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odos nós morre re- mos um dia, então, a morte é o único fator que iguala os homens, c e rto? Talvez seja se olhada pelo ponto de vista do morto, mas, para a família, que permanece viva, o nivelamento não é tão certo assim. Num ce- mitério – em qualquer um deles – a diferença entre ricos e pobres é tão ou mais marcante do que nas ruas de uma grande cidade. No centro ficam os mausoléus de arquitetura complexa, toneladas de mármore, vitrais e esculturas dignas de museus. Na periferia do cemitério, apenas cimento e cal. Qualquer semelhança entre mansão e barraco não é mera coincidência, é novamente a di- visão entre a área nobre e aquela pela qual a maioria pode pagar. Mesmo antes de existirem os cemitérios propriamente ditos, já havia uma segregação entre os mortos. No Brasil, até o século A indesejada das gentes 21 ADRIANA FERRANNI, AMIN NUNES, CÂNDIDA V ANNIER E LENA PEREIRA Nós , que aqui estamos, por vós esperamos E os vivos, como encaram os cemitérios? Adriana Ferranni

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odos nós morre re-mos um dia, então,

a morte é o único fatorque iguala os homens,c e rto? Talvez seja se

olhada pelo ponto de vista domorto, mas, para a família, quepermanece viva, o nivelamentonão é tão certo assim. Num ce-

mitério – em qualquer um deles –a diferença entre ricos e pobres étão ou mais marcante do que nasruas de uma grande cidade. Noc e n t ro ficam os mausoléus dearquitetura complexa, toneladasde mármore, vitrais e esculturasdignas de museus. Na periferiado cemitério, apenas cimento e

cal. Qualquer semelhança entremansão e barraco não é meracoincidência, é novamente a di-visão entre a área nobre e aquelapela qual a maioria pode pagar.

Mesmo antes de existirem oscemitérios propriamente ditos, jáhavia uma segregação entre osmortos. No Brasil, até o século

A indesejada das gentes21

ADRIANA FERRANNI, AMIN NUNES, CÂNDIDA VANNIER E LENA PEREIRA

N ó s, que aqui estamos,por v ó s e s p e r a m o s

E os vivos, como encaram os cemitérios?

Adriana Ferranni

XIX, os sepultamentos eramfeitos nas igrejas. Mas, não paratodos: apenas católicos e nãoescravos podiam ser enterradosnelas – vale lembrar que, quantomaiores as contribuições à pa-róquia, mais próximo do altar ocorpo do fiel seria colocado. Osnão-católicos geralmente pos-suíam áreas particulares para osepultamento de seus mortos. Umexemplo disso é o Cemitério dosIngleses, na Gamboa, criado nadécada de 1810.

No entanto, com o aumento dapopulação nas áreas urbanas, asi g rejas começaram a enfrentar afalta de espaço para abrigar o cre s-cente número de mortos. Outro

ponto desfavorável aos sepulta-mentos nas igrejas era a falta dehigiene. Como as catacumbas nemsempre eram vedadas correta-mente, os fiéis ficavam expostos aocontato com os líquidos e odore sdos corpos em decomposição.

A inauguração dos primeiroscemitérios veio como conseqüên-cia da crise sanitária e de espaçodas igrejas. A partir do início doséculo XIX, algumas leis come-çaram a ser formuladas obrigan-do que fossem criadas as necró-poles públicas a céu aberto. Osprimeiros cemitérios nesses mol-des foram inaugurados a partirda metade do século. Um deles éo Cemitério Senhor Bom Jesus da

Redenção de Santo Amaro, emRecife, de 1851.

Nesse período os cemitériospúblicos ainda estavam sob ocontrole da Igreja Católica. Porisso, os seguidores de outras re-ligiões ainda precisavam de suasnecrópoles particulares. Somenteno final do século XIX o controledos cemitérios públicos passou àscâmaras municipais.

A desigualdade cresce a cadadia e é fácil notar isso nos cemi-térios cariocas. Os túmulos nãosão escolhidos de acordo com ao rdem de chegada dos mort o s ,mas com o poder aquisitivo desuas famílias. No ano de 2003, otraficante Ernaldo Pinto de Me-d e i ros, o Uê – assassinado porbandidos de uma facção rival – foie n t e rrado na quadra 81 doCemitério do Caju, uma área con-siderada pouco nobre. A famíliado traficante não poupou re c u r s o spara transferi-lo para a quadratrês. O total de R$ 60 mil, pagos àvista, foi dividido entre a comprado terreno e a construção de umtúmulo de márm o re com um anjoda guarda de bronze. Assim, omausoléu da família Medeiro snão deixaria nada a dever aos vi-zinhos ilustres, como o Barão e oVisconde do Rio Branco.

Famosos e figuras históricas sãofacilmente encontrados nos ce-mitérios do Rio de Janeiro. O SãoJoão Batista, um dos mais tradi-cionais da cidade, é um exemplodisso. Lá estão enterrados, entremuitos, Cazuza, Clara Nunes,Francisco Alves, Carmem Miran-da, Tom Jobim, Irineu e Robert oMarinho, Nelson Rodrigues eSantos Dumont. Mas, entre mau-soléus suntuosos que trazem a

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Ricos e pobres também entre os mortos

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escultura de quem ali está enter-rado e tumbas simples cujasinscrições foram arrancadas háanos, trabalham pessoas anôni-mas que, diferente da maioria daspessoas, não vêem no cemitérioum sinônimo de morte ou tristezae não têm nenhum problema def reqüentá-lo. Os responsáveis pe-la limpeza e conservação do SãoJoão Batista tiram dali o seu sus-tento e afirmam não ter medo depassar o dia entre mortos, sejameles famosos ou anônimos.

– É um serviço como outroqualquer. Há coisas boas e ruins,afirma um servente que não quisse identificar por estar em horá-rio de trabalho.

Ele conta que, quando era maisnovo, tinha muito medo da mort ee que jamais conseguiria traba-lhar num lugar como aquele.

– Eu me perguntava: meu Deusdo céu, por que fui nascer? Tendonascido, vou ter que morrer um

dia. Mas hoje eu sei que estouaqui só de passagem. Basta ter fée espírito limpo que a gente vailevando com tranqüilidade.

O servente trabalha no cemité-rio há seis anos e pretende conti-nuar até arrumar uma oportu-nidade melhor.

Geraldo Magela é coveiro tambémno São João Batista, há 23 anos, ediz que gosta de trabalhar ali:

– Em termos de tranqüilidade, éótimo. Principalmente, porq u emeus fregueses não reclamam denada, conta, rindo da própriapiada.

Ele se diverte com as históriasque tem para contar:

– Morto que aparece sozinhono enterro é o que mais tem. Nãovem uma única pessoa para ovelório. A família deixa o morto eo dinheiro e vai embora.

Ele conta também que pessoasque vivem nas ruas entram nocemitério perto da hora de fechare passam a noite ali.

– Para quem não tem casa, émais seguro, sentencia ele.

Também é comum ver casaisindo lá para namorar.

– O pessoal não tem medo denada. Estão todos mortos, mesmoe já saem daqui com o bebê pron-to, completa.

Para os moradores do morrodos Tabajaras, em Copacabana,o São João Batista é um atalhopara chegar mais rápido a Bo-tafogo. Sérgio, conhecido peloscolegas como Genésio, sempremorou nos Tabajaras e usou o ce-

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“Estão todos mortos emorto não faz nada

com a gente.Tem queter medo é dos vivos”

Sérgio, servente do Cemitério São João Batista

Entrada principal do cemitério Jardim da SaudadeEntrada principal do cemitério Jardim da Saudade

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mitério como passagem. E elenunca teve medo, pois diz que:

– Estão todos mortos e mortonão faz nada com a gente. Temque ter medo é dos vivos.

S é rgio acabou virando fun-cionário. Hoje, sua função é lim-par os jardins e pintar os túmulos.

– Apesar do salário não ser bom,dá um dinheirinho. Às vezes, eufaço um favor para alguém queveio visitar um ente querido eacabo ganhando uma gorjeta paratomar um cafezinho. Eu fico todofeliz, conta, e completa – e vocêsvão botar meu nome aí no papelsem nem deixar uma caixinha?

Felizes também ficam as pes-soas que vão lá pedir uma graçaa alguma das várias “almas”conhecidas como milagrosas. Me-ninas que morreram muito jo-vens são elevadas ao altar comosantas e lápides como “Nelizinha,agradeço a graça alcançada” sãocomuns principalmente em tú-mulos de crianças.

Usos variadosEntre a devoção de uns e a

indiferença de outros, os cemité-rios estão virando atração turísti-ca. A prefeitura do Rio indica co-

mo passeio uma visita ao SãoJoão Batista para a apreciaçãoda variada arquitetura e a visitaaos túmulos de famosos.

Os significados dados a umcemitério são bem mais variadosdo que se possa imaginar. Alémde atalho e atração turística, háainda os que vêem o local comoafrodisíaco. O estudante de Quí-mica F., de 25 anos, é um exem-plo típico de quem dá aos cemi-térios uma conotação bem dife-rente da convencional. Durantesuas férias de 1999, em uma ci-dade do interior de Minas Gerais,ele decidiu realizar uma fantasiaantiga: fazer sexo no cemitério.Na companhia de uma amigatão ousada quanto ele, o jovempulou o muro do cemitério dacidade no meio da madru g a d ae conseguiu o que queria.

Engana-se quem imagina queisso foi um impulso de momento.O estudante já vinha tentandosatisfazer essa vontade há algumtempo quando finalmente con-seguiu. Ele revela:

– Nem eu nem ela tivemosmedo. Se tiver oportunidade, fa-rei de novo.

Fetiches à parte, o que real-mente atrai o universitário noscemitérios são as esculturas, queele gosta de fotografar. Além docampo-santo de Minas Gerais,ele freqüenta as necrópoles Jar-dim da Saudade e São João Batis-ta, ambas no Rio de Janeiro.

O jovem não sabe pre c i s a rquando começou a fre q ü e n t a rcemitérios por lazer, mas diz quenão sentia medo deles nemquando criança. Segundo ele, osentimento ao entrar num cam-po-santo não deve ser de medo,mas de paz.

Apesar de ser um admirador decemitérios, ele não quer ser enter-rado em um deles.

– Acho que prefiro cremação,assim posso ser guardado emcima da lareira da sala, brinca oestudante.

Novos conceitosOutras concepções de cemitério

– como o Jardim da Saudade e oMemorial do Carmo são menosatraentes aos fotógrafos que bus-cam sepulturas e estátuas góti-cas, mas têm bastante a oferecera quem precisa fazer um sepulta-mento.

O s i t e do Jardim da Saudade a-p resenta os cemitérios-parque co-mo uma proposta para atenuar ador da perda oferecendo àquelesque vão enterrar seus parentes e

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Cemitérios modernos e confortáveis

“Prefiro cremação,assim posso

ser guardado em cima da

lareira da sala”

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amigos uma imagem menosdeprimente do que os cemitériosconvencionais. Em letras verm e-lhas garrafais, lê-se que lá é olugar mais próximo do paraíso.

No município do Rio de Ja-neiro, há dois cemitérios do gru-po: um em Sulacap e outro emPaciência. Se nos outros cemi-térios tudo remete à morte, comesculturas fúnebres, imagens dosfalecidos, túmulos enormes elápides cheias de inscrições, oJ a rdim da Saudade parece tersido feito para os vivos. Nascapelas para velório, há quartode repouso e banheiro privativo.Além disso, dentro dos próprioscemitérios, ambos localizados emáreas afastadas da cidade, exis-tem lojas de artigos fúnebre s ,como floriculturas, o que evita apresença de ambulantes nas ruaspróximas. O Jardim da Saudadede Paciência ainda conta comum bar e restaurante 24 horaspor dia, que serve diversos tiposde refeições.

A imagem que se tem docemitério é a mesma de umj a rdim. As pessoas são sepultadasno gramado e as lápides sãopequenos quadrados de cimentos o b re o chão. Há muitas árv o res e,conseqüentemente, sombra e pas-sarinhos. O inconveniente é que,como não há demarcação dassepulturas, os visitantes pisams o b re as covas sem perc e b e r.

O grupo Jardim da Saudadetambém oferece outros serv i ç o spara que as pessoas compre magora e usufruam depois de mor-re r. O Plamor – Plano de Assistên-cia Mortuária – coloca à dispo-sição da família uma assistentesocial e um carro para transport á -

la, além de flores, pagamento dec e rtidões e remoção do corpo. Obenefício de quem paga se estendea toda a família e o valor da men-salidade não está condicionado àidade da pessoa, o que leva a cre rque o grupo considera que, param o rre r, basta estar vivo.

Além dos cemitérios-parq u e ,como o Jardim da Saudade,quem busca por locais de aparên-cia menos mórbida para sepultarseus entes pode optar peloscemitérios verticais. Nessa cate-goria, o Memorial do Carmo é op r i m e i ro da cidade do Rio.

Administrado pela Ordem doCarmo. A concepção, assim co-mo no Jardim da Saudade é dartodo o conforto à família nummomento que já é difícil. A estru-tura de capelas com sala derepouso e banheiro privativorepete-se e a padronização é amesma. Mas, neste caso, no lugarda beleza de um jardim, preza-sepela segurança. A existência desalas de repouso, lanchonete,floricultura e segurança 24 horaspor dia, permite sepultamentosdurante a noite e visita em qual-quer horário e todos os dias dasemana.

Em datas especiais, como o feri-ado de Finados, a administraçãoprepara eventos como a apresen-tação do Coral da PUC-Rio, em2003, e a inauguração de umespaço cultural, em 2004.

A segurança e a privacidadesão fatores decisivos para quemprocura o Memorial do Carmo.Esse foi o caso da escritora GlóriaP e rez, mãe da atriz DanielaPerez, que cansou de repor partesroubadas e quebradas no túmuloda filha e decidiu transferi-lapara o cemitério vertical. Lá,Glória sabe que nada será rouba-do do jazigo da filha, já que todossão completamente vedados ecobertos por vidro. Além disso, aprivacidade é muito maior, pois aestrutura marcadamente comer-cial da entrada do prédio desani-ma a maior parte dos visitantesque não são parentes ou amigosdas vítimas.

A padronização dos túmulosacontece como em condomíniosde luxo nas grandes cidades.Existem os cemitérios paratodos, que são divididos emá reas nobre e popular, e temaqueles onde todos os jazigossão muito parecidos, mas sãotodos ocupados por famílias dealto poder aquisitivo. Fica entãoa dúvida: será que teremos nof u t u ro os “cemitérios tipo ha-bitação popular”, também pa-d ronizados, mas constru í d o scom baixo custo? Ou a igual-dade após a morte continuarárestrita às classes altas?

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Jazigos do Memorial do Carmo

O Jardim da Saudadeparece ter sido feito

para os vivos

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