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  • II

    escuta

  • Universidade Federal de Santa Catarina - 1 Semestre de 2013. 159

    escuta(Parte I)1

    1. Ttulo original: lcoute, Paris, Galile, 2002; pp. 9-45. Traduo de Carlos Eduardo Schmidt Capela e Vincius Nicastro Honesko.

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    escuta: ao mesmo tempo um ttulo, um endereamento e uma dedicatria.

    O barulho preenchia esta solido que ritmava o timbre em avano.

    Raymond Queneau, Un rude hiver.

    Supondo que ainda haja sentido em colocar questes sobre os limites ou acerca dos limites da filosofia (supondo, ento, que um ritmo fundamental de ilimitao e de limita-o no constitua a urdidura do permanente caminhar da dita filosofia, com uma cadncia varivel, hoje talvez acelerada), a pergunta, aqui, ser esta: a escuta um motivo com o qual a filosofia capaz de lidar? Ou ser insistemos um pouco, a despeito de tudo, sob o risco de borrar o trao que a filoso-fia de antemo, e forosamente, no superps ou substituiu escuta alguma coisa que seria sobretudo da ordem do entendi-mento [entente]2?

    O filsofo no seria aquele que entende [entend] sempre (e que entende [entend] tudo) mas que no pode escutar ou, de modo mais preciso, que nele neutraliza a escuta para poder assim filosofar?

    No, entretanto, sem se encontrar liberado, desde o prin-cpio, da tnue indeciso cortante que zune, que bate ou que grita entre escuta e entendimento [entente], entre duas au-dies, entre duas intensidades do mesmo (do mesmo senti-do, mas em qual sentido precisamente? ainda uma outra questo), entre uma tenso e uma adequao, ou, ainda, caso se queira, entre um sentido (que escutamos) e uma verdade (que entendemos [quon entend]), ainda que um no possa, no limite, dispensar o outro.

    Algo diferente ocorre na relao entre a vista ou a viso e o olhar, a visada ou a contemplao do filsofo: figura e ideia, teatro e teoria, espetculo e especulao se ajustam melhor, su-perpem-se, ou mesmo se substituem com mais convenincia que o audvel e o inteligvel ou o sonoro e o lgico. Haveria, ao menos de modo tendencial, um maior isomorfismo entre o visual e o conceitual, ainda que apenas em virtude do fato de que a morph, a forma implicada na ideia de isomorfis-mo, de imediato pensada ou apreendida na ordem visual. O sonoro, ao contrrio, traz consigo a forma. Ele no a dissol-ve, sobretudo a alarga, d a ela uma amplitude, uma espessura e uma vibrao ou ondulao cujo desenho nada mais faz que aproximar. O visual persiste at o seu desvanecer, o sonoro aparece e se desvanece mesmo em sua permanncia.

    2. O termo entente, derivado do verbo entendre, a que recorre Jean-Luc Nancy, introduz um campo de ambiguidade (em francs, a expresso double entente inclusive sinnima de ambguo), na medida que possui entre suas acepes tanto o sentido de escutar e ouvir quanto os de harmonia, acordo ou entendimento (no sentido de compreender). O leitor dever sempre ouvir, ao se deparar com o termo, essa dissonncia de sentidos. Como auxlio, optou-se por destacar, sempre que pareceu necessrio, entre colchetes, os momentos em que o autor, quando a ele recorre, joga com essa ambiguidade. Outras palavras do original sero tambm transcritas, entre colchetes, sempre que o contexto parecer assim o exigir (N.T.).

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    Por que e como esta diferena? Por que e como uma ou diversa(s) diferena(s) dos sentidos em geral, e entre os sen-tidos sensveis e o sentido sensato? Por que e como alguma coisa do sentido sensato privilegiou um modelo, um suporte ou uma referncia na presena visual, em detrimento da pene-trao acstica? Por que, por exemplo, a acusmstica, o modelo de ensinamento no qual o mestre se mantm oculto para o discpulo que o escuta, prpria de um esoterismo pitagrico pr-filosfico, assim como, muito mais tarde, a confisso au-ricular corresponde a uma intimidade secreta do pecado e do perdo? Por que, do lado do ouvido, retiro e redobra, posta em ressonncia, e, do lado do olho, manifestao e ostenso, posta em evidncia? Por que, ainda, cada um destes lados toca o ou-tro, e este tocar coloca em jogo todo o regime dos sentidos? E como este toca, por sua vez, o sentido sensato? Como ele chega a engendr-lo ou a modul-lo, a determin-lo ou a dispers-lo? Todas essas questes se situam de modo inevitvel no horizon-te de uma questo da escuta.

    Queremos aqui estender a orelha filosfica: puxar a orelha do filsofo para fazer com que ela tenda na direo daquilo que sempre em menor medida solicitou ou representou o saber filosfico do que isso que se apresenta vista forma, ideia, quadro, representao, aspecto, fenmeno, composio , e que se eleva sobretudo no acento, no tom, no timbre, na ressonn-cia e no rudo. Acrescentemos ainda uma questo, deixando-a em suspenso, para assinalar o tremendo afastamento e a dissi-metria dos dois lados, ao mesmo tempo em que comeamos a puxar, a atrair a ateno da orelha (e, com ela, tambm do olho): se parece bem simples evocar uma forma ou mesmo uma viso sonora, em que condies poderamos, por sua vez, falar de um rudo visual?

    Ou, ainda: se, desde Kant at Heidegger, a principal apos-ta da filosofia foi colocada na apario ou na manifestao do ser, numa fenomenologia, a verdade ltima do fenmeno (enquanto um aparecer o mais exatamente distinto possvel de todo ente j aparecido e, em consequncia, tambm enquanto um desaparecer), a verdade ela-mesma enquanto transitivida-de e transio incessante de um vir-e-partir no deveria muito mais ser escutada do que vista? No tambm dessa maneira, no entanto, que ela deixa de ser ela-mesma, e identificvel, para tornar-se no mais a figura nua saindo do poo, mas a ressonncia deste poo ou, caso seja possvel assim dizer, o eco da figura nua na profundidade aberta?

    Estar escuta constitui hoje uma expresso cativa de um registro de afetao filantrpica na qual a condescendncia ressoa junto boa inteno, com frequncia numa tonalidade

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    piedosa. Como, por exemplo, nas expresses fixadas estar es-cuta dos jovens, do bairro, do mundo, etc. Quero aqui, entre-tanto, escut-la [entendre] em outros registros, em tonalidades outras, e, antes de tudo, em uma tonalidade ontolgica: o que um ser entregue escuta, formado por ela ou nela, escutando com todo o seu ser?

    Nada melhor, para comear a faz-lo, do que retroceder aqum dos usos correntes. Depois de ter designado uma pessoa que escuta (que espiona), a palavra escuta designou um lugar onde se pode escutar em segredo. Estar s escutas consistiu, a princpio, em estar localizado em um local oculto de onde possvel surpreender uma conversao ou uma confisso. Es-tar escuta foi uma expresso de espionagem militar antes de retornar, por meio da telefonia, ao espao pblico, no sem manter tambm, com o registro telefnico, um motivo de con-fidncia ou de segredo roubado. Um dos aspectos de minha questo ser, ento: de que segredo se trata quando algum escuta propriamente, isto , quando algum se esfora para captar ou para surpreender muito mais a sonoridade do que a mensagem? Que segredo se revela portanto tambm se torna pblico quando escutamos em si mesmos uma voz, um ins-trumento ou um rudo? E o outro aspecto, indissocivel, ser: o que ento estar [tre] escuta, como se diz estar [tre] no mundo3? O que existir segundo a escuta, por ela e para ela, o que a se coloca em jogo em termos de experincia e de ver-dade? O que a se joga, o que a ressoa, qual o tom da escuta, ou seu timbre? A escuta seria ela-mesma sonora?

    As condies desta dupla interrogao remetem desde o incio, e de maneira simples, ao sentido do verbo escutar. Em consequncia, a este ncleo de sentido onde se combinam o uso de um rgo sensorial (o ouvido, o orelha, auris, palavra que fornece a primeira parte do verbo auscultare, prestar ouvi-dos, escutar atentamente, de onde provm escutar) e uma tenso, uma inteno e uma ateno que a segunda parte do termo assinala.4 Escutar estender a orelha expresso que evo-ca uma mobilidade singular, entre os aparelhos sensoriais, do pavilho da orelha5 , uma intensificao e uma preocupao, uma curiosidade e uma inquietude.

    Cada ordem sensorial comporta uma natureza simples e seu estado tenso, atento ou ansioso: ver e olhar, sentir o odor e aspirar ou cheirar, sentir o gosto e degustar, tocar e tatear ou apalpar, entender [entendre] e escutar.

    Ora, ocorre que este ltimo par, o par auditivo, mantm uma relao particular com o sentido na acepo intelectual ou inteligvel da palavra (com o sentido sensato, caso se queira, para distingui-lo do sentido sensvel). Escutar [entendre] tambm quer dizer compreender6, como se escutar [enten-dre] fosse antes de tudo escutar dizer [entendre dire] (mais que escutar rumorejar [entendre bruire]), ou melhor, como se

    3. Vale lembrar que em francs o verbo tre recobre os sentidos designados em portugus pelos verbos ser e estar (N.T.).

    4. Ignora-se a origem de culto, cujo valor intensivo e frequentativo , no entanto, bem atestado.

    5. Como se a expresso tivesse sido emprestada da observao de certos animais, como os coelhos e muitos outros, sempre escuta e em alerta...

    6. O que caracterstico de certas lnguas latinas. Intendere em latim tender para. O primeiro emprego em francs foi no sentido de estender a orelha: se em escutar a orelha vai em direo tenso, em entender [entendre] a tenso atinge a orelha. De todo modo, valeria a pena examinar outras associaes, em outras lnguas: akou grego com o sentido de compreender, de seguir ou de obedecer; hren alemo de que deriva hrchen, obedecer; to hear ingls com o sentido de aprender, informar-se, etc.

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    em todo escutar [entendre] devesse haver um escutar dizer [entendre dire], seja ou no o som percebido proveniente de uma fala. Mas isso mesmo, talvez, reversvel: em todo dizer (e quero dizer, em todo discurso, em toda cadeia de sentido) h um escutar [entendre], e no prprio escutar [entendre], em seu fundo, uma escuta; o que quer dizer: porventura necessrio que o sentido no se restrinja a fazer sentido (ou de ser logos), mas que alm disso ressoe. Tudo que vou propor ir girar em torno dessa ressonncia fundamental, ao redor de uma resso-nncia enquanto fundo, enquanto profundidade primeira ou ltima do prprio sentido (ou da verdade).

    Se escutar [entendre] compreender o sentido (seja o sentido dito figurado, seja o sentido dito prprio: escutar [entendre] uma sereia, um pssaro ou um tambor j a cada vez compreender ao menos o esboo de uma situao, um contexto seno um texto), escutar [couter] estar inclinado para um sentido possvel e, por conseguinte, no imediata-mente acessvel.7

    Escutamos aquele que profere um discurso que queremos compreender, ou escutamos aquilo que pode surgir do silncio e fornecer um sinal ou um signo, ou, ainda, escutamos aquilo a que chamamos msica.8 No caso dos dois primeiros exemplos pode-se dizer, ao menos para simplificar (caso esqueamos as vozes, os timbres), que a escuta tende para um sentido presente alm do som. No ltimo caso, o da msica, o som e o sentido igualmente se propem auscultao. Em um caso, o som ten-dencialmente desaparece, no outro, o sentido tendencialmente se torna som. Mas a h apenas duas tendncias, precisamente, e a escuta se dirige a ou suscitada por aquilo em que o som e o sentido se misturam, ressoando um no outro ou um pelo outro. (O que significa que e tambm a, de maneira tendencial se o sentido buscado no som, o som, por sua vez, enquanto ressonncia, tambm buscado no sentido.)

    Stravinsky, aos seis anos, escutava um campons mudo que produzia com seu brao sons bastante singulares, que o futuro msico esforava-se para reproduzir: ele procurava por uma outra voz, mais ou menos vocal como a da boca, buscava um outro som para um outro sentido que no esse que se fala. Um sentido nos limites ou nas bordas do sentido, para falar com Charles Rosen.9 Estar escuta sempre estar na borda do sentido, ou em um sentido de borda e de extremidade, como se o som no fosse de fato nada mais que essa borda, essa beira ou essa margem ao menos o som musicalmente escutado, isto , recolhido e escrutado nele mesmo, porm no como fenme-no acstico (ou no somente) mas como sentido ressonante, sentido cujo senso supe-se encontrar na ressonncia, e apenas nela se encontrar.10

    7. Tenso que, sem dvida alguma, est em relao com a intenso de que fala Franois Nicolas, Quand luvre coute la musique, em Peter Szendy (dir.), Lcoute, Ircam/Harmattan, 2000, onde foi publicada a primeira verso do presente ensaio: entre os dois textos h, assim, alm de uma correspondncia, um contraponto evidente.

    8. Talvez seja permitido considerar duas posturas ou duas destinaes da msica (sejam elas de uma mesma msica ou de dois gneros diferentes): msica entendida [entendue] e msica escutada [coute] (como era antes possvel dizer: msica de mesa e msica de concerto). Seria difcil estender tal analogia para o domnio das artes plsticas ( exceo, entretanto, da pintura decorativa).

    9. Aux confins du sens Propos sur la musique, trad. Sabine Lodon, Paris, Le Seuil, 1998 (ttulo original : The Frontiers of Meaning).

    10. Ocorre decerto o mesmo, de modo formal, com o visvel: compreender uma msica ou uma pintura admitir ou reconhecer o sentido propriamente pictural ou musical, ou pelo menos tender para uma tal propriedade, ou para sua inacessibilidade, para a propriedade do inaproprivel. Nem por isso a diferena deixa de subsistir; ela no apenas diferena extrnseca de mdiuns: ela diferena de sentido e no sentido (deveramos ademais desdobr-la para todos os registros sensveis). O que confere ao sonoro e ao musical uma distino particular (sem que ela se torne um privilgio) pode apenas ser pouco a pouco liberado, e sem dvidas dificilmente... embora nada para ns seja mais claro nem mais imediatamente sensvel.

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    Mas qual pode ser o espao comum ao sentido e ao som? O sentido consiste em um reenvio. Ele inclusive feito de uma totalidade de reenvios: de um signo a alguma coisa, de um estado de coisas a um valor, de um sujeito a um outro su-jeito ou a si mesmo, tudo simultaneamente. Tambm o som feito de reenvios: ele se propaga no espao11 onde repercute ao repercutir em mim, como se diz (voltaremos a esse dentro do sujeito: no voltaremos seno a isso). No espao exterior ou interior, ele ressoa, o que equivale a dizer que ele se reme-te enquanto verdadeiramente sonante, j que ressoar nada mais do que se relacionar consigo. Soar vibrar em si ou por si: no somente, para o corpo sonoro12, emitir um som, mas de fato se estender, transportar-se e se resolver em vibraes que de maneira concomitante o relacionam consigo mesmo e o colocam fora de si.13

    Por certo, como se sabe desde Aristteles, o sentir (a ais-thesis) sempre um ressentir, ou seja, um se-sentir-sentir: ou ainda, caso se prefira, o sentir sujeito, ou ele no sente. Mas porventura no registro sonoro que essa estrutura reflexiva se ex-pe de modo mais manifesto14, e em todo caso se prope como estrutura aberta, espaada e espaante (caixa de ressonncia, espao acstico15, afastamento de um reenvio), ao mesmo tem-po que como cruzamento, mescla, recobrimento no reenvio do sensvel ao sensato assim como aos demais sentidos.

    Pode-se no mnimo dizer que o sentido e o som compar-tilham o espao de um reenvio no qual ao mesmo tempo eles reenviam um ao outro, e que, de maneira muito geral, esse espao pode ser definido como aquele de um si, ou de um sujeito. Um si nada mais que uma forma ou uma funo de reenvio: um si feito de uma relao a si, ou de uma presena a si, que no outra coisa que o reenvio mtuo entre uma individuao sensvel e uma identidade inteligvel (no apenas o indivduo no sentido corrente, mas, nele, as ocorrncias sin-gulares de um estado, de uma tenso ou, precisamente, de um sentido) esse reenvio deveria ser infinito, e o ponto ou a ocorrncia de um sujeito no sentido substancial deveria ter lu-gar apenas no reenvio, portanto no espaamento e na ressonn-cia, e, em grau mximo, como o ponto sem dimenso do re- de tal ressonncia: tanto na repetio na qual o som se amplifica, e se propaga, quanto na reverso na qual ele se faz eco fazendo-se escutar [entendre]. Um sujeito se sente: sua propriedade e sua definio. O que significa que ele se entende, se v, se toca, se gosta, etc., e que ele se pensa ou se representa, se aproxima e se distancia de si, e assim sempre se sente sentir um si que se escapa ou que se reserva na mesma medida em que ele repercu-te alhures tal como em si, em um mundo e em outro.

    11. Arrisquemos dizer: em razo da diferena considervel de velocidades (ou, ainda, para Einstein, do carter de limite da velocidade da luz), l onde o som se propaga a luz instantnea: resulta disso um carter de presena do visual, distinto do carter de vinda-e-partida prprio do sonoro.

    12. Que sempre e ao mesmo tempo o corpo que ressoa e meu corpo de ouvinte onde isso ressoa, ou, ainda, que nele ressoa.

    13. essa, com efeito, a condio sensvel em geral: soar opera como luzir ou como sentir no sentido de liberar um odor, ou ainda como o apalpar do tocar (apalpar, palpitar: pequeno movimento rpido repetido). Cada sentido um caso e um afastamento de um tal vibrar (se), e todos os sentidos vibram entre si, uns contra os outros e uns at os outros, a includo o sentido sensato... isso que nos resta... compreender. (Quantos so os sentidos, alm do mais, ou se eles so na verdade inumerveis, uma outra questo.) Mas nos falta ainda, e ao mesmo tempo, discernir como cada regime sensvel funciona diferencialmente como modelo e ressonncia para todos... Notemos aqui, neste momento, que a amplificao sonora e a ressonncia assumem um papel determinante (que talvez no seja possvel transpor com exatido para o plano visual) na formao da msica e de seus instrumentos, como sublinha Andr Schauffner em seu Origine des instruments de musique, Paris, Mouton, 1968; Paris, cole des hautes tudes en sciences sociales, 2 edio ampliada, 1994 (agradeo a Peter Szendi, que me levou a conhecer essa obra) Em todos os casos [tratamento da voz ou fabricao de instrumentos

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    Estar escuta ser sempre, portanto, estar em ou tendido para um acesso a si (deveramos dizer, no modo patolgico: um acesso de si: o sentido (sonoro) no seria antes de tudo e a cada vez uma crise de si?).

    Acesso a si: nem a um si prprio (eu), nem ao si de um ou-tro, mas sim forma ou estrutura do si enquanto tal, ou seja, forma, estrutura e ao movimento de um reenvio infinito na medida em que ele reenvia a este (ele) que fora do reenvio no nada. Quando estamos escuta estamos espreita [aux aguets] de um sujeito, este (ele) que se identifica ao ressoar de si a si, em si e para si, logo, fora de si, a um s tempo o mesmo e ou-tro de si, um enquanto eco do outro, e esse eco como o prprio som de seu sentido.16 E o som do sentido o modo como ele se reenvia ou como ele se envia ou se enderea, e portanto o modo como ele faz sentido.

    Mas aqui se trata de estar espreita de uma maneira que no precisamente aquela do espreitar [guet], no sentido de uma vigilncia visual.17 O sonoro exprime aqui sua singulari-dade com relao ao registro tico no qual se joga, de modo mais manifesto, por assim dizer, a relao com o inteligvel enquanto relao terica (termo ligado, em grego, viso).18 Segundo o olhar, o sujeito se reenvia a ele-mesmo como objeto. Segundo a escuta, de alguma forma nele-mesmo que o sujeito se reenvia ou se envia. Assim, de uma certa maneira no h relao entre os dois. Uma escritora afirma: Eu posso escu-tar [entendre] o que eu vejo: um piano, ou folhagens agitadas pelo vento. Mas jamais posso ver o que eu escuto [jentends]. Entre a vista e o ouvido no h reciprocidade.19 Da mesma forma, eu diria que a msica flutua muito mais em torno da pintura do que esta se esboa em torno da msica. Ou, ainda, em termos quase lacanianos, o visual estaria do lado de uma captura imaginria (o que no implica que ele se reduza a isso), enquanto o sonoro estaria do lado de um reenvio simblico (o que no implica que ele esgote a amplitude deste). Em ou-tros termos, ainda, o visual seria tendencialmente mimtico, e o sonoro tendencialmente methsico (ou seja, da ordem da participao, da partilha ou do contgio), o que tambm no significa que tais tendncias no coincidam em parte alguma. Uma musicista escreveu: Como o som possui uma incidncia to particular, uma capacidade de afetar que no se parece com nenhuma outra, por demais diferente daquilo que sobressai do visual e do tato? um domnio que ns ainda ignoramos.20

    Nestas constataes, que retomo por minha conta, h sem dvida mais de empirismo que de construo terica. Mas a aposta de um trabalho sobre o sentido e sobre as qualidades sensveis , necessariamente, aquela de um empirismo pelo qual tentamos uma converso da experincia em condio a priori da possibilidade... da experincia mesma, correndo as-

    14. Uma vez reconhecido que o tocar fornece a estrutura geral ou a nota fundamental do se-sentir: de um certo modo, cada sentido se toca ao sentir (e toca nos demais sentidos). Ao mesmo tempo, cada modo ou registro sensvel expe sobretudo um dos aspectos do (se) tocar, o afastamento ou a conjuno, a presena ou a ausncia, a penetrao ou a retrao, etc. A estrutura e a dinmica singulares plurais do conjunto dos sentidos, sua maneira de ser precisamente conjunto e de se tocar enquanto se distinguem, seriam objeto de um outro trabalho. Aqui, eu apenas peo que no se perca jamais de vista que nada do que dito do sonoro deixa de valer tambm para os outros registros, bem como contra eles, de encontro a ou ao encontro de, em contiguidade e em oposio, numa complementariedade e numa incompatibilidade inextricveis uma da outra, bem como no sentido mesmo do sentido sensato... (Este texto foi escrito e publicado em sua primeira verso antes de Jacques Derrida lanar Le Toucher, Jean-Luc Nancy, Paris, Galile, 2000).

    15. Espaces acoustiques o ttulo de uma composio de Grard Grisey, que explora domnios de sonoridades e de suas amplificaes ou intensificaes.

    por amplificao ou alterao de som] trata-se menos de imitar que de ultrapassar qualquer coisa o j conhecido, o ordinrio, o relativamente moderado, o natural. Da as inverossmeis invenes, uma propenso s monstruosidades acsticas que deixaro desnorteados os fsicos (p. 25).

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    sim o risco de um relativismo cultural e individual, dado que todos os sentidos e todas as artes no possuem sempre e nem em todos os lugares as mesmas distribuies e tampouco as mesmas qualidades.

    Aquilo que aqui nomeamos relativismo, no entanto, constitui por sua vez um material emprico que d condio de possibilidade a toda sensao e a toda percepo, assim como a toda cultura: o reenvio de umas s outras que torna possveis umas e outras. A diferena das culturas, das artes e dos sentidos so condies, e no limitaes, da experincia em geral, assim como o emaranhamento mtuo dessas diferen-as tambm condicional. De modo ainda mais geral, devera-mos dizer que a diferena do sentido (no sentido sensato da palavra) sua condio, isto , a condio de sua ressonncia. Ocorre que nada mais admirvel, nessa ordem de conside-rao sobre a experincia, do que a histria da msica, mais que qualquer outra tcnica artstica, no curso do sculo XX: as transformaes internas que sucedem a Wagner, as importa-es crescentes de referncias exteriores msica fixada como clssica, o surgimento do jazz e suas transformaes, depois o do rock e de todos seus avatares at suas hibridaes atuais com msicas eruditas, e, atravessando todos esses fenme-nos, a transformao maior da instrumentao, at a produo eletrnica e informtica de sons e a remodelao de esquemas sonoros timbres, ritmos, escrituras , ela mesma contempor-nea da criao de um espao ou de uma cena sonora mundial, cuja natureza extraordinariamente mesclada popular e refina-da, religiosa e profana, antiga e recente, proveniente de todos os continentes no possui verdadeiro equivalente em outros domnios. Produziu-se um devir-msica da sensibilidade e um devir-mundial da musicalidade cuja historialidade resta pen-sar, sobretudo porque ela contempornea de uma expanso da imagem cuja amplitude no corresponde a transformaes equivalentes no teor sensvel.

    Estar escuta , ento, entrar na tenso e na espreita de uma relao a si: no, necessrio sublinhar, uma relao a mim (sujeito suposto dado), e tampouco ao si de outro (o falante, o msico, ele tambm suposto dado, com sua sub-jetividade), mas a relao em si, pode-se dizer, tal qual forma um si ou um a si em geral, e caso algo como isso jamais chegue ao termo de sua formao. passar, em consequncia, ao registro da presena a si, estando a entendido [entendu] que o si no precisamente nada de disponvel (de subs-tancial e de subsistente) ao qual possamos estar presentes, mas justamente a ressonncia de um reenvio.21 Por esta razo, a escuta a abertura estendida ordem do sonoro, e ento a sua amplificao e a sua composio musicais pode e deve aparecer para ns no como uma figura do acesso ao si, mas

    16. Este no o valor exclusivo da palavra guet (cuja origem se relaciona com o despertar, com a vigilncia), mas revelador o fato de que, numa cultura onde predomina o reconhecimento de formas, a associamos mais espontaneamente a ele.

    17. Entre centenas de distribuies e combinaes possveis de sentidos, eu posso, para meus propsitos, esboar esta: o visual (e o gustativo) em relao com a presena, o auditivo (e o olfativo) em relao com o sinal (e o tctil abaixo de ambos). Ou, ainda, dois modelos gregos do brilho ou da glria: o visual, doxa, aspecto em conformidade ao esperado, e o acstico, kleos, renome propalado pela palavra. Mas com isso no teremos, de toda forma, nada dito sobre os outros sentidos (do movimento, da tenso, do tempo, do magnetismo...).

    18. Michelle Grangaud, tat civil, Paris, POL, 1999.

    19. Pascale Criton, entrevista com Omer Corlaix, em Pascale Criton, Les univers microtemprs, col. la ligne, editada pelo Ensemble 2e2m, Champigny-sur-Marne, 1999, p. 26. Sobre a compreenso mimtica da msica e sobre seus resultados, preciso remeter ao texto de Philippe Lacoue-Labarthe, Lcho du sujet, ao qual eu teria ainda a oportunidade de me referir (em Le Sujet de la philosophie, Paris, Aubier-Flammarion, 1979). Persigo aqui, de fato, aquela que era a inteno declarada desse texto: penetrar um pouco no poder perturbador (p. 294) da msica ou retornar at o antemusical, em que o eu descobre o som de uma voz que o dobra, segundo a citao de Wallace Stevens com a qual o texto termina. Eu apenas me ocupo, para concluir, da ressonncia de uma tal voz, prolongando sua reverberao no pensamento de Lacoue-Labarthe (seu nome j no um eco em si mesmo? la... la...: ele me entende [entend]...).

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    como a realidade deste acesso, uma realidade por conseguinte indissociavelmente minha e outra, singular e plural, do mesmo modo que material e espiritual, significante e assignificante.22

    Essa presena no portanto a posio de um estar-presen-te [tre-prsent]: isso o que ela justamente no . Ela presen-a no sentido de uma em presena de, que no , ela mesma, um em vista de nem um vis vis. um em presena de que no se deixa objetivar ou projetar adiante. Isso porque ela antes de tudo presena no sentido de um presente que no um ser [tre] (ao menos no no sentido intransitivo, estvel e consistente da palavra23), mas sobretudo um vir e um passar, um se estender e um penetrar. O som essencialmente provm e se dilata, ou se difere e se transfere. O som presente no tambm, portanto, o instante do tempo filosfico-cientfico, o ponto de dimenso nula, a estrita negatividade em que sempre consistiu esse tempo matemtico. Mas o tempo sonoro tem lu-gar, de incio, segundo toda uma outra dimenso, que tambm no aquela da sucesso simples (corolrio do instante nega-tivo). um presente que vaga sobre um fluxo, no um ponto sobre uma linha, um tempo que se abre, que se retrai e que se alarga ou se ramifica, que envolve e que separa, que coloca ou se coloca em onda, que se estira ou se contrai, etc.

    O presente sonoro desde o princpio o fato de um es-pao-tempo: ele se projeta no espao ou sobretudo abre um espao que o seu, o espaamento mesmo de sua ressonncia, sua dilatao e sua reverberao. Este espao desde o incio onidimensional e transversal em relao a todos os espaos: sempre se destacou a expanso do som atravs de obstculos, sua propriedade de penetrao e de ubiquidade.24

    O som no possui face oculta25, ele todo adiante detrs e fora dentro, sentido de ponta-cabea com relao lgica mais geral da presena como aparecimento, como fenomenalidade ou como manifestao, e, assim, como face visvel de uma pre-sena em si subsistente. Algo do esquema terico e intencional regulado pela tica nele vacila. Escutar significa entrar nessa espacialidade pela qual, ao mesmo tempo, eu sou penetrado: porque ela se abre em mim bem como ao redor de mim, e de mim assim como em direo a mim: ela me abre em mim tanto quanto ao fora, e por uma tal dupla, qudrupla ou sxtupla abertura que um si pode ter lugar.26 Estar escuta estar ao mesmo tempo no fora e no dentro, estar aberto de fora e de dentro, portanto de um a outro, e de um no outro. A escuta formaria ento a singularidade sensvel que conteria no modo o mais ostensivo a condio sensvel ou sensitiva (aisttica) como tal: a partilha de um dentro/fora, diviso e participao, desconexo e contgio. Aqui, o tempo se faz espao, faz cantar Wagner em Parsifal.27

    21. O ouvido e o sonoro no recebem, no entanto, um privilgio no sentido rgido do termo, embora retirem dele uma particularidade admirvel. Em certo sentido, e bem necessrio repetir, todos os registros sensveis compem esse acesso ao si (portanto tambm ao sentido). Mas o fato de que eles sejam muitos e sem totalizao possvel introduz nesse mesmo acesso, desde o princpio, uma difrao interna, que pode por sua vez se deixar analisar em termos de reenvios, de ecos, de ressonncias e tambm de ritmos. Seria preciso prosseguir essa anlise que desemboca tambm, como compreendemos, naquela relativa pluralidade das artes (conforme Jean-Luc Nancy, Les Muses, Paris, Galile, nova edio ampliada, 2001, em particular Les artes se font les uns contre les autres).

    22. Pois conveniente reservar a possibilidade, reclamada por Heidegger, de uma transitividade do verbo ser [tre].

    23. Remetemos, em particular, a Erwin Strauss, Le Sens des sens, trad. G. Thines e J.-P. Legrand, Grenoble, Jrme Million, 1989, p. 602 e ss.

    20. Ao falar de presena a si nos colocamos evidentemente no lugar onde Jacques Derrida situou o corao de sua empreitada, principalmente a partir de La Voix et le Phnomne. Poderamos reabrir aqui, com efeito, todo o canteiro dessa voz: mostrar sua sonoridade e sua musicalidade significa fazer ressoar de outro modo a diffrance mesma. Antes, porm, devemos tambm simplesmente sublinhar que o privilgio filosfico dado por Husserl, assim como por vrios outros, repercusso silenciosa de uma voz como sujeito ou motivo do sujeito ou motivo eles-mesmos no , decerto, estranha (ainda que seja por inverso) propriedade singular da penetrao e da emoo sonora. Um pouco mais adiante vou retornar, em companhia de Granel, anlise do presente vivente da presena-a-si.

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    Nessa presena aberta e sobretudo operante enquanto abertura, na separao e na expanso acsticas, a escuta tem lugar ao mesmo tempo que o evento sonoro28, disposio cla-ramente distinta daquela da viso (pela qual, de resto, no h tampouco evento visual ou luminoso em um sentido ver-dadeiramente idntico: a presena visual j est l disponvel antes que eu a veja, a presena sonora chega: ela comporta um ataque, como dizem os msicos e os que lidam com a acstica). E os corpos animais, com muita frequncia, o corpo humano em particular, no esto capacitados para interromper vonta-de a chegada sonora, como amide foi destacado. As orelhas no tm plpebras um antigo tema no raro retomado.29 Ademais, o som que penetra pela orelha propaga atravs de todo o corpo alguma coisa de seus efeitos, o que no seria pos-svel dizer, de maneira equivalente, a propsito do sinal visual. E caso se d relevo ao fato de que aquele que emite um som escuta [entend] o som que ele emite, sublinhamos com isso que a emisso sonora animal tambm, e forosamente (ainda a, com muita frequncia), sua prpria recepo.

    Um som coloca em estado de quase-presena todo o siste-ma de sons e a que se distingue primitivamente o som do rudo. O rudo d ideias das causas que o produzem, disposies para a ao, reflexos mas no um estado de iminncia de uma famlia de sensaes intrnsecas.30

    De qualquer maneira, o sonoro onipresente desde quan-do est presente, e sua presena jamais um simples estar-l ou um estado de coisas, ela sempre, e de uma s vez, avano, penetrao, insistncia, obsesso ou possesso, ao mesmo tem-po que presena em rebates31, em reenvio de um elemento a outro, seja entre o emissor e o receptor ou em um ou outro, ou, enfim, e sobretudo, entre o som e ele-mesmo: nesse entre ou antro do som no qual ele propriamente o que ao res-soar em conformidade ao jogo daquilo que a acstica distingue como seus componentes (altura, durao, intensidade, ataque, sons harmnicos, sons parciais, rudos de fundo, etc.), e cuja caracterstica maior a de no constituir somente os resultados de uma decomposio abstrata do fenmeno concreto, mas tambm de jogar realmente uns contra os outros nesse fen-meno, de tal sorte que o som soe ou ressoe sempre aqum de uma oposio simples entre consonncia e dissonncia, estan-do feito de um acordo e de um desacordo ntimos entre suas partes: estando feito, talvez preciso acabar por diz-lo, do acordo discordante que regula o ntimo enquanto tal... (E sem esquecer, ainda que sem poder deles falar sabiamente, do papel bastante singular desempenhado na escuta por isso que nomea-mos as otoemisses acsticas produzidas pela orelha interna daquele que escuta: os sons oto- ou auto-produzidos que vm se mesclar aos sons recebidos, para os receber...)

    27. Cfme. Erwin Strauss, Le Sens des sens, op. cit. Cfme tambm, na exposio de Michel Chion que eu escutei [entendis] no mesmo colquio da IRCAM, os temas da impossibilidade de um recuo e de uma aproximao do objeto sonoro, em oposio ao objeto visvel, ou da impossibilidade de uma viso de conjunto caso o objeto sonoro tenha certa durao.

    28. Precisamente assim enunciado, por Pascal Quignard, em La Haine de la musique, Paris, Calmann-Lvy, 1996, p. 107.

    29. Paul Valry, Cahiers II, Paris, Gallimard, 1974, p. 974.

    30. Ibid,, p. 68.

    24. Cfme. Musique, em Jean-Luc Nancy, Le Sens du monde, Paris, Galile, 1993, p. 135.

    25. A despeito das proximidades, no seria possvel aplicar inteiramente uma tal descrio aos outros modos de penetrao sensvel que so o odor e o sabor, e menos ainda penetrao luminosa.

    26. Ato I, cena I, Gurnemanz: Du siehst, mein Sohn, / zum Raum wird hier die Zeit, no momento em que o cenrio passa do exterior na floresta ao interior da sala do Graal, num grande movimento ascensional da orquestra no qual retornam os temas principais da obra.

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    Toda a presena sonora, deste modo, feita de um com-plexo de reenvios cujo enlaamento a ressonncia ou a so-nncia do som, expresso que se deve entender entender e escutar tanto do lado do prprio som, ou de sua emisso, quanto do lado de sua recepo ou de sua escuta: exata-mente de uma a outra que ele soa. L onde a presena vi-svel ou ttil se mantm em um ao mesmo tempo imvel, a presena sonora um ao mesmo tempo essencialmente mvel, vibrante de ir-e-vir entre a fonte e a orelha, atravs do espao aberto32, presena de presena mais que pura presena. Poderamos nos propor a dizer: h o simultneo do visvel e o contemporneo do audvel.

    Essa presena est sempre, ento, no reenvio e no encon-tro. Ela se reenvia a si, ela se encontra, ou melhor, ela se faz contra si, a seu encontro e toda contra. Ela co-presena ou, ainda, presena em presena, caso isso possa ser dito. Mas por mais que ela no consista em um estar-presente-a, em um ser estvel e posto, ela, entretanto, no est alhures nem ausente: ela estaria sobretudo nesse rebate do a ou em sua oscilao, que faz dela, do lugar sonoro (sonorizado, sera-mos tentados a dizer, conectado com o som), um lugar-a-si, um lugar como relao a si, como o ter-lugar de um si, um lugar vibrante como o diapaso de um sujeito, ou melhor, como um diapaso-sujeito. (O sujeito, um diapaso? Cada su-jeito, um diapaso afinado de modo diferente? Afinado sobre si mas sem frequncia conhecida?)

    Seria necessrio, aqui, deter-se longamente para conside-rar o ritmo: ele no outra coisa seno o tempo do tempo, o pulsar do prprio tempo na batida de um presente que o apresenta separando-o de si mesmo, liberando-o de sua sim-ples estncia para fazer dela escanso (ascenso, elevao do p que escande) e cadncia (queda, passagem pelo batimen-to). O ritmo, portanto, separa a sucesso da linearidade da sequncia ou da durao: ele dobra o tempo para do-lo ao prprio tempo, e deste modo que ele dobra e redobra um si. Se a temporalidade a dimenso do sujeito (desde Santo Agostinho, Kant, Husserl e Heidegger), isso porque ela de-fine o sujeito como isso que se separa, no apenas do outro ou do puro a, mas tambm de si: porquanto ele se espera e se retm, porquanto ele (se) deseja e (se) esquece33 na medida em que retm, repetindo-a, sua prpria unidade vazia e sua unicidade projetada, ou lanada.34

    O lugar sonoro, o espao e o lugar e o ter-lugar , por-quanto sonoridade, no ento um lugar ao qual o sujeito viria para se fazer escutar [entendre] (como a sala de concertos ou o estdio onde entra o cantor, o instrumentista); , ao con-trrio, um lugar que se torna um sujeito na medida em que o som a ressoa (um pouco, mutatis mutandis, como a confor-

    31. Ou ento, para insistir ainda na singular comunidade dos sentidos: a dimenso sonora seria aquela da dinmica de um ir-e-vir, que tambm se manifesta, mas de um outro modo, na intensidade visual ou ttil a dimenso visual seria aquela da evidncia do aspecto ou da forma, a dimenso ttil aquela da impresso do gro, cada uma tambm se manifestando, mas de um outro modo, numa certa intensidade ou modalidade das outras.

    32. Pode-se sustentar com maior preciso essa constituio rtmica do si com Nicolas Abraham, Rytmes, Paris, Flammarion, 1999.

    33. Cfme as anlises da reteno primeira e do eu kantiano propostas por Bernard Stiegler, em La Technique et le Temps, 3. Le temps du cinma et la question du mal-tre, Paris, Galile, 2001.

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    mao arquitetural de uma sala de concertos ou de um estdio engendrada em funo das necessidades e das expectativas de um projeto acstico). Talvez seja preciso compreender a criana que nasce com seu primeiro grito como sendo ela prpria seu ser ou sua subjetividade a expanso sbita de uma cmara de eco, de uma nave na qual repercute de uma s vez aquilo que a arranca e aquilo que a chama, pondo em vibrao uma coluna de ar, de carne, que soa em suas embocaduras: corpo e alma de um novo qualquer um, singular. Um que vem a si ao se escutar [sentendant] dirigindo a palavra da mesma maneira que ao se escutar [sentendant] gritar (responder a outro? Cham-lo?), ou cantar, sempre a cada vez, em cada palavra, gritando ou cantan-do, exclamando-se como o fez ao vir ao mundo.

    A oscilao do lugar idntica quela do instante presen-te. A subtrao do presente sonoro pontualidade negativa e cronomtrica do presente puro e simples (tempo no dobrado, no pulsante, no modulado) deve-se ao fato de que esse tempo da adio sucessiva de presentes a, ao mesmo tempo, retoma-da de um presente (j) passado e relanamento de um presente (ainda) por vir. nesse sentido que se pode dizer, por exemplo: Em msica no h tempo fsico35.

    Aqui seria preciso retomar toda a anlise huserliana do tempo, porm conduzindo-a na direo da sua releitura magis-tral feita por Grard Granel.36 Com o perdo da esquematiza-o exagerada, retomamos apenas isso: para descrever a cons-cincia do tempo, Husserl emprega o paradigma da escuta de uma melodia.37 Ele analisa como o presente dessa percepo um presente formado pelo recobrimento, nele ou sobre ele, da impresso presente e da reteno da impresso passada, que se abrem para a impresso por vir. Presente, em consequncia, no instantneo, mas em si mesmo diferencial. A melodia tor-na-se assim a matriz de um pensamento da unidade da e na diversidade ou mesmo na divergncia ou na divorcidade (separao segundo sentidos inversos) bem como de uma diversidade ou divergncia da e na unidade. No mero acaso, por certo, o fato de a msica, e de modo mais preciso sua es-cuta, sustentar e expor uma afirmao de princpio da unidade na diferena e desta ltima na primeira. A unidade da unidade e da diferena, do curso da melodia e de sua modulao, de seu ar e de suas notas, por assim dizer, se efetua naquilo que Husserl denomina o presente vivente. Tal presente o agora de um sujeito que d, em primeira ou em ltima instncia, sua presena ao presente, ou seu presente presena. Nos termos aqui empregados, eu diria que o presente vivente ressoa, ou que ele ele-mesmo ressonncia e nada mais que isso: ressonn-cia uma na outra de instncias ou estncias do instante.

    34. Afirmao do maestro Sergiu Celibidache, escutado [entendu] no rdio (em outubro de 1999). Seria ainda o caso de inverter tal afirmao para dizer que no h tempo fsico, at o mais secamente medido, que j no seja cadncia e mesmo timbre, seja a primeira estritamente montona e o segundo simples distenso do silncio: a singular lgica sensvel do tic-tac resulta de que o som idntico, sem a variao imaginada do i ao a nessa onomatopeia, difere entretanto dele-mesmo ou difere a sua identidade.

    35. Le sens du temps et de la perception chez E. Husserl, Paris, Gallimard, 1968.

    36. Poderamos e deveramos, por certo, tambm nos deter na seleo da melodia, separada dos outros valores sonoros e musicais (harmonia, timbre, intensidade).

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    nesse ponto que Granel coloca sua objeo, de provenincia heideggeriana: segundo esta anlise, a diferena foi implicitamente definida como unidade a partir da qual o olhar fenomenolgico j manifesta38 tanto a unidade como a diversidade tomadas ou declaradas como tais. A intencionali-dade fenomenolgica se desvia assim daquilo a que ela contu-do visava: o afastamento original de cada trao, unidade e diversidade, que no se oferece como tal, mas que mergulha, ao contrrio, naquilo que Granel denomina como o Tcito, ou a diferena silenciosa que frutifica em todo percebido. Esta, para Granel, nada mais que o afastamento, a fugitividade e o pudor do ser em seu sentido heideggeriano. Tal sentido para acrescentar uma palavra ao texto de Granel o sentido tran-sitivo do verbo ser39 [tre], segundo o qual o ser o ente de um modo transitivo (que no todavia um fazer nem algu-ma operao...): um sentido, em consequncia, impossvel de escutar/compreender [entendre/comprendre], um sentido in-significvel mas que, porventura, se deixa... escutar. Olvidado desse afastamento do ser, Husserl, segundo Granel, perpetua o olvido do ser no sentido de Heidegger, e isso na mesma medida em que ele no estende a orelha ressonncia musical, porm de antemo a converte em objeto de uma visada que a configura. O som (e/ou o sentido) seria isso que a princpio no visado. Ele no seria a princpio intencionado: era ele, ao contrrio, que colocava em tenso, ou, ainda, sob tenso, o seu sujeito, que no tinha sido precedido por uma visada.

    A respeito disso seria preciso dizer mesmo ultrapassan-do o propsito de Granel que a msica (seno o som em geral) no exatamente um fenmeno, isto , no faz parte de uma lgica da manifestao. Ela faz parte de uma outra lgica, uma lgica da evocao, seria preciso dizer, mas nesse sentido especfico: enquanto a manifestao traz luz a presena, a evocao chama (convoca, invoca) a presena a si-mesma. Ela no estabelece nada, assim como ela no se supe estabelecida. Ela antecipa sua vinda e retm sua partida, permanecendo suspendida e estendida entre as duas: tempo e sonoridade, sonoridade como tempo e como sentido.40 Evocao: apelo41 e, no apelo, sopro, exalao, inspirao e expirao. Em appellare no h a princpio a ideia de nomear, mas a de um empuxo, de uma impulso.

    Seguindo Granel: da melodia ao silncio que a declara calando a unidade de sua unidade e de sua diferena, essa a exigncia ultra-fenomenolgica ou seja, ontolgica, sempre no sentido de que o ser difere a continuamente de qualquer ser-aqui-e-agora. O que no quer apenas dizer que ele sempre diferente, mas que ele no cessa de diferir esta prpria diferen-a: ele no se deixa identificar entre duas identidades, pois ele, o que difere, indiferente identidade e diferena.

    37. Le sens du temps et de la perception chez E, Husserl, op. cit., p. 118.

    38. Cf. supra, n. 2, p. 31.

    39. Como evitar de sublinhar que a etimologia de sonare, em um grupo semntico do som ou do rudo, no pode ser separada de um outro grupo onomatopaico (em que o som d o sentido...) do qual susurrus (rumor, murmrio) o primeiro representante (palavra expressiva, assinalam Ernout e Meillet, em que a duplicao e a germinao do r so dois traos caractersticos; Dictionnaire tumologique de la langue latine, Paris, Klincksieck, 1994. p. 670). E como no acrescentar que a palavra palavra [mot, que em portugus sobrevive no mote] vem de mutum, que designa um som privado de sentido, o murmrio emitido com a repetio da slaba mu? (E para o grego sig, silncio, por vezes proposto ter partido de uma slaba expressiva si-, como em sitta, que um chamado de pastor...). Se a diferena silenciosa se retira no seio da msica, o som privado de sentido no se retiraria no seio (mas no do seio) da palavra obrigada a querer dizer? A msica no a origem da linguagem, como se quis com frequncia pensar, mas aquilo que se retira e que nela se abisma.

    40. No original, appel, no sentido de chamado. A opo, aqui, por apelo se deve breve meno ao appelare latino que vem na sequncia (N.T.).

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    Proponho transcrever tudo isso dizendo que se trata de retornar ou de se abrir ressonncia do ser ou ao ser como res-sonncia. O silncio, com efeito, deve aqui se escutar [sen-tendre] no como uma privao, mas como uma disposio de ressonncia: um pouco ou mesmo exatamente... como, em uma condio de perfeito silncio, escuta-se [entend] ressoar o prprio corpo, seu sopro, seu corao e toda a sua caverna re-percussiva.42 Trata-se ento de retornar, desde o sujeito fenome-nolgico, ponto de visada intencional, a um sujeito ressonante, espaamento intensivo de um rebate que no se conclui em ne-nhum retorno em si sem to logo relanar em eco um apelo a esse mesmo si. Enquanto o sujeito da visada sempre j dado, posto em si desde seu ponto de vista, o sujeito da escuta est sempre ainda por vir, espaado, atravessado e chamado por ele-mesmo, sonado por ele-mesmo, caso eu possa me permitir todos esses jogos de palavras, mesmo triviais, que aqui sugere a lngua francesa.43 Embora Granel no o tenha formalmente declarado, quando se empenha em criticar a descrio husser-liana, o passo que ele quer avanar, desde a ordem fenomeno-lgica at o afastamento e o encobrimento ontolgico, no por acidente um passo que passa do olhar escuta: em certo sentido, implica sugerir que Husserl insiste em ver a melodia ao invs de a escutar...

    O sujeito da escuta ou o sujeito escuta (bem como aque-le que est sujeito escuta, no sentido de que possvel estar sujeito a um problema, a uma afeco e a uma crise) no um sujeito fenomenolgico, isto , ele no um sujeito filo-sfico, e, em definitivo, ele no porventura nenhum sujeito, a menos que este seja o lugar da ressonncia, da tenso e de seus rebates infinitos, a amplitude do desdobramento sonoro e a mincia de seu simultneo redobramento pelo qual se modula uma voz que vibra ao retirar de si a singularidade de um grito, de um apelo ou de um canto (uma voz: preciso compreender isso que soa desde uma garganta humana sem ser linguagem, isso que sai de um pescoo animal ou de no im-porta qual instrumento, e mesmo do vento nos galhos: o rudo para o qual estendemos as orelhas ou prestamos ouvidos44).

    41. Na caverna de Plato h mais que as sombras dos objetos que passeiam no exterior: h tambm o eco das vozes daqueles que os conduzem, detalhe de que se esquece com frequncia, to rpido seu abandono pelo prprio Plato, em benefcio exclusivo do esquema visual e luminoso.

    42. Para os alfonos: sonner pode querer dizer, na gria, atordoar, impor um nocaute, bem como fazer vir com uma sineta, um domstico, por exemplo, como dantes; em contrapartida, sonner teve, no francs antigo, o sentido de tocar [jouer] (um instrumento de msica) e de pronunciar (uma palavra), assim como de contar em um poema (de maneira acentuada, ruidosa) ou mesmo de significar, fazer escutar [entendre] um sentido, antes de restringir sua acepo, hoje, a emitir um som, repercutir, ressoar.

    43. Cfme Giorgio Agamben, La recherche de la voix dans le langage, cest cela la pense, La fine del pensiero, Le Nouveau Commerce, n 53-54, Paris, 1982.