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54 CARTA FUNDAMENTAL REPORTAGEM Na hora certa Novo projeto do MEC pretende alfabetizar todas as crianças até os 8 anos de idade POR ISABELA MORAIS E TORY OLIVEIRA O governo federal está investindo em uma estratégia para acabar com um dos principais gargalos da educação brasileira, a alfa- betização nas séries iniciais do Ensino Fundamental. O objetivo é alfabeti- zar todas as crianças em Língua Portuguesa e Matemática até os 8 anos de idade, ao final do 3º ano, e eliminar, assim, os altos índi- ces de analfabetismo funcional entre crian- ças que estão na escola. A ideia do chamado Pacto Nacional de Educação na Idade Certa, aderido por mais de 5 mil municípios, é que as redes municipais e estaduais participem de avaliações anuais aplicadas pelo Inep ao fim do 3º ano do Ensino Fundamental e os gestores cumpram a meta de alfabetizar seus alunos, em troca do apoio técnico e financei- ro do MEC. Na prática, o ministério disponi- bilizará material didático e pedagógico, como jogos, obras de referência e tecnologias edu- cacionais que auxiliem os educadores, e en- tregará os acervos baseado no número de tur- mas de alfabetização e não mais por escola. Serão criadas também minibibliotecas, com cerca de 25 livros, dentro de cada sala de aula que receber essas turmas. Além do material voltado especificamen- te para essa etapa do ensino, os professores passarão a contar com um sistema informa- tizado para inserir os resultados da Provinha Brasil de cada criança, no início e no final do 2º ano. A aplicação de uma avaliação pelo Inep junto aos alunos do final do 3º ano vai aferir o nível de alfabetização alcançado. Ou- tra frente do programa é a formação de pro- fessores alfabetizadores. Quatro instâncias vão gerir o Pacto: um Comitê Nacional, uma Coordenação Institucional em cada estado e coordenações estadual e municipal. Sem co- nhecer o que acontece dentro da sala de au- la, porém, as melhorias podem ser restritas. De acordo com Maria do Rosário Lon- go Mortatti, professora da Unesp de Ma- rília e presidente da Associação Brasilei- ESCOLA E ENSINO O aumento de crianças matriculadas não é proporcional ao de domínio de leitura •CFReportagem1_43.indd 54 23/10/12 18:21

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na hora certa Novo projeto do MEC pretende alfabetizar todas as crianças até os 8 anos de idade Por I sab e l a M o r aI s e To ry o lIve I r a

O governo federal está investindo em uma estratégia para acabar com um dos principais gargalos da educação brasileira, a alfa-betização nas séries iniciais do

Ensino Fundamental. O objetivo é alfabeti-zar todas as crianças em Língua Portuguesa e Matemática até os 8 anos de idade, ao final do 3º ano, e eliminar, assim, os altos índi-ces de analfabetismo funcional entre crian-ças que estão na escola. A ideia do chamado Pacto Nacional de Educação na Idade Certa, aderido por mais de 5 mil municípios, é que as redes municipais e estaduais participem de avaliações anuais aplicadas pelo Inep ao fim do 3º ano do Ensino Fundamental e os gestores cumpram a meta de alfabetizar seus alunos, em troca do apoio técnico e financei-ro do MEC. Na prática, o ministério disponi-bilizará material didático e pedagógico, como jogos, obras de referência e tecnologias edu-cacionais que auxiliem os educadores, e en-tregará os acervos baseado no número de tur-mas de alfabetização e não mais por escola. Serão criadas também minibibliotecas, com cerca de 25 livros, dentro de cada sala de aula que receber essas turmas.

Além do material voltado especificamen-te para essa etapa do ensino, os professores passarão a contar com um sistema informa-tizado para inserir os resultados da Provinha Brasil de cada criança, no início e no final do 2º ano. A aplicação de uma avaliação pelo Inep junto aos alunos do final do 3º ano vai aferir o nível de alfabetização alcançado. Ou-tra frente do programa é a formação de pro-fessores alfabetizadores. Quatro instâncias vão gerir o Pacto: um Comitê Nacional, uma

Coordenação Institucional em cada estado e coordenações estadual e municipal. Sem co-nhecer o que acontece dentro da sala de au-la, porém, as melhorias podem ser restritas.

De acordo com Maria do Rosário Lon-go Mortatti, professora da Unesp de Ma-rília e presidente da Associação Brasilei-

Escola E Ensino O aumento de crianças

matriculadas não é proporcional ao de

domínio de leitura

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ra de Alfabetização, as políticas públicas conseguem modificar o entorno das esco-las, mas é difícil chegar ao universo da sa-la de aula. “As propostas em si não são na-da se não chegarem à sala de aula. Naque-le lugar específico da relação entre profes-sor e alunos não temos clareza sobre o que acontece, não há estudos. Ali dentro, quem decide é o professor com seus alunos.” Pa-ra a especialista, a definição de uma “ida-de certa” para aprender a ler não é cien-tífica, mas diz respeito ao contexto atual, em que as crem alfabetizadas. “Os índices de analfabetismo estão relacionados tam-bém, mas não apenas, com as dificulda-des da escola em ensinar a ler e escrever”, explica a professora da Unesp.

Dados do Indicador de Analfabetismo Funcional 2011 mostram que o índice de

analfabetismo funcional entre aqueles que cursaram até a 5ª série caiu 8 pontos por-centuais de 2001 a 2011, passando de 73% para 65%. Mas, entre as pessoas que estu-daram até a 8ª série, há uma estabilidade na proporção de analfabetos ao longo da déca-da (entre 27% e 26%). Nos anos posteriores, a situação não melhora. Dentre os brasilei-ros com Ensino Médio completo ou incom-pleto há um decréscimo nos níveis de alfabe-tização plena, de 49% para 35%. Apesar do aumento da proporção de pessoas que che-gam ao Médio, há uma forte diminuição do nível de habilidades entre os estudantes. Ou seja, o Brasil avançou nos níveis iniciais da alfabetização, mas não conseguiu progres-sos visíveis ao longo de todo o ensino bási-co e deixou de formar pessoas capazes de ler e compreender textos de média exten-são, localizar informações, resolver proble-mas com sequência de operações simples e com noções de proporcionalidade.

“Isso mostra que temos uma maioria de sujeitos alfabetizados, mas que são capazes de ler apenas textos curtos, de fazer inter-pretações literais e que não se constituem como leitores plenos”, explica Sílvia Colello, especialista em alfabetização e autora do li-vro A Escola Que (não) Ensina a Escrever. Para ela, o Brasil resolveu apenas o proble-ma quantitativo com a democratização e ampliação do acesso ao ensino nos últimos anos, deixando de lado a qualidade. Despre-parada para lidar com as diferentes origens socioculturais das crianças, a escola acaba privilegiando o público detentor de uma ex-periência letrada prévia. “Com isso, as ou-tras crianças entram na escola, mas não con-seguem alcançar o sucesso esperado.”

Responsável por uma turma de primeiro ano na Emef Marechal Eurico Gaspar Du-tra, localizada na zona sul de São Paulo, a pro-fessora Lupe Fernanda Marques conta que a diferença entre os alunos é gritante. “Traba-lho em uma escola pública que atende crian-ças de uma comunidade carente. Muitas não têm contato com livros e revistas em casa, en-quanto outras conseguem ter acesso a esse ti-po de coisa. Mas meu papel como educadora é amenizar essas diferenças”, diz. A mesma

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diferença entre seus alunos é observada por Graziele Gonçalves da Rocha, professora de Educação Infantil na Escola Materna de San-to André: “Alguns aprendem rápido, mas ou-tros são ainda muito novinhos e imaturos pa-ra entrar no primeiro ano. Quando eles che-gam lá, até acompanham, mas não sabem o que estão fazendo”. Para a educadora, o Pac-to será positivo se não apressar o letramen-to dos alunos, comportamento comum entre os pais, que querem ver o quanto antes seus filhos na educação básica. “Temos de respei-tar o tempo de cada criança.”

Fundamental para o sucesso da trajetória escolar, o conceito de alfabetização e de co-mo alfabetizar mudou ao longo dos anos. O processo já foi entendido como o domínio do funcionamento do sistema de escrita, ou se-

ja, conhecer as letras e juntá-las para cons-truir palavras, que, por sua vez, formam fra-ses e textos. Para o ato de apenas decodifi-car, as antigas cartilhas cumpriam bem esse papel, afirma Sérgio Leite, psicólogo e pro-fessor no Departamento de Psicologia Edu-cacional da Faculdade de Educação, na Uni-camp. Uma das consequências históricas do antigo modelo de alfabetização é que a esco-la não se interessava em envolver as crian-ças: “Como as gerações até os anos 80 sa-biam identificar o código, mas eram inca-pazes de compreender o conteúdo do texto, surgiu o conceito de analfabeto funcional”.

Atualmente, apenas dominar o código não é mais considerado suficiente, e as práticas que privilegiam esse tratamento mecânico são consideradas ultrapassadas. “No senti-do de ensinar a ler e escrever, o que os traba-lhos de ponta estão fazendo é criar oportu-nidades para que as crianças escrevam des-de muito cedo, rompendo com aquela lógi-ca de primeiro aprender para depois usar a língua escrita”, analisa Colello.

Um dos marcos dessa mudança de con-cepção foi a publicação no Brasil, na déca-da de 1980, do livro Psicogênese da Língua Escrita, da psicolinguista argentina Emilia Ferreiro. A partir daí, estudos sobre o letra-mento passaram a levar em conta experiên-cias socioculturais da criança e a importân-cia de inserir a leitura e a escrita em seu con-texto social. Ou seja, mais do que entender o

As pesquisas indicam criar oportunidades para que as crianças escrevam desde cedo, rompendo a lógica de aprender para depois usar a língua escrita, afirma Sílvia Colello

O projeto do governo fede-ral baseou-se no Programa Alfabetização na Idade Certa (Paic) do Ceará, que nasceu por iniciativa do Comitê Cearense para a Eli-minação do Analfabetismo Escolar, em 2004. O em-purrão inicial deu-se por um estudo de números preocupantes: dos 8 mil alunos avaliados naquele ano, apenas 15% eram ca-pazes de ler e compreen-

der um pequeno texto de forma adequada. Em par-ceria com o Unicef, o Comi-tê iniciou o projeto para au-xiliar as cidades do estado na melhora da qualidade do ensino, da escrita e da leitura nas séries iniciais do Ensino Fundamental.

O governo estadual assu-miu a execução do progra-ma em 2007, tornando-o política pública, com a me-ta de alfabetizar todas as

crianças até o 2º ano. No projeto cearense, o estado se compromete a oferecer apoio às gestões munici-pais, formação continuada para os professores, livros de literatura infantil para as salas de aula e material di-dático para as escolas. Uma ampliação do projeto foi lançada em 2005, com o nome Paic Mais, com as metas de melhorar a apren-dizagem dos alunos da

rede pública até o 5º ano.Em 2007, das 184 cidades

cearenses, 15 possuíam ní-vel desejável de alfabetiza-ção infantil e duas encon-travam-se em situação crí-tica. No último levanta-mento realizado em 2011 pela Secretaria de Educa-ção, o número de cidades com nível desejável aumentou para 178, cerca de 96% das redes públicas municipais do estado.

Do Ceará para o Brasil

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É o caso, por exemplo, dos Objetivos do Milê-nio da Organização das Nações Unidas, que estabelecem como meta a educação de qua-lidade para todos. “O Pacto Nacional pela Al-fabetização na Idade Certa é uma iniciativa do atual MEC para tentar enfrentar essas di-ficuldades históricas e, em particular, atin-gir as metas dos organismos internacionais”, contextualiza Maria do Rosário Mortatti.

Outro ponto de tensão é que a cultura es-colar é muito enraizada, habitando não só o imaginário dos professores, mas também o dos pais, que esperam ver na alfabetização de seus filhos os mesmos procedimentos vi-vidos por eles. “Os professores, mesmo aque-les que recebem cursos e atualizações, no su-foco, recorrem aos métodos que para eles são a referência”, afirma Colello. A mudança, no entanto, vem sendo assimilada desde então tanto nos cursos de formação inicial quanto nos de formação continuada. “Houve avan-ços. É uma ingenuidade acreditar que se al-fabetiza hoje como nos anos 80”, completa.

Na linha de frente da sala de aula, Lupe Marques demonstra que as mudanças estão acontecendo. “Hoje as crianças já nascem no mundo da informação. Seria muito sem gra-ça apresentar para o menino de 5 ou 6 anos uma cartilha com lições do tipo ‘a vovó usa xale’. Está completamente fora do contexto. As coisas se transformam.”

Além disso, a leitura parece não ocupar um espaço privilegiado dentro da sala de aula. “Ou a leitura é de livro didático ou é feita no tempo que sobra”, resume Maria do Rosário. No mais das vezes, ler um bom texto em sa-la é encarado como luxo. Maria do Rosário defende que a utilização de textos literários de qualidade na escola são pontos de parti-da para que o aluno aprenda, de fato, a gos-tar de ler. Nesse ponto, é importante que o professor seja ele próprio um intenso leitor e produtor de textos, até para que seja capaz de estimular essa vivência em seus alunos. “Um bom texto literário ajuda a compreen-der que ler é muito bom. A motivação tem de partir da relação dos leitores e de quem en-sina com o texto”, explica a organizadora do livro Alfabetização no Brasil: Uma história de sua história, vencedor do Prêmio Jabuti 2012 na categoria Educação.

código, o aluno precisa ser leitor e também produtor de textos. Dentro da escola, houve uma mudança também no foco do conteúdo do que era ensinado para o sujeito que apren-de, o aluno. Além disso, a mudança acabou causando confusões. “De repente, saiu-se do modelo cartilhesco centrado no professor e se caminhou para uma posição radical, em que tudo dependia do aluno”, conta Leite.

Ao lado das mudanças teóricas houve tam-bém influência do cenário político interna-cional, a partir da globalização ocorrida na década de 1990. Foi quando organismos mul-tilaterais lançaram desafios para que os paí-ses, em especial os subdesenvolvidos, reorga-nizassem suas estruturas sociais e educacio-nais em torno de metas de desenvolvimento.

paradigmaCom os estudos de Emilia Ferreiro, mais do que entender o código, o aluno precisa ser leitor e produtor de textos

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