de agora. Já em 1998, com a apro- vação do regime dos procedi- mentos para o cumprimento de obrigações pecuniárias, se fa- lava em excesso de litigiosida- de, do perigo de os tribunais se converterem em extensões de empresas e da “funcionalização dos magistrados, que gastam o seu tempo e as suas aptidões técnicas na prolação mecânica de despachos e de sentenças”. Ora, em face da incapacidade do poder judicial em resolver esta tendência, a solução tem pas- sado pela intervenção do poder legislativo. Em vão. As interven- ções legislativas têm-se mostra- do ineficazes, não só pela forma improvisada e retalhista como têm sido realizadas, como tam- bém pela necessidade de novos enquadramentos legais. Não advogamos, ainda assim, um corte radical com o passado. Tudo não se faz do nada. Mas, se nada for feito, com nada fi- caremos! Tal qual estão, as re- gras processuais mostram-se desajustadas e desactualizadas. Devem ser alteradas. Mas, com a devida ponderação e cautela, fruto de um esforço colectivo e “As intervenções legislativas têm-se mostrado ineficazes, não só pela forma improvisada e retalhista como têm sido realizadas, como também pela necessidade de novos enquadramentos legais” “o problema maior de todos está identificado: a acção executiva. Há dívidas que nunca deveriam ter existido, porque era evidente que não havia capacidade para suportar o crédito e dívidas há que não vale a pena executar, porque é evidente a ausência de bens. Contudo, umas e outras continuam a ser executadas” João martins Costa Licenciado em Direito pela Universidade do Porto, em 2003, tem uma pós-graduação em Direito das Autarquias Locais e Urbanismo, pela mesma instituição, e outra em Regulação Pública e Concorrência, pela Universidade de Coimbra. É advogado da JPAB Não basta reformar Mais do que simplesmente se pretender agilizar, simplificar e descongestionar, exige-se que o legislador tenha, acima de tudo, uma visão do que quer para a Justiça – ganha a Justiça – e que seja sensato na forma como introduz as alterações – ganha- mos todos! participativo de todos os admi- nistradores da Justiça e nunca por pressão política ou, pior ain- da, por mera resposta mediática. O problema maior de todos está identificado: a acção executiva. Há dívidas que nunca deveriam ter existido, porque era evidente que não havia capacidade para suportar o crédito e dívidas há que não vale a pena executar, porque é evidente a ausência de bens. Contudo, umas e outras continuam a ser executadas. Assim, mais do que um novo paradigma, o legislador deveria atacar este problema, quer a montante – regulando de forma efectiva a concessão de crédito –, quer a jusante – admitindo a emissão das certidões de inco- brabilidade sem recurso à via judicial quando esta se mostrar inconsequente e desnecessária. Além disso, é necessário intro- duzir alterações na tramitação declarativa, simplificando pro- cedimentos, sem olvidar, nun- ca, os princípios processuais basilares, com especial relevo, o do contraditório. Desde logo, importa responsabilizar os juí- zes pela condução do processo, designadamente atribuindo-lhes um maior poder de gestão pro- cessual e admitindo, como re- gra, o despacho liminar (excep- tuando-se, sempre, os casos em que é requerida a citação urgen- te), com vista a um de três des- pachos: rejeição liminar, convite ao aperfeiçoamento ou citação. Depois, importa revalorizar a audiência preliminar, limitar o re- curso à prova testemunhal e introduzir a gravação do som e imagem, permitindo-se reforçar o recurso da matéria de facto. Não basta, por isto, reformar. Debate

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O agregador da advocacia36 Julho de 2011

www.advocatus.pt

Mais do que simplesmente se pretender agilizar, simplificar e descongestionar, exige-se que o legislador tenha, acima de tudo, uma visão do que quer para a Justiça – ganha a Justiça – e que seja sensato na forma como introduz as alterações – ganhamos todos

Vivemos num mundo perversa-mente (des)organizado e numa época de tensão económica e social. Se a isto adicionarmos a “condição” mediterrânea de fe-rozes litigantes – em que os pro-blemas só podem ser resolvidos em tribunal –, apercebemo-nos da nossa natural propensão para os conflitos e da tendência para o respectivo aumento. Os tribunais, em especial as nor-mas processuais civis, têm de estar preparados para respon-der a este desafio.Este cenário, porém, não é de agora. Já em 1998, com a apro-vação do regime dos procedi-mentos para o cumprimento de obrigações pecuniárias, se fa-lava em excesso de litigiosida-de, do perigo de os tribunais se converterem em extensões de empresas e da “funcionalização dos magistrados, que gastam o seu tempo e as suas aptidões técnicas na prolação mecânica de despachos e de sentenças”. Ora, em face da incapacidade do poder judicial em resolver esta tendência, a solução tem pas-sado pela intervenção do poder legislativo. Em vão. As interven-ções legislativas têm-se mostra-do ineficazes, não só pela forma improvisada e retalhista como têm sido realizadas, como tam-bém pela necessidade de novos enquadramentos legais.Não advogamos, ainda assim, um corte radical com o passado. Tudo não se faz do nada. Mas, se nada for feito, com nada fi-caremos! Tal qual estão, as re-gras processuais mostram-se desajustadas e desactualizadas. Devem ser alteradas. Mas, com a devida ponderação e cautela, fruto de um esforço colectivo e

“As intervenções legislativas têm-se

mostrado ineficazes, não só pela forma

improvisada e retalhista como têm

sido realizadas, como também pela

necessidade de novos enquadramentos

legais”

“o problema maior de todos está

identificado: a acção executiva. Há dívidas que nunca deveriam ter existido, porque

era evidente que não havia capacidade para

suportar o crédito e dívidas há que não vale

a pena executar, porque é evidente

a ausência de bens. Contudo, umas

e outras continuam a ser executadas”

João martins Costa

Licenciado em Direito pela Universidade do Porto, em 2003,

tem uma pós-graduação em Direito das Autarquias Locais e Urbanismo, pela mesma instituição, e outra em Regulação Pública e Concorrência,

pela Universidade de Coimbra. É advogado da JPAB

Não basta reformar

Mais do que simplesmente se pretender agilizar, simplificar e descongestionar, exige-se que o legislador tenha, acima de tudo, uma visão do que quer para a Justiça – ganha a Justiça – e que seja sensato na forma como introduz as alterações – ganha-mos todos!

participativo de todos os admi-nistradores da Justiça e nunca por pressão política ou, pior ain-da, por mera resposta mediática. O problema maior de todos está identificado: a acção executiva. Há dívidas que nunca deveriam ter existido, porque era evidente que não havia capacidade para suportar o crédito e dívidas há que não vale a pena executar, porque é evidente a ausência de bens. Contudo, umas e outras continuam a ser executadas. Assim, mais do que um novo paradigma, o legislador deveria atacar este problema, quer a montante – regulando de forma efectiva a concessão de crédito –, quer a jusante – admitindo a emissão das certidões de inco-brabilidade sem recurso à via judicial quando esta se mostrar inconsequente e desnecessária. Além disso, é necessário intro-duzir alterações na tramitação declarativa, simplificando pro-cedimentos, sem olvidar, nun-ca, os princípios processuais basilares, com especial relevo, o do contraditório. Desde logo, importa responsabilizar os juí-zes pela condução do processo, designadamente atribuindo-lhes um maior poder de gestão pro-cessual e admitindo, como re-gra, o despacho liminar (excep-tuando-se, sempre, os casos em que é requerida a citação urgen-te), com vista a um de três des-pachos: rejeição liminar, convite ao aperfeiçoamento ou citação. Depois, importa revalorizar a audiência preliminar, limitar o re- curso à prova testemunhal e introduzir a gravação do som e imagem, permitindo-se reforçar o recurso da matéria de facto.Não basta, por isto, reformar.

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