Na terra dos canguru
-
Upload
alice-santos -
Category
Documents
-
view
222 -
download
1
description
Transcript of Na terra dos canguru
Na Terra dos Cangurus – Bill Bryson, Quetzal Editores, 2003
“ (…) A Austrália é um país tão difícil de
acompanhar. Na minha primeira visita (…) tomei
conhecimento do espantoso facto de, em 1967, o
primeiro-ministro Harold Holt, enquanto
deambulava por uma praia de Vitória, ter
mergulhado na rebentação e desaparecido. Nunca
mais se encontrou qualquer vestígio do pobre
homem. Isto era para mim duplamente
inconcebível: primeiro, que a Austrália pudesse
extraviar um primeiro-ministro /tenham dó!) e,
segundo, que nunca tenham chegado até mim
notícias da ocorrência. (…)
Em Janeiro desse ano [1997], segundo uma
informação redigida por um repórter do Times, os
cientistas estavam a investigar seriamente a
possibilidade de uma misteriosa perturbação sísmica no remoto interior australiano, quase quatro
anos antes, se ter tratado de uma explosão nuclear provocada por membros do culto apocalíptico
japonês Aum Shinrikyo (…) [que] em 1995 ganhou notoriedade repentina quando lançou enormes
quantidades de gás dos nervos sarin no metropolitano de Tóquio matando 12 pessoas.
(…) Claro que estão a perceber onde quero chegar. Este é um país que extravia um primeiro-
ministro e que é tão vasto e vazio que um bando de entusiastas amadores pode, aparentemente, ter
despoletado a primeira bomba atómica não governamental no seu território, tendo passado quatro
anos sem que ninguém se apercebesse disso. Sem dúvida que este é um lugar que vale a pena
conhecer.
E assim sendo, dado que sabemos tão pouco dele, talvez seja necessário expor alguns factos.
A Austrália é o sexto maior país do mundo e a sua maior ilha. É a única ilha que é também um
continente, e o único continente que é também um país. Foi o primeiro continente conquistado a
partir do mar e também o último. É a única nação que começou por ser uma prisão.
É o lar do maior ser vivo da Terra, a Grande Barreira de Coral (…). Tem mais coisas capazes de
nos matar do que qualquer outro lugar. Das dez cobras mais venenosas do planeta, todas são
australianas. Cinco das suas criaturas – a aranha de teia-funil, a vespa-do-mar, o polvo de anéis
azuis, a carraça paralisante e o peixe-rocha – são as mais mortíferas do seu género no mundo. Este
é um país em que até a mais fofa das lagartas nos pode deixar estendidos com uma picada tóxica,
onde as conchas não se limitam a ferir-nos mas por vezes nos perseguem verdadeiramente. (…) Se
não se for mordido até à morte de alguma maneira inesperada, talvez se acabe trincado por
tubarões ou crocodilos, ou irremediavelmente arrastado para o mar alto por correntes irresistíveis,
ou a cambalear até uma morte infeliz no forno do continente interior. É um sítio duro.
(…) Este é um país que está simultânea e desconcertantemente vazio e atulhado de coisas.
Coisas interessantes, coisas antigas, coisas que não são imediatamente explicáveis. Coisas que
ainda falta descobrir.
Acreditem: este é um lugar interessante.”
E assim começa o livro de viagens de Bill Bryson, Na Terra dos Cangurus, com o que parece ser
uma lista de factos históricos e de dados geológicos, geográficos e científicos sobre a Austrália. No
entanto, esta listagem de dados, início aparentemente pouco motivador, tem como objectivo dar-
nos a conhecer um país com uma paisagem natural e humana de extremos: sendo um dos maiores
países do mundo, é habitado por uma das populações humanas percentualmente mais baixas; a
sua costa tem muitas das praias mais belas do mundo (onde o citadino moderno pratica surf,
desporto inventado pelos antigos povos da Polinésia) mas também das mais perigosas (onde os
ataques de tubarões, alforrecas ou polvos venenosos são uma realidade); o seu interior árido e com
temperaturas tórridas é habitado pelo povo aborígene desde há milhares de anos, em perfeita
comunhão com a natureza, nos mesmos territórios que os seus antepassados primordiais,
sobrevivendo à discriminação e governação levada a cabo pelo “homem branco” desde que este
decidiu tomar para si este território com milhões de anos de existência.
É através deste país-continente que Bill Bryson nos guia, narrando as peripécias mais
inimagináveis que vivenciou aquando do seu contacto com as populações locais por onde passou,
partilhando algumas das muitas experiências enriquecedoras que viveu e que o emocionaram de
tal forma que a sua descrição nos emociona também, e contando-nos alguns episódios anedóticos
da história desse imenso país do qual nós, seus antípodas, tão pouco conhecemos, e eles,
australianos, nem sempre se orgulham (talvez porque ter um tetravô criminoso na família não seja
algo de que a grande maioria dos australianos goste de lembrar…)
Embora a literatura de viagens nem sempre seja um género apreciado, este é um livro
fascinante e muito divertido, onde o humor mordaz é uma constante, e que nos transporta (a um
preço muito reduzido!) literalmente para o outro lado do mundo. Cabe a si a decisão de escolhê-lo
como próxima leitura. Se não o fizer… Bill Bryson termina o seu livro com estas palavras: “(…)
digo-vos isto: o prejuízo é inteiramente nosso.
É que a Austrália é um lugar interessante. É mesmo. E é só isto que eu tenho a dizer.”
Ana Inácio, semana da leitura 2012