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Na criação, foi atribuído aos irmãos Prometheus e Epimetheus a distribuição das qualidades pelos seres mortais.
Epimetheus pediu ao seu irmão para o fazer e no fim, Prometheus faria a revisão – então Epimetheus distribuiu sobre os animais as demais qualidades de maneira a que determinadas características
positivas compensassem as negativas para que os mortais pudessem sobreviver às estações dos deuses, mas esqueceu-se do homem. Quando Prometheus fez a revisão verificou que todos os
animais estavam compostos menos o homem, que era o único que estava nu diante os demais. Prometheus decidiu então roubar de
Hefesto o fogo e de Atena a sabedoria das artes e dá-los ao homem mortal para que este pudesse sobreviver. Quanto a
Prometheus, foi condenado por Zeus a ser preso a uma pedra, junto de um abutre que de dia de bicava o fígado e durante a noite
se regenerava.
Prometheus (em grego: Προµηθεύς, Promēthéus, "antevisão")
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nº 4 Estatuto Editorial – a revista PROMETHEUS pág. 5 do corpo à obra – Márcio Luís Lima pág. 8 Reflexo dos Anjos ( 1 ) – Filipa Meira (fotografia) pág. 40 POESIA “O maço em mim. Não sei onde estou.” – Rodrigo Antas pág. 43 “Fadas e fados” – Sónia Curcialeiro (ilust. Juliana Ribeiro) pág. 47 “Como se constrói casas no céu?” – Ana Rodrigues (ilust. Juliana Ribeiro) pág. 49 “Colapso” – Ana Rodrigues (ilust. Juliana Ribeiro) pág. 51 “C U B I S M O” – Ana Rodrigues (ilust. Nazaré Marques) pág. 53 “C U B I S M O II” – Ana Rodrigues (ilust. Nazaré Marques) pág. 55 “Quem eu?” – Sónia Curcialeiro pág. 57 “(sem título)” – Cátia Cardoso pág. 58 “Fabrico de Eu” – Sónia Curcialeiro pág. 61 “Um mar, um lar” – Afonso Oliveira pág. 63 “por vezes faz sol” – Márcio Luís Lima pág. 65 Perdidos e Achados – Filipa Meira (fotografia) pág. 69 TEXTOS “Assinado: Um Alien demasiado humano” – Madalena Filipe pág. 71 “Desamor à primeira vista” – Sandra May pág. 74 “Fazer Memórias” – Leonor Ferreira pág. 77 Reflexo dos Anjos ( 2 ) – Filipa Meira (fotografia) pág. 79 ARTIGOS DE OPINIÃO e CRÓNICAS “Como ser-se o próprio através da gratidão?” – Tiago Gaspar pág. 82 “Um caminho de regresso ao passado?” – Beatriz Rodrigues pág. 84 “Deixem o Sexo em Paz” – Susana Henriques pág. 86 “Coração Voluntário” – Mónica Espiñal pág. 88 “Crónica sobre as efemeridades” – Tiago Gaspar pág. 92 “A cultura ‘indie’ americana (e o que falta a Portugal) – Afonso Oliveira pág. 94 “Relembrar o Holocausto para nunca mais se repetir” – Beatriz Rodrigues pág. 96 “O Cinema, a experiência individual” – Márcio Luís Lima pág. 99 Uma porta aberta na rua Ferreira Borges de Coimbra – Filipa Meira (fot.) pág. 101
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Estatuto Editorial – a revista PROMETHEUS
A PROMETHEUS é uma publicação digital trimestral dedicada à
maioritariamente à literatura — com as vertentes de poesia, texto literário, crónica e artigo
de opinião. Pretende ser um meio de expressão literário.
A PROMETHEUS é independente — no sentido lato da palavra — não tem
quaisquer pretensões políticas, económicas, ideologia religiosa ou de qualquer outro tipo
que seja considerado um obstáculo à criação literária.
A PROMETHEUS tem como objetivo divulgar textos literários e por ventura criar
uma “rede” de autores amadores (ou não) de modo a que se conheçam e por ventura
fundar uma das gerações literárias dos novos anos vinte.
A PROMETHEUS terá sempre livres e diversificados. Jamais é imposto um tema
(ainda que daremos preferência à escrita criativa e ambiciosa que fuja do clichê romântico
e amoroso e, por ventura, da ideia romantizada do poeta triste — no fundo, afastar da
ideia típica de “best-seller” de supermercado).
A PROMETHEUS não assume a responsabilidade pelas opiniões expressas nos
textos. Todos são da inteira responsabilidade do autor.
A PROMETHEUS conta com a participação de autores regulares bem como
também de autores convidados ou colaboradores espontâneos — as participações podem
ser requeridas para o mail ([email protected])
A PROMETHEUS reserva-se ao direito de optar ou não pela publicação dos textos
recebidos.
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A PROMETHEUS não tem qualquer ligações a editoras e segue sendo uma revista
independente e aquilo a que comumente se chama “underground” — esta característica é
o que dá alma ao projeto.
A PROMETHEUS é uma revista voltada para a publicação daqueles que são
apaixonados pela escrita e literatura, no fundo, dar uma plataforma aqueles que desejam
realmente vir a tornarem-se autores.
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do corpo à obra Márcio Luís Lima
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bem-vindo ao delirante
quotidiano, citadino
que espera diariamente
pelo recobro da
noite
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principia-se sempre na noite
entre a meia volta
da terra
uns fios de luz
penetram os escombros
da penumbra
disturbam o olhar vazio
ao longo de nenhures
pelo tecto acima
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o vislumbre da noite
é um inferno
rememorando o arquipélago
das insónias
uma mente cultivada
no seu pequeno horto
incendeia-se
ergo-me a par da vista
e das horas
no relógio da
cozinha
beberico
água fresca
como um notívago
— bebedor noturno
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serei capaz de sonhar
com alguma turbulência
para além dos vermes
que me entram
nas vísceras
e tímpanos
agoniando-me a existência
a morte não me cede,
ri-se
gargalhando guturalmente
como um voyeur
excitada
a par do meu fracasso
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que rosto pútrido me olha
no reflexo dos meus olhos
de fronte para o espelho
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um vulto cuidará dos fios de luz
assemelhando-se a um canalizador
buscando fugas de vida
e tapando-as
com o negrume
sólido
da solitude.
esta noite
fui vencido
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enfardei o bucho
de chocolates
baratos, do lidl
assim que acordei
porque me esqueci do leite
dos cereais
da colher
da tigela
da vodka
da coca
mas,
ainda há café
e cigarros,
dois chocolates e tudo isto
abrem-me os olhos
à matutina luz
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o dia dá-se numa incessante procura
das putas que me fazem fazer vida
debilitado do bom senso até ferida
com vontade de rebentar pela costura
em delícia do contorno labial
e da presa jovial
morre-me a ausência de luz
em todo o recanto
e desvela-se a pele em espanto
tocando-se enquanto seduz
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pega em ti e sai
podes levar um
cigarro
deixa em troca o aroma
despido
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assim que fecho a porta
por fora
vulnerável à índole social
que me marra a ferro e fogo
os tomates de poeta
balbuciando a eloquência
filosófica predisposta
de tanto esquivo a vista ficou-me torta
ora, à hora,
a fragância do olhar é crucial
dançando por entre o jogo,
numa sala deserta,
que com a mesma frequência
se esgota
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a miúda tem calças justas
e o olhar apontado para as minhas mãos
roçando o branco tumescente
humedecendo os lábios às custas
do ser que pisa os meus chãos
e a tesão cresce subjacente
os autocarros são curtos
leva daqui pr’acolá
dispusemo-nos de um corredor
entre nós
a luz diurna abre-se em furtos
rápidos, e num chega para lá
o velho putanheiro em ardor
senta-se a seu lado
roça-lhe a vontade, sem hombridade
apenas demasiado velho
para cumplicidade na ambiguidade
é a minha paragem
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a merda da maçã
endiabrada, estagnou-
-me o estomago
há pêras?
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almoço à socapa
fugaz à própria fome
porque me apodrecem
os dentes
é tudo farinha da mesma papa
mexericada à faca, some
da mesa o fine, padecem
as vozes dementes
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trazem-me café de água suja
e a mesa consome as cinzas
dos tremeliques da mão anémica
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a tarde é uma revolta
silenciosa,
desliga-se o sol
e dorme o leão
fervendo o sangue
lavando-se, ensaboando
a intimidade
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carne fraca em brasa
carne fresca crua
uma cá em casa
outra na rua
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alguma noite morrerei
é certo, nunca de dia
que a esperança é outra
a de ver a luz
cair primeiro
dói menos
ao volátil ego
esta noite já desceu
posso morrer
com vaidade
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o tipo bera
e libertino, veste-se
agarra as garrafas
pelas goelas
serve dois copos
pour moi et je
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alguns entraram a meio
da música e da bebida
mas trouxeram mais!
a música era um oferecido
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o cartel já vai longo
e hoje consome-se
a mercadoria, os vidros
estilhaçam-se na sala
de chuto, casa de banho
improvisada, cagamos
e mijamos, primeiro
ou riscamos antes?
a casa confundiu-se, virou
as patas para o ar, nuvens
entraram
cá para fora
e desabrigaram a chuva
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as moedas não enrolam
dinheiro nem sempre é
ponte para a felicidade
ou narinas
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o cartão de crédito desfez
algumas pedras como
ossos, partindo
em vários sítios
fraturados
saturados
maçados
o Variações estava na outra divisão
no antro de alternativos, miúdos
graúdos à mistura
camuflados no estilo de vida
alheio à idade
aspirou-se o pó
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o espalho partiu-se
que reflexo tão desfeito
premonição! que coincidência
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a garrafa de vinho
tinto solitária, intelectual
entre copos de plástico
de branco a noventa cêntimos
pandã com o batom e alças
do sutiã escapulido
ao ombro tísico
desenvergonhado
o cabelo redondo curto, aparava
um pescoço leve, provocador
assinala-me o silêncio
aos lábios selados
como um convite
ao beijo por vir
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despe a seda, as alças
a alma, a minha vida
num copo de tinto
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o sal nos teus lábios
difere da amargura do batom
o respingar da excitação
difere da língua de veludo
o odor das cuecas amachucadas
difere do copo de vinho tinto
a mulher que há em ti
difere da miúda da sala
tens me em ti, para ti
nestes breves instantes de
silêncio
foi este o silêncio
que me pediste?
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assim, a voz retoma
no homicídio
glorificado no orgasmo
de uma noite vencida
faz malabarismo com o meu crânio
e irrompe-me as veias
banha-te no sangue
celebra a vitória
assim como eu danço, entre
as labaredas do teu ser
em êxtase, escorrendo-lhe o olhar
na escuridão do gemido
esperançando uma faca
que lhe abra o peito
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agora segue-me o olho da rua
como o olho do cu ébrio
nem charrua nem trapézio
é o próprio pé
que me leva até
ti
felizarda agoirada com virgindade
queixumes intrínsecos sem paradeiro
abrigas-te na música de um puteiro
com tanta hostilidade
a sorte em caminhar pelo inferno
e ver-nos ao longe, torturado
pelo ego genital, e tu
aparando a ponta dos cigarros
seduzindo pela
inocência
vês-me trôpego
que sorte virgem
para quem anda
no olho do cu
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um dia os versos serão
pão, pão para a fome
de outro esfomeado
para já são o que são
nem biografia nem pornografia
de certo um funeral à mortalidade
que morre e
jaz na minha tinta
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o dia jamais acabará
mas a vida, de certo, sim!
Dispo-me, a roupa cai pelo chão
E o poema vem-me pela mão
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Reflexos dos Anjos ( 1 )
por: Filipa Meira
modelo Lia Cachim
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POESIA
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O maço em mim. Não sei onde estou.
por: Rodrigo Antas
podridão, angústia, desprezo, tristeza, raiva, solidão,
algo translúcido, quatro cadeiras, uma mesa, três copos e uma beleza.
quatro cadeiras, uma para mim, outra para ti, uma para o diabo e outra para o
convidado.
na mesa, um quadro de Monet, na tua mão um revólver, na minha mão uma faca
e na mão do diabo a esperança.
eu degolo o diabo, roubo a esperança, tu dás-me um tiro na cabeça, roubas-me a faca.
agora o crime é teu.
o convidado chega e dá-te uma nota de cinco euros e diz para lhe dares o (re)vólver.
tu dás-lhe o quadro, mas ele tinha uma caçadeira.
os teus miolos estão agora na parede.
o convidado era o “barman”, que estava a servir-nos mijo e não cerveja.
na minha cabeça perfurada pela bala, irradia uma luz angélica que cega o “barman”
e ele cai no buraco que o diabo fez atrás do balcão.
o quadro afinal não era um Monet, era “O Grito” disfarçado,
que agora grita por ver todo o sangue na mesa.
depois entra a minha mãe, que chocada com tudo o que vê,
decide ir ver se estou acordado. não estou. levanta-me do chão e abraça-me.
com todo este afeto quase que ressuscito, mas a puta estava só a ir ao bolso detrás
das minhas calças para roubar a nota de vinte euros.
ela não tem dinheiro para comprar tabaco.
mas o bar estava vazio?
não.
havia mais três pessoas lá, que começaram a jogar à sueca com os dedos.
com os dedos?
sim.
não perguntes o porquê.
o “barman” grita algo do buraco, mas não se ouve, o caralho d’O Grito ainda não se
calou.
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e tudo isto dava uma imagem estranha, mas não posso elaborar muito mais,
pois o comboio já chegou e estou atrasado para o intervalo do jogo de futebol.
na casa das putas e dos drogados,
existem umas perucas que fazem ver unicórnios, se as vestires.
mas aviso já! que os unicórnios são um pouco gordos e tropeçam,
um pouco, nos próprios pés.
decidiram andar de saltos, para se sentirem mais femininos, mas esqueceram-se que
têm uns tomates até ao chão.
no decorrer de tudo isto, ainda consegues ouvir o “barman” a gritar do piso debaixo.
se te começar a chatear, atira-lhe o queijo que está em cima do balcão e ele,
muito provavelmente, cala-se.
se subires ao terceiro andar, acontece algo mágico na tua vida.
mas eu não sei o que é, porque o único andar, até onde subi,
foi o quarto andar a contar de cima para baixo.
daí o diabo ter-se sentado na minha mesa. mas mesmo assim,
pelas histórias que me contaram,
o terceiro andar tem uma pista de lama onde podes chafurdar com a boca
aos ritmos exóticos da música electrónica. eles dizem que é “punk”.
mas o bar não acaba por aqui!
tens também a sala para dar chutos na bola.
é um pouco pesada, mas habituas-te se mandares a bola com o nariz.
entretanto tens uma maluca a dançar a todas as horas da noite, do dia, da tarde,
da manhã, às horas da sesta, da festa, da testa, da palestra sobre o ambiente...
tenho de te contar!
no outro dia, há um ano atrás, ou há uns dias atrás, ou seja, na semana passada,
um gajo quis dizer, à frente de sábios,
e tu sabes que são sábios, porque eles vestem fatos cinzentos tipo “madman”...
mas já me estou a perder! espera aí! aguenta o cavalo! ou é os cavalos? ou injecta aí
o cavalo
e fá-lo esperar, enquanto ele corre em círculos dentro da tua cabeça de vidro.
meu!
a cabeça de vidro que faz com que o pensamento brilhe sobre o caos que é este bar. mas
isto é um bar?
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claro que é! não vês a bebida?
e a música? a música vê-se neste bar, porque o bar é muito especial!
mas estava a contar-te sobre o gajo que falava do ambiente, sem saber que ele próprio
era a poluição do meu meio.
não importa. ele um dia percebe que gosta mais de “spaghetti” do que “tortellini”.
já vais embora? dá-me a mão, então!
se me deres a mão, eu prometo que te guio nesta noite estranha.
não acreditas em mim?
porquê? eu falo-te da minha trágica história,
da minha morte gloriosa, a minha morte pelas mãos de um “tu”, “ti”, “teu”.
mas não és tu, ó tu! tu, tu, tu, tu.
não és tu!
como te devo chamar?
ele? meu? tenho te chamado de “meu”, mas não és meu, ou és meu?
não importa! dá-me a mão! antes que te chame de caralho!
vou-te mostrar o resto da noite das bestas.
esta rua vai dar à maluqueira. não sei se já a percorri, mas acho que se notaria.
aqui é o senhor que vende os bifes.
são bifes? não sei! mas o senhor vende comida a quem sai do bar.
eu não comprava massa aqui, se fosse a ti, meu.
passamos por esta rua, viramos à direita, damos uma volta ao pai de pedra,
que nos abre os braços para nos dar abraços
(e bate palmas!).
mas vamos continuar! beija-lhe a mão, o pé, faz o pino e o “des(ti)no”,
faz o trapezista, o ilusionista...
o quê? não sabes o que é o ilusionista? vou-te mostrar.
imagina isto,
estás no meio do mar e sentes o vento na cara. fechas os olhos e sentes o sabor do sal,
os grãos finos de areias soltas... estás a imaginar?
boa!
agora imagina tudo isso a explodir, e no meio da explosão, um pássaro voa,
mas um voo estranho, medonho, quase como se tivesse um problema nos intestinos...
foge! foge, meu! vem aí os fantasmas do amanhã! corre!
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estamos bem?
estamos.
o pássaro morreu no meio desta confusão toda... não faz mal! ainda me tenho a ti.
espera! ainda te tens a mim.
não, espera. ainda nos temos aos dois!
o teu corpo está aqui, o meu está no bar.
olha, um banco! vamo-nos sentar.
a noite está agradável. mas pressinto um frio vindo de ti.
que triste, acabaste a tua laranja! não faz mal! eu dou-te um cigarro.
foda-se, não sei do meu maço em mim.
espera um pouco que o perdi.
acho que o perdi em “ti”, em mim, ou no “tu”, no “teu”, no meu. ó meu!
já não sei onde estou...
mas não importa! os cigarros são todos para ti!
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Fadas e fados
por: Sónia Curcialeiro
ilustração por: Juliana Ribeiro
Às vezes acredito-me em contos de fadas,
Quando me visitam fantasmas vestidos de fraque,
Mas nenhum dia pensei ver de novo estradas,
Em olhos que há muito me tiraram destaque.
Bons olhos te vejam,
Bons olhos te beijam,
Que lábios meus jamais voltam ao trabalho em vão.
- “ Vão “
Vamos ?
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Em desejos,
Só se for.
Que amanhã voltas pra sina e eu pra dor,
Que amanhã é de tudo só não de amor,
Que sabemos bem,
já nós decor,
Cavaleiro que sente foge do fardo,
Cavaleiro inseguro mente.
E olha o dente,
A cavalo dado.
Com amor,
Sónia.
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Como se constrói casas no céu? por: Ana Rodrigues
ilustração por: Juliana Ribeiro
Como se constrói casas no céu?
Como se vive entre nuvens e não se cai?
Como somos felizes só por ser?
Contava todas as estrelas à noite, receando cair pelo meio das nuvens noturnas.
São tão mais bonitas. Nuvens escuras num céu ainda mais escuro, tornam-se
claras. Tornam-se sonhos. Se calhar já realizados.
Escrevia-te todos os poemas da Lua e todos as prosas do Sol. Só para te contar
como é viver cá em cima. Só para te cantar o meu amor desafinado. Por ti e pelas
nuvens. Mas não sei viver. Não em nuvens.
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Como se constrói nuvens na terra?
Como se vive entre casas e se flutua?
Como somos felizes a ser?
Nada te conto, porque tenho muito para contar. Tudo te escrevo porque nada tenho
para escrever. É difícil de pensar, mais do que falar. Então observo. Observo nuvens
em terra e casas no céu. E só de as observar já sou feliz. Ou pelo menos tento.
Tento escrever, porque não posso contar. É algo que não se conta, que não se
sente, que se vive.
Mas tu não sabes como as construir.
E eu preciso de uma casa no céu.
Preciso de uma nuvem na terra.
Preciso de apreender a não precisar.
E ainda assim, preciso.
Como se constrói nuvens no céu?
Como se constrói casas na terra?
Como somos felizes sós?
51 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Colapso por: Ana Rodrigues
ilustração por: Juliana Ribeiro
Gostava de escrever
Aquilo que não sei contar.
Era preciso alguém o fazer,
Para mais tarde eu me lembrar.
Queria abraçar o mundo
E agradecer-lhe em vão.
Filha do sentir ao segundo
E adotada pelo dizer que “não”.
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Revolta-me a indecisão
E por vezes a sabedoria.
Não sei existir com a traição
E mais ou menos com a agonia.
Se falar fosse suficiente
Por aqui não estaria a desabafar.
Filtrar o que me vai na mente
Para ninguém magoar.
Vivo assim,
Em revolta e amor no coração.
Só devia ter medo no fim,
Mas preciso mais do que uma razão.
Estudei na escola do universo,
Por cunhas dos meus pais.
O que posso deixar é só um verso:
“Desculpem mas não consigo mais.”
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C U B I S M O por: Ana Rodrigues
ilustração por: Nazaré Marques
Vivi em ti em noites contadas.
Mudei-me de mim por crenças ousadas.
Fui o tornado dos teus ares.
Fui barco para remares.
Por ti ficas-te, onde eu não podia flutuar.
E eu não parti, com medo de te afogar.
Construis-te-nos uma casa.
Que intitulaste como o refúgio para a nossa asa.
Desabafamos sonhos para uma vida,
Como quem a ambiciona vê-la despida.
No céu que me deitei contigo,
Consegui sentir o chão como nosso inimigo.
Pintamos quadros de lindas paisagens,
E nem sequer usufruímos dessas viagens.
Amamos nuvens de todas as cores,
Que até as horas nos deviam favores.
54 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
E por todo o fado que o universo nos guarda,
Vejo a nossa casa a desvanecer na vida bastarda.
Ergui-me novamente em mim.
Plantei as mesmas flores neste jardim.
O barco que sou, flutua,
Como os astros em volta da lua.
Os universos definem-se em linhas desenhadas,
E se a vida chegar, um dia, as linhas são cruzadas.
55 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
C U B I S M O II por: Ana Rodrigues
ilustração por: Nazaré Marques
Visito ainda neste sonho a que chamei casa,
Mesmo que nem sentido te faça.
Não sei decidir se construímos novas divisões,
Ou se demolimos as nossas previsões.
Tudo ainda é vitral transparente e sensível,
Para que correrias e desabafos, fosse algo tão puro quanto possível.
Sinto falta das nuvens em dias de trovoada,
Sinto falta das nuvens por tudo e por nada.
Que sol aquece o meu rosto,
Se nem o céu agora vive onde é suposto?
É claro que o tempo aqui não passa
Nem a tristeza, a traição ou a desgraça.
Tantas histórias de quem não esteve presente,
Tantos sonhos realizados num pedido divergente.
Sentimento de criar algo mais que o ser,
Sem ter o que realmente é nosso por dever.
56 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Eternamente próprios de um eu
Que clareado pelo nosso, nunca foi tão seu.
Gosto de pensar que o barco que sou, ainda flutua,
mesmo depois das tempestades das fases da lua.
Voltas em voltar não é viver,
E o voltar sem ficar é só sofrer.
Temporadas de escrita virão,
Não numerando páginas em vão.
Livros por sonhar e outros por escrever,
Retribuir ao universo mais do que tem para me oferecer.
57 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Quem, eu?
por: Sónia Curcialeiro
Não é falta de saudades vossas,
É saudades de mim.
Deixei-me não sei onde e faço-me falta.
E faço-vos falta.
Mas não sei de mim.
Não sei de mim,
nem em que dia estou.
Não sei da minha “ Raça”,
nem de quem a levou.
Não sei porque me escrevo e ainda me calo.
Que valor têm chamadas se nem falar eu falo ?
Quem me dera que me lessem com atenção.
Quem me dera que soubessem dos poemas e da sua real função.
Quem me dera falar como falava antes dos males.
Quem me dera voltar a mim antes dos calos.
Quem me dera que soubessem porque me calo.
Quem me dera agarrar-me quando por sorte me falo.
Quem me dera.
Quem me dera.
Quem me deu?
Já o era.
Já o fui.
Já não sou eu.
Com amor,
Sónia.
58 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
(sem título)
por: Cátia Cardoso
Somos - todos os que emitem vocábulos e se movem a duas patas
Entestados com coisas e outras coisas.
Somos movidos pelo impacto do que nos move,
Constantemente colocados à prova,
Empurrados para decisões - tantas vezes precoces
Pressionados e manipulados.
Somos - todos os que nos dizemos ser pessoas
Cegados pelas massas sociais
Que, já cegas, negam a ausência de visão
E que apalpam uma pedra
Afirmando que a mesma é algodão
E que recusam abrir os olhos da cara
E, porque se acham poder, os da sensibilidade.
Somos - os que autopromovem racionalidade
Fustigados na dinamização de uma monotonia de ideias
Num exacerbado comércio proveniente de produções em série
Somos - nós que nos enaltecemos sem hesitar
Na diferença, na capacidade de pensar (cegos que são!)
Nos direitos e deveres de uma sociedade
Onde prospera a liberdade de expressão (qual liberdade?)
Somos - nós, os supernos, os sumptuosos, os opulentos
Somos nós - os mesquinhos, os oprimidos, os manipulados
Mas somos o quê? Somos nós quem?,
Quando nem somos nós sequer a pensar o que balbuciamos
Somos nós o que não somos
E não somos nada, nada que valha coisa alguma!
Somos nós os que cremos fidedignamente numa maioria rele
Numa maioria isenta de valores primordiais,
59 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Somos os que nos deixamos moldar
Somos fantoches a que qualquer mão pode dar vida
Somos os arlequins dos media
Os bobos satisfeitos da sociedade
Somos selvagens no exercício da liberdade
E também na ausência do mesmo.
Somos o quê?
Não somos nada!
Somos um aglomerado de faltas de personalidades
Um aglomerado de mentes ocas
De peitos vazios
Somos o quê?, quando tudo e todos nos fazem ser qualquer coisa
Quando tudo e todos nos fazem ser
Menos nós.
Somos a falsa preocupação do Estado
A hipocrisia da religião
O forçamento da cultura
Somos a vergonha de uma nação
Somos a vergonha de uma sociedade
De uma sociedade que somos nós!
Somos a nossa própria vergonha
E nem assim somos nós!
Somos o apedeutismo que se entranha em cada veia dos nossos corpos
Corpos ambulantes, ignorantes que se orgulham de o ser
E mentes, as nossas mentes tão pobres
Que envergonham cada pedaço de nós.
O que somos, mesmo?
Não somos nada.
Somos o pudor do ser humano, a repugnância do pensar
Somos a humilhação e a desonra da sociedade
Uma sociedade que nos lança críticas diariamente
E que aparenta deter todos os princípios fundamentais
Que desconhece mas garante conhecer
Para a dignidade humana.
60 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Somos a indecência da sociedade
Que, por sua vez, somos nós.
61 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Fabrico de Eu
por: Sónia Curcialeiro
Pensam que não sou.
Falam do que digo.
A razão é tanta que acreditam empurrar-me para onde sigo.
Fazem-me rir.
Quão bom é rir!
Rir pela ironia da vida,
Gasta e sem sina,
Que por laterais e treinadores de bancada é opinada e dirigida.
“ Ai ra-pa-ri-ga! Para onde vais tu assim vestida ? “
Não vês que tentação é um pecado e Deus castiga ?
Tudo te investiga,
Da freira ao engatatão.
Se não és presa por ter gata,
És, porque andam à caça com cão.
Ai que injustiça ! Que desgraça !
Aí menina.. que a vida só te amassa !
Não te apoquentes amor,
Não te apoquentes!
Tudo se fala, tudo se diz,
mas é só por entre dentes !
Aos da linha da frente soltam-se os lobos.
Sempre assim foi,
A verdade é para os tolos ...
62 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
( e mói e mói ...)
Se bocas sujas não te lambem sapato,
Por grande que seja o feito,
Não é visto de bom grado!
(Mas não leves a peito ... )
“ Aceita que dói menos “ não há como os mudar,
“ Se não podes vencer, junta-te a eles “
(Lei de quem quer na vida vingar !)
Encarrilados à força,
desde o primeiro grunhido,
-“É a Ovelha negra da família ...”
- “ O que lhe terá acontecido ?”
Tão educada, estudiosa, prendada,
Tão contida, temerosa, obrigada...
Sei que o certo é ganhar vida tal como ensinam a crescer,
Mas Amor,
Na Caverna de Platão,
Também ninguém queria ir ver o sol nascer.
Com Amor,
Sónia.
63 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Um mar, um lar
por: Afonso Oliveira
O mergulho infantil por um ar sufocante
Numa busca insana por algo insólito,
Viver o cheiro a suor e sangue
Procurando o inalcançável.
Medonho,
Eu sonho,
Em busca de algo novo.
Memorável, talvez,
Ou fujo em vez
Do que paira diante dos meus olhos.
Por acaso nunca vi tamanha solitude.
Vivi, no entanto, e sobre tudo,
Por de trás dos meus olhos
Um absurdo abandono,
Embora acompanhado,
Do sono profundo,
Cansado, desejado.
Calar e comer?
Enquanto não poder escolher
Viver o sonho e a realidade esconder,
Existir para morrer, um indevido dever
De um homem acorrentado,
Apedrejado e atacado,
Por ver aquilo que nem Deus quis ver.
Mas, no fim do mundo,
Desistir para não sofrer
64 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
É um tanto absurdo
como um nunca querer ser.
Porque nenhum soldado luta com mais empenho
Do que aquele que já não tem nada a perder.
Nem aquele ar, nem o seu mar,
E por isso, dou a vida para viver.
65 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
por vezes faz sol
por: Márcio Luís Lima
Por vezes faz sol, num
certo dia em que choveria
de acordo com as previsões,
então pego no carro, e
vou até à esplanada de
um café que é tão meu
como da autarquia no
que toca a encontros, assim
que lá chego encomendo
uma cerveja fresca, para
o momento posterior de
segundos adiante, e mesmo
que o sol seja uma ilusão
e o vento recorte os limites
dos meus ossos por entre
a pele, que estala como
vidro estilhaçado ou gelo
em café quente
Quando me inclino para a
mesa do lado, verifico duas
mulheres jovens imponentes
à luz do dia numa fotossíntese
virtual iluminando-lhes o
loiro dos seus cabelos que às
sombras leves do vento
escurecem dois tons, como
um velha guitarra ao
pó do sótão esquecido.
66 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Peço-lhes um isqueiro para
acender este cigarro que levo
na minha boca dali para aqui,
desde então até agora, então
podes dar-me lume
a esta inércia envelhecida
e acender-me a ponta atroz
do tabaco e da vida.
Nas esplanadas não se fala
muito, dá-se lume e volta-se
ao lugar com a conversa
rudimentar da vida banal
que se leva, desde o artista
que se mata ou matou
que não era assim tão bom
nem menos que mau, mas
também elas palreiam acerca
do homem com matrimónio
contraído, em vertente contorcionista
desconhecido a certa noite
entretanto tratado na primeira
pessoa, levando-as, individualmente
em noites diferentes, para
a cama barata de um motel
na encosta da nacional grande
para se libertar do sémen
catártico de raiva quotidiana
que a mulher no engole há
anos demais, contrariamente a
estas jovens, rotineiras no ato
testando o salitro e não a impureza
da alma.
67 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Eu, fumo o meu cigarro
na esplanada solarenga
e evito pensar muito na
minha vida, ou na dos
outros, para ser franco
evito pensar de todo
para que possa respirar
ao sol por uma tarde
apenas.
A empregada do café já
não é a mesma de outrora
que a certa altura vestiu o
mar e me cravou a memória
com dialetos latinos, agora é
tão lusitana quanto eu, e
tão minhota quanto o meu
sotaque, entende quanto lhe
peço “um fino” e volta-me
com um copo de cerveja
com vinte e cinco centilitros
à pressão, pago e ela
lembra-se de mim como
um cliente, e eu dela, como
mais uma empregada.
Então agora o sol só
aparece nas esplanadas além
das minhas, porque não se lhe
convida a beber um copo
e leva o isqueiro, obrigando-me
a pedinchar à rés
da simpatia.
68 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
O que vale é que
por vezes faz sol
num dia em que
deveria estar a chover
e eu vou até lá,
até uma esplanada
à minha esplanada
beber uma cerveja
fresca.
69 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Perdidos e Achados
por: Filipa Meira
modelo João Coimbra
70 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
TEXTOS
71 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Assinado: Um Alien demasiado humano por: Madalena Filipe
Num mundo habitado somente por seres bloqueados, todos comentam que sou o
menos filtrado.
Neste rodopio sem fio, por onde ainda me guio, perco o meu ser no tardio
alvorecer. Divago por corredores às escuras ou no exterior, pelo meio das ruas.
Analisando as mentes com quem ando, vejo como cada uma é original, cada uma não tem
igual. Porém, todas elas (se) perdem (n)a essência do passo, enquanto se orientam
consoante as normas sociais pré-definidas (nem sei bem por quem). Falam segundo os
ideais universais, adotam as perspetivas que pensam ser gerais e nunca as mudam, nunca
sequer tentam.
Que desalento sem evento é este? Sim, ainda há momentos merecedores de
recordação. Há algumas rebeldias dignas de ovação, há danças noturnas, há segredos
segredados, lamúrias nunca dantes partilhadas e beijos sentidos presenteados, no entanto,
são tão poucos os que o fazem… É tão escasso o espírito que vive plenamente os
momentos caçados pelos contadores de histórias. A maioria parece que só age como quer
quando tem a poção da juventude a correr nas veias. Para quê refugiar o seu verdadeiro
ser por baixo da pele? Porque não estar envolto na aura da personalidade e só depois ter
os outros a comentar as extremidades? Para quê depender da chegada da bebida aos vasos
para baixar a guarda? Para quê usar o líquido como desculpa para “ser”? Porque não arcar
com as consequências e, irreverentemente, agir “como deve ser”? E como é esse “como
deve ser”? Simples. É como a tua alma desejar ser.
Não se tentem esconder, pois nenhuma opinião exógena interessa. Os humanos
vivem a proteger a alma do toque da dos outros. Mas não notam no medo que incutem
nos demais, que deixam de expor a sua alma, abandonando a sociedade a um ciclo vicioso
de escondidas e nunca de partilhas. Mesmo cientes do poder que esse medo pelo
desconhecido, que essa desconfiança erguida, pode ter (aquando o seu abate sob nações
e relações, dizimando-as sem misericórdia), continuam a elevar muralhas sem fim, com
o intuito de não deixar ninguém entrar, para também ninguém os julgar. Porém, se sem
72 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
muros de Berlim viverem, nenhum fardo será tão pesado de carregar, uma vez que nada
terão a ocultar.
A genuinidade é uma dádiva, um fruto proibido criado para a união das almas que
se devem interligar. Todavia, embora ninguém ouse encarná-la, todos enlouquecem ao
saboreá-la! Não se contentem com a degustação da autenticidade dos outros. Sintam-na
também! Vivam-na, sejam-na! Sejam Humanos humanos! Amem, partilhem, protejam os
outros e confiem que eles vos protegerão. Abram o vosso ser a quem estiver disposto a
entrar nele, não lhes dificultem o caminho, não é preciso, já que todo e qualquer ser
humano é um autêntico labirinto. Se se abrirem, em vez de fingirem, as pessoas certas
apaixonar-se-ão pelas vossas infinitas camadas. (Sim, plural! Já que nunca existem
pessoas só com uma camada e nunca existe só uma pessoa para cada uma. Todos temos
diversas vertentes no nosso interior que atraem o correspondente par deste par ação-
reação.) Esse amor (que surgirá com a mútua descoberta), seja em que forma for (desde
a admiração até à eufórica paixão, passando pelos sulcos de almas-gémeas, amizades e
cumplicidades), será perfeito no seu próprio jeito, pois será o mais próximo de
verdadeiro… Por isso, não faz sentido continuar o falso jogo de imitação.
Ainda deambulo pela cidade a analisar estes animais (ir)racionais para encontrar
uma explicação lógica para o auto-bloqueamento a que se sujeitam, contudo, ainda não o
consegui compreender. Quando me apercebi desta forma de agir diferente, interroguei
algumas criaturas. A maioria respondeu “Por medo”. Por medo de quê? “Por medo de ser
julgado, maltratado, gozado por não ser normal…”. Ai! Outra mentira que corre pelos
ouvidos citadinos! Normal. Todos temem a exclusão social, temem ser demasiado
normais e desinteressantes ou receiam ser tão diferentes que ninguém os entende! Que
falácia é esta? O conceito de normalidade foi criado pela própria Humanidade. Todavia,
não tem qualquer importância, dado que não há alicerces que o sustentem. Sendo
“normal” o comum entre a maioria e sendo que não existem duas pessoas exatamente
iguais, está claro como a água que é impossível universalizar uma personalidade. Logo,
se não há características comuns a uma maioria, será sempre inexequível definir a
normalidade. É estranho o raciocínio e ainda mais estranha é a conclusão, mas daí que
sejamos todos tão estranhos!
Enfim, durante esta estadia no Planeta Terra, apercebi-me de que os seres
humanos temem ser diferentes, mas anseiam por encontrar mentes diferentes. Parece que
se atraem pelo que não são: pelos não filtrados; pelos desbloqueados; pelos que os
73 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
condenam a correntes de pensamento nunca dantes filosofadas; pelos bêbados durante o
dia; pelos drogados ao despertar; pelos que não têm necessidade de narcóticos para
concederem aos outros a entrada numa nova e psicadélica perspetiva do mundo. Tantos
querem a loucura que tantos escondem, que resolveremos vários dilemas de
compatibilidade se assumirmos quem somos. Humanos, sejam mais humanos!
Experimentem a independência de fontes externas para assumirem o vosso ser genuíno e
alternativo, independentes de tudo e de todos, usufruindo dos químicos que o cérebro
sintetiza naturalmente. Explorem a humanidade e explorem a Humanidade.
Assinado: Um Alien demasiado humano
74 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Desamor à primeira vista por: Sandra May
Não vou mentir. Procurei a pessoa ideal para mim. Não deixei acontecer
naturalmente, não. Eu conheci quem quis conhecer. E, como foi bom conhecer alguém
como aquela que encontrei.
Lembro-me desse dia exatamente como ele aconteceu. As flores deixavam cair as
últimas gotas de transpiração, molhando o terreno que lhes assegurava a vida. O céu não
estava limpo e tão pouco se via o seu azul natural. Na verdade, a cobertura extensamente
cinzenta pintava um tempo choroso e derrotado, precipitando-se pela sua vontade de
explorar, mais uma vez, a impureza da cidade. Sentei-me num avelhantado e já esquecido
banco verde de jardim. A minha visão centrou-se instintivamente no antigo largo
principal daquela outrora grande praça. Foi por destino que os meus olhos a viram: uma
timidez vestia um corpo fechado por uma alma gasta pela falta de amor. Ali soube que
tinha de a ter.
Não me aproximei de imediato, deixei que o tempo chamasse pelo tempo certo e,
sem esperar muito mais, o tempo trouxe: a chuva. Observei a agitação e velocidade com
que a multidão desapareceu. Os passos eram apressados e incertos. A gritaria que ecoava
em todas as direções incitava toda a massa humana a fugir da pureza da água. Mas ela
não. Permaneceu sentada no seu banco, de costas voltadas para mim. Aproximei-me. O
meu tempo tinha chegado. Assim que me sentei a seu lado, senti-lhe a solidão sem
precisar de lhe tocar. Foi destino. Assim como a confirmação de que ainda tínhamos
muito para viver. Os olhos secos de emoção e a frieza nos seus lábios foram o sinal de
que era ali que eu deveria estar. Tinha encontrado, finalmente, quem me recebesse sem
questionar. Alguém com espaço suficiente para eu entrar sem desconfiar. Alguém que
simplesmente me aceitasse. Senti profunda gratidão.
Observei-lhe as roupas ensopadas e os seus músculos imóveis. Não tremiam com
o vento gélido que lhe percorria a pele. Não, ela não. Julguei mesmo, apenas que por
breves instantes, que ela era parte de mim. Não lhe ofereci o meu guarda-chuva. Ofereci-
lhe a minha mão. Não me conseguiu encarar, mas pediu-me que ficasse. Confessou que
se sentia sozinha e, antes de conseguir perguntar qual era o seu nome, entregou-mo num
sussurro que ainda hoje tão bem guardo. O nome pálido deixou-me ainda mais perplexo
75 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
de curiosidade. Tinha de a conhecer. Tinha de a beijar. Ficamos por diversas horas sem
falar, partilhando apenas o ar que nos cercava. A minha companhia trouxe-lhe
tranquilidade. Sabia que já não estava sozinha. Sabia que nos iriamos ter um ao outro.
Os dias que se seguiram permitiram-me crescer. Cresci muito. Expandi a minha
existência a um nível que me era desconhecido. Ela estava a dar-me muito mais do que
uma oportunidade de me tornar maior: estava a dar-me vida. Aquela vida que tanto ansiei
ter. Não queria nem conseguia sair de perto dela. Fazia questão de acompanhá-la para
todo o lado. Tornamo-nos inseparáveis. Tão inseparáveis que parecíamos ser um só. Já
não dávamos as mãos como antigamente, agora era a vez dos nossos braços assumirem a
força que nos unia. Eu tinha sempre vontade de a abraçar. E como ela abraçava tão bem.
Todavia, com o tempo as mudanças tornaram-se evidentes e pesadas. Ao início, a mulher
que tanto desejava dava-me tudo, sempre. Completei-me tanto. Lembro-me com
vertiginoso rigor daquele dia. O dia em que a nossa relação se afundou em dúvidas. A
destruição pairou sobre nós como uma inevitável catástrofe. O sol penetrava a ampla e
translúcida janela refletindo a imensidão de brancos que aquela espaçosa e invulgar sala
continha. Assombra-me a tão bem vincada memória daquele pequeno arco-íris criado
sobre as molduras que se encontravam em cima da secretária. Os raios não tinham força
para nos aquecer, mas lembraram-nos que vivíamos no frio. Pensei em voltar a dar-lhe a
mão, naquele confortável e moderno sofá, mas a porta estava entreaberta e prestes a
fechar-se. Vi um raro sorriso nos lábios dela e vi, vi também nos olhos daquele homem
que a sua intenção era separar-nos. Respeitei a privacidade dela e saí. Esperei uma hora.
Assim que a porta que nos dividia se voltou a abrir, fingiu não me ver. Continuou em
frente ignorando a minha presença. Segui-a. Mas ignorava-me a todo o instante,
reclamando que já não era feliz e gritava descontroladamente, dizendo como se sentia tão
pequena comigo sempre tão próximo. Dor não é a palavra certa para descrever o que senti
naquele momento. Então, fiz o que podia. Fiz o que melhor sabia. Cheguei-me ainda mais
perto. Senti que a estava a perder. O que poderia eu fazer? Não estava pronto para desistir.
Pois era destino. Não?
Quando ela acordava eu estava lá. Quando ela vestia uma roupa nova eu opinava
mesmo que não gostasse de ouvir. Quando ela queria passear, eu fechava-a dentro de casa
para que apenas eu lhe pudesse ver o sorriso, se sorrisse. Quando alguém se aproximava
dela, eu desviava-a para bem longe, longe da vista do coração. Quando ela ia dormir, eu
continuava lá e, mesmo quando ela abria os olhos, na madrugada, com medos, era eu que
lhe sentia o interior. Conquistei-lhe tudo. A ela, ao seu mundo, até sermos apenas nós os
76 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
dois. Todo aquele tempo, e sentia que ela ainda não sabia quem eu era. Que ingrata. Mas
pensei para mim como era bom estar completamente entregue a ela. Dediquei-me
apaixonadamente à nossa vida, ao nosso futuro.
Num passado ainda próximo, a mulher que eu conheci num simples dia de chuva,
num simples e inocente banco verde de jardim, não me quis mais. Discutiu comigo à
frente do espelho. Implorou-me para que fosse embora. Eu não sabia o que tinha feito de
errado. Afinal de contas, eu estava sempre lá. As lágrimas que lhe queimavam a face
rosada e cansada fizeram os seus olhos olhar os meus, talvez, pela primeira vez. Num tom
sôfrego e acusatório questionou-me: «Já não te conheço… quem és tu? QUEM ÉS TU
AFINAL?». Eu não tive outra alternativa, não podia faltar-lhe à verdade. Conhecia-a
demasiado bem. Ao que parece, bem melhor do que ela me conhecia a mim. Conhecia-a
quase como se a pudesse controlar. Ouvia-lhe os pensamentos. E, naquele momento, onde
se criou uma pausa constrangedora, respondi, olhando-a bem nos olhos: «A tua
depressão».
77 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Fazer Memórias por: Leonor Ferreira
Lembro-me de ti ali sentado com as estrelas pousadas no regaço enquanto
cantavas. Trago lágrimas nos olhos e perguntas-me de onde vêm. Não te respondo e
continuas a cantar aquela doce melodia de se ser jovem e amar. Choro cada vez que
cantas, cada vez que me olhas, cada vez que as estrelas no teu regaço me perguntam se
estou bem com um sorriso de açúcar.
“Estou bem”, respondo, estou a formar uma memória para esta vida e para a
próxima, para não me esquecer da forma como se abraçam e se amam, da forma como
ele canta e como a ama com o olhar, da forma como vos guardarei no coração para os
dias mais chuvosos, mas também para os dias em que os raios de sol fazem por marcar
estas respirações.
As pequenas estrelas que carregas no regaço abraçam o meu corpo, e, tão rápido
como o vento de maio, a felicidade que trago no peito desvanece e sou vazia. Como se o
Sol tivesse partido e aqui permanecesse apenas a chuva de janeiro.
“Porque estás a chorar?” Perguntas tu de novo, com a voz grave e doce que sempre
carregas na garganta. Não te sei responder. A memória está formada, trago-a já no peito
e levá-la-ei para onde o mundo me deixar ir, mas agora sinto um vazio no peito e só quero
que cantes de novo, só quero que este abraço não termine e que as chuvas que me habitam
a mente se dissipem em leves aguaceiros de diversas cores.
As pequenas luzes, penduradas em garridas paredes, tornam-nos pequenas. Estou
em casa porque a galáxia que te costuma adornar o colo, adorna agora as minhas mãos
com as suas. Olho nos seus brilhantes olhos, sozinhas neste quarto, e não me permito não
falar estas palavras etilizadas que não durarão mais do que um suspiro, mas que marcarão
este peito até que cesse de bater.
“Estou a fazer memórias”, digo-lhe, suspiro-lhe. “Que memórias?” Senti-me feliz
e leve, como se o mundo pudesse acabar aqui e nada me iria desabar em cima. Sinto o
peito apertar e as palavras romperem pela boca, mas falo e conto o que me vai no peito,
e cada vez que o faço sinto-me mais leve e mais pesada. Porque partilhar a dor que nos
flui nas veias é um alívio, mas é também um peso pela vulnerabilidade, pelo brotar da
78 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
névoa e da penúria em que habitamos dentro de nós mesmos, mostrando-a a quem nos
aquece o peito.
As suas mãos seguram as minhas e reconfortam-me, mas agora só queria as tuas
canções de mel e um sorriso de amor destas estrelas que nunca poderiam ser humanas,
pois ser humano é ser vil, e se estas são mais do que boas e puras, eu nego.
Chorei uma vida inteira nesta divisão de amor e casa. Levanto-me agora e pedes
que te conte. Digo-te qualquer dia. Ou não.
Agora só quero que cantes para ela, que riam e que esqueçam a penumbra que
trago no peito. Quero que as luzes penduradas nas árvores continuem a brilhar, quero
ouvir os risos de quem é feliz, mais além. Quero o doce de uma juventude mal vivida e
mal-amada. Quero a felicidade que me resta deste momento.
Estou a fazer memórias.
79 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Reflexos dos Anjos ( 2 ) por: Filipa Meira
modelo Lia Cachim
80 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
ARTIGOS DE
OPINIÃO e
CRÓNICAS
81 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
(todos os artigos e opiniões aqui expressas são inteiramente da responsabilidade e autoria de cada
autor, pelo que nenhuma remonta uma ideologia ou apologia da revista PROMETHEUS)
82 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Como ser-se o próprio através da gratidão? por: Tiago Gaspar
Ao longo das décadas muitos, astrólogos, filósofos, psicólogos, coutch's e até
mesmo o Bruce Lee tentaram desmitificar ao comum mortal o que é ser-se o próprio...
qual é esse patamar que eleva o humano a ser mais do que um humano sendo apenas o
próprio ser humano?
Eu e muitas outras pessoas colocamos essa ideia num pedestal," a perfeição de
ser-se imperfeito", e todas essas frases giras que colocamos na internet no nosso dia-a-
dia.
Quando um comum mortal afirma que "sou assim e não mudo." Essa afirmação é
totalmente falaciosa... Tudo muda, e a quem não muda Deus também não ajuda, assim
diz o ditado. Se tudo neste universo muda porquê acharmos que somos diferentes?
Deixemos o senso comum de parte, e foquemo-nos no que realmente importa:
como chegar ao pedestal de sermos quem somos?
Terá a ver com sucesso financeiro, talentos, trabalho, parceiro/a, família? Não.
Na minha ótica ser-se quem se é está muito para além do que é terreno. Quando
após um processo psicoterapêutico cognitivo-comportamental, influenciado por teorias
Nietzschianas, descobri finalmente quem eu era. As teorias Freudianas são todas muito
giras, e curiosas, mas estão ultrapassadas assim como o passado que estas analisam,
também os seus métodos recaem sobre técnicas clínicas rudimentares e primitivas. O que
importa o passado?; Numa conversa de café percebi: "o que não nos mata torna-nos mais
fortes", é uma escolha e não uma veracidade exata.
Posto isto, direi que tornarmo-nos o que somos, recai sobre ter consciência de nós
próprios, das nossas limitações e aceitar as circunstâncias que nos envolvem. Depois
dessa fase, virá então o auge do autoconhecimento, quando se domina aquilo que não
temos obrigações de dominar, quando se está grato pelo que temos, e não olhamos para o
que não temos.
Parte do nosso dia-a-dia, da forma como estamos gratos por estarmos vivos. A
vida torna-se então uma brincadeira, um sonho bom, profundo e afastado de qualquer
abismo. Se realmente sentirmos gratidão por cada pedaço de céu que encontramos na
terra, então sim seremos realmente quem somos. Tranquilidade mesmo no conflito.
83 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Pacificidade na confusão. Aceitação das consequências dos nossos atos. Liberdade de
ação independentemente do que o que os outros pensem.
E após tudo isto virá então a noção de espiritualidade. A noção de que quando nos
conhecemos a nós, conhecemos de facto um universo inteiro de possibilidades, de
escolhas, de projetos.
A meditação é uma consequência do autoconhecimento. Meditamos porque
gostamos de viver. Respiramos porque gostamos de viver.
Meus amigos, qualquer um de vós me pode vir dizer que isto é uma utopia, pois
bem, digo-vos então que eu vivi essa vida. Plenitude no seu auge. A gratidão é a chave
para um mundo melhor, mais consciente, limpo e saudável.
84 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
Um caminho de regresso ao passado? por: Beatriz Rodrigues
Como defensora da democracia e cidadã de um estado de direito, não posso deixar
de manifestar a minha tristeza com a presente realidade eleitoral espelhada nas eleições
realizadas no dia 6 de outubro do ano transato. É com o pensamento nesta infeliz realidade
portuguesa que pego na caneta e no papel e dou corpo a uma profunda reflexão que não
deve ser só minha mas, também, de todos aqueles que vivem num estado de direito, ainda,
democrático.
As eleições legislativas, tal como o nome indica, dão a todos os cidadãos com
capacidade eleitoral, o poder de escolherem (de forma indireta) o legislativo, isto é, os
deputados que na assembleia da República representarão os seus interesses e defenderão
os seus direitos. Estes, devidamente sentados nos seus lugares parlamentares em resultado
das percentagens eleitorais, são a voz do povo, tomando decisões em seu nome. Deste
modo, o voto para as legislativas não deveria ser visto como uma decisão essencial na
vida política? não deveria ser tomada uma decisão consciente na sua importância? Porque
será que os cidadãos desvalorizam os seus próprios direitos? Porque será que as urnas não
são tão chamativas quanto uma montra de uma loja que ostenta roupas em saldos? Quando
será que vamos despertar deste estado letárgico?
Ironicamente, no ano passado, as eleições decorreram no dia seguinte ao dia da
celebração da república, a 6 de outubro, mas parece que de nada serve, na
contemporaneidade dos nossos dias, o simbolismo deste dia, pois em plena democracia a
taxa de abstenção consegue superar as expectativas. O 5 de outubro foi decretado feriado
nacional para recordar, todos os anos, a importância política ocorrida à época, a mudança
do conservador regime monárquico para a jovem República. Em 1910, sobre os destroços
da monarquia, nascia um novo regime político, a República, que punha fim a governação
hereditária e ao poder real, significava, então, um marco histórico para os portugueses da
época presos a um Portugal conservador. Apesar das suas lacunas numa 1fase, a
República levou uma restrita parte da população às urnas, dando-lhe a possibilidade de
eleger, era a primeira vez que os cidadãos podiam escolher alguém para os governar.
Anos mais tarde, um novo regime ergueu-se e Silenciou os seus cidadãos durante cerca
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de 40 anos, privando-os, novamente, do direito ao voto alcançado, regressava-se a um
Portugal conservador.
Por fim, em 1975 sob os ventos das revolução de 74, os cidadãos (desta vez,
alargando-se o sufrágio a todos os cidadãos maiores de idade sem distinção) voltavam a
ser chamados às urnas para se expressarem livremente através do voto quanto ao destino
de Portugal, quanto ao seu próprio destino e ao dos seus filhos.
Após tantos anos de opressão e de boca calada, milhares de portugueses correram para as
urnas para decidir o governo de Portugal e foi, então, a maior percentagem de votação
registada.
Agora, em 2019, aproximadamente 40 anos depois da revolução dos cravos,
vivendo à sombra da democracia com os ventos do fascismo sempre a espreitar, cerca de
metade dos portugueses silenciou a sua oportunidade de expressão, não correu às urnas
para votar e dar rumo a Portugal.
100 anos após as sofridas reivindicações pelo sufrágio universal, um século após
tantas lutas por uma sociedade democrática assente na liberdade política, na igualdade e
na justiça, décadas após tantas revoltas pelo bem-estar de todos os cidadãos, pela
existência de um estado de direito e da sua participação política através do voto, muitos
cidadãos do Portugal contemporâneo que usufruem do resultado das lutas do passado,
desvalorizam as suas conquistas. Hoje, vivendo com o privilégio de não precisar de lutar
para alcançar os seus direitos, os seus cidadãos não usufruem.
Sublinhe-se que, hoje, estes portugueses não foram oprimidos por um rei ou por
um ditador, foi uma opção consciente de um cidadão de um estado democrático.
Entristece-me que, atualmente, num regime democrático, os cidadãos se silenciem
a eles próprios, preocupa-me este estado apático na participação política.
A democracia está em perigo, é uma premissa que devemos guardar na nossa
mente para nos guiar nas decisões necessárias para um bom funcionamento do estado de
direito. A democracia não é inata aos Estados contemporâneos, afastemos as ilusões e
convoquemos a razão para evitar que o nosso Portugal seja mais um dos países a afundar-
se no totalitarismo. Esperemos não regressar, no futuro, a um Portugal conservador, onde
aqueles que hoje não votaram terão de lutar pelo direito ao voto.
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Deixem o Sexo em Paz 1 por: Susana Henriques
Sou virgem. Tenho múltiplos parceiros sexuais. Estou há anos comprometida com
a mesma pessoa. Qual destas opções me dá mais valor aos vossos olhos?
Vamos falar sobre sexo. Mais especificamente, “a primeira vez”, “o perder dos
três”, ou seja qual for o eufemismo que se use lá em casa. Este tema está em todo o lado,
perde-se a conta à quantidade de filmes centrados em adolescentes excitados que
fornicam tudo e todos (tragicamente irrealista) e no entanto quando vamos ter uma
discussão sobre o tópico, paira sobre ele uma nuvem de vergonha e dúvidas, e todo o
conceito só serve para nos julgar e determinar o nosso valor.
O que é sequer a virgindade? É a primeira vez que temos relações sexuais? Isso
inclui um vasto leque de atividades. A definição mais comum é a primeira vez que se
pratica sexo penetrativo, mas isso é uma ideia muito heteronormativa. Uma mulher que
só tenha relações com outras mulheres é virgem para sempre? As experiências dela não
contam ou são menos válidas? E como se perde algo imaterial e porque falamos de um
conceito como se fosse um objeto? “Eu dei-lhe a minha virgindade”. “Eu perdi-a”. “Eu
tirei-lha.” Ninguém tem o direito de me tirar seja o que for.
Ainda por cima parece que ninguém tem a coragem de dizer as coisas como são.
Primeiro avisam-nos que vai ser desconfortável, que a primeira vez nunca é boa e que é
normal doer e sangrar - uma noção que para além de mentira é prejudicial, pois quando
chegar o momento, se estiver a ser doloroso, não vamos colocar nenhuma objeção, vamos
apenas aguentar o desconforto porque ensinaram-nos falsamente que era normal. Depois
de nos assustarem, dizem que é um momento especial e que temos de esperar pela altura
certa e pela pessoa ideal, colocando assim uma pressão desnecessária a toda à situação.
Se quisessem ser honestas diziam que as únicas coisas realmente necessárias para a
prática do sexo são consentimento, contraceção e um elástico para o cabelo. E se
quisessem ser realmente honestas avisavam que 90% dos casos podem ser parafraseados
com “durou menos de 3 minutos e no final ele ainda teve a coragem de perguntar se
também me vim”.
1 Artigo publicado no Jornal Universitário do Porto
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Mesmo agora que é geralmente aceite que nem todas escolhemos permanecer
puras e castas até ao casamento, e “perder a virgindade” já não traz a desonra para toda a
nossa família, continua a haver uma janela de tempo para o fazer de forma aceitável aos
olhos de terceiros.
Fá-lo demasiado cedo e és uma miúda promíscua, demasiado nova para fazer esse
tipo de coisa. Um dia ninguém te quer. Mas vê lá também não esperes a vida toda! Como
assim nunca tiveste sexo? Tens padrões muitos altos ou és apenas pudica? Assim também
ninguém te quer. Nem vamos falar de pessoas assexuais ou que decidem viver em celibato
porque devem ter algum problema, coitadinhas.
Todas estas suposições chegam ao seu pináculo quando para além de julgarem o
nosso carácter com base naquilo que fazemos, ainda julgam com base no que dizemos.
Desde a minha pré-puberdade que oiço rapazes a gabarem-se das suas vidas sexuais
maioritariamente inventadas (para ser justa, isto deve-se maioritariamente ao facto de
estes desde cedo sentirem mais pressão para serem sexualmente ativos), mas para nós é
segredo de Estado. Também não vamos fingir que ninguém fala sobre isso, todas sabemos
sobre as aventuras da amiga, mas depois se a amiga seguinte não se sente confortável em
partilhar, é criticada por ser frígida. Presas por ter cão e presas por não ter. Presas por
sequer falar sobre o cão.
O meu objetivo aqui não é incentivar-vos a participar em orgias e de seguida fazer
uma leitura dramática do que aconteceu nas mesmas. Mas, se o quisessem, seja feita a
vossa vontade que tem de ser respeitada, tal como tem de ser respeitada a vontade de
quem escolhe não ter sexo, ou de quem escolhe fazê-lo exclusivamente em missionário e
sempre com a mesma pessoa. Apenas deixem o sexo em paz.
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Coração Voluntário por: Mónica Espiñal
Uma vez que passámos há pouco a época natalícia, e porque nem tudo é mau no
mundo, optei por escrever sobre algo que pudesse aquecer os corações dos leitores,
revelando que o Pai Natal de facto existe, e que o Natal é mesmo sempre que o Homem
quiser e fizer por isso.
No que respeita a significados, voluntário, de acordo com o dicionário, é aquele
trabalho que se faz de boa vontade e sem constrangimento, ou aquele (ser) que faz parte
de uma corporação por mera vontade e sem interesse.
E, Timor, uma ilha da Insulíndia, politicamente repartida em duas partes, Timor
Ocidental e Timor Leste, que alguns leitores mais antigos, ou até mais curiosos em
descobrir acerca do que não tiveram idade para viver, podem descobrir ser um povo que
renasce em dificuldades que passou em ataques e guerras.
A junção destas duas palavras fez-me chegar a “Voluntários em Timor”, que
juntamente com muitos outros voluntários em vários outros países, ou inclusivamente
dentro do nosso próprio território, dão aos outros um pouco de si mesmos, da sua boa
vontade, dedicação e generosidade, nem que seja para lhes entregar um sorriso e estender
uma mão, porque sim. Por esse motivo, nesta quadra, optei por escrever acerca destes
“espécimes” que felizmente pude constatar não se encontrarem em extinção, muito
embora também, infelizmente, não possamos dizer serem a maioria da Humanidade.
Orgulhosamente quis elogiar estes voluntários que fazem parte dessa pequena
percentagem dos que dão de si a desconhecidos, do seu tempo e da sua alma. Abdicam
das regalias e conforto, para que outros, menos afortunados que eles, possam ter um pouco
mais e pelo menos, alguma esperança e calor humano. São algumas as organizações de
voluntariado, não querendo ferir susceptibilidades opto por não referir nenhuma dessas
organizações e sobre todas escrever de forma generalizada numa forma de gratidão e
elogio.
Era uma vez uma “Joana” , uma “ Manuela”, um “António e muitos outros nobres
nomes desconhecidos de tantos, que decidiram que podiam abrir suas asas e voar. Voar
sim, mas não apenas para passear ou visitar locais novos, embora isso estivesse patente e
subentendido, mas voar para algures ou nenhures, e levar-se a si mesmos até outros.
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Outros que não tinham tanto como eles, outros que não ousam ter sonhos, nem ambições,
outros que, mesmo sem nada, ou muito pouco, conseguem passar todo um dia de sorriso
no rosto, a oferecer tudo o que têm em partilha, enquanto nós, os demais, nos queixamos
porque tudo o que temos que é tanto, assim mesmo, não chega!
Pesquisando na Internet encontramos informações acerca de diversas
Organizações focadas e viradas para o voluntariado, seja num apoio mais directo e focado
no contacto humano, no fornecimento de bens físicos, ou ensinando-lhes meios próprios
de autosubsistência, muitas são as formas existente desapoio neste mundo que a tantos de
nós passa ao lado. Muitas Organizações e Entidades se dedicam a esta nobre forma de
estar na Vida que denominamos de Voluntariado.
Voltando à nossa história, chamo-lhes Voluntários de Coração, decidem-se a
partir para onde a Organização em que se inscreveram os mande. Não para locais que
quereriam visitar ou onde quereriam prestar esse trabalho, mas, para onde os superiores
os entendam como real e francamente necessários e úteis. Timor foi o destino destes
nomes aleatórios e fictícios suprarreferidos. Para alguns esquecidas as tormentas e o
fulgor dos media que deixam de mencionar quando as catástrofes são ultrapassadas e
apenas ficam as ruínas e as cinzas do que um dia foi algo. Esquecem-se os rostos que
sobreviveram, calam-se as vozes dos que resistiram ou se esconderam, e que por algum
meio conseguiram ficar. Não sendo vendável a notícia, não se fala no sofrimento, na
pobreza, no desgaste e na falta de condições que as populações passem. Passam a ser um
povo esquecido, silenciado aos ouvidos dos atentos aos meios de comunicação
fundamentados em alarmismos e iminentes catástrofes, ou escândalos políticos ou sociais.
Importa mais saber quem mata quem aqui ao lado, do que quantos morrem de fome ou
de doenças lá ao longe.
Mas, não para estes jovens e outros a que desta forma se presta homenagem…
Não todas as “Joanas”, “Manuelas”, ou “Antónios”, que pensaram em mais do que em si
mesmos, e que, podendo ter o propósito de iniciar a etapa de encher os bolsos e trabalhar
activamente para rechear a sua conta bancária ao terminar o seu curso, ou mesmo que não
andassem na faculdade, decidiram deixar tudo para trás e partir à altruísta aventura do
desconhecido pelo maior bem dos outros.
Assim, deixaram famílias para trás. Pais, mães, irmãos, irmãs, namorados,
namoradas, e de poucas malas, arrancaram, para literalmente esperar uma eternidade para
chegar ao seu destino.
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Muitos pensais certamente, “Voluntariado em Timor”, ou outro País qualquer,
com praias bonitas, e belas paisagens, “pois sim, também eu, passear à borla”. Se pensais,
desenganem-se pois nesta história, pôde sentir-se o custo inicial e choque primeiro da
diferença entre ter tudo e não ter nada, entre, tomar consciência da realidade em que
vivemos e de que nos queixamos, para observar quem nada tem e mesmo assim lhes
retribui com um sorriso no rosto. A ameaça de ser roubado devido a escassez de recursos
da população, e sobretudo, a falta de bens de primeira necessidade a que nós não damos
valor e temos por garantidos e que tanta falta fazem a quem os não tem. “Ainda me estou
a habituar ao choque, não sei se aguento”. São palavras que por vezes ouvimos do lado
oposto, afinal muita coisa se deixa para trás e com mais ou menos facilidade, mais ou
menos demora, necessitam de se ambientar ao novo mundo em que se encontram, e
tentando dar algum tom de brincadeira e conforto a que estamos habituados, deixamos
bem claro que o avião viaja em dois sentidos, contudo, conhecendo as pessoas com quem
falamos, voluntários de coração, também sabemos que será algo que de todo se avizinha
como possível, que persistirão na sua vontade, muito embora possam fraquejar
inicialmente. De forma alguma, esse sentimento de fraqueza ou desânimo será
demonstrativo da sua incapacidade, mas apenas um estado normal e consequente das
alterações que bruscamente se verificam a viver, e que, com a força que detém,
rapidamente ultrapassam. O desalento no rosto, o cansaço de atravessar todo um mundo
para chegar ao outro lado. Ao outro lado do haver tanto, para chegar ao há tão pouco. Do
outro lado do ter regalias, para chegar ao outro lado de não deter sequer bens essenciais
aos quais aqui será suficiente acorrer a uma supermercado e adquirir.
Miúdos sem sapatos a jogar com bolas de trapos no meio da rua, que se escapuliam
para dentro de casa dos voluntários adentro, e que se tornariam seus amigos e ganhavam
um brilho nos olhos ao avistar que alguém de novo lhes poderia trazer um pouco de algo,
um pouco mais do que o nada que tinham. E não há uma foto destas crianças, por esses
mundos fora, privados de tudo, em que as mesmas não estejam a sorrir, descalços, sem
nada, mas, radiantes. (Que direito temos nós de nos queixarmos e reclamar? Dá que
pensar!)
O tempo que demora a passar o choque inicial varia de pessoa para pessoa e da
zona para onde se deslocam a prestar apoio, mas passado o mesmo, finalmente se
consegue ouvir e observar a alegria que lhes dá a ajuda e a humanidade que levam aos
outros. Quem tem vontade de ser voluntário, que reflicta muito bem acerca das suas
capacidades de passar pelas dificuldades, muito embora haja muita forma de
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voluntariado, mas, avançar para um zona de dificuldades, de escassez, de doenças, de
guerra, seja o que for, requer Força, muita Força, daí lhes dedicar este meu texto, perto
desta época tão importante, que perdeu toda a sua conotação e verdadeiro significado para
se converter ao puro e bruto consumismo absoluto.
Ali ia-se para trabalhar voluntariamente, ensinar autossubsistência à população.
Reerguerem-se por sua conta era o mote incentivador do grupo de voluntários e da
Organização que os encaminhou. Apoiar e dar instrumentos de conhecimentos que
possibilitassem que esse povo pudesse fazer por si e dessa forma ser alguém na sua
independência, sem necessidades, e com capacidade própria suficiente.
Os testemunhos que ficam e se transmitem são normalmente as referências ao
choque inicial, à abismal diferença entre civilizações, mas também à ternura e recordação
eterna que fica das pessoas com que se cruzaram, a quem ensinaram, com quem
partilharam as dificuldades que elas sentiam no dia a dia, e à “família” que se criou
naqueles pequenos grupos de voluntários que são reunidos pelas Organizações sem se
conhecerem, e que passam a ser Irmãos de Voluntariado, e Coração.
Nem só de agruras e dificuldades são passados os momentos nesse tempo
dedicado aos outros. É um tempo de introspecção, de autoconhecimento, mas também de
entrosamento com pessoas que se não conhecem, culturas diferentes e tão distintas formas
de ver a vida e tradições. Nesses curtos longos espaços de tempo, conseguem-se provar
os aromas e sabores das mais diversas terras onde prestam apoio como é o caso de Timor,
nesta história, e visitar as lindas praias de mar límpido, e verificar que apesar da pobreza,
Timor é de uma beleza infinda que merece o nosso apoio, não só pelo sofrimento do
passado e dificuldade do presente, mas para que o futuro possa ser mais promissor e
fortuito.
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Crónica sobre as efemeridades por: Tiago Gaspar
Com o passar do tempo apercebemo-nos que não existe assim tanto tempo quanto
sempre pensamos que existia. E na verdade desejava-mos tanto que existisse.
Os irmãos mais novos crescem, os sonhos decaem do céu à terra e a religião acaba
por ser algo cada vez mais tênue entre o aliciante e o delirante.
A verdade é que percebemos que o nosso cão irá morrer, e puta que pariu se não
o passeamos o suficiente.
Os nossos avós vão ficando mais carentes e é ali que percebemos que todo o
objetivo da raça humana, por muito que nos desviemos, é no fundo amar e ser amado.
No início em bebés queremos mamar e brincar aos namorados, na adolescência
brincamos com os namorados até batermos com a cabeça e percebermos que não se brinca
com nenhum coração.
Os nossos pais vão ficando mais sábios e assusta ao nos apercebermos que têm
razão em muitas coisas.
As pessoas vão embora. As pessoas aparecem. Conhecemos novas caras e com
elas novas histórias.
É um vai vem doido de efemeridades. Pergunto-me muito qual o caminho a
seguir?
Qual a situação precedente? Mas depois descubro que tudo o que eu sempre quis
esteve sempre ao meu lado. Comida, casa, amor, e qualidade de vida. Tudo à frente dos
nossos olhos.
E livrai-nos da filosofia que ela tem muitos problemas!
Fora de ironias, a filosofia é uma arma poderosa do pensamento.
Assim como pode ser uma deficiência do mesmo.
O que me dizem as efemeridades?
Que a morte está em qualquer esquina... não só a morte física, mas a morte do
tempo... da arte, da literatura... o intemporal é temporal.
As palavras bonitas ficam apenas na memoria dos que a querem lembrar... pois a
mente humana é mais dada a reter o que ouve de negativo.
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E tudo o que temos é tudo o que sempre vamos ter, se prestarmos atenção... veremos que
a gratidão é a chave para o bem-estar.
Está tudo à nossa frente. E deixamos escapar por uma mensagem do futuro, o
futuro negócio, o futuro casamento, o futuro carro.
Estou no limbo em que já não sei se me afeta mais o passado ou o presente.
Mas o que importa isso se a minha mãe e irmã estão na sala, assim como o meu
cão e o meu pai à distância de um telefonema.
Nada mais importa quando a morte chega. Só desejo que ela venha tardia, e que eu cresça
o suficiente para a enfrentar... ninguém nunca cresceu o suficiente para enfrentar a morte.
Então enfrentemos a vida. Com garra e dedicação. Com vontade e ilusão.
Pois um sábio amigo uma vez disse-me que uma ilusão apenas é ilusão se a
pensarmos assim.
Na verdade existem boas ilusões, nos é que somos uns desamparados pela
verdade...
Que se lixe a verdade. Quero amor aqui e agora.
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A cultura “indie” americana (e o que falta a Portugal) por: Afonso Oliveira
Imaginem um mundo onde a nossa sala de estar é um palco a um qualquer artista
que ninguém conhece.
Imaginem um mundo onde uma jantarada em casa se torna num concerto intimista
com aquela banda que passamos a vida a impingir aos nossos amigos (e que eles sempre
rejeitam).
Bem-vindos ao mundo da cultura 'indie' americana (principalmente do centro
oeste e Califórnia).
Vivemos num país que adora "valorizar" a cultura, onde novas bandas são
vangloriadas pelos mais novos mas desprezadas por quem as pode expor.
É uma vida que é a mim conhecida. Rodeado de estudantes que me dizem ter
futuro mas ter uma morna receção a qualquer apresentação pública.
Uma realidade que me entristece profundamente. Como podemos querer que a
nossa cultura musical avance se cortamos as pernas a tudo o que foge ao pimba, ao funk
brasileiro, e ao jazz de Salvador Sobral?
Rock? É xutos. Música alternativa? Ornatos Violeta, António Variações (e, para
os mais dentro do assunto, Linda Martini e Paus).
Nós rimo-nos quando pedimos a uma banda, na brincadeira, que toque as dunas!
Ou xutos? Mas esta reacção é um reflexo dum problema profundo português. A
conveniência, o prazer no conhecido.
Desenquadro-me desta sociedade quando ouço música do outro lado do mundo.
Folk nórdico, math rock japonês, indie folk e rock americano. A minha pergunta é: e
Portugal?
Deixemo-nos da cultura do coitadinho e do importado. Fomentemos, como muitos
já tentaram, o nacional. Sei por facto que a vida na música portuguesa é um sonho
inalcançável, mas não deveria ser. É imperativa a criação duma vontade de descobrir,
pelo bem de quem quer ser descoberto e da população em geral.
Faltam revistas, jornais, notícias, divulgação na comunicação social. Chega de
Corona vírus e notícias que já todos conhecem. Chega da cultura negativista, da pólvora
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que voa e queima tudo em que toca. Porque não abrir os braços ao positivo, ao novo, ao
bom? Chega de futebol, chega de subidas de preços do petróleo, chega de canecas de
cerveja! Chega de fugir com o rabo entre as pernas. Portugal é culto, chega de o esconder.
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Relembrar o Holocausto para nunca mais se repetir por: Beatriz Rodrigues
No dia 27 de janeiro de 1945, as tropas soviéticas procederam à libertação do
campo de morte mais hediondo do período nazi, Auschwitz, onde foram entregues à morte
milhões judeus. Hoje, no decorrer do ano de 2020, onde assistimos ao ressurgir do ódio,
da intolerância e à ameaça do fascismo a pairar sobre a democracia, é urgente recordar os
perigos, as consequências e as desumanidades resultantes do extremismo que culminaram
no holocausto. Relembre-se que Auschwitz, não fora o único campo nazi onde o sangue
judeu foi derramado.
Na verdade, o regime hitleriano apoiou-se numa máquina de campos: de
concentração, de trabalho e de extermínio, para os quais eram enviados milhares de seres
humanos, considerados um perigo para a grandiosidade alemã, entre eles encontramos,
opositores ao regime, ciganos, homossexuais, prisioneiros de guerra e, na grande maioria
judeus. Deste pesadelo terão morrido milhões de seres humanos, em grande maioria,
judeus, o que nos parece um exagero, uma realidade inexistente, mas, chocantemente,
corresponde a terrível realidade que marcou a história do século XX. Desde 1933 terão
sido construídos inúmeros campos, pelos vastos territórios que estavam sob o controlo
alemão e para onde todos os dias eram deportados recém nascidos, crianças, adultos,
idosos, mulheres gravidas, jovens no florescer da idade, doentes e deficientes em
comboios insalubres que tresandava ao cheiro do vómito dos que não aguentavam a
viagem, ao cheiro das necessidades espalhadas pelas carruagem e ao cheiro dos cadáveres
em decomposição dos que passavam de humano a um corpo abandonado pisado e
esquecido sobre o chão de um comboio decadente. Enfim, era neste ambiente desumano
que aqueles que conseguiam sobreviver passavam os seus dias de viagem até chegarem
ao destino da morte ou do trabalho perpétuo. Eram viagens onde os sentimentos se
confundiam, por um lado, almejava-se que o tormento da viagem chegasse ao fim, mas
por outro, temia-se o destino que os esperava, o encarceramento em campos. No fundo,
era uma viagem entre o desejo de terminar e o temer do fim.
Quando finalmente o comboio hediondo terminava o seu percurso e as carruagens se
abriam pela primeira vez ao fim de tantos dias, as luzes dos holofotes que iluminavam a
rua eram demasiado fortes para os olhos sensíveis daqueles que já se tinham habituado à
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escuridão constante. Muitos pareciam que já se tinham esquecido de saber andar e caiam
desamparados diretos para o chão gelado preenchido pela neve, outros desconhecendo
verdadeiramente o seu futuro, rejubilavam por finalmente terem saído do inferno do
comboio, crendo, talvez, que viveriam uma nova vida longe das hostilidades dos alemães.
As inocentes e ingénuas crianças revelavam sentimentos controversos, ora choravam
descontroladamente como revelando o fim trágico que se aproximava, ora não mostravam
emoções, caindo na apatia. Alguns adultos pareciam conhecer verdadeiramente o
significado daquela deportação e mostravam-se ansiosos e receosos. Este era o cenário
presente todos os dias durante mais de dez anos, desde a instauração do regime nazi até à
queda da grande Alemanha. É inimaginável a ansiedade, o receio, o medo, a angústia, a
mágoa dos que foram expulsos do calor do seu lar, retirados do quentinho da família e
encerrados em gelados e sombrios campos, separados dos filhos, privados de viver e
entregues a uma vida de sofrimento cuja questão que pairava sobre a sua mente,
diariamente, seria ‘’ será que é hoje o dia da minha morte?’’. Para aqueles cuja esta
realidade já não é do seu século parece estranho e longínquo este episódio mas,
infelizmente, foi real. É inimaginável o sofrimento acumulado por estes durante os anos
que sobreviveram a esta condição sub-humana. É inexplicável os motivos que levaram
humanos a desrespeitar humanos de forma tão insensível e horrorosa. É chocante os
relatos dos que sobreviveram, os testemunhos daqueles que viram a morte e sentiram-na
na sua pele, escapando-lhe por milagre, é perturbante as imagens que recordam o que se
vivera dentro dos arames farpados e sob o controlo incessante das SS. O holocausto foi e
será uma realidade chocante e incompreensível. Dos milhares de campos, Auschwitz
representa este passado negro através da infraestrutura hedionda que ainda se mantém na
Polónia e pode ser visto por todos. Hoje, conhecendo esta realidade e dedicando-me ao
seu estudo enquanto aluna do curso de História, reconheço a importância de recordar a
hedionda realidade dos campos nazis (extermínio, concentração e trabalho) de modo a
evitar uma nova atrocidade desumana. Hoje, enquanto cidadã de um país democrático
onde é proibido constitucionalmente a prisão arbitrária, a perseguição, a intolerância
religiosa e a discriminação racial mas habitante de um mundo onde continuamos a assistir
à morte de indivíduos pela sua cor, raça, orientação sexual ou gênero, quando a
humanidade devia falar mais alto e unir os nossos corações, sinto que é importante
recordar a realidade que significou o holocausto e tomá-lo de exemplo para que o mundo
não volte a cair numa das piores brutalidades desumanas, para que nunca mais os pais
sejam abatidos à frente de filhos, para que nunca mais as crianças sejam privadas de
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sonhar e que humanos sejam sujeitos a condições hediondas. Após 75 anos da abertura
dos portões sangrentos de Auschwitz e da libertação dos poucos que conseguiram escapar
à morte mas perderam tempo de vida, é importante lutar por um mundo pautado pela
liberdade e tolerância, é importante reunir os esforços para manter e lutar pela
democracia. É ,igualmente, importante continuar a ensinar às nossas crianças que num
passado não muito longínquo milhares de judeus foram retirados das suas casas e privados
de viver uma vida tranquila apenas porque um líder que conseguiu controlar vastos
territórios considerava-os pertencentes a uma raça inferior que não era merecedora de
viver, o que é incorreto pois não existe superioridade racial e nenhum ser humano tem o
poder de condenar outro à morte pela diferença natural.
Para que nunca mais se repita, hoje, na comemoração do 75°ano da libertação de
Auschwitz , vamos refletir sobre ao crescimento da extrema direita, o ressurgir dos ódios
e da intolerância e os perigos do extremismo e coloquemos os olhos na História para que
os erros do passado nos sirvam como aprendizagens irrepetíveis, como escreveu, Edmund
Burke“ um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”.
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O Cinema, a experiência individual por: Márcio Luís Lima
O cinema em diversos momentos da minha vida exerceu uma tremenda influência.
Com cerca de onze ou doze anos vi o “The Basketball Diaries” e fiquei extremamente
chocado e com uma visão muito gráfica do que é o mundo das drogas na adolescência.
Talvez fosse um bom filme de se incentivar alguns pré-adolescentes a visionar.
De qualquer forma, a sétima arte tem uma composição muito perto da magia,
quando bem construído perdemo-nos num universo paralelo, caminhamos pelos sapatos
de outrem, emergimos numa panóplia de emoções que desconhecíamos até à data.
Encontramos elos entre as nossas vidas e a dos protagonistas, encaixamos soluções não
previstas anteriormente, adotámos uma postura diferente face a alguma coisa que nos
fazia comichão na nuca antes de entrar na sala. Nem que seja, pelo menos, um sorriso,
um preenchimento, uma música que cantarolamos o resto do dia, uma fala, alguma coisa.
Há uma certa predisposição quando tirámos um dia para ir ao cinema (ou uma
noite). Quase como um ritual, uma maneira extraordinária de fazer as coisas. Ora levámos
companhia, comprámos os bilhetes, procuramos entre nós os melhores descontos,
jantamos uma comida diferente do habitual caseiro, pedimos um pacote de pipocas e nos
anúncios iniciais a caixa já vai a mais de meio para o fim, com uma dor de barriga enorme.
As luzes apagam, a sala mais ou menos cheia acomoda-se, todos para partilhar
uma experiência plural, no entanto singular. Cada par de olhos observa a película de um
modo muito peculiar. Há fatores que saltarão mais à vista de uns que outros, os detalhes,
porque é neles que se dá a vida, neste caso, o filme. Sinto que por vezes, não é só o meu
corpo e voz que repousam naquela sala, sentado a olhar para o ecrã gigante, mas também
a minha consciência se regozija vê-lo.
Em casa, sozinho, da mesma maneira se dará o impacto do filme. A experiência é
sempre singular. Todo o filme se dá em nós, como um ser individual que observou uma
determinada ordem de acontecimentos, narradas com um estilo próprio de um realizador,
a partir de uma atuação exclusiva de um grupo de determinados atores, editado e
produzido de tal forma, mas ainda assim, o último ingrediente da sétima arte é o
espectador e a sua experiência própria.
É uma arte, e como tal dá-se de maneira singular no universal.
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Uma porta aberta na rua Ferreira Borges de Coimbra por: Filipa Meira
modelo João Coimbra
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Autores (contactos/redes sociais):
Márcio Luís Lima (fundador e editor) – ig: @marcioluislima –BECODAPEDRAZUL.WORDPRESS.COM – fb: facebook.com/marcioluislimawriter – mail: [email protected] Rodrigo Antas (co-fundador e co-editor) – ig: @rodrigobacalhau
Madalena Filipe – ig: @madalenagopifi
Leonor Ferreira – ig: @marial.eonor
Sónia Curcialeiro – ig: @sonia.curcialeiro Ana Rodrigues – ig: clarifica.te Cátia Cardoso – ig: catiia_cardoso Beatriz Rodrigues – ig: beatriz_zehn Susana Henriques – ig: @susana.henr Mónica Espiñal – ig: monicaespinalcriacoes Afonso Oliveira – ig: afronso Sandra May – ig: meninaescrivaninha Tiago Gaspar – ig: lirisaint
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Artistas (contactos/redes sociais):
Nazaré Marques – ig: @design.nbm – mail: [email protected]
Juliana Ribeiro – ig: @jufrancisca – mail: [email protected]
Filipa Meira – ig: @filipanfmeira
105 | F e v e r e i r o 2 0 2 0 n º 4
FIM