N° 28 - Um pequeno grande balanço.

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Ao completarmos dez anos de ininterruptas atividades da nossa Política Democrática, torna-se quase que imperioso transmitir aos nossos leitores, atuais e mais antigos, nossa experiência de manter, de forma flexível, uma publicação aberta, ampla e plural, não apenas nos temas que aborda, mas, sobretudo, na qualidade e na diversidade de seus colaboradores, nacionais e internacionais, sem nenhum parti pris, que não seja o de expor e debater as grandes questões da contemporaneidade, nos planos nacional e internacional.

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Segurança Pública em Foco

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Política DemocráticaRevista de Política e Culturawww.politicademocratica.com.br

Conselho de Redação

EditorMarco Antonio T. CoelhoEditor ExecutivoFrancisco Inácio de AlmeidaEditor Executivo AdjuntoCláudio Vitorino de Aguiar

Alberto Aggio Anivaldo Miranda Caetano E. P. AraújoDavi EmerichDina Lida Kinoshita Ferreira Gullar

George Gurgel de OliveiraGiovanni Menegoz Ivan Alves FilhoLuiz Sérgio HenriquesRaimundo Santos

Alberto Passos Guimarães FilhoAmarílio Ferreira JrAmilcar BaiardiAna Amélia MelloAntonádia Monteiro BorgesAntonio Carlos MáximoArmênio GuedesArtur José PoernerAspásia CamargoAugusto de FrancoBernardo RicuperoCelso FredericoCícero Péricles de CarvalhoCharles PessanhaDélio MendesDenis Lerrer RosenfieldDimas MacedoFábio FreitasFlávio KotheFrancisco Fausto MatogrossoFrancisco José Pereira

Gilson LeãoGilvan CavalcantiJoanildo BuritiJosé Antonio SegattoJosé BezerraJosé Carlos CapinamJosé Cláudio BarriguelliJosé Monserrat FilhoLuís Gustavo WasilevskyLuiz Carlos AzedoLuiz Carlos Bresser-PereiraLuiz Eduardo SoaresLuiz Gonzaga BeluzzoLuiz Werneck ViannaMarco Aurélio NogueiraMaria do Socorro FerrazMarisa BittarMartin Cézar FeijóMichel ZaidanMilton Lahuerta

Oscar D’Alva e Souza FilhoOthon JambeiroPaulo Afonso Francisco de CarvalhoPaulo Alves de LimaPaulo BonavidesPaulo César NascimentoPaulo Fábio Dantas NetoPedro Vicente Costa SobrinhoRicardo Cravo AlbinRicardo MaranhãoRoberto Mangabeira UngerSérgio Augusto de MoraesSérgio BessermannSinclair Mallet Guy GuerraTelma LoboWashington BonfimWillian (Billy) MelloWillame JansenWillis Santiago Guerra FilhoZander Navarro

Produção: Editorial AbaréCopyright © 2010 by Fundação Astrojildo PereiraISSN 1518-7446

Os artigos publicados em “Política Democrática” são de responsabilidade dos respectivos autores.Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.

Conselho Editorial

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2010.No 28, dezembro/2010200 p.

1. Política. 2. Cultura. I. Fundação Astrojildo Pereira. II. Título.

CDU 32.008.1 (05)

Ficha catalográfica

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Política DemocráticaRevista de Política e CulturaFundação Astrojildo Pereira

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Sobre a capa

O autor da capa e contracapa desta edição comemorativa é o artista plástico e ex-operário ferramenteiro paraibano Mar-cos Pereira, filho de um cantador popular. Nascido em Cam-

pina Grande, em 1948, radicou-se, há décadas, em Teresópolis, na região serrana do Estado do Rio de Janeiro. Pai de dois filhos, come-çou sua carreira artística tomando por base o abstracionismo. Para ele, o figurativismo não representava o que de fato queria dizer. E a Arte, como sabemos, é o domínio mais livre da criatividade humana. Cabe ao artista – e somente a ele – definir o que lhe vai n’alma. Como deve se exprimir, em suma. Ele é o dono de sua condição íntima. Mas o artista de verdade também muda. Ou o artista de verdade sobretu-do muda. E Marcos Pereira – um exímio colorista – resolveu inovar. Tanto em matéria de cores – agora também se vale da aplicação de gravação e tinta acrílico sobre a superfície de madeira – como no que tange à própria figuração. Sua fase atual implica uma radical e “re-cente fuga do abstracionismo”. E o resultado não poderia ser melhor. Como ele mesmo o afirma, “o primitivismo de tais quadros resgatou o que eu tinha de mais puro em minha tarefa de pintar. Redescobri a figura e principalmente a figura que representa a ação humana sobre a terra”. Ou a Arte não é um Humanismo? Seus desenhos aqui apresentados entram em contato com o fundo cultural brasileiro. Têm um quê de xilogravura popular nordestina e traduzem aquilo que o fundo cultural brasileiro tem de melhor, não fosse o artista um ser que transita pelas mais diversas experiências estéticas, do regionalismo a uma linguagem mais cosmopolita. É o primitivismo na vanguarda. Pois quem não garante que o passado não possa es-tar também à nossa frente? Marcos expõe suas obras, sobretudo, na serra fluminense (Petrópolis, Teresópolis, Nova Friburgo) e, em 2010, ganhou Menção Honrosa em uma exposição organizada pela Prefei-tura de Teresópolis.

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Sumário

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I. Tema de capa: A Segurança Pública em Foco

A crise no Rio e o pastiche midiático .................................... 15Luiz Eduardo Soares

Falta no Rio a invasão de cidadania ...................................... 21Arnaldo Jardim

O que há por trás da atual onda de ataques no Rio de Janeiro ................................................................. 23Rinaldo Martins de Oliveira

II. Conjuntura

Balanço das eleições e a defesa da democracia ...................... 31Marco Antonio Coelho

Quadros de uma exposição eleitoral ...................................... 36Wilson Figueiredo

Uma nova transição.............................................................. 42Raimundo Santos,

III. Observatório, 47

A síndrome autoritária ......................................................... 49Paulo Elpidio de Menezes Neto

O Legislativo em seu labirinto .............................................. 59Bolivar Lamounier

O Judiciário legislador ......................................................... 63Arlindo Fernandes de Oliveira

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IV. Batalha das ideias

O que é “brasilização do Ocidente”? ..................................... 75Fabrício Maciel

A esfera pública em Jurgen Habermas e Hannah Arendt ........ 84João Vinícius Marques

V. Questões de desenvolvimento

Agricultura: conflito e representação política ....................... 93Guilherme Leite da Silva Dias

Pacto federativo e localização regional ............................... 101Demetrio Carneiro e José Carneiro da Cunha Oliveira

VI. Mundo

A política exterior pós Lula ................................................ 109Rubens Ricupero

Utopias iluministas e comunhões conservadoras ................. 120Edgard Leite

VII. Vida Cultural

No reino dos best-sellers .................................................... 127A. P. Quartim de Moraes

Uma missionária da pesquisa .............................................. 130Vladimir Carvalho,130

VIII. Ensaio

Montesquieu e a Teoria da Tripartição dos Poderes ............. 139Ricardo Luiz Alves

IX. Memória

Lembranças de um momento histórico ............................... 151Beatriz Bissio

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X. Resenha

Um pensamento vivo e provocador ..................................... 163Elide Rugai Bastos

Memorialista de uma geração ............................................. 167Edmur Fonseca

Um poder secreto na democracia moderna .......................... 174Martin Cezar Feijó

XI. Documentos

Movimento em prol do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras ............................................. 183Manifesto ao Povo Brasileiro

XII. O Centenário do Poeta do Povo – Noel Rosa ....................193

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Um pequeno grande balanço

Ao completarmos dez anos de ininterruptas atividades da nossa Política Democrática, torna-se quase que imperioso transmitir aos nossos leitores, atuais e mais antigos, nossa experiência

de manter, de forma flexível, uma publicação aberta, ampla e plural, não apenas nos temas que aborda, mas, sobretudo, na qualidade e na diversidade de seus colaboradores, nacionais e internacionais, sem nenhum parti pris, que não seja o de expor e debater as grandes ques-tões da contemporaneidade, nos planos nacional e internacional.

Não vamos enfocar as dificuldades financeiras dos primeiros anos, nos quais a revista saía graças à fraterna colaboração de al-guns anônimos companheiros e amigos, que acreditavam na impor-tância de a esquerda democrática e reformista ter um espaço para construir o projeto de uma nova formação política, antenada com as amplas, profundas e permanentes mudanças que ocorrem no globo. O que desejamos afirmar alto e bom som – e acreditamos que a maio-ria dos que nos leem, periodicamente, concordam – é que somos vi-toriosos nesta empreitada.

Em cada número, nas várias seções, como Observatório Político, Conjuntura, Batalha das Ideias, Questões do Desenvolvimento, No Compasso das Reformas, O Social e o Político, Sociedade do Conhe-cimento, Economia e Finanças, Direito e Justiça, Ensaio, Mundo, Vida Cultural, Memória, Comportamental, Resgatando a História, Documentos, Resenha, as grandes e instigantes questões da atuali-dade brasileira e mundial têm sido aqui enfocadas, sob ângulos os mais variados.

Basta fazer um rápido retrospecto das nossas edições, conside-rando alguns temas de capa, como “A esquerda em questão”, “Desa-fios do nosso tempo”, “Terrorismo x Democracia”, “Religião x Ciên-

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cia”, “1964: O que aprendemos?”, “A eleição de Lula e os rumos da esquerda”, “Início do Governo Lula: Esperanças e apreensões”, “Vinte anos de democracia. Dois anos de Lula”, “Governo Lula – O mal da corrupção”, “A opção parlamentarista”, “Governo Lula – Cri-se da esquerda?”, “Brasil – Desatar os nós”, “Crise nas instituições da República”, “O desafio da esquerda no Brasil”, “A necessidade da reforma política”, “Os 70 anos do Estado Novo de Vargas”, “Os 120 anos da Abolição da Escravatura”, “Os 50 anos da Declaração de Março”, “Inflação?”, “Vinte anos da Carta de 1988”, “Os 120 anos da República”, “A crise mundial e seus desdobramentos”, “Por uma sociedade civil mais forte e uma democracia ampliada”, “As fragili-dades da democracia e a urgência das reformas”, “Nova República e seus 25 anos” e “Agenda para um novo Brasil”.

Acreditamos nos ter constituído num espaço de diálogo e ampla discussão, envolvendo algumas das melhores cabeças, em atividade no país e estrangeiros, para uma troca de opiniões e de propostas em torno das questões mais candentes nesses primeiros dez anos do novo século e de um novo milênio. Nossas páginas têm acolhido arti-gos e ensaios de cientistas políticos, de filósofos, de cientistas sociais (antropólogos e sociólogos), não apenas de professores e pesquisado-res maduros e figuras de nomeada, mas também moças e rapazes que estão começando seu mister acadêmico e que vêm em nossa pu-blicação uma tribuna para suas inquietações intelectuais. Além des-ses, lideranças políticas e sociais, sem falar ainda em autodidatas, todos preocupados em tentar entender a dinâmica dos novos tem-pos, de forma a poder neles se inserir nos seus diferentes projetos de ampliar e consolidar nosso processo democrático, avançar nas refor-mas, criando-se as condições para construirmos um país equânime e de desenvolvimento sustentável.

Para comprovar o que estamos afirmando, basta uma olhadela em quase uma centena de nossos colaboradores, oriundos de várias atividades intelectuais, políticas e sociais, de várias regiões do país, assim como nos que também de além-fronteira valorizam nossa pu-blicação com seus artigos ou ensaios exclusivos ou nos permitem a reprodução de algum deles publicado seja na Itália (a maioria), nos Estados Unidos, em Portugal, na França, na Grã Bretanha, na Es-panha, na Alemanha, no Chile, na Argentina, na Holanda, no Méxi-co, na Rússia, dentre outros.

Não vamos reproduzir aqui tantos nomes, até porque seria enfa-donho, mas queremos agradecer a todos os que colaboraram conos-co ao longo dessa caminhada de dez anos. E dizer que ficaremos felizes de poder continuar contando com todos eles e outros mais

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que nos indiquem no intuito de fazer da nossa Política Democrática uma referência cada vez concreta na vida cultural brasileira.

Destaque-se também, motivo de justo orgulho, a política de ilus-tração da revista. Cada edição nossa apresenta, em suas capa e con-tracapa, assim como nas folhas de rosto de cada seção, belos traba-lhos de artistas plásticos brasileiros, muitos com um histórico de participação nas lutas sociais e democráticas do país. Para mencio-nar alguns: Cândido Portinari, José Pancetti, Rubens Gerchmann, Carlos Scliar, Siron Franco, Abelardo da Hora, João Câmara Filho, Oscar Niemeyer, Wladomiro de Deus, Toninho de Souza, Flávio Im-pério, Gershon Knispel, Berenice Fernandes Barreto, Douglas Mar-ques, Estrigas (Nilo Firmeza), Aparecida Azedo, Audifax Rios, Sérgio Pinheiro, Waldyr Joaquim de Mattos, Lourdes de Deus, Félix Xime-nes, Ayrton Rocha Júnior, Richard Perassi e outros.

Os Editores

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I. A Segurança Pública em foco

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Autores

Luiz Eduardo SoaresProfessor da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Tem pós-doutorado em Fi-losofia Política e foi secretário nacional de Segurança Pública (2003). É autor, entre outros livros, de Elite da tropa, com André Batista e Rodrigo Pimentel (Objetiva, 2006).

Arnaldo Jardim Engenheiro civil, deputado federal (PPS-SP) já no terceiro mandato, foi deputado estadual (1987-1998) e secretário de Habitação do estado de São Paulo (1992).

Rinaldo Martins de Oliveira Formado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, militante sindical, atua nos movimentos sociais e populares da Igreja Católica e é autor de vários textos de análise social e política.

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A crise no Rio e o pastiche midiático1

Luiz Eduardo Soares

Na nova onda de violência que o Rio de Janeiro vem vivencian-do, desde o dia 21 de novembro corrente, um aspecto inicial a considerar é no tocante ao espetáculo midiático. Reinam,

incontrastáveis, a exaltação passional das emergências, as imagens espetaculares, os dramas individuais e a retórica paradoxalmente triunfalista do discurso oficial. Torna-se, assim, difícil compactuar com o ciclo sempre repetido na mídia: atenção à segurança nas crises agudas e nenhum investimento reflexivo e informativo real-mente denso e consistente, na entressafra, isto é, nos intervalos entre as crises.

Na crise, as perguntas recorrentes são: (a) O que fazer, já, ime-diatamente, para sustar a explosão de violência? (b) O que a polícia deveria fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas? (c) Por que o governo não chama o Exército? (d) A imagem internacio-nal do Rio foi maculada? (e) Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?

Tais perguntas são expressivas do pobre modelo explicativo cor-rente e se constituem obstáculos ao conhecimento e réplicas de há-bitos mentais refratários às mudanças inadiáveis.

1 Resumo do artigo publicado no blog do autor, no Portal do PPS e no Portal Gramsci e o Brasil.

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A Segurança Pública em foco

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Medidas imediatas para sustar a violência e resolver o desafio da insegurança

Nada que se possa fazer já, imediatamente, resolverá a insegu-rança. Quando se está na crise, usam-se os instrumentos disponí-veis e os procedimentos conhecidos para conter os sintomas e salvar o paciente. Se desejamos, de fato, resolver algum problema grave, não é possível continuar a tratar o paciente apenas quando ele já está na UTI, tomado por uma enfermidade letal, apresentando um quadro agudo. Nessa hora, parte-se para medidas extremas, de de-sespero, mobilizando-se o canivete e o açougueiro, sem anestesia e assepsia. Nessa hora, o cardiologista abre o tórax do moribundo na maca, no corredor. Não há como construir um novo hospital, decen-te, eficiente, nem para formar especialistas, nem para prevenir epi-demias, nem para adotar procedimentos que evitem o agravamento da patologia.

Por isso, o primeiro passo capaz de não permitir que uma situa-ção grave como a do momento se repita é preocupar-se em aperfei-çoar a segurança pública, no Rio e no Brasil, evitando a violência de todos os dias, assim como sua intensificação, expressa nas suces-sivas crises.

Se a sociedade, a mídia e os governos continuarem se recusando a pensar e abordar o problema em profundidade e extensão, como um fenômeno multidimensional a requerer enfrentamento sistêmico, ou seja, se prosseguirmos nos recusando, enquanto nação, a tratar do problema na perspectiva do médio e do longo prazos, nos conde-naremos às crises, cada vez mais dramáticas, para as quais não há soluções mágicas.

A melhor resposta à emergência é começar a se movimentar na direção da reconstrução das condições geradoras da situação emer-gencial. Quanto ao imediato, não há espaço para nada senão o dis-ponível, acessível, conhecido, que se aplica com maior ou menor des-treza, reduzindo-se danos e prolongando-se a vida em risco.

As polícias fluminenses e o tráfico de drogasEm primeiro lugar, a PM e a Polícia Civil, no estado do Rio como

em todo o país, deveriam parar de traficar e de associar-se aos trafi-cantes, nos arregos celebrados por suas bandas podres, à luz do dia, diante de todos. Deveriam parar de negociar armas com traficantes, o que as bandas podres fazem, sistematicamente. Deveriam também

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A crise no Rio e o pastiche midiático

Luiz Eduardo Soares

parar de reproduzir o pior do tráfico, dominando, sob a forma de má-fias ou milícias, territórios e populações pela força das armas, visan-do rendimentos criminosos obtidos por meios crueis.

Ou seja, a polaridade polícia versus tráfico esconde o verdadeiro problema: não existe a polaridade. Construí-la, isto é, separar bandi-do e polícia; distinguir crime e polícia, teria de ser a meta mais im-portante e urgente de qualquer política de segurança digna desse nome. Não há nenhuma modalidade importante de ação criminal no Rio de que segmentos policiais corruptos estejam ausentes. É só por isso que ainda existe tráfico armado, assim como as milícias.

Não digo isso para ofender os policiais ou as instituições. Não generalizo. Pelo contrário, sei que há dezenas de milhares de poli-ciais honrados e honestos, que arriscam, estóica e heroicamente, suas vidas por salários indignos. Considero-os as primeiras vítimas da degradação institucional em curso, porque os envergonha, os hu-milha, os ameaça e acua o convívio inevitável com milhares de cole-gas corrompidos, envolvidos na criminalidade, sócios ou mesmo em-preendedores do crime.

Não nos iludamos: o tráfico, no modelo que se firmou no Rio, é uma realidade em franco declínio e tende a se eclipsar, derrotado por sua irracionalidade econômica e sua incompatibilidade com as dinâ-micas políticas e sociais predominantes, em nosso horizonte históri-co. Incapaz, inclusive, de competir com as milícias, cuja competência está na disposição de não se prender, exclusivamente, a um único nicho de mercado, comercializando apenas drogas – mas, as incluin-do em sua carteira de negócios, quando conveniente.

O modelo do tráfico armado, sustentado em domínio territorial, é atrasado, pesado, antieconômico: custa muito caro manter um exér-cito, recrutar neófitos, armá-los (nada disso é necessário às milícias, posto que seus membros são policiais), mantê-los unidos e discipli-nados, enfrentando revezes de todo tipo e ataques por todos os lados, vendo-se forçados a dividir ganhos com a banda podre da polícia (que atua nas milícias) e, eventualmente, com os líderes e aliados da fac-ção. É excessivamente custoso impor-se sobre um território e uma população, sobretudo na medida em que os jovens mais vulneráveis ao recrutamento comecem a vislumbrar e encontrar alternativas.

Não só o velho modelo é caro, como pode ser substituído com vantagens por outro muito mais rentável e menos arriscado, adotado nos países democráticos mais avançados: a venda por delivery ou em dinâmica varejista nômade, clandestina, discreta, desarmada e pací-fica. Em outras palavras, é melhor, mais fácil e lucrativo praticar o

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A Segurança Pública em foco

Política Democrática · Nº 28

negócio das drogas ilícitas como se fosse contrabando ou pirataria do que fazer a guerra. Convenhamos, também é muito menos danoso para a sociedade, por óbvio.

Quanto à participação do Exército, fazer o trabalho policial não é necessário, pois suas tropas não existem para isso, não são treinadas para isso, nem estão equipadas para isso. Mas o Exército deve, sim, participar, a começar cumprindo sua função de controlar os fluxos das armas no país. Isso resolveria o maior dos problemas: as armas ilegais passando, tranquilamente, de mão em mão, com as benções, a mediação e o estímulo da banda podre das polícias. Da mesma forma, também a Marinha, formando uma Guarda Costeira com foco no con-trole de armas transportadas como cargas clandestinas ou despejadas na baía e nos portos. Assim como a Aeronáutica, identificando e des-truindo pistas de pouso clandestinas, controlando o espaço aéreo e apoiando a PF na fiscalização das cargas nos aeroportos.

Claro que a imagem internacional do Rio foi maculada, mais uma vez. Porém, apesar de tudo, conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas, pois somos ótimos em eventos. Nesses momentos, aparece dinheiro, surge o “espírito cooperativo”, ações racionais e planejadas impõem-se. Nosso calcanhar de Aquiles é a rotina. Copa e Olimpíadas serão um sucesso. O problema é o dia a dia.

Palavras finaisTraficantes se rebelam e a cidade vai à lona. Encena-se um dra-

ma sangrento, mas ultrapassado. O canto de cisne do tráfico era esperado. Haverá outros momentos análogos, no futuro, mas a ten-dência declinante é inarredável. E não porque existem as UPPs, mas porque correspondem a um modelo insustentável, economicamente, assim como social e politicamente. As UPPs, vale dizer mais uma vez, são um ótimo programa, que reedita com mais apoio político e fôlego administrativo o programa “Mutirões pela Paz”, que implantei com uma equipe em 1999, e que acabou soterrado pela política com “p” minúsculo, quando fui exonerado, em 2000, ainda que tenha sido ressuscitado, graças à liderança e à competência raras do ten.cel. Carballo Blanco, com o título GPAE, como reação à derrocada que se seguiu à minha saída do governo.

A despeito de suas virtudes, valorizadas pela presença de Ricardo Henriques na Secretaria Estadual de Assistência Social – um dos me-lhores gestores do país -, elas não terão futuro se as polícias não forem profundamente transformadas. Afinal, para tornarem-se política pú-

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A crise no Rio e o pastiche midiático

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blica terão de incluir duas qualidades indispensáveis: escala e susten-tabilidade, ou seja, terão de ser assumidas, na esfera da segurança, pela PM. Contudo, entregar as UPPs à condução da PM seria condená-las à liquidação, dada a degradação institucional já referida.

O tráfico, que ora perde poder e capacidade de reprodução, só se impôs, no Rio, no modelo territorializado e sedentário em que se es-tabeleceu, porque sempre contou com a sociedade da polícia. Quan-do o tráfico de drogas no modelo territorializado atinge seu ponto histórico de inflexão e começa, gradualmente, a bater em retirada, seus sócios – as bandas podres das polícias – prosseguem fortes, fir-mes, empreendedores, politicamente ambiciosos, economicamente vorazes, prontos a fixar as bandeiras milicianas de sua hegemonia.

Discutindo a crise, a mídia reproduz o mito da polaridade polícia versus tráfico, perdendo o foco, ignorando o decisivo: como, quem, em que termos e por que meios se fará a reforma radical das polícias, no Rio, para que estas deixem de ser incubadoras de milícias, má-fias, tráfico de armas e drogas, crime violento, brutalidade, corrup-ção? Como se refundarão as instituições policiais para que os bons profissionais sejam, afinal, valorizados e qualificados? Como serão transformadas as polícias, para que deixem de ser reativas, ingover-náveis, ineficientes na prevenção e na investigação?

As polícias são instituições absolutamente fundamentais para o Estado Democrático de Direito. Cumpre-lhes garantir, na prática, os direitos e as liberdades estipulados na Constituição. Sobretudo, cumpre-lhes proteger a vida e a estabilidade das expectativas positi-vas relativamente à sociabilidade cooperativa e à vigência da legali-dade e da justiça. A despeito de sua importância, essas instituições não foram alcançadas em profundidade pelo processo de transição democrática, nem se modernizaram, adaptando-se às exigências da complexa sociedade brasileira contemporânea.

O modelo policial foi herdado da ditadura. Ele servia à defesa do Estado autoritário e era funcional ao contexto marcado pelo arbítrio. Não serve à defesa da cidadania. A estrutura organizacional de am-bas as polícias impede a gestão racional e a integração, tornando o controle impraticável e a avaliação, seguida por um monitoramento corretivo, inviável. Ineptas para identificar erros, as polícias conde-nam-se a repeti-los.

Elas são rígidas onde teriam de ser plásticas, flexíveis e descen-tralizadas; e são frouxas e anárquicas, onde deveriam ser rigorosas. Cada uma delas, a PM e a Polícia Civil, são duas instituições: oficiais e não oficiais; delegados e não delegados.E nesse quadro, a PEC-300

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A Segurança Pública em foco

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é varrida do mapa no Congresso pelos governadores, que pagam aos policiais salários insuficientes, empurrando-os ao segundo emprego na segurança privada informal e ilegal.

Uma das fontes da degradação institucional das polícias é o que denomino “gato orçamentário”, esse casamento perverso entre o Es-tado e a ilegalidade: para evitar o colapso do orçamento público na área de segurança, as autoridades toleram o bico dos policiais em segurança privada. Ao fazê-lo, deixam de fiscalizar dinâmicas benig-nas (em termos, pois sempre há graves problemas daí decorrentes), nas quais policiais honestos apenas buscam sobreviver dignamente, apesar da ilegalidade de seu segundo emprego, mas também dinâmi-cas malignas: aquelas em que policiais corruptos provocam a insegu-rança para vender segurança; unem-se como pistoleiros a soldo em grupos de extermínio; e, no limite, organizam-se como máfias ou mi-lícias, dominando pelo terror populações e territórios. Ou se resolve esse gargalo (pagando o suficiente e fiscalizando a segurança privada /banindo a informal e ilegal; ou legalizando e disciplinando, e fisca-lizando o bico), ou não faz sentido buscar aprimorar as polícias.

Ou se começa a falar sério e levar a sério a tragédia da inseguran-ça pública no Brasil, ou será pelo menos mais digno furtar-se a fazer coro à farsa.

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Falta no Rio a invasão de cidadania

Arnaldo Jardim

O Brasil parou em frente à TV para assistir à ação policial-militar de invasão do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro. Diferentemente de outras incursões que pouco ou nada alte-

raram a relação de tolerância, conivência e cumplicidade existentes entre os agentes públicos e a marginalidade, desta vez as forças de segurança demonstraram planejamento, inteligência, integração e cuidado para evitar mortes de inocentes o que possibilitou o apoio dos moradores.

Toneladas de entorpecentes, armas e munições, carros e motos, casas com piscinas e modernos eletroeletrônicos, evidenciaram uma vida de luxo dos traficantes, construída à base do terror e da ausên-cia de quase três décadas do poder público nestas localidades, con-sideradas as regiões mais pobres da cidade do Rio de Janeiro.

Agora, são 13 as comunidades que contam com as chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Todavia, existem cerca de mil comunidades no Rio. Quero acreditar que este é apenas o começo de uma solução definitiva e não apenas um alívio imediato para mais de 20% da população carioca que vive nestas localidades, às mar-gens do poder público, subjugadas por traficantes ou milicianos, condenadas à miséria, ao desemprego e à falta de condições mínimas de sobrevivência.

É o que revelam dados do Centro de Políticas Sociais (CPS), da Fundação Getúlio Vargas, com base no censo de Comunidades de Baixa Renda, feito pelo governo fluminense, em 2009. A renda per capita mensal do Complexo do Alemão é de R$ 176,90, e da Rocinha, R$ 220, diante de uma média das demais de R$ 615 das 30 regiões administrativas do município do Rio. No Alemão, vivem 30% de mi-seráveis que ganham até R$ 145 mensais.

Essa baixa remuneração está diretamente ligada ao quesito edu-cação. A Rocinha registra o menor nível de escolaridade do Rio, de 5,08 anos completos de estudos. O Complexo do Alemão ocupa o se-gundo lugar neste ranking, com 5,36 anos de estudo. A proporção de pessoas com curso universitário é de 2,75%, quase dez vezes menor

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que o resto da cidade. Chega a alarmantes 92% o percentual de crianças (de 0 a 3 anos de idade) do Complexo do Alemão que nunca freqüentaram uma creche.

A ausência de políticas públicas de transferência de renda, tipo Bolsa Família, fica evidente diante da média de 80,6% do rendimento em cinco grandes comunidades – Jacarezinho, Maré, Complexo do Alemão, Rocinha e Cidade de Deus – ser fruto do trabalho de seus moradores. O índice médio de desemprego nestas localidades chega a 19,1%, ante os 9,9% nos bairros ricos.

Portanto, mais do que saudar a atuação das forças de segurança é preciso destacar que a “verdadeira” luta não se resume à ocupação territorial destas localidades, mas à invasão de cidadania por meio de serviços públicos essenciais garantidos pela nossa Constituição, como educação, saúde, lazer, transporte, saneamento básico, pro-gramas habitacionais, ou seja, ações capazes de oxigenar a economia local e empreender em novas oportunidades.

O show midiático colocou a capital carioca em evidência. Todavia, não podemos esquecer que a dura realidade nas comunidades não é exclusividade dos cariocas. Trata-se de um reflexo da desigualdade social encontrada em todas as regiões do Brasil, que demandam, mais do que políticas de transferência de renda, a necessidade da presença do Estado para prover serviços públicos capazes de alterar a realidade deste gigante adormecido. O caso do Rio demonstra que é possível sonhar com um futuro que é de todos nós brasileiros.

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O que há por trás da atual onda de ataques no Rio de Janeiro

Rinaldo Martins de Oliveira

O Rio de Janeiro e adjacências, desde 19/11/2010 sofre, talvez, a onda mais intensa já ocorrida em sua história de ataques orquestrados por grupos criminosos do trá-

fico de drogas. A interpretação que a imprensa e o governo ora vêm disseminando junto à opinião pública é identificar a reação dos bandidos como uma resistência à implantação das UPPs em algumas favelas cariocas. Avaliam que essas unidades de po-liciamento estariam dificultando e mesmo impedindo o tráfico local e expulsando seus integrantes para outras favelas maiores ainda comandadas por facções criminosas, como os complexos da Vila Cruzeiro e do Alemão. Para o Comando Geral da PM, estariam, portanto, nessas favelas, os executores principais dos atentados a carros e ônibus ultimamente ocorridos, sobretudo nos bairros do subúrbio carioca, justificando a intensa invasão militar (Polícia Militar e Federal, Marinha e Exército) que ora ali segue em curso.

O que precisamos analisar aqui é se essa interpretação “ofi-cial” dos fatos realmente condiz com a inteira verdade, ou há algo a mais que não está sendo divulgado ou está sendo propo-sitadamente omitido nessa história, com a intenção de se fazer valer um conjunto de ações políticas baseadas em um dado diagnóstico da situação.

Neste artigo, traço alguma reflexão sobre o que me parece estar ocorrendo por trás da atual onda de ataques, reflexão esta que caminha numa direção muito diferente da versão simplista e reducionista ora massificada que, mais uma vez, vem amparada na falsa e velha imagem da guerra entre o bem e o mal, com o fim de legitimar novamente a implantação de políticas “amargas” (como o Estado de Sítio que, na prática, está sendo imposto à população mais pobre) que, desde então, começam a incorporar o nosso cenário social como medidas “necessárias” para o bem futuro da coletividade.

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Trabalho aqui a partir de algumas informações adquiridas junto a moradores das próprias comunidades populares onde já foram ou ainda estão sendo implementadas as UPPs, além de outras pessoas que têm amplo conhecimento do dia-a-dia da realidade do tráfico no interior das favelas. Desejo utilizar-me desses dados para pontuar algumas questões em aberto, nesse atual episódio, que ora requerem uma atenção mais cui-dadosa dos que não estão satisfeitos com as conclusões tão ligeiramente chegadas pela mídia e pelo governo a respeito dos atuais acontecimentos.

Terrorismo clássico ou reação política?Em primeiro lugar, reparem que a mídia e as autoridades

governamentais, ao se referirem aos incêndios ateados pelos bandidos nos carros e ônibus na cidade, não param de intitular o ato como sendo de “puro terrorismo”, como se o propósito dos bandidos fosse de apenas cometer malefícios gratuitos à popu-lação em revide às atuais investidas da polícia nas favelas. Ocorre que, apesar de imprensa e governo procurarem avida-mente baixas (mortes) de civis em decorrência dessas queimas provocadas pelos bandidos, até agora, rigorosamente, nada en-contraram que realmente possa enquadrar esses atos violentos como de terrorismo “clássico” (tal como o ocorrido, por exemplo, no atentado ao Word Trade Center, nos EUA em 2001). Na ver-dade, as dezenas de mortes já ocorridas nesse conflito são to-das, até agora, praticamente de pessoas diretamente envolvidas no confronto armado, sobretudo do lado dos bandidos.

Tento fazer esses esclarecimentos para afirmar que o ato pra-ticado por tais criminosos tem outro significado muito diferente do apontado pelas autoridades e mídia. Não é um gesto mera-mente “diabólico”, refletindo nada mais que valores desumanos e sádicos desses criminosos. É um gesto, antes de tudo, POLÍTICO que parece mais representar uma tentativa de chamar a atenção pública para alguma coisa que está acontecendo, talvez de forma ainda obscura aos olhos da população.

As UPPs a serviço do tráfico

Então, o que pode estar acontecendo e que precisa tanto ser alardeado por tais grupos criminosos? As UPPs, que até agora

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ocuparam comunidades populares consideradas secundárias (veja as comunidades no site upprj.com), estão começando a produzir uma remodelação geográfica do tráfico de drogas nes-ses mesmos locais. Diversos moradores dessas comunidades “pacificadas” têm testemunhado que o tráfico, em si mesmo, não parou. Continua atuante no local, quase sempre no interior dos mesmos guetos (ou “bocas”), recebendo o produto dos mes-mos fornecedores e comercializando com os mesmos comprado-res. Só que agora de forma velada, sem a comum ostentação armada no meio das ruas e em cima das lajes exercida pelos denominados “soldados”, “olheiros”, “vapores”, etc.

Analisando bem, essa ostentação bélica dos traficantes nas favelas, ao contrário da prática das chamadas “milícias”, nun-ca teve como propósito principal a intimidação do morador lo-cal (interpretação que a mídia, entretanto, sempre tentou transmitir para a opinião pública). Apesar de excessos nesse sentido, aqui e ali, o objetivo maior dessa conduta do tráfico sempre foi o de inibir e impedir a invasão de grupos rivais e a tomada do seu “ponto”. Na medida em que as UPPs assumem o papel de assegurar, nesses locais, a não circulação de pesso-as portando armas (aí está o seu conceito de “pacificação”), também acabam por transferir para si a responsabilidade de “proteger” as comunidades ocupadas contra a invasão de gru-pos externos. Deste modo, o tráfico local, seja ele comandado por quem for, pode exercer suas tarefas comerciais com relati-va segurança e estabilidade, aliás, como nunca antes visto.

A volta do tráfico originário Os atentados na cidade, portanto, têm uma explicação dife-

rente do que está sendo veiculada pela mídia e pelo governo: não são, de modo algum, reflexo do descontentamento geral da criminalidade em relação à implantação das UPPs naquelas co-munidades, mas descontentamento apenas de alguns segmen-tos criminosos que estão precisando sair dessas comunidades que, em algum momento, invadiram mediante confronto arma-do, quase sempre alcançando vitória sob o grupo local, manten-do, dali por diante, o controle a partir do forte aparato bélico.

Com a dificuldade dessa ostentação armada nesses locais, esses segmentos não estão conseguindo mais manter a hegemo-

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nia, de modo que os traficantes originários (normalmente jovens nascidos e criados ali, com seus parentes e amigos todos resi-dentes na comunidade) começam a retornar para suas comuni-dades e a retomar o comando das atividades, isto por conta da “rede de apoiadores” que o ambiente de convívio social permite restabelecer, facilitando rapidamente esse recomeço.

A velha política governamental de “maquiagem” Presume-se daí que, apesar de todo alarido e propaganda

feita pela mídia e pelo governo, não há combate algum efetivo, promovido pelo Estado, contra o tráfico de drogas, em si mes-mo, nos locais ora ocupados. O que há é apenas uma medida pontual inibidora da ostentação armada, a céu aberto, pelos traficantes, o que não significa que esses não continuem tendo a posse das suas armas e adquirindo outras, podendo, inclu-sive, a qualquer momento de recuo da polícia, voltar a empu-nhá-las em público. O foco dessa medida superficial e paliativa que estão sendo as UPPs, todos sabemos: preparar uma ima-gem positiva da cidade para a Copa em 2014 e para as Olimpí-adas em 2016, o que já exige a implementação dessa “política de maquiagem” desde já. Depois dessa fase, serão outros qui-nhentos.

É preciso, finalmente, apontar para o fato de que, em ne-nhum momento, os governos estadual e federal tocaram no assunto da implementação de uma política nacional e regional de combate, seja contra o produtor, seja contra o comprador das drogas comercializadas nessas próprias favelas ora ocupa-das. Isto tem uma razão óbvia: o objetivo não é e nunca foi o de acabar com o tráfico de drogas, mas apenas o de regulamentá-lo, ou seja, mantê-lo minimamente sob controle. Afinal, não é a população pobre que produz ou consome essas drogas, e sim as elites dominantes do país, a quem o Estado e seus dirigen-tes sempre serviram e continuam servindo.

Ou seja, esses fatos lamentáveis não são fruto de iniciativas isoladas de grupos criminosos: ocorrem por causa da ausência estrutural do Estado junto à sociedade. Na campanha eleitoral, os “representantes do povo” visitam todos os recantos da cidade em busca de votos; depois recolhem-se em seus gabinetes, quando deviam continuar nas ruas, nos bairros, nas comunida-

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des, ajudando a população a encontrar soluções para os seus problemas. Para isso foram eleitos.

Existem governador, prefeito, senadores, deputados fede-rais, deputados estaduais e vereadores, e com recursos sufi-cientes fornecidos pelo povo, para administrarem e promoverem situação de segurança e bem-estar da sociedade. Como podem deixar que bandidos tomem conta da cidade? Por que não to-mam medidas preventivas e verdadeiramente saneadoras?

A questão é que solução para o problema do crime, da vio-lência e das drogas não é e nunca foi a ação policial bélica e mais prisões, como se resumem a fazer. A solução tem que ser social e política. É a luta permanente e organizada contra a pobreza e a miséria. O Estado tem que investir no social e não em operações policiais. Se o Estado (não a polícia) marcar pre-sença junto à população, inibirá a ação do crime organizado. Por outro lado, a ausência do Estado significa não só omissão, mas sobretudo conivência e cumplicidade com o crime. Por-tanto, o que estamos ora presenciando, da parte dos governos estadual e federal, representa apenas uma encenação.

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II. Conjuntura

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Autores

Marco Antonio CoelhoAdvogado, jornalista, ex-dirigente nacional do PCB, ex-editor executivo da revista Estu-dos Avançados da Universidade de São Paulo, autor dos livros Herança de um sonho – memórias de um comunista (Editora Record) e Rio das Velhas – memória e desafios, (Editora Paz e Terra) e atual editor da revista Política Democrática.

Wilson FigueiredoFormado no Curso de Língua e Literatura Neolatina, da Faculdade de Filosofia da Uni-versidade Federal de Minas Gerais, é jornalista desde 1944, tendo trabalhado em alguns dos maiores periódicos do país, com destaque para o Jornal do Brasil, onde foi redator, comentarista político e criador do Informe JB. É um dos autores do clássico Os idos de março e a queda em abril, sobre os fatos que antecederam o golpe militar de 1964.

Raimundo Santos Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, autor de várias obras, de que são exemplo Agraristas políticos brasileiros (Fundação Astrojildo Pereira-NEAD, Brasília, 2007), A primeira renovação pecebista (Oficina de Livros, 1988) e A importância da tra-dição pecebista (Fundação Astrojildo Pereira, 2009).

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Balanço das eleições e a defesa da democracia

Marco Antonio Coelho

Para as correntes democráticas é indispensável extrair ensina-mentos das eleições recentemente realizadas no Brasil. Não fomos vitoriosos no pleito para a Presidência da República e a

coligação lulista ampliou seu poder no Congresso Nacional. Por isso tais fatos aumentam as responsabilidades dos engajados na causa democrática.

A oposição não foi esmagada e foi correta nossa atitude de com-bater as forças aglutinadas pelo governo federal. Mas, por que fomos derrotados? Em primeiro lugar, cabe acentuar que algumas forças democráticas e personalidades progressistas optaram pelo voto em Dilma Rousseff, porque não entenderam que no pleito estava em questão a política de Lula.

Elas adotaram uma posição equivocada, apoiadas no fato de Lula haver sido um dos milhões de nordestinos emigrantes, no pau-de-arara, e depois se tornou um líder sindical na indústria de São Paulo. Não entendem que ele passou a jogar um papel negativo na situação política, pois empenha-se em cercear as instituições políticas, os mo-vimentos populares, sindicais e sociais. Nessa trajetória, ele não uti-liza a violência aberta como os ditadores militares, mas utiliza dife-rentes formas de aliciamento das instituições, inclusive afastando os que não se dobram ante sua prepotência.

Um exame sumário desse quadro é bem significativo: busca re-duzir ao silêncio e à cumplicidade o Congresso Nacional; aviltou a

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Conjuntura

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atuação da maioria dos partidos políticos com práticas semelhantes ao “mensalão”, ou com a destruição implacável de líderes parlamen-tares transformados em inimigos de morte (exemplos – Artur Virgílio e Tasso Jereissati); desmoralizou personalidades que poderiam lhe criar problemas, como Ciro Gomes; imobilizou a atuação dos setores progressistas da Igreja Católica; liquidou com a bela tradição das organizações estudantis na base do estipêndio a seus dirigentes, usando para tanto a subserviência do PCdoB.

Nessa atividade recorre com esperteza a violações das normas constitucionais, distribuindo recursos públicos, conforme seja coni-vente ao êxito de seus planos. Consegue tais resultados porque dia-riamente ocupa a televisão para ficar no centro dos debates. Procla-ma barbaridades num dia e poucas horas depois afirma o contrário, como um oráculo que lança juízos inapeláveis e não presta contas a ninguém. Para tanto usa imagens relacionadas com o futebol, já que são entendidas por todos.

Tudo isso é feito porque conquistou o apoio popular, uma vez que atende a limitadas reivindicações das camadas subalternas por meio de uma prática assistencialista, enquanto preserva os interesses das grandes entidades financeiras e de outros setores privilegiados. Nun-ca no país o sistema bancário e as grandes empresas obtiveram lu-cros tão elevados, sendo que algumas delas conquistaram posições relevantes no mercado internacional.

Perdemos porque, segundo o Ibope, nas vésperas do pleito, 55% dos eleitores julgavam que a candidata do PT é que daria maior aten-ção aos problemas das massas populares. Esse quadro não foi mon-tado tão somente no decurso da campanha eleitoral. Resultou de uma atividade, realizada no curso de dois mandatos de Lula na Pre-sidência da República. E porque durante vários anos essa política não foi denunciada, porque a oposição curvou-se ante o prestígio popular de Lula. É interessante assinalar que, durante a campanha eleitoral, a maioria das correntes de oposição limitou-se a atacar a candidatura de Dilma e não centralizou o fogo no que era essencial. Ou seja, não combateu a política de Lula.

Ademais, ao longo de quase oito anos, o governo Lula implantou acordos com as lideranças das organizações trabalhistas e popula-res, inclusive o movimento estudantil. Manipulação baseada em pol-pudas subvenções financeiras e no uso de outras vantagens concedi-das pelos fundos de pensão. E o governo não mediu esforços para afastar das organizações sociais todos que contestam as iniciativas do Palácio do Planalto.

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Na execução de seu plano, Lula vem se empenhando em controlar a imprensa e outros veículos de comunicação, além de estruturar uma poderosa máquina propagandista dos “méritos” governamen-tais. As razões disso são claras: as denúncias de corrupção no gover-no surgiram nos órgãos de comunicação, mostrando a realidade em que vivemos no Brasil, com todas suas mazelas e carências. Daí o propósito de silenciar a imprensa, mas até agora o governo não obte-ve êxito nesse empreendimento, graças aos protestos de inúmeros setores da vida social.

Essa atuação do governo lulista foi facilitada por erros cometidos por personalidades oposicionistas, sendo um exemplo disso o suce-dido no governo do Rio Grande do Sul. Lula apoiou-se em falhas como esta para afirmar que a corrupção é generalizada e também prolifera entre oposicionistas.

Alguns dados importantes na campanha eleitoralAgora vivemos dias de glorificação da vitória de Dilma Rousseff,

porém a realidade é assustadora. A política de Lula e do PT conduziu o país a uma situação difícil, porque o Brasil ficou dividido quase ao meio e as divergências serão acirradas em razão do comportamento do PT de não respeitar partidos que não rezam pela sua cartilha. Lula foi muito claro ao afirmar num discurso que “o DEM deveria ser extirpado de Santa Catarina.”

Para os observadores estrangeiros, o panorama eleitoral de nosso país é surpreendente. A coligação de partidos, sob a liderança do PT, conseguiu indiscutível vitória na disputa da Presidência da República. No entanto, em estados importantes o mesmo não ocorreu. Vários fa-tores causaram essa diversidade, demonstrando a fragilidade dos par-tidos e porque lideranças locais jogam um papel significativo, assim como o bom ou o mau desempenho de seus militantes nos governos estaduais e nas prefeituras. E tornou-se prática rotineira a opção elei-toral ser um arranjo de candidatos de partidos diferentes. Um exemplo – em Minas Gerais foi importante a chamada Dilmasia, o movimento unindo as candidaturas de Dilma (PT) e de Anastasia (PSDB).

No primeiro turno, a grande novidade foi a extraordinária votação obtida pelo Partido Verde, que teve cerca de vinte milhões de votos. Assim, pela primeira vez ficou demonstrado que uma parcela ponde-rável de nossa população é sensível à luta em defesa do meio am-biente. Portanto, a causa ambientalista deixou de ser uma reivindi-cação de uns poucos para ser uma força na política brasileira.

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Conjuntura

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No processo eleitoral houve dados negativos, como o fato de os principais partidos (tanto de participantes da frente governamental como entre os oposicionistas) terem feito concessões exageradas a en-tidades religiosas, chegando ao ponto de violar o princípio republicano de que o Estado brasileiro é laico e garante a liberdade de crença.

Durante a campanha eleitoral comprovou-se como é nociva a po-lítica do PT de colocar seus militantes em cargos de direção nas em-presas estatais e à frente de instituições governamentais, em detri-mento dos servidores de carreira. Conduta que propiciou o avanço da corrupção e o desvio de recursos públicos para o financiamento da estrutura do PT, causando sérios prejuízos ao poder público.

Também a vitória do PT no pleito presidencial deveu-se em gran-de medida à normalidade da situação econômica e financeira do país. Fato que, em grande parte, decorre da herança recebida do governo de FHC, notadamente o controle da inflação e a estabilização da mo-eda. Em segundo lugar, porque Lula se beneficiou de um panorama não abalado por sérias crises internacionais.

Lições para a luta democráticaNo curso dos debates eleitorais, tornou-se insofismável que Lula

deseja assegurar o controle total e absoluto do Estado brasileiro, passando por cima das instituições. Nesse empenho, ele tenta esma-gar todos os que contrariam sua política, segundo o exemplo de Mus-solini na Itália.

Esse propósito fica transparente inclusive no seu relacionamento com o PT, pois em diversos casos Lula foi impondo a esse partido seus objetivos meramente pessoais. O exemplo mais nítido desse comportamento ocorreu no estado de Minas, o que redundou numa fragorosa derrota do PT.

Dilma Rousseff foi indicada como candidata do governo porque Lula pretende voltar à Presidência da República em 2014. Embora na cúpula governista estivessem personalidades de renome e com longa experiência política (como Tarso Genro, Patrus Ananias, Ciro Gomes etc), Lula escolheu Dilma porque ela não tinha voo político próprio, sendo inteiramente dependente de seu patrocinador.

Apesar de nossa derrota no pleito presidencial, existem hoje no país forças que podem impedir o avanço do autoritarismo de Lula e do PT. Porém, de forma alguma seguiremos o comportamento dos petis-tas, que durante anos pregaram a derrubada do governo de Fernando

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Balanço das eleições e a defesa da democracia

Marco Antonio Coelho

Henrique Cardoso. As correntes democráticas respeitarão com zelo a vontade dos eleitores, expressa nas urnas. Mas será difícil ao novo governo cumprir as promessas apresentadas por Lula e Dilma Rous-seff na campanha eleitoral. Em sendo assim, logo surgirão divergên-cias na coligação dos vitoriosos nesse pleito. Não será uma surpresa que, a médio prazo e diante da realidade concreta, setores que apoia-ram Lula se desprenderão do Palácio do Planalto. Por isso, devemos aproveitar tais ocorrências para superar as divergências na oposição.

Daqui para frente estaremos diante de uma realidade nova, pois haverá uma dualidade de poderes na Presidência da República. En-tão, devemos concentrar nossas forças no combate à política de Lula, pois ela é o principal instrumento do regime político dominante.

De uma forma concreta, devemos fortalecer a resistência demo-crática, defendendo com intransigência as instituições, a fim de bloquear medidas antidemocráticas do governo federal. Uma bata-lha prioritária é a defesa da liberdade da imprensa e de todos meios de comunicação.

No panorama internacional, nuvens negras prenunciam dificul-dades que atormentam os países. Terminou o período de relativa bo-nança econômica no mundo. Alguns especialistas afirmam que esta-mos diante de uma crise global, semelhante àquela vivida oitenta anos atrás. A gravidade dessa crise é medida pelo fato de atingir os Estados Unidos. O desafio aos povos começa com as mudanças no clima e com catástrofes naturais ou decorrentes do uso suicida de riquezas da natureza.

O quadro está evoluindo rapidamente e isso forçará alterações em nossa política, acarretando novas responsabilidades para o Brasil. A guerra cambial em curso demanda um acordo em escala internacio-nal, uma vez que serão insuficientes providências adotadas isolada-mente em um país.

A oposição não poderá endossar algumas posições de Lula, entre as quais o respaldo a governos ditatoriais, que violam sem qualquer escrúpulo os direitos humanos. Devemos fazer uma crítica à xenofo-bia que se alastra pelo mundo e combateremos as restrições à emi-gração de contingentes populacionais de países mais pobres.

Mais do que nunca, tendo em vista o papel destacado do Brasil, devemos ter uma política externa que sobretudo tenha como objetivo central a causa da paz e o apoio aos povos que buscam trilhar o ca-minho do progresso e da justiça social.

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Quadros de uma exposição eleitoral

Wilson Figueiredo

Uma aposta com o destinoO exercício de falar todos os dias, o ano inteiro, tantas vezes

quantas fossem necessárias, ou lhe parecessem convenientes aos fins dos quais não abdicaria por nada neste mundo, levou Luiz Inácio Lula da Silva a ser o supremo locutor da sucessão presidencial. Ocu-pou-se da função tanto por não poder candidatar-se quanto pelo narcisismo de intrometer-se, ostensiva e abusivamente, em suces-sões estaduais e atender a uma carência compulsiva de provocar o espírito federativo. Não lhe faltou fôlego na campanha para soprar brasas e lançar fumaça nos olhos alheios. Cedeu à tentação e fez o oposto do que o levou, finalmente, ao poder. Deu-se mal, porém, na própria sucessão. Com a soberba das pesquisas, expôs ao risco gra-tuito do segundo turno a candidatura Dilma Rousseff. Ficou mais dramática a contagem regressiva para o fim dos dois mandatos pre-sidenciais dos quais Lula não quis aproveitar a oportunidade para se despedir. E se fazer lembrar, daqui a quatro anos.

Nunca o espírito de desforra terá sido tão bem acondicionado e encaminhado na aparência, pela perda da oportunidade do terceiro mandato, do que no episódio vivido pelo avesso: uma vitória com sa-bor de derrota. Na margem de erro pessoal, para mais ou para me-nos. Pode não ser assim visto por todos, mas a insistência de Lula em focalizar, de ângulo crítico, a liberdade de imprensa, como fez na despedida da campanha, revela amargura que extravasa em hora imprópria. Vitória e ressentimento não se dão bem.

Ao celebrar seu triunfo político, por encaminhar sozinho e, prin-cipalmente, apostar numa candidatura sem atributos notórios para o desafio de sucedê-lo, Lula não revela júbilo de vencedor, antes con-firma a mágoa subir-lhe à garganta para acertar com a imprensa a conta de não reconhecê-lo como se vê e gostaria de ser visto. Antes de sair, o presidente cobra da imprensa, a prestações, a dívida de que se considera credor por tê-la reconhecido, em mais de uma opor-tunidade, como decisiva à sua vitória. Não é agradecimento, nem reconhecimento. Um equívoco não se paga com outro: Lula não deve à imprensa qualquer favor por eleger-se duas vezes, nem ela se sente

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Quadros de uma exposição eleitoral

Wilson Figueiredo

credora de qualquer retribuição, pois não houve nem caberia favore-cimento, por parte dela. A vitória de Lula em 2002 se deveu à sensa-tez da assinatura dele na Carta aos Brasileiros, com o compromisso de não agredir o passado que recebia das mãos do seu antecessor e lhe valeu como herança proveitosa. Para não dizer bendita.

A imprensa nada lhe deve por ter exercido a obrigação de informar e o direito de divergir de seus atos. Não precisa agradecer o que a li-berdade de imprensa, da mesma forma, lhe garante pelo princípio sem o qual a democracia deixa de existir. Na véspera da eleição, a pausa para separar o debate e a opção da cidadania pelos governantes, mais uma vez Lula voltou ao tema do seu ressentimento incurável ao acu-sar a existência de um mal explicado “autoritarismo da imprensa”, que fica devendo para pagar quando a poeira eleitoral baixar.

O presidente foi o vencedor de uma aposta com o destino e se tornou credor de um feito memorável, e nem por isso sobrenatural: graças aos seus recursos políticos intransferíveis, criou uma candi-data sem os dotes apropriados à habilitação, mas não deixa de ser também o grande derrotado da temporada. Continua inconsolável com a perda da oportunidade do terceiro mandato ao alcance da mão esquerda, – o cobiçado fruto proibido no paraíso continental. Daqui por diante, os fatos tendem a fugir ao seu alcance pessoal. E a hipótese de ser obrigado a dar-lhe adeus exerce efeito perturbador em seus cálculos. Lula não é de viver e se celebrar no passado.

Há, em relação aos fatos e a Lula, uma contagem regressiva em curso, pois o tempo não depende dos meios de mensurá-lo, nem da posição em que os astros se apresentem. Pode ser que, ao contrário do que Lula imagina, seu reinado e sua fortuna não terão sido o começo de uma nova era, mas o fim do período do qual ele foi o pro-duto natural. A História poderá poupá-lo de culpas veniais, mas não irá ressarci-lo das perdas das quais o tempo lhe dará a relação completa. E, antes dela, a concorrência se encarregará de trazer à luz do dia o que se perdeu, mas será encontrado, reunido, docu-mentado e apresentado.

Uma sucessão no caminho da outraNo começo deste ano, cujas páginas estão sendo viradas no peito,

disse o presidente Lula que iria “fazer força para eleger minha suces-sora” e prometeu que não daria mais palpites na sucessão que vinha se arrastando desde o primeiro dia do segundo mandato, e ele preci-sava acelerá-la. Quiseram as circunstâncias que a trilha sul-ameri-

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Conjuntura

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cana, passando pela Venezuela, Bolívia e Equador, ficasse estreita para o Brasil. Lula partiu para cima dos arcabuzeiros do vice José Alencar, emboscados com a emenda constitucional no Congresso, desautorizou a iniciativa e espinafrou a ideia indigna de um país com altas pretensões democráticas.

Mas, já sem os assessores – José Dirceu & Cia – que o acompa-nhavam desde o começo da biografia que o cinema desperdiçou, Lula botou mãos à obra e tratou de enfeixar com firmeza a sucessão antes que o PT metesse o bedelho no assunto. Lembrou-se então de Dilma Rousseff e resolveu o problema com a Casa Civil, onde se alojara o candidato natural, o supracitado Dirceu, que ficou a ver navios. A opinião média da sociedade suspirou aliviada, ninguém mais se lem-brou de que Lula estivera dependurado no terceiro mandato, com o qual os presidentes sul-americanos fazem acrobacias. Daí por dian-te, nada o deteria. Estava declarada a sucessão que tanto pode ser a última da série que vai escolher o sexto presidente da mesma linha-gem ou, visto de outro ângulo, o primeiro de uma nova série sem muito a ver com a anterior, e sem abalar os alicerces da República. É progresso?

Depois de submeter o petismo à candidata e de aceitar o desafio de provar que voto é transferível, dependendo de quem transfere, a despeito de todas as dúvidas levantadas desde o queremismo em 1945, aquela tropa de choque com carteira do trabalho criada no governo Vargas, ninguém mais o segurou. E, desafiado pela oposição de salão a eleger um poste, aceitou. Mas não esqueceu que a vez era dele, segundo o raciocínio vigente à época, para o qual bastava trans-formar plebiscito em solução constitucional móvel: o cidadão diria se o presidente merece, ou não, submeter-se a uma consulta popular e usufruir o mandato excedente.

O assunto murchou em terras sul-americanas e não mais se fa-lou nele. Mas a solução Lula da Silva, mais flexível, passou a fazer malabarismos. Ele não deixa cair a peteca e, no começo deste ano, para passar a página vazia, virou no peito a conversa fiada e declarou que ia “fazer força para eleger minha sucessora”. Não se pode dizer que não avisou. E ele não pode dizer que não sabe que não é republi-cano proceder assim, pois não fez outra coisa desde que chegou ao endereço há oito anos. Não faltou aviso. Governar é privilégio dos eleitos, e ele foi eleito e reeleito, com feitos e efeitos além do mandato. Tem candidata e não esconde. Ora, o princípio republicano, lembra-do pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, que era de falar o mínimo possível, é o de que na Presidência da República não faria distinção entre brasileiros. Seria o presidente de todos. Pelo menos perante o

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Quadros de uma exposição eleitoral

Wilson Figueiredo

presidente, os brasileiros são todos iguais. Ele é apenas um. E não, como na fazenda dos bichos de Orwell, onde vigorava por fora do es-crito, que alguns eram mais iguais do que os demais. Não está escri-to em lugar algum que presidente governa para um partido, uma religião, um sindicato ou um clube de futebol (todos têm presidentes exclusivos). Os cidadãos, não. Viva a República!

Lula exagera num país que dá a impressão de elegê-lo presidente tantas vezes quantas eleições ocorrerem, mas nem por isso pode ser visto, de perto ou de longe, como evolução democrática que não se legitime nas urnas. Já experimentou até onde pôde e agora só falta aferir aonde não pode ir. A solução do mandato tampão, atribuído a Dilma Rousseff, é portadora de risco menor, pois será ele quem fica-rá na dependência dela. Visto por este lado, quem sabe? É claro que Dilma, na hipótese favorável com que contam os dois, não admitirá tutela política sob pena de inviabilizar seu mandato. As contradições que o empurram no espaço que se apresentar à sua frente são verda-deiras placas tectônicas que se movem sob a República, e podem aprontar surpresas.

Horizonte banda largaAo fim do segundo mandato presidencial aos seus cuidados, o PT

não se apresenta diferente no modo de pensar segundo a cabeça de Luiz Inácio Lula da Silva, ressalvado entre parênteses o direito de di-vergir nos exercícios de raciocínio radical. Os petistas não perdem oportunidade de realçar suas posições de princípio, que Lula ignora solenemente, pois para ele só resultados importam. Teorias podem esperar. Ficou mais difícil ao petismo avaliar, sem se valer de razões que movem o mercado propriamente dito, o indigesto sintoma que al-voroçou a República com o inesperado reforço da classe média, ainda menosprezada pela ortodoxia marxista como fabricante de história.

Com a redução gradativa do proletariado (que sobrevive mais na teoria do que na realidade, pelo menos no sentido original) e, de bai-xo para cima, a expansão da classe média, serenou a crise que falava grosso e assustava os que têm a perder. Ninguém podia imaginar que, deslocando-se por fora, iria entrar em cena, em termos de con-sumo, uma nova fatia da classe média surgida do nada (pelo menos para os teóricos que se pelam por uma crise promissora). Desde que o consumo passou a crescer, e antes que aparecesse a explicação mais conveniente, a classe média passou a ser politicamente mais valiosa do que a mão de obra demitida para reduzir custos numa conjuntura de sombras que logo se dissiparam.

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Conjuntura

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O desemprego não floresceu e, em pouco tempo, todos os demi-tidos foram reconvocados como se nada tivesse acontecido. Só o presidente Lula não teve medo porque da grande crise de 1929 só sabia por ouvir falar. Mais uma vez, o Brasil que se desloca à mar-gem da História se apresentou como campo de experiência sem te-orias. Lula, por falta de convicção, apostou no que viu e acertou no que, por falta de tempo, nem precisou entender, nem ninguém ex-plicou. Era inútil.

Que o eleitorado engrossou, não há dúvida. Nos dois sentidos. Em número e até em disposições (vá lá, pequeno-burguesas). A classe média se reforçou pela via do consumo, graças a estímulos para se endividar, eletrodomesticamente falando, com ímpeto vo-raz. A experiência atesta que nenhuma eleição tem a ver com a an-terior e com a que vier depois. Pode é ocorrer aqui e ali a mera coincidência em que muitas carreiras naufragam. É o caso também de alguém se eleger por outro. Essa gente que está chegando e su-bindo socialmente para ficar, também não volta atrás. É classe mé-dia com o sentido pragmático. Voto ensina a votar.

Sem segundas intenções, a classe média veio para ficar e só fal-ta oficializar o novo Dia do Fico na coletânea de surpresas que a História do Brasil registra. Posto de lado o terceiro mandato, não se trata de algo parecido que se descarta por inoportuno, mas é pru-dente lembrar que não se brinca com ascensão social. Pela cabeça desse eleitor que descobriu o voto como produto social de consumo conspícuo já passam tentações sofisticadas, mesmo para os que vão chegando à classe média como for possível, aos trancos e bar-rancos. É o que permite desde já considerar à vista a social- demo-cracia como solução natural que a ortodoxia teórica abominou des-de o século 19, e o século 20 não lhe concedeu oportunidade. O 21 está apenas começando.

A eleição geral (presidente, governadores, senadores, deputa-dos) sempre vai dizer alguma coisa a respeito do que se chama de futuro, mas já é, nos sinais exteriores, o presente se impondo. O futuro está retoricamente esgotado. Desde que não se conta mais com revoluções, é por aí mesmo, e pelo que a democracia pode dar conta. Pelo voto. Não faltará quem veja esse pessoal que se apresen-ta ao consumo e às urnas como eleitor, com o cartão de crédito e com um pé atrás, ainda à esquerda para não se constranger e pare-cer liberal, enquanto o alfabeto garantir letras de classificação so-cial aos carentes de saúde, educação e segurança que chegam para se acomodarem, em levas inevitáveis.

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Quadros de uma exposição eleitoral

Wilson Figueiredo

O Brasil não é o mesmoO Brasil e os brasileiros livraram-se de boa quando o presidente

Lula recusou a candidatura dele a um terceiro mandato apanhado na sarjeta por um grupo de catadores de assinaturas dispostos a mate-rializar, mediante emenda à Constituição, o direito de consultar o po-vão para decidir se caberia ou não o terceiro mandato consecutivo. Não seria permanente, mas apenas para resolver o caso do presidente.

A situação à vista abarca alguma coisa que paira sobre a demo-cracia, mas não é a famosa espada de Dâmocles (...) Um presidente da República, abarrotado de popularidade e na hora de fazer as ma-las, já deveria ter listado resultados contundentes de dois mandatos.

Infelizmente para Lula e o PT, o PAC não passa da relação de obras de Santa Engrácia, que o governo vem fazendo a toque de tar-taruga desde o primeiro mandato (e não entregará até o fim do se-gundo). Sob a Constituição de 1946 e mandatos presidenciais de cinco anos, todas as eleições tiveram, a título de garantia, um candi-dato militar disputando a possibilidade em igualdade de condições desiguais. O que veio depois deve ter alguma relação com o que se passou antes. Agora é diferente: quem garante é a cidadania. O país deixou de ser o mesmo, mas, ainda não é outro.

Quando, em plena semeadura continental, Lula recusou a fórmu-la manjada de submeter a plebiscitos os obstáculos naturais ao exer-cício da democracia e limitando o número de mandatos a apenas dois, desfez-se o barraco. Mas havia outras questões por trás do té-dio. O presidente deixou na mão a velha questão pela qual a esquer-da admite a democracia como oportunidade, mas sem se comprome-ter e por ser apenas eventual seu interesse. Daí por diante, sempre passa a ser como o diabo prefere.

Engana-se quem considera o Brasil sem condições de hospedar a democracia e deixá-la à vontade, e não apenas de passagem. Já se mudou a fachada legal tantas vezes quantas se fizeram necessárias, e o melhor resultado é o da Constituição atual, com 22 anos. Mas não se sabe em que ponto do percurso ocorrerá o teste eleitoral de-finitivo. Democracia se ventila, por princípio, nas urnas, mediante alternância de governantes e partidos políticos.

O plebiscito é uma dessas heranças colaterais que tanto a direita quanto certa esquerda defendem como subterfúgio democrático, sem atentar para as consequências. Por trás de cada plebiscito há sempre o efeito nefasto. É mais um sofisma do que recurso democrático e oculta um gene fascista e autoritário por natureza.

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Uma nova transição

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No segundo turno, a candidatura de Serra espelhou opinião pública de sentido democrático, tornando-se mais diferencia-da ainda em relação a dois vetores do bloco vitorioso nas ur-

nas que desejam ver o quadro político vindouro conduzido por com-pleto pelo governo. Referimo-nos, de um lado, à poderosa figura de Lula, em vias de se retirar da Presidência da República para iniciar caravanas pelo país, temidas pela sua compulsão para dividir a po-pulação em duas partes; e, de outro, a setores hoje à frente de impor-tantes estruturas (organizacionais, grupos e tendências partidários, ambientes intelectuais) reunidos em torno da candidatura de Dilma.

Com visão ainda referenciada pelo modelo de mudança social do Oitocentos, mas agora, em contexto de administração da economia realmente existente no país, esta vertente quer dar andamento a ações social-governistas, legitimada (acredita ela) por se considerar exclusiva defensora do popular. No plano político, além de se inte-grar à candidatura oficial, ainda não conhecemos quais são suas próximas iniciativas, mas se nota indiferença, no mínimo, quanto ao estilo de governar próprio do presidente Lula, corrosivo do Estado Democrático de Direito.

Se, ao sair da cena governamental, o popularismo de Lula não vai se enfraquecer, isso não significa que estará livre para novos empre-endimentos como o da vitória eleitoral, operação cuja base José Ser-ra localizou na fusão Estado-partido em campanha. Mas há quem acredite, em áreas oposicionistas (e ainda quem assegure em alguns ambientes governistas mais intelectualizados), que, por ser uma for-mação complexa, o país conta com elementos suficientemente fortes para conter os passos do mito. Por certo, este condicionamento de tipo “estrutural” enseja um movimento favorável, que, no entanto, não se consuma por si mesmo, pois, como se sabe, terá que ser vivi-do por protagonistas; e estes, no caso da presente conjuntura pós-eleitoral, são chamados a dar vida a uma transição deste tempo de anomia política, que vivemos ultimamente, para o curso orientado por valores democráticos que vinha lentamente se afirmando entre nós desde a anistia de 1979.

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Uma nova transição

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Enfraquecida pela derrota – e ante a virtualidade de mais 12 anos de governo do PT –, a oposição se moverá com dificuldade, e não são numerosas suas correntes com habilidade para retomar a iniciativa política. A oposição tem pela frente o trabalho de criar condições fa-voráveis à retomada do reformismo indicado pela Constituição de 1988, ou seja, de um renovamento da vida nacional entendido como progressiva democratização do país e de suas oportunidades sob ple-na vigência do Estado Democrático de Direito. O mundo político (in-cluído o PMDB coligado com Dilma) logo se movimentará no Con-gresso e na opinião pública, abrindo à oposição a possibilidade de dinamizar o espaço de atuação política (e social), campo ampliado para o qual converge a movimentação dos novos governadores de oposição, alguns deles à frente de estados importantes, como São Paulo e Minas Gerais.

No que se refere ao social, hegemonizado pelas atuais formas or-ganizativas, é pouco provável que – a curto e até a médio prazo – as correntes de esquerda e centro-esquerda da oposição construam ce-nário discursivo eficaz para disputar o mundo popular nesse terreno. Como já vem ocorrendo no tempo mais contemporâneo, é o campo da política que se dispõe ao tipo de oposição como a que aí está, agora investida da função crucial de dialogar com os setores organizados e não organizados, inclusive com áreas não popularistas de dentro do governo Dilma.

O campo da oposição, pelo menos aquele que será estruturado por atores (os principais deles, o PSDB, o PPS e ambientes animados pela candidatura de Marina Silva) que não pensam em fazer “oposição pela oposição” nem cultivam a luta à morte pelo poder (aliás, com ela aca-bam de defrontar-se), têm quatro anos pela frente para interpelar um tipo de hegemonia popular consolidada nos últimos oito anos e certa-mente sobreposta ao futuro governo. Hegemonia popularista ainda a pairar sobre nosso sistema institucional, já combalido pelo enfraque-cimento dos partidos e pela descrença na política e nos valores como meios asseguradores do desenvolvimento com oportunidades para o conjunto da população, diversos das clivagens cristalizadas pela retó-rica de Lula em consideráveis áreas da opinião pública.

Ao ator de esquerda oposicionista, agora posto diante de mundos organizacionais hegemonizados, se lhe exige desempenho em várias direções e múltiplos níveis, buscando retomar a iniciativa na ação e no plano do pensamento, em particular na esfera da difusão dos va-lores políticos, perspectiva considerada por muitos de escassa eficá-cia no jogo pelo poder de hoje (ver o peso e a qualidade do marketing nas eleições).

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Deve-se recordar, no entanto, que esta procura de invenção no plano da política e do pensamento também pode ter êxito, como lem-bra o tempo de descrença e pesssimismo durante o regime de 1964, quando, justamente naquele plano, a resistência à ditadura se as-sentou para se desenvolver e tornar efetiva sua ação. E o mesmo ocorreu ainda agora na eleição, como vimos no segundo turno – isto se valorizarmos o que foi se acumulando em termos de interpelações ao discurso hegemônico, com a candidatura de Serra apresentando resultado que não é de se desprezar. As interpelações dessa mobili-zação sem ator individualizado – pois vêm de Serra e também da midia, de algumas instituições e personalidades, como Hélio Bicudo – podem ser aferidas nos compromissos que a candidata Dilma, pou-co depois de proclamada eleita, se viu levada a anunciar (a quem ela respondia, se acabara de sair das urnas amplamente vitoriosa?) de forma um tanto diversa daquela que até ali vinha dizendo nos palan-ques com Lula.

Chama a atenção o fato de que, logo após a apuração dos votos que lhe confirmaram a vitória – e ainda a caminho da celebração no Palácio do Planalto, em discurso inesperado –, a candidata leu pro-nunciamento refletindo, em pontos cruciais, o sentido da opinião pú-blica crítica à era Lula que se formara como um arco-íris sobre as águas revoltas da campanha eleitoral. Parecendo se mover em forma defensiva diante daquela opinião pública, a presidente eleita firmou compromissos, ainda que ambíguos, em relação às interpelações da campanha, considerando o que a própria candidata havia manifesta-do no mesmo dia da eleição em artigo publicado na Folha de S. Paulo pela manhã.

Enquanto no pronunciamento da noite, por ser pontual e rápido, não se vê toda a sua articulação interna, no texto escrito para o jor-nal a presidente, se não critica a dimensão formal da democracia, manifesta reticência em relação a ela. Democracia ora “substantiva-da”, diz a autora no artigo da Folha de S. Paulo, “pela ascensão de milhões após o crescimento econômico e os programas sociais”. Nes-te texto, Dilma se refere à democracia apreciando-a “como valor fun-damental”, postura que, se não revela proposição de novo conceito (a respeito deste ponto específico houve discussão na esquerda pece-bista em meados dos anos 1970), encerra, naquela sua adjetivação (“fundamental”), sua não adesão plena ao Estado Democrático de Direito, diversamente de Serra e das áreas de esquerda e centro-es-querda mais próximas do candidato.

Em todo caso, se aquele contexto eleitoral que ainda cercava o primeiro discurso da presidente eleita indica uma possibilidade pro-

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Uma nova transição

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missora, a resistência democrática ao tempo de anomia política a que estamos nos referindo tem mais alento. Resistência democrática – entenda-se bem – no sentido daquilo que, certa vez, falando sobre o famoso “caminho democrático” ao socialismo defendido pelo PCI (exemplo para a esquerda brasileira clássica, inclusive na discussão anteriormente mencionada), Armênio Guedes dizia, de forma incon-fundível, em um programa de TV chamado Roda Viva, que o que os comunistas italianos haviam trilhado era a rigor um caminho demo-crático para alcançar a democracia.

A oposição tem à sua frente um complexo trabalho de convenci-mento, em primeiro lugar, da opinião pública, na sua grande maioria eleitora de Dilma, e do mundo político-social organizado (partidos, associativismo etc.). Deve cumprir um movimento em busca de hege-monia que tenha por referência a retomada programática – aqui o ponto de apoio para tal convencimento – da revolução democrática sintetizada na Constituição de 1988, como tem sido lembrado ulti-mamente a propósito da modernização mais contemporânea do país. Renovação cujo sentido e cujos caminhos a Carta Magna recolheu da luta pela redemocratização do país, a partir da larga jornada iniciada logo após 1964.

Depois de 1988, tal renovamento avançou no plano econômico com o Real e com os ajustes à globalização dos anos 1990, bem como com a remodelação da estrutura estatal; e nos últimos oito anos este mesmo processo renovador deu novos passos sob o governo Lula, com o alargamento do alcance da política social e dos apoios emer-genciais aos contigentes menos favorecidos, ainda que os seus auto-res recusem descendência daquele campo da Constituição de 1988 como inspiração de um desenvolvimento sustentável.

Com áreas fortemente ligadas à tradição da resistência política ao regime de 1964 (parte delas continuam no PMDB oficialista), a oposi-ção tem aquele marco de referência constitucional que confere à sua ação na conjuntura sentido construtivo e põe suas perspectivas fora da futurologia para a próxima eleição presidencial. O movimento opo-sicionista de agora visa prioritariamente garantir curso livre à vida política democrática, cabendo ainda considerar de modo positivo (por-quanto aceita sem reservas o resultado das urnas, não obstante apon-te a forma comprometedora da vitória de Dilma) que o novo governo, pressionado a partir de fora e também de dentro, ele próprio possa vir, se não a favorecer, ao menos a não se tornar obstáculo ainda maior ao tempo da política e da sua capacidade transformadora na plenitude do Estado Democrático de Direito. A oposição – chamada por Serra, no seu discurso na noite de dia 31 de outubro, de “campo da liberdade e

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da democracia” – não tem pela frente tarefas simples, e tampouco é certo que as forças da oposição convocadas para estruturar aquele campo sejam as únicas correntes lúcidas.

A candidata eleita reconheceu publicamente o sentido democráti-co de parcelas da opinião pública envolvidas na eleição, por ela aco-lhido como compromissos, como foi observado, na própria hora da apuração dos votos – em particular os compromissos, que assumiu, de “valorizar a democracia em toda a sua dimensão, desde o direito de opinião e expressão até os direitos essenciais básicos da alimentação, do emprego, da renda, da moradia digna e da paz social”; de “zelar pela mais ampla e irrestrita liberdade de imprensa” (mais de uma vez repetido nos dias seguintes); de “zelar pela observação criteriosa e permanente dos direitos humanos tão claramente consagrados pela nossa Constituição”; e , por fim, o de “zelar pela nossa Constituição, dever maior da Presidência da República”. (O Globo, 01/11/10)

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III. Observatório

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Autores

Paulo Elpidio de Menezes NetoCientista político, membro da Academia Brasileira de Educação e do Instituto do Ceará; foi reitor da Universidade Federal do Ceará, Secretário Nacional de Educação Superior, do MEC, Secretário de Educação do Ceará. É escritor, com vários livros e artigos publicados sobre Educação e Política. Foi agraciado com as “Palmas Acadêmicas” do governo francês e a “Ordem Nacional do Mérito” da França.

Bolivar LamounierSociólogo e cientista político, sociodiretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A classe média brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, foi escrito com Amaury de Souza (Editora Campus, 2010). Escreve para os mais importantes veículos da imprensa brasileira. No ano de 1997, foi eleito para a Academia Paulista de Letras, sendo autor de numerosos estudos de Ciência Política, publicados no Brasil e no exterior.<[email protected]><http://portalexame.abril.com.br/rede-de-blogs/blog-do-bolivar-lamounier>.

Arlindo Fernandes de OliveiraBacharel em Direito, especialista em Ciência Política e Consultor Legislativo do Senado Federal.

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A síndrome autoritária

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A República de Weimar e a sua Constituição representam o exemplo mais completo de como um arcabouço legal, inspi-rado em ideais democráticos pode servir, paradoxalmente, ao

advento de um Estado de Exceção.

É verdade que a própria Constituição alemã de 1919, instrumento do que haveria de ser uma breve e mal sucedida experiência democrá-tica, trazia em si mesma, inoculado, o vírus que a destruiria. A figura do “Estado de Exceção” concebido como instrumento de defesa contra os eventuais impasses entre o Executivo e o Legislativo, apresentava-se, no plano político das mediações políticas, assim pensavam os constitucionalistas de então, como antídoto à tentação totalitária, re-médio sempre utilizado para pôr cobro às fraquezas da democracia.

Assediada pela síndrome da grandeza perdida nas tratativas vito-riosas de Versailles, a frágil esperança constitucional de Weimar transformar-se-ia no alvo predileto dos sentimentos nacionalistas mais radicais da direita e da esquerda, daqueles ímpetos ancestrais, retratados na sombria mitologia pan-germânica. Terá sido, certa-mente, esse hiato estratégico, espécie de brecha ou bolha autoritária, que abriria caminho batido para os freikorps e a sua ação contra o que pudesse ser visto como “antipatriótico”. E graças a esta exceção legal e à leniência da população católica, maioria na Alemanha, tor-nou-se possível o trágico assalto ao poder desferido pelo nacional-socialismo, que levaria à criação do III Reich.

A conquista das almas e do pensamento pelos arautos da nova ordem, e a adesão espontânea ao nazismo decorreram de uma equa-

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Observatório

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ção simples, receita usada com frequência pelos governos fortes para a mobilização interna contra o “inimigo externo”. De um lado, a crise econômica de 1929 que aprofundaria os desequilíbrios internos da economia alemã, em seguida à primeira guerra. De outro, as restri-ções impostas pelo Tratado de Versailles, a ocupação dos territórios fronteiriços com a França, o pagamento sem fim de uma dívida, que os vencedores de 1918 consideravam compromisso de honra, pelos danos causados pelos exércitos germânicos em território francês.

No mais, desempenhariam ação decisiva para o renascimento do nacionalismo na Alemanha a fragilidade das lideranças políticas, en-quadradas por agrupamentos partidários desarticulados, constran-gidos pelas minorias militantes, animadas por uma arraigada xeno-fobia étnica, pelo militarismo ressurgente e o espectro ameaçador da socialização. Esquerda e direita confrontaram-se nos debates, nas universidades, no exército e nas ruas, aniquilando as reações das forças de centro.

A lição de Weimar não pode, entretanto, ser esquecida. Vale insis-tir sobre os riscos corridos em face dos arrulhos do Leviatã e das fa-las de encantamento dos seus aplicados intérpretes. Falamos das ameaças do autoritarismo, lobo em pele de cordeiro, que nos ronda diante da indiferença dos homens práticos que enxergam, sempre, o lado positivo do império do poder, da apatia dos conformados, da ignorância dos desinformados, da cumplicidade dos “companheiros de viagem” e da fala sedutora dos encantadores de serpente, mani-puladores astutos do aparelhamento controlador do Estado. Foi as-sim no passado, nada obsta que não seja assim, agora e no futuro.

Sabe-se como a estrutura das sociedades, os conflitos reais e os latentes que nela se produzem podem conduzir à preservação ou à quebra da estabilidade do regime democrático. São ricos os ensina-mentos da experiência. Linz, o intérprete das ditaduras, já explicou com argúcia de vidente como se produzem, nos países nos quais es-ses mecanismos ganham azo os efeitos perversos causados pelo Es-tado autoritário. Para ele, a América Latina é uma mostra, sem repa-ros, dessas experiências patrocinadas pelas elites e as velhas oligarquias, pelos estamentos militares, quando não por contingen-tes urbanos encorajados por um passado de misérias acumuladas.

As nossas Weimar, a tentação salvacionistaTemos, no Brasil, um cenário impressionista de circunstâncias e

fatos, registrados por uma frequência implacável dos hiatos autoritá-

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A síndrome autoritária

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rios, abertos nas aspirações ingênuas de uma frágil consciência de-mocrática que não fez, até hoje, morada permanente entre nós.

A distância que se abre entre o Brasil real e a democracia, entre o Estado cartorial e corporativista que criamos e as instituições re-publicanas que aspiramos possuir é determinante do baixo “índice de desenvolvimento democrático”, marca que nos nivela a um grupo amplo de nações à sombra dos totalitarismos disfarçados. E de per-meio, causa ou consequência desses desacertos seculares, eviden-ciam-se as carências educacionais e de saúde pública crônicas, a má distribuição da renda, da justiça e de oportunidades sociais, a fragi-lidade das instituições políticas, a expansão e a concentração dos poderes do Estado. Tudo na medida desejável de um Estado provedor que leva muitos a descrevê-lo como instrumento hábil de uma socia-lização libertadora. Como pode conviver um Estado do tamanho do nosso, com tantas fraturas expostas, em equilíbrio com a cidadania, com os direitos fundamentais e com tudo o mais que faz dos valores, da cultura e do patrimônio legal de uma nação moderna parte de um conjunto estável de relações permanentes?

No Brasil, é o governo que legitima o povo e não o povo que legiti-ma os seus governantes.

Dada uma incontornável endogamia ancestral, que vem da nossa fundação como nação e povo, custa distinguir, entre nós, o público do privado, na mesma medida em que confundimos governo com Es-tado, eleição com representação e mandato. São imensas nossas per-plexidades institucionais e jurídicas.

Não foram poucas as Constituições brasileiras, do Império a esta inefável república planaltina. Tivemô-las de modelos variados, outor-gadas pela força ou pelas instâncias da representação constituinte ou mercê de emendas legislativo-constitucionais. Na sua maioria, as nos-sas Cartas Magnas exalam o odor inconfundível do jurista-legislador, aquele estilo árido e retórico, espécie de invólucro protetor do que não deve ficar às claras, para não confundir os cidadãos iletrados.

Nascidas umas das entranhas de governos militares ou de civis de exceção (que nestes empreendimentos andam, por prudência, as-sociados), outras de reencontros democráticos, como votos e lições de cidadania em processo de redemocratização. Todas elas foram muito breves, convenientes, provisórias nas intenções e frágeis na instrumentação das suas decisões. Por natureza, foram todas elas descritivas, longas no enunciado e profundas na complexidade do jargão jurídico; na forma, retóricas, na concepção, imprecisas, tal qual eco da revelação de inspirados profetas; e ambiciosas, pois ne-

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las tudo se tem posto, das cláusulas ditas pétreas às perquirições transitórias, como se, ao inscrever-se a norma em letra constitucio-nal, deveres, requisitos e obrigações, tudo haveria de cumprir-se, por força dos mecanismos de que elas são construídas e pela inabalável ordem das coisas.

O apreço pela ordem jurídica faz-nos, a nós brasileiros, rendermo-nos à magia da letra da lei, da ordem e seus disciplinamentos, menos para obedecê-los do que para admirá-los. Não é um paradoxo que to-dos os regimes de exceção instalados no Brasil, em seguida a rompan-tes revolucionários (se é que tivemos, alguma vez, uma revolução em nossa casa) ou a pequenos desvios constitucionais transitórios ou du-radouros – busquem legalizar-se (e, por consequência, legitimar-se) mediante a adoção de uma Constituição? Nenhuma ditadura sobrevi-ve, entre nós, sem um receituário jurídico-constitucional, aviado às pressas. Não houve, no Brasil, até hoje, ditadura sem juristas à altura do empreendimento autoritário. Nenhuma ditadura latino-americana se materializou, desde que Cortês e a corte manuelina chegaram nes-tas bandas do mare nostrum, sem a associação incestuosa de militares e autoridades civis, com as bênçãos da Igreja, sem essa associação, quando ela se imiscuía nestes negócios mundanos.

O marechal Dutra que se referia, afetuosamente, à Constituição de 1945 como o “livrinho”, ignorou, por largos anos, a necessidade de invocar essa caixa de boas intenções, durante o consulado Vargas de quem foi ministro da Guerra. Castelo Branco era um constituciona-lista á sua moda. Militar não dispensa uma Constituição ao alcance da mão, feita por sua encomenda e à altura das necessidades da or-dem. Esse vezo é inato à grei castrense, já que vive e se reforma à sombra do Regulamento Disciplinar do Exército (RDE), livrinho de conduta no qual se buscam os bons exemplos e as regras de sobrevi-vência no meio castrense.

As Constituições e a leis, no Brasil, não escapam àquela máxima do “coronel” Chico Heráclito, que as dividia em “duras” e “moles”: “as duras, a gente passa por baixo, as moles, a gente passa por cima”.

A Carta mais recente, a “cidadã”, de 1988, é um tratado de boas intenções que, embora recusada pelo Partido dos Trabalhadores, tem cara simpática e características democráticas apreciáveis. Parte con-siderável dos seus ordenamentos está por ser “regulamentada”. Como já se pretende reformá-la, substituindo-a por um artigo mais eficiente, uma “miniconstituinte” bolso, não há muito o que esperar do que pos-samos, ainda, nos servir, nestes novos tempos pós-modernos da nos-sa política, conduzida por unanimidade crescente dos nossos parla-

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mentares. Em pouco tempo, os movimentos sociais, os congressos e cooperativas produzirão regras, orientações e instrumentos legais, se-gundo aquela fórmula de um regime semi-presidencialista, cuja enge-nhosa manipulação já se faz nas usinas palacianas.

Estado máximo e Estado mínimo, a confusão dialéticaNão são poucos os nossos vazios autoritários. Na ordem legal, a

legislação abunda e atropela a realidade, ampliando, de um lado, os vazios, os hiatos da tolerância e, de outro, estreitando as fronteiras da cidadania. O Estado apequena-se no atacado e avulta no varejo. Interfere no acessório e alheia-se no principal. Alguns episódios re-centes ilustram o viés que anima o governo a desenvolver instrumen-tos de controle social e político em suas próprias oficinas, uma forma de usinagem doméstica, artesanato feito no capricho. Imaginaram os arquitetos da nova ordem ampliar o horizonte dos direitos humanos, categorizando-os sob sua jurisdição particular, esquecidos de alguns princípios que, outrora, se incluíam nas atribuições constitucionais do Congresso e dos Tribunais Superiores. Houve quem, motivado pelas boas causas, que por más não terá sido, naturalmente, pen-sasse em subordinar a mídia a um conselho de notáveis para fusti-gar-lhe os excessos.

Os movimentos sociais, transformados em sindicatos e os sindi-catos em movimentos sociais, estão por se tornarem nos nossos frei-korps, levam jeito e já têm musculatura fortalecida para agir por conta própria. Alguns avanços significativos foram alcançados. O Plano Nacional de Direitos Humanos, em sua terceira versão, revista e ampliada, consagra a existência de instâncias judiciais “terceiriza-das”, nos conflitos do campo, e, em breve em outros litígios, permi-tindo que as querelas e contestações, sobretudo as que envolvam confrontações armadas, possam ser dirimidas em conselhos ad hoc, à margem dos procedimentos judiciais que, bem ou mal, constituem procedimentos do aviamento da justiça.

Como resumo da ópera, incorporou-se um hábito inusitado da prática governamental, forma inédita de hipocrisia de curso forçado, a negaça de oitiva. Ao suspeito ou aquele que venha a ser objeto de acusação comprovada, na prática de atos tidos como contravenções no exercício de competência do cargo, é dado calar ou contrapor às evidências a sua versão dos fatos – e poderá contrapor, como defesa preliminar de todas as suspeitas e inquinações, a negação do delito, e firmar a desqualificação do acusador e dos elementos da acusação. Negar-se a evidência, comprovar-se a sua procedência – tanto pior

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para a evidência. Os economistas, nos faustos da sua glória, aceitos como profetas dos bons e maus augúrios, afirmavam que se a reali-dade não atendesse aos modelos de planejamento que engendravam nas suas usinas ministeriais – tanto pior para a realidade.

Os princípios que instigam os homens políticos são outros, agora, porém mais atuais e consentâneos com as conveniências. As ideias e os compromissos políticos são valores mutantes entre os dessa dis-tinta grei: muitos deles se enquadrariam perfeitamente, e com evi-dente conforto, na classificação de “conservadores revolucionários”, empreendedores contumazes e negociadores realistas...

Existe uma oposição mais governista do que fazemos no Brasil?

Às vésperas das eleições de outubro, o que se tomava como opo-sição desfez-se no ar, no discurso brando das conveniências, aban-donada pelos aliados de outrora, respeitosa e intimidada com os ar-roubos e a arrogância da situação, de uma ruidosa galera que veio para ficar no inquilinato do poder.

Oposição e governo não dissentem, assentem, prometem as mes-mas benesses, formulam as mesmas críticas, afeitos a uma unanimi-dade que assusta os menos desconfiados. Em outros tempos, quan-do os políticos eram, na maioria, liberais, de rabo preso com as “elites”, os homens de governo mostravam-se dotados de habitual continência verbal, falavam pouco e muitos o faziam, até, com ele-gância, e demonstravam possuir uma certa visão ética, risível em nossos dias, da coisa pública e dos seus afazeres. Desapareceram como os dinossauros, vítimas da própria dieta.

Estes costumes e hábitos nos marcam desde os nossos começos, desde a invenção do Brasil como sede da Coroa em trânsito, e dela, passados tantos séculos, não nos livramos. Permanecem conosco no plano da administração e, mais ainda, na formação das nossas ins-tituições. Predominaram os cortesãos: fizeram escola, nas sinecuras que o Estado monárquico lhes oferecia, na “sociedade” com o erário, prática que perdurou no Império e em todas as repúblicas que se lhe seguiram. O “laranja” foi invenção portuguesa; nós, brasileiros, a aperfeiçoamos com o nosso engenho a esperteza que os trópicos fa-voreceram. Desde então, a política tem sido exercida com a sutileza de quem conhece bem os meandros das finanças públicas.

Construímos uma democracia moderada, versátil, largo espectro, capaz de lidar com os contrários e ensinar a solução dos enigmas

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com que se debatem as nações. Tradição de que nos orgulhamos e que nos fala ao recôndito da nossa alma. Num balanço honesto dos atores e figurantes de nossa História republicana, perdura a impres-são que, nestes longos anos de construção do Brasil, nos faltaram os Andradas de quem precisávamos e abundaram os Mazzilis das con-veniências institucionais.

Existe esquerda e direita no Brasil? E entre elas, o quê?A topografia política criada na Convenção, na qual a Revolução

Francesa começou a construção do Estado Liberal, acomodando, cle-ro, nobreza e povo (o thiers états), deu esquadro e compasso à bur-guesia nascente, e perdurou no nosso imaginário político como uma simples imagem cujos contornos perderam fixidez. Do ponto de vista ideológico, os convencimentos são tênues entre os nossos políticos. E rarefeitos entre o povo, cuja cidadania não se completou, ainda, à falta de educação e de condições de vida e sobrevivência acima da linha de miséria. Salvo entre muitos intelectuais, categoria asseme-lhada a um movimento social de inspiração corporativa, que se ino-culam das verdades transitórias dos catecismos adotados, segundo influências passageiras e convenientes.

O pluripartidarismo brasileiro, que remonta aos nossos começos republicanos, dissipa as possibilidades, como se diria em química, de uma “precipitação” capaz de favorecer uma concentração partidá-ria. A organização de partidos no Brasil, tal como hoje a conhecemos, serve a arranjos e conveniências regionais e pessoais. Consiste em uma forma oportunista de arrumar dissidências recalcitrantes de-correntes de interesses, jamais de orientações políticas e éticas, mui-to menos de natureza moral. A migração de filiados, de um partido para outro, assinala a fluidez dessas conveniências transeuntes. O eleito, conduzido a cargos executivos ou parlamentares, não conser-va laços de compromisso com o partido que lhe emprestou a legenda ou com o eleitor que o elegeu. Essa forma de organização partidária elimina a importância da representação e dilui a força do mandato. Apenas formalmente, pois os costumes e a lei não contrapõem ins-trumentos constritores a essa prática, como seria de esperar.

Como essa miríade de partidos não deixam transparecer tendên-cias ou compromissos ideológicos ou políticos, as alianças que se formam para assegurar a “governabilidade”, eufemismo muito utili-zado no dicionário da esperteza política brasileira, dominam a cena. E contribuem para descaracterizar, ainda mais, a inspiração política dos partidos.

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Nas democracias tradicionais (contra as quais vozes exaltadas, embora pouco iluminadas, pregam a sua extinção, em nome de uma nova democracia mais democrática) o mapa das tendências políticas (quiçá ideológicas) se apresenta com clareza. Os partidos, embora pos-sam associar-se em coligações momentâneas, guardam a sua identi-dade de origem. A esquerda é esquerda mesmo, o centro traduz as posições bem acomodadas do liberalismo ortodoxo; mas há lugar, nes-se universo de contradições aceitas, para neo-liberais e, pasmem, para a direita que diz o seu nome e defende as suas posições. Sem que nin-guém, o rei ou a rainha, o presidente ou o primeiro ministro preten-dam “erradicá-los”, extingui-los, em nome da “sua” democracia. Politi-camente, os brasileiros são de “esquerda”, até empresários e pessoas de posse. Com tantos e tão valorosos cidadãos bem sucedidos, temen-tes a Deus, que os fiscaliza, e aos tributos que lhes enchem as mochi-las bem sortidas, não há, no Brasil, um sequer que se confesse “de direita”. Ser chamado de direita é insulto, agravo de honra.

“É uma análise de meia-tigela” para o deputado Candido Vaccarezza a declaração do sociólogo Alain Touraine sobre os riscos do totalitarismo no Brasil

Nesse amontoado de interesses e de patrocínios para cargos em lo-teamento (a governabilidade impõe), não parece fácil distinguir a con-formação política (já não diria ideológica, seria esperar muito) dos par-tidos “aliados”. São tão variados os interesses neles aliados que cobrem todos os desvãos do pensamento político. Gente de esquerda, de direita, de centro (ou o que isso possa significar), os flutuantes oportunistas, ali se acomodam sem se darem conta do que são, de verdade.

Essa amálgama de tendências, lastreadas pelo poder do Executi-vo, é areia movediça. Acompanha a direção do vento e das oportuni-dades que a vida pública oferece. Os partidos movimentam-se como o assoreamento dos rios. Aderem ao poder quando ele está forte e tornam-no mais poderoso. Mas abandonam-no ao primeiro sinal de fragilidade, de perdas percebidas. Como os ratos abandonam os bar-cos ao sinal de naufrágio.

Essa mobilidade instintiva dos homens públicos, dos que exerci-tam a sua arte e esperteza no consistório do parlamento, favorecem a revelação dos homens fortes, dos salvadores e consagram as suas promessas. Os regimes ditatoriais serviram-se no processo de sua ascensão da fragilidade constitucional, da tolerância do povo (ou da sua ignorância) e da debilidade dos instrumentos legislativos. Como

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na Itália de Mussolini, na Alemanha, com Hitler, na Espanha, com Franco, em Portugal, com Salazar, no Brasil, com Getúlio Vargas e Castelo Branco.

Democracia incomparável esta em que vivemos, quando vemos um parlamentar obscuro, de poucas letras e grandes ambições, des-truir com um simples argumento a pretensão letrada de um intelec-tual francês em construir conjecturas sobre o comportamento dos políticos autóctones. Bem feito. Política faz-se com a experiência vi-vida nos confrontos diretos com a realidade dos cidadãos. No uso das artimanhas e das manipulações partidárias. Como pode alguém pre-tender extrair de suas mansas leituras e de teorias engendradas em conversas de cafés, na intimidade de intelectuais em disponibilidade, a interpretação de circunstâncias, condições e fatos que marcam a história de um povo? Ponto para o deputado Candido Vaccarezza, ao brandir a sua dialética bem sortida, neste embate com as artes da intelectualidade recolhida. Reações como esta enchem-nos de espe-rança, a de termos, por fim, um Congresso e os seus congressistas versados nas sutilezas orçamentárias, como é de sua obrigação, po-rém argutos e ágeis no uso da dialética para a interpretação da nossa História.

“O Estado forte é pai, tutor e filho da sociedade”, presidente Lula, em discurso em Maputo

Os salvadores saíam dos quartéis, esse era o modelo antigo, cujo sucesso conhecemos no passado, como lembra, atualmente, Chávez com o seu “bolivarianismo” do século XXI. Outros despontam pela força de inércia dos movimentos sociais, de eleições honestas, de governos populistas, de arautos de um Estado provedor, maximalista e dominador. Esta é a versão atualizada do advento do totalitarismo, de um habilidoso receituário servido por instrumentos aparentemen-te democráticos. Dá-se, muito a propósito, como recurso, de grande serventia, aos controles ditos sociais da mídia, ao plebiscito de uma sonhada “democracia direta”, à manipulação de dados financeiros e econômicos e ao enfraquecimento das instituições, postas ao serviço dessa engenharia de resultado.

O recurso ao instituto do referendo, reservado, nas democracias consolidadas, para consultas excepcionais de interesse nacional re-levante, está a constituir-se, sob os nossos olhos e mercê da nossa impotência de cidadãos, em mecanismos concorrentes das clássi-cas formalidades constitucionais. O exemplo vem das redondezas

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andinas, por onde o pensamento bolivariano do presidente Hugo Chávez fez morada e multiplicou adeptos e exegetas. Alguns dos nossos pensadores oficiais, agregados à intelligentsia do Planalto, decretaram a morte de Montesquieu e elaboram, em seus caldeirões de ideias, fórmulas cativantes de democracia direta ou, eufemisti-camente, de democracia “consultiva”. Omitem-se os instrumentos, o ritual que são a essência da democracia republicana, e, em, seu lugar, adota-se o contato direto entre as instâncias do Poder Execu-tivo e os cidadãos, convocados “plebiscitantes”, sob a mediação das estratégias de marketing eleitoral e da força incomensurável da má-quina do governo.

A lição que se há de tirar desses riscos e pecados traiçoeiros nos quais incorremos, brasileiros e democratas, está em aviar meizinhas que nos possam alertar para as arapucas que esses democratas, mais democratas do que nós, cidadãos comuns possam estar prepa-rando. Ao tempo da Inquisição, Torquemada, mergulhado em suas pias inquietações, intentava destruir as heresias, livrando as criatu-ras ímpias do seu poder demoníaco. E o fazia, recorrendo a métodos muito eficazes. Queimava os hereges, para salvá-los, limpá-los de vez, das suas heresias.

Ademais, nestes anos recentes, de grandes eventos e revelações sedutoras, assistimos a mudanças e transformações que não te-riam ocorrido aos espíritos mais perspicazes da República Velha e daquelas que a seguiram, antes dos novos tempos. A federalização das oligarquias. Tiramô-las do nicho tradicional do poder local, abolindo as relações endogâmicas entre chefe-político e eleitor. E a transformamos em relações privilegiadas e republicanas, nas quais o governo assume a condição de “potentado” e, sem intermediação, pratica a sua laboriosa obra de proteção e convencimento dos po-bres de sempre.

Como cidadãos, escapamos dos caprichos das elites e das oligar-quias estaduais; escaparemos, entretanto, dessa “limpeza de san-gue” que nos há de tornar democratas “modernos”, atores de uma democracia prestante, “afirmativa”, “inclusiva”, nestes novos tempos anunciados? O futuro nos há de dizer. Ou não, segundo a perplexi-dade que fez de Caetano Veloso um pensador de futuro.

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Bolivar Lamounier

O Legislativo é atualmente visto com maus olhos por toda par-te, não só no Brasil, mas entre nós ele parece perto de atingir o fundo do poço.

Quais são as razões objetivas desse esvaziamento da instituição legislativa? Por que os cidadãos, que afinal são a fonte dos mandatos legislativos, avaliam de maneira tão persistentemente negativa os seus representantes ? Por que tal deterioração vem acontecendo com tama-nha intensidade no Brasil, a contrapelo das esperanças que se mani-festaram durante o processo de transição para o regime democrático? Estas questões não comportam respostas simples. A crise na verdade parece se dever à uma complexa interação entre fatores internos e externos ao Legislativo, e entre fatores de curta e de longa duração.

Seu gatilho – ou, melhor dizendo, os elementos que a vêm agra-vando, ou dificultando a reversão da referida tendência negativa – são sobretudo distorções éticas, comportamentos que não raro bei-ram o abominável. Mas para apreender e tentar compreender o quadro inteiro, o primeiro passo é tomar alguma distância em rela-ção à conjuntura e ao calor da hora.

Devemos de início reconhecer que a política parlamentar tem uma afinidade de origem com a tradição política liberal. Debilitada esta, debilitam-se as casas legislativas, a vida partidária e o próprio rigor da separação entre os poderes – tudo isso em prejuízo, como é óbvio, da democracia representativa.

Mesmo no Brasil, antes do golpe de 64, quando o país tinha ín-dices muito mais baixos de desenvolvimento socioeconômico, a maior presença da ideologia liberal emprestava ao Congresso uma aura de prestígio que ele atualmente não tem.

A tradição liberal, por sua vez, debilitou-se devido a causas diver-sas, entre as quais mudanças sociais estruturais que não posso abordar aqui, mais os 21 anos de governos militares e mais o desa-parecimento, num curto período, de quase toda a brilhante geração de líderes (Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela,

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Franco Montoro e Mário Covas, entre outros) que conduziu o proces-so de redemocratização.

É também certo que o Legislativo, por ser o mais aberto e transpa-rente dos três poderes, é o mais fiscalizado e criticado pela sociedade.

Em tese, essa transparência, essa porosidade, é a grande fonte de sua legitimidade popular, mas é também um fator de vulnerabilida-de, dependendo do conjunto de circunstâncias existentes em dado período histórico.

De tempos em tempos, com ou sem razão objetiva, o Legislativo é atingido por fortes ondas de hostilidade popular. Consegue às vezes se recuperar, mas não a ponto de neutralizar as causas últimas de seu descrédito.

Admita-se também que, entre nós, os partidos políticos nunca desempenharam a contento os papéis que lhes são tradicionalmen-te atribuídos.

Teoricamente os partidos devem funcionar como correias de transmissão entre a sociedade e o legislativo, mas na prática, no Bra-sil, nunca o fizeram com muita eficiência, nem parece provável que o possam fazer num futuro próximo. Devem equacionar o convívio ao mesmo tempo conflituoso, muitas vezes tenso, mas leal, entre situa-ção e oposição.

Acrescente-se que os partidos políticos encontram-se atualmente sitiados por competidores organizacionais de peso , como a mídia, agremiações profissionais, sindicais e empresariais, think tanks , or-ganizações não governamentais e igrejas , sem esquecer o próprio Poder Executivo, responsável principal pela míngua de suas funções.

Considerados individualmente, mesmo políticos eleitos com gran-de quantidade de votos têm dificuldade em se ombrear com a im-prensa, os noticiários e os talk shows da TV na função de ressaltar e dar forma a interesses ou a problemas em curso na sociedade. No quarto de século decorrido desde 1985 – marco final da transição para a democracia –, ocorreu também uma mudança na própria composição, não direi social, mas espiritual, da classe política.

A debilitação do centro, por razões já parcialmente apontadas, deixou aberto o flanco para o clientelismo e a corrupção, de um lado, e, de outro, para um efervescente “movimentismo”, constituído por grupos e organizações sociais imbuídos, em sua maior parte, de no-ções românticas a respeito da reforma da sociedade.

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O Legislativo em seu labirinto

Bolivar Lamounier

No cerne dessa sinistra engrenagem, há um círculo vicioso. O descrédito do Congresso afugenta possíveis novos talentos, muitos dos quais optam por carreiras bem pagas e profissionalmente gratifi-cantes no setor privado. Com isso, o Congresso e/ou sua imagem pioram, o descrédito se aprofunda.

No Brasil, como em toda a América Latina, o Executivo está qua-se sempre sujeito ao campo de gravitação do populismo.

Por vontade e ambição próprias, por índole autoritária, ou por simples ignorância dos fundamentos do Estado constitucional, mui-tos presidentes fazem o possível para solapar e debilitar o Legislativo.

Em grande parte isso se dá através de canais corporativos, ou seja, pela cooptação de sindicatos, setores empresariais, organiza-ções e movimentos.

Contudo, para melhor fixar e eventualmente mobilizar tais apoios, presidentes cuidam também de amalgamá-los num caldo de cultura que empreste certa legitimidade ao conjunto. É aqui que entra o fa-miliar apelo populista e plebiscitário infelizmente tão comum ao pre-sidencialismo latino-americano.

Valendo-se de seu papel simbolicamente central e de seu acesso privilegiado aos meios de comunicação, tais presidentes transfor-mam a República num grande teatro e seu próprio papel no de ato-res, verdadeiros especialistas em demagogia e mistificação.

Falando diretamente ao “povo” e com ele estabelecendo vínculos por vezes fortemente emotivos, eles expandem até o limite da lei o arsenal de poder com base no qual subordinam e com frequência agridem o Legislativo e as demais instituições da democracia.

Deste ponto de vista, parece lícito especular que a sucessão de Lula por Dilma Rousseff poderá ser positiva para o relacionamento Executivo/Legislativo. De fato, qualquer que seja a nossa avaliação sobre os últimos oito anos, não cabe dúvida de que o potencial e o pendor populistas de Lula são muito maiores que os de sua sucessora.

Tendo porém em conta a constelação total dos fatores em jogo, os prospectos para os próximos anos não são animadores.

Muito dependerá, é claro, da qualidade da liderança e da agenda legislativa da presidente Dilma Rousseff, ou seja, de seu empenho em melhorar a gestão do Estado, combater a corrupção, viabilizar as reformas estruturais etc., mas, do ponto de vista endógeno, nada faz crer que a eleição de 2010 tenha reforçado as defesas do Legislativo.

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Entre os deputados e senadores recém-eleitos, há muita renova-ção de nomes – sempre há! – , mas é cedo para aquilatar se haverá uma renovação proporcional no que tange aos objetivos e métodos de atuação do corpo parlamentar.

De onde viria o impulso para mudanças mais profundas, se os mecanismos eleitorais e os partidos não foram reformados? Além do que, como já sabemos, a dura realidade da fragmentação voltou a se manifestar. Na Câmara, o maior partido (o PT) ficou com apenas 23% das cadeiras.

PMDB e PT, os chamados esteios da governabilidade, já se engal-finham na disputa pelos ministérios e diretorias de estatais. Portan-to, o Executivo terá de formar a sua base de apoio como sempre o fez – com os materiais que tem à mão – e queira Deus que o possa fazer a um custo fiscal tolerável.

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O Judiciário legislador1

Arlindo Fernandes de Oliveira

Um dos mais importantes princípios da democracia é o da se-paração dos poderes. Por esse princípio, cada instituição po-lítica do Estado tem competências e atribuições específicas,

definidas pelo critério funcional. Assim, o Poder Executivo adminis-tra, o Legislativo elabora os atos normativos e o Judiciário aplica a lei aos casos concretos e julga os conflitos de interesse entre as pessoas.

Conforme a compreensão clássica a respeito do assunto, afronta-ria princípio essencial do regime democrático a edição, pelo Judiciário, de sentenças que traduzem atos normativos genéricos e impessoais, derivados diretamente da interpretação constitucional. Ao Poder Judi-ciário caberia a aplicação de lei regularmente aprovada pelo Congres-so Nacional, que detém a reserva do poder de legislar. A compreensão tradicional dominante no Poder Judiciário brasileiro a esse respeito se manifestava nas decisões do Supremo Tribunal, conforme as quais, mesmo no controle de constitucionalidade de leis, os tribunais deviam se ater à função de legislador negativo. Entretanto, tal como ocorre em outros países, a visão mais rígida a respeito da separação dos poderes vem cedendo espaço para outras compreensões também no Brasil. Por ela, uma atitude proativa do Poder Judiciário quanto à edição de sen-tenças de caráter normativo pode ser aceitável e mesmo necessária ao aperfeiçoamento do regime democrático.

Nosso propósito é o de registrar e discutir recentes decisões do Poder Judiciário no Brasil às quais se pode atribuir natureza legisla-tiva, e fazê-lo à luz da evolução das teorias da separação dos poderes e suas (re)interpretações recentes. Nesse contexto, procuraremos si-tuar argumentos que contribuam ao debate a respeito da legitimida-de de tais decisões no ambiente de uma democracia política e a partir da apreciação de tais decisões sob a perspectiva das teorias clássicas sobre a separação dos poderes, nomeadamente as visões inaugurais a esse respeito, como as de Locke, de Montesquieu e dos federalistas norte-americanos.

1 Resumo da monografia apresentada ao Instituto de Ciência Política da Univer-sidade de Brasília como requisito para obtenção do título de Especialista em Ciência Política.

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Para tanto, apresentaremos temas regularmente conexos à judi-cialização da política, ou à politização da Justiça, e o crescimento da importância e das atribuições e responsabilidades do Poder Judiciá-rio brasileiro no ambiente da democracia política instituída no Brasil com a promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988.

No Brasil, nos últimos anos, diversas decisões judiciais tomaram a forma de uma norma jurídica genérica e impessoal, derivada da leitura direta do Texto Constitucional, uma norma jurídica originá-ria, como se costumou dizer. Entre tais casos, estão a verticalização das coligações, a fidelidade partidária, a composição das câmaras municipais e o direito de greve dos servidores públicos. Tais decisões provocaram grande alarde no mundo jurídico, que viu nelas uma possível intervenção legislativa indevida do Poder Judiciário, em vio-lação, portanto, do princípio da separação dos poderes.

Uma apreciação preliminar dessas decisões judiciais poderia im-plicar, a partir das formulações originais a respeito da separação dos poderes, o juízo de que essas decisões importam, necessariamente, uma ofensa aos princípios do regime democrático. No entanto, exis-tem compreensões pelas quais não apenas os acórdãos seriam perti-nentes – diante de modernos desenvolvimentos das teorias a respeito do assunto –, como também poderiam ser aceitáveis a partir da relei-tura e/ou reinterpretação das próprias obras clássicas sobre essa matéria fundamental à democracia política.

O assunto tem importância no cenário político brasileiro, dadas as novas funções que a Constituição assinala ao Poder Judiciário, bem como em razão do presente contexto histórico, marcado por um relativo enfraquecimento da funcionalidade do Congresso Nacional. Refere-se, aqui, especialmente à agilidade na realização do seu fim primário de elaborar normas legislativas, sobretudo, diante da Carta de Direitos Fundamentais inscrita na Constituição Federal, a provo-car um imenso caudal de reclamos individuais e sociais, que são encaminhados ao exame do Poder Judiciário mediante ações de con-trole de constitucionalidade ou mandamentais.

Recorde-se que, tal como ganhou ampla divulgação, a teoria da separação dos poderes, e seu posterior desenvolvimento, que inclui a ideia dos freios e contrapesos, é fruto do empirismo inglês e do ilumi-nismo. As formulações inaugurais a esse respeito ocorreram na Ingla-terra ou decorreram – em boa medida – da observação do processo político inglês. Ao dividir-se o poder estatal, que é único, em diversas instituições detentoras de poder político, especializadas na realização de atribuições distintas do Estado, abre-se o caminho para a consoli-

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dação dos direitos de cada pessoa: viabiliza-se, mediante esse proce-dimento técnico, a afirmação e a consolidação dos direitos e das liber-dades individuais, assim como o pluralismo político. A democracia seria um regime político no qual são assegurados a separação dos po-deres e os direitos e garantias individuais, como proclamaria solene-mente a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Uma das contribuições fundamentais para a construção da teoria da separação dos poderes como uma fórmula técnica necessária para assegurar as liberdades individuais e públicas foi formulada por Louis de Secondat, o Barão de Montesquieu. Uma das constatações mais importantes do estudioso francês, pilar da construção teórica a ser sobre ele edificado, é sua visão, baseada na história, a respeito da natureza humana e sua relação com o poder político. Ao discutir o sentido da liberdade, em O Espírito das Leis, Montesquieu afirma que ela só se encontra “nos Governos moderados”. Entretanto, nem sem-pre está “nos Estados moderados”. Para ele “ela só existe neles quan-do não se abusa do poder”. E adverte: “Mas é uma experiência eterna que todo homem que tem poder é levado a abusar dele. Vai até en-contrar os limites. Quem diria! Até a virtude precisa de limites”. Por isso, “para que não possam abusar do poder, precisa que, pela dis-posição das coisas, o poder freie o poder”.

Ao comentar a Constituição da Inglaterra, Montesquieu, em capí-tulo com esse título, desenvolve o argumento:

Quando se reúne na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de magistratu-ra, o Poder Legislativo e o Poder Executivo, não existe liberdade, porque pode-se temer que o próprio monarca, ou o próprio Senado, faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não existe liberdade se o poder de julgar não estiver separado do Poder Legislativo e do Poder Executivo. Se estivesse ligado ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o juiz seria legislador. Se estivesse unida ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. (...) Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mes-mo corpo de principais ou nobres, ou do pPovo, exercesse esses três poderes, o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares.

Por longo período, disseminou-se o entendimento de que os auto-res clássicos da democracia, como Locke e Montesquieu, esposavam uma concepção pela qual a separação dos poderes haveria de ser rígi-da. Assim, as atribuições e responsabilidades dos órgãos estatais não se mesclariam, sendo esse um requisito essencial do regime democrá-tico. Ao lado disso, entretanto, outra corrente percebia que essa divi-são não deveria ser tão rigorosa, sob pena de que restasse fragilizado

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o próprio regime democrático, e os direitos dos cidadãos que ele busca proteger. Por essa outra compreensão, a separação dos poderes é prin-cípio político democrático cuja realização prática exige, necessaria-mente, alguma forma de intervenção de um poder em outro: não have-ria a rigidez formal que se aventara, de início. Antes, os poderes interferem uns nos outros precisamente para melhor se controlarem, para a melhor efetivação do exercício complexo mediante o qual um poder limita e define o alcance das atribuições do outro. No Brasil, a doutrina mais recente contempla esse desenvolvimento: Gilmar Fer-reira Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gonet Branco, em seu Curso de Direito Constitucional (2007) expressam essa nova convicção:

Inicialmente formulado em sentido forte – até porque o exigiam as circunstâncias históricas – o princípio da separação dos poderes, nos dias atuais, para ser compreendido de modo constitucionalmen-te adequado, exige temperamentos e ajustes à luz das diferentes re-alidades constitucionais, num círculo hermenêutico em que a teoria da constituição e a experiência constitucional mutuamente se com-pletam, se esclarecem e se fecundam. Nesse contexto de “moderni-zação”, esse velho dogma da sabedoria política soube flexibilizar-se diante da necessidade imperiosa de ceder espaço para a legislação oriunda do Poder Executivo, como as nossas medidas provisórias – que são editadas com força de lei – bem assim para a legislação judi-cial, fruto da inevitável criatividade de juízes e tribunais, sobretudo das cortes constitucionais, onde é frequente a criação de normas de caráter geral, como as chamadas sentenças aditivas proferidas por esses supertribunais em sede de controle de constitucionalidade. (Branco; Coelho; Mendes, 2007)

Outros chegam a questionar a se os mesmos clássicos já não en-tendiam de outra maneira a complexidade da matéria. Seria necessá-rio, assim, levar em conta as considerações conforme as quais a se-paração dos poderes, na alegada forma rígida, nunca teria existido mesmo em Montesquieu, pois o que se tratava, desde então, de um misto de separação com interdependência entre os poderes. Esta é a concepção adotada por diversos autores modernos e contemporâneos. Antonio Humberto Souza Júnior (2006) considera que “o dogma da separação dos poderes é falso, ao menos naquelas estruturas políti-cas sinceramente crentes na imprescindibilidade de sistemas efeti-vos de controles de tais funções”. E menciona o trabalho de Boris Mirkine-Guetzévitch, para quem “A teoria rígida, inflexível da sepa-ração dos poderes não é a de Montesquieu, mas a de seus intérpretes demasiadamente zelosos (...). A separação dos poderes [assim conce-bida] jamais existiu e não pode existir em uma democracia.”

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A própria Constituição brasileira de 1988 confere a tribunais ju-diciários competência para a elaboração de seus regimentos internos (normas primárias e secundárias, segundo Carlos Ayres Britto), as-sim como assinala expressas competências legislativas ao Chefe do Poder Executivo, para propor projetos de lei e para editar medidas provisórias “com força de lei”. Além disso, é o Congresso Nacional dotado de competências jurisdicionais, como quando julga o presi-dente da República e os ministros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade. As Casas do Congresso têm também competências administrativas, com relação ao seu próprio funciona-mento, assim como ocorre com o Poder Judiciário.

O sistema de freios e contrapesos então, se manifestaria median-te uma interconexão e uma intercomunicação dos poderes, muito mais do que uma separação rígida, formal, intransponível. Destaca Nuno Piçarra, professor da Faculdade de Direito de Lisboa, em amplo trabalho a respeito do assunto, que o princípio da separação dos po-deres deve continuar a ser encarado como “princípio de moderação, racionalização e limitação do poder político-estatal no interesse da liberdade. Tal constitui seguramente o seu núcleo imutável” (1989).

Atualmente, no entanto, como identifica o autor luso, “no âmbito do princípio da separação dos poderes ganha cada vez maior relevân-cia a variedade de meios de recíproco controlo interorgânico, dentre os quais avultam diversas modalidades de fiscalização da constitu-cionalidade dos atos normativos, postergando, onde chegou a triun-far, o dogma de raiz iluminista da intangibilidade da lei”. Piçarra, à conclusão de seu trabalho, menciona a notável síntese a respeito da matéria, formulada por seu patrício Gomes Canotilho:

O que importa num Estado constitucional não será tanto saber se o que o legislador, o governo ou o juiz fazem são atos legislativos, exe-cutivos ou jurisdicionais em sentido formal ou material, mas se o que eles fazem pode ser feito e é feito de forma legítima.

Haveria que indagar, ao final, no caso brasileiro, em face de nos-sa experiência histórica recente, em que medida a demora e a omis-são do Congresso Nacional em exercer o seu poder/dever de legislar e disciplinar as matérias previstas na Constituição não terá sido um elemento a incentivar a recente postura proativa do Poder Judi-ciário. Com efeito, o exame cuidadoso das ações e omissões do Con-gresso Nacional no exame de cada uma das matérias a que se refere o presente trabalho poderá identificar que a regra é da não elabora-ção da norma pertinente, de sua competência. A exceção será cer-tamente o tema da criação dos municípios, objeto de lei aprovada

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pelo Congresso Nacional, mas vetada pelo presidente da República. Inclusive neste caso, entretanto, cabe o registro de que o veto pende de deliberação.

A democracia brasileira e o nosso sistema jurídico-constitucional de freios e contrapesos entre os poderes somente teriam a ganhar caso o Congresso Nacional, costumeiramente inundado pela avalan-che de medidas provisórias editadas pelo Poder Executivo, e diante da inovadora jurisprudência do Poder Judiciário, que aqui foi anota-da, dedicasse a atenção e o cuidado devidos à preservação de suas prerrogativas constitucionais, como aquelas atinentes à reserva de legislação. A proatividade judicial revelaria a impertinência, no pre-sente contexto histórico, da antiga compreensão do juiz como “boca inanimada da lei” a que se referiu Monstesquieu. Cumpre o registro de que a lei não alcança, nem poderia fazê-lo numa sociedade em permanente mutação, todos os aspectos da realidade.

O próprio legislador previu tal situação, ao prescrever, quando proibiu, no Código de Processo Civil, a possibilidade de o juiz não decidir. Com efeito, diz o Código, em seu art. 126, que “o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito”. Mauro Capeletti, em obra dedicada ao tema, assina-la que o fenômeno pode estar de algum modo vinculado à aproxima-ção de culturas políticas entre os países que adotam o regime de Civil Law e os países que adotam o de Common Law:

Podemos concluir, portanto, no sentido de que nos últimos anos ou decênios, em crescente número de países de Civil Law, o fenômeno do aumento da criatividade jurisprudencial surgiu com aspecto substan-cialmente muito similar e contornos não menos dramáticos do que nos países do Common Law. Longe de ser insuscetível de uma análise com-parativa, esse fenômeno é, em grande medida, análogo, senão idêntico, nas duas grandes famílias jurídicas. (CAPELETTI, 1993, p. 128).

Capeletti, na conclusão de seu trabalho, afirma a necessidade de investigar a atual e ampla expansão do papel criativo dos juízes, e, assim, a importância do direito jurisprudencial e as razões de tal expansão. Para o autor italiano, as razões para tanto “submergem as suas raízes nas profundas transformações das sociedades moder-nas, na consequente mudança de função do direito e do Estado”. Outro elemento “não certamente inferior”, no dizer do autor, residiria na análise da diferença entre a função jurisdicional, de um lado, e a legislativa, de outro, diferença que tem natureza essencialmente pro-cedimental. No Brasil, o sociólogo Luiz Werneck Vianna, em artigo

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publicado em 1996, ressaltou os fatos aqui mencionados para neles identificar, entre outros aspectos relevantes, a compatibilidade da nova postura do Poder Judiciário com o regime democrático:

Tem-se, então, a sugestão de que o Poder Judiciário, a fim de assumir um formato institucional compatível com as exigências contemporâ-neas, se desprenda do ideário e dos processos que conduziram, pela via da revolução, a passagem do mundo tradicional ao moderno, e que teriam dado o resultado da imobilização política daquele poder. O tipo inglês de passagem ao moderno, no qual as formas da tradição foram preservadas, concedendo-se a elas, em um processo molecular, uma nova substância – e que encontrou seu prolongamento na experiên-cia americana – corresponderia melhor às necessidades institucionais das modernas democracias e dos ideais igualitários nelas emergentes, com suas práticas de criação jurisprudencial do direito e de influên-cia política do juiz, em razão do seu papel no controle de constitu-cionalidade das leis. Daí que, nos países de regime de Civil Law, a crescente valorização dos institutos da Common Law se faça associar como inevitável ao abandono da concepção da teoria de separação entre poderes segundo a tradição Montesquieu-Rousseau, visando-se a uma aproximação com o modelo de checks and balances dos federa-listas americanos, terreno de onde se originaria a figura do juiz-herói em oposição à do juiz-funcionário da Civil Law, guardião dos direitos fundamentais e não simples operador da doutrina da certeza jurídica. Esse processo de convergência entre os sistemas de Civil Law e de Common Law teria a sua mais forte indicação na irreversível tendên-cia à decodificação e à constitucionalização da ordem legal entre os países daquele primeiro sistema, mutação institucional que estaria na base das postulações por autonomia dos Judiciários formados em sua tradição. Convergência, porém, não implica abdicação quanto aos pressupostos históricos da matriz de origem: ao se abrirem às práti-cas da Common Law, como o “judicial review” e o “stare decisis” da experiência americana, os países de sistema de Civil Law preservam a constituição da magistratura como uma burocracia especial do Es-tado, o sistema de concurso público para o recrutamento dos seus quadros e a socialização interna corporis, à margem, portanto, do am-biente político, realizando uma experiência institucional inteiramente diversa daquela dos países de Common Law, cujos magistrados são recrutados politicamente e cuja socialização no campo jurídico inclui um prévio e longo treinamento em outras profissões legais, como a dos advogados. Assim é que, nos países de sistema de Civil Law, onde se aprofunda a convergência com o de Common Law, especialmente nos contextos nacionais em que, de jure e de fato, o Judiciário se autono-miza do controle do sistema político, ele tende a se manifestar como um “poder difuso”, sem que conheça a ação de mecanismos institucio-nais que lhe sirvam como contrapeso. Tal “excentricidade”, segundo a lúcida análise de C. Guarnieri sobre a magistratura italiana, apresen-

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ta esse Poder como um novo protagonista no sistema político do mun-do moderno, paradoxalmente mais ativo e intervencionista nos países de Civil Law, como no caso da Itália do que nos de Common Law , em que a sua ação é dependente de um juiz singular, na medida em que a institucionalização dos conselhos nacionais de magistratura tende a lhe conceder um caráter de ator coletivo vocacionado para o exercício de um papel ético-moral na pedagogia da sociedade e de animador da difusão do justo. (WERNECK VIANNA, 1996)

As recentes proatividade e criatividade do Poder Judiciário no Brasil não resultariam de um movimento imprevidente de um juiz ou órgão judicial isolado, mas integram amplo movimento, alcançando, quando menos, os países que incorporaram em seus sistemas jurídi-co-constitucionais (baseados nos princípios da Civil Law) alguns dos postulados oriundos dos países cujo sistema jurídico é tradicional-mente articulado aos princípios da Commom Law e, sobretudo, da evolução política e teórica das mais significativas concepções sobre a estrutura e o funcionamento do Estado moderno e atual. Além disso, muito mais do que a incorporação por países vinculados a um siste-ma jurídico das concepções pertinentes a um outro, o panorama que hoje se observa em países como o Brasil relaciona-se, sobretudo, com a evolução histórica do próprio Estado e da política que nele se desenvolve, que traz com ela o desenvolvimento das teorias explica-tivas correspondentes. Donde se pode finalmente reconhecer a fe-cundidade do presente debate a respeito do assunto e a necessidade da sua abertura a novos desenvolvimentos. Em harmonia com esse entendimento Marcos Faro de Castro assinala:

Do ponto de vista do processo político como um todo, a judicialização da política contribui para o surgimento de um padrão de interação entre os poderes (epitomizado no conflito entre os tribunais consti-tucionais e o Legislativo ou Executivo) que não é necessariamente deletério para a democracia. A ideia é, ao contrário, que democracia constitui um “requisito” da expansão do poder judicial (TATE, 1995). Nesse sentido, a transformação da jurisdição constitucional em par-te integrante do processo de formulação de políticas públicas deve ser vista como um desdobramento das democracias contemporâneas. (FARO DE CASTRO, 1997)

Uma visão assemelhada desse processo pode ser encontrada em trabalho de Ana Paula de Barcelos, que identifica como recorrentes três críticas ao “controle jurídico e jurisdicional das políticas públi-cas em matéria de direitos fundamentais”. Conforme Barcelos (2006) há a crítica articulada com uma visão filosófica, que leva em conside-ração a natureza essencial de cada poder do Estado. Por ela, não há conhecimento amplo e holístico de cada assunto no Judiciário que

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lhe permita substituir o Executivo quanto à formulação de políticas públicas. Outra crítica, de natureza operacional, assemelha-se à filo-sófica, ao registrar que o Judiciário, focado na “microjustiça” dos casos concretos e, não raro, individuais, ignora outras realidades relevantes e a imposição inexorável de administrar recursos limita-dos. Essa crítica é manejada, por exemplo, com relação a decisões judiciais que impõem ao Estado arcar com custos significativos de medicamentos e tratamentos médicos à custa do sacrifício de recur-sos orçamentários que são destinados à ações de saúde pública do interesse de toda uma comunidade. A crítica que talvez seja mais consistente é fundada na Teoria da Constituição e destaca o fato de que o Poder Judiciário não tem legitimidade democrática para a ela-boração de normas genéricas e impessoais ou para substituir o Po-der Executivo na aplicação de políticas públicas que decorrem de escolhas feitas pela sociedade, no processo eleitoral democrático do qual derivam a composição dos cargos executivos e legislativos.

Ou seja, a judicialização da política e o ativismo judicial podem ser identificados com o constitucionalismo democrático brasileiro que tem por base a fundação da democracia pela Constituição de 1988 e influências doutrinárias como o constitucionalismo dos valo-res em sua vertente alemã (CITADINO, 2002). Há que observar, no caso, a distinção, que se pretende construir entre uma jurisprudên-cia “invasiva” e a atuação jurisdicional em defesa da democracia. Citadino, no citado artigo, menciona a contribuição de Jurgen Ha-bermas, para quem “a função da Corte (constitucional) é velar para que se respeitem os procedimentos democráticos para uma formação da opinião e da vontade políticas de tipo inclusivo, ou seja, para que todos possam intervir, sem assumir ela mesma o papel de legislador político”. Por isso, para a autora, “o processo de ‘judicialização da política’ não precisa invocar o domínio dos tribunais, nem defender uma ação paternalista por parte do Poder Judiciário”. A partir de tais considerações, e levando em conta o que foi anotado e discutido, pode-se afirmar, juntamente com Jamile Bergamasche Mata Diz e Gláucio Inácio da Silveira:

O ativismo não sugere, porém, que o juiz simplesmente ignore a lei e se arrogue a função legislativa. O julgador não pode utilizar o ativis-mo judicial como justificativa para usurpar ao legislador sua função típica. O que recomenda o ativismo judicial é que a interpretação do direito infraconstitucional se realize a partir da Constituição e seja inspirada pelos valores prevalecentes no meio social. A interpretação deve, em última análise, voltar-se para a consagração da justiça. (Por-to Alegre, 2008)

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Embora esse seja um processo cujo exame é recente e ainda pouco estudado no âmbito da ciência política brasileira (FARO, 1997), são crescentes tanto a atividade criativa do Poder Judiciário quanto o seus exame pelos estudiosos, fatos que justificam, certa-mente, o constante (re)exame da matéria, seja a partir das teorias democráticas, com o objetivo de perquirir sua legitimidade no con-texto da democracia brasileira, seja a partir da avaliação dos seus resultados concretos.

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IV. Batalha das ideias

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Autores

Fabrício MacielDoutorando em Ciências Sociais na UFJF e na H S Freiburg, Alemanha. Pesquisador do Cepedes/UFJF. Autor do livro O Brasil Nação como Ideologia (São Paulo: Anna-blume, 2007).

João Vinícius MarquesEstudante sênior do Programa de Educação Tutorial, do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.

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O que é “brasilização do Ocidente”?

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Nenhum autor norte-americano ou europeu pode ser crítico para a periferia do capitalismo se não apresentar uma ideia básica de uma sociedade mundial do trabalho. Um naciona-

lismo metodológico, que restringe a análise do sistema produtivo mundial à análise de sociedades nacionais, é um dos problemas cen-trais que poda na base a maioria das tentativas críticas da ciência social dominante no centro do pensamento contemporâneo (EUA e Europa). O segundo problema é que as análises nacionais, com as quais podemos aprender sobre parte da reprodução e sentido da vida contemporânea, geralmente se generalizam como explicando a totali-dade do capitalismo. O nacionalismo metodológico passivo do Brasil por vezes reproduz teorias nacionais do centro como se fossem teo-rias mundiais do capitalismo.

O melhor exemplo vindo dos Estados Unidos é Richard Sennett. Sua crítica ao advento da “flexibilidade” como prática e como ideolo-gia no que chama de “novo capitalismo” (2000) reflete uma preocupa-ção tipicamente americana. A preocupação com os danos individuais e identitários definidos por ele como “corrosão do caráter” reflete bem o sofrimento de uma sociedade de massa, rica e de consumo intenso. Reproduz a tradição de pensamento sobre o indivíduo “sozinho na multidão”, desde autores como Robert Bellah. Este tipo de crítica nos ensina apenas sobre parte pequena da reprodução social na perife-

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ria. Trata de questões de autenticidade e não de dignidade. O proble-ma primário da periferia é a generalização da dignidade para todos1.

Nossa principal influência no tema do trabalho, entretanto, não vem dos Estados Unidos. Ela é europeia. São autores europeus que declaram o fim da sociedade do trabalho. A reconstrução da narrati-va europeia que deságua no manifesto eurocêntrico da “sociedade do conhecimento” pode contribuir para a compreensão de como repro-duzimos no Brasil um paradigma do centro do capitalismo como se fosse um paradigma universal. Ou seja, como e por que uma narra-tiva da trajetória do capitalismo e da classe trabalhadora europeia se transforma em uma narrativa universal das sociedades contemporâ-neas, que ignora a precarização constante que a periferia do capita-lismo sempre sofreu e sua precarização atualizada com o paradigma da sociedade do conhecimento.

A sociedade do conhecimento não é uma mentira completa. Os dados do advento do setor de serviços e do valor diferencial do conhe-cimento tecnológico e especializado são realidades visíveis em qual-quer sociedade capitalista contemporânea. Sua configuração especí-fica na periferia, entretanto, é ofuscada pela edição operada pelo paradigma da sociedade do conhecimento. Mesmo na Europa ele já opera uma edição interna. Como nota Uwe Bittlingmayer (2006) no caso alemão, a partir da compreensão bourdiesiana que articula as condições objetivas dos discursos na ciência e na esfera pública, este paradigma generaliza a realidade de uma parte da sociedade, aquela vivida caricaturalmente pelos managers, como critério normativo e como ideologia para todas as frações da sociedade.

A mesma edição interna a uma sociedade europeia se generaliza em outra dimensão. O centro do capitalismo europeu generaliza sua autocompreensão enquanto “sociedades do conhecimento” para a pe-riferia do capitalismo, apagando a dimensão do trabalho braçal que predomina nesta e que é indispensável para a reprodução do capita-lismo contemporâneo enquanto um sistema econômico mundial. Um breve esboço da gênese da ideia do fim da sociedade do trabalho apon-ta para uma frustração das sociedades europeias com relação a sua grande realização histórica: o alcance do Estado de Bem-Estar Social. O olhar dos pensadores europeus mais influentes nunca escapa total-mente desta narrativa de seu nacionalismo metodológico. A ciência alemã e a francesa são aliadas internas neste ponto na dominação do Atlântico Norte sobre a periferia do capitalismo. Mesmo os franceses

1 A reconstrução para a periferia, a partir de Charles Taylor, dos conceitos de auten-ticidade e dignidade vem sendo feita por Jessé Souza desde 2003.

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mais críticos como André Gorz e Robert Castel não escapam da nar-rativa europeia na qual o Welfare State é um divisor de águas, ainda que o último explique criticamente o que foi a utopia realizada naque-le momento histórico.2 Muito menos o fazem os alemães que inventam e reproduzem claramente o paradigma do conhecimento, como Claus Offe e uma das maiores sensações do momento, Ulrich Beck, que fala vagamente sobre todos os grandes temas europeus contemporâneos como se fossem universais. Este pensador da onda atual não podia ter deixado de falar sobre a questão do trabalho contemporâneo. Sua perspectiva merece atenção por simbolizar emblematicamente todo o particularismo eurocêntrico e racista que paira sobre o pensamento europeu pós-welfare.3

O ponto de partida para uma crítica ao eurocentrismo da ideia de fim da sociedade do trabalho e advento da sociedade do conhecimen-to pode ser a articulação entre as “realizações positivas” do capitalis-mo mundial durante o século XX e suas “realizações negativas”. A verdade sobre o “mundo do trabalho” atual, como curtem dizer os marxistas ortodoxos atuais, não se explicita sem a reconexão destas realizações diferenciais que o pensamento do centro insiste em es-quecer. Esta reconexão, fundamental para a crítica ao particularis-mo europeu pseudouniversalista que edita para fora sua própria his-tória moderna como se fosse a história inteira do capitalismo, precisa de uma ideia que vincule o ápice das sociedades europeias com o fracasso da periferia, escondido atualmente na meia-verdade das “economias emergentes”. A ideia de uma “economia-mundo” enquan-to sistema, de Immanuel Wallerstein (1974), pode colaborar neste ponto, mas naturalmente não resolve nada isoladamente. Pode ser útil no sentido de explicitar a totalidade do espaço de ação do capita-lismo enquanto sistema produtivo, pelo menos durante o século XX, no qual podemos esboçar uma narrativa europeia que se apresenta como universal e posteriormente uma narrativa brasileira sem a ade-são a paradigmas europeus para sua própria interpretação.

A ideia de um sistema econômico mundial é necessária para que a tentativa de crítica do mundo do trabalho atual a partir da periferia também não se resuma a um nacionalismo metodológico. Este só seria ideológico, pois seria uma visão da periferia sobre si mesma que

2 Gorz é austríaco, mas seu pensamento público e sua carreira se desenvolvem na França.

3 A tradição alemã monta a ideia de sociedade do conhecimento desde Adorno e Horkheimer (Ver BITTLINGMAyER, 2006) passando por Darhendorf e Habermas (Ver SILVA, 2008).

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não tematizaria os paradigmas que escondem a “dupla precarização”4 do trabalho em um país como o Brasil. Wallerstein percebe como uma das principais bases de reprodução e legitimação da “economia-mundo” o papel que os Estados nacionais, enquanto sistemas meno-res que o econômico-mundial, exercem na opacidade do primeiro. A questão fundamental deste autor é: como uma lógica econômica es-pecífica se mantém já há 500 anos no mundo, sem ruir, desmoronar ou se fragmentar? A diferença entre os antigos impérios e o sistema econômico mundial contemporâneo é que os primeiros tinham uma sede local e visível, que podia ser atacada fisicamente. O inimigo dos dominados tinha face e endereço. Revoltas locais eram possíveis e por isso os impérios sempre se rachavam em domínios menores. Na economia-mundo moderna, a dominação não tem face nem endere-ço. O domínio é tecnológico e descentrado, como mostra também André Gorz (2004) em contexto específico menor. O papel geográfico e político dos Estados nacionais é incisivo para esta invisibilidade da dominação moderna, pois ele faz parecer que as realizações positivas e negativas do capitalismo são questões nacionais e não mundiais.

É claro que nos limites institucionais dos Estados nacionais estes podem e devem fazer política por suas questões sociais internas. En-frentar questões sociais internas ao Estado nacional é uma atitude corajosa e digna que um estadista pode assumir em um país perifé-rico de desigualdade estrutural. Um governo assim está enfrentando questões que não foram criadas por ele, e nem pelos brasileiros como povo. Trata-se de questões criadas pelo capitalismo mundial. A ciên-cia social da periferia só pode ser crítica se enfrentar a gênese de tais questões. Perceber o capitalismo como uma totalidade escondida nos Estados nacionais contribui para que se veja como os Estados peri-féricos precisam assumir problemas sociais crônicos que eles não criaram. Uma teoria crítica do trabalho desde a periferia, para mos-trar a limitação da aplicação da ideia de uma sociedade do conheci-mento entre nós, deve mostrar as realizações para dentro do centro do sistema econômico mundial e para fora dele, ou seja, as realiza-ções positivas para o centro e negativas para a periferia. E mais: os dois tipos de realizações não se operam isoladamente, mas só fazem sentido se pensados juntos.

A ciência social, que ainda é nacional, pode operar para explicitar ou esconder as realizações econômicas e políticas de seu tempo. A própria atuação da ciência faz parte de tais realizações. Na história

4 Trata-se da precarização histórica, estrutural, que um país periférico como o nosso sempre sofreu, e da precarização contemporânea, conjuntural, que otimiza a primei-ra pontualmente em todas as crises sofridas pelo capitalismo mundial.

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moderna, não há legitimação sem ela.5 O primeiro passo para que a ciência da periferia sobre o trabalho seja autêntica e independente é romper com paradigmas centrais que generalizam a narrativa euro-peia como ocidental e como mundial. O paradigma do fim da socieda-de do trabalho vem se atualizando na Europa, e naturalmente toman-do novas roupagens. O exemplo mais emblemático e caricatural é o já citado Ulrich Beck. Um de seus livros clichês rapidamente traduzidos para o inglês e publicado em uma das melhores editoras6 sob o impac-tante título The brave new world of work é sintomático do tipo de pseudocrítica conservadora que se opera sobre o tema. É nele que se lança a tese da “brasilização” do Ocidente. A partir dela podemos des-dobrar o novelo ideológico e racista que esconde a verdade sobre a falácia atual do fim da sociedade do trabalho e do advento da socieda-de do conhecimento. Seguindo a trilha do pensamento de Beck pode-mos ver também os fatos contemporâneos que contribuem para o anúncio apocalíptico do fim da sociedade do trabalho desde a Europa.

A tese de Beck aparentemente tem uma virtude e uma novidade: inclui a periferia no tema do trabalho. A ideia do advento do setor de serviços é retomada, como Jessé Souza (2009) costuma dizer, com um “charminho crítico”. O diagnóstico é realizado a partir do dado recente na Europa, que obrigatoriamente incomoda a todos os seus intelectuais mais influentes: o advento veloz do trabalho informal e precarizado. O interessante é que, na reconstrução pseudocrítica e assumidamente profética de Beck este problema chato e incômodo para um europeu que desconhece as mazelas que o mundo do traba-lho opera na sua periferia tem uma origem clara: ele vem do Brasil. Descaradamente, numa inversão ideológica de quem está no centro do poder da ciência social mundial, o produto histórico de mais de um século do sistema econômico mundial se torna a causa do incô-modo existencial e político no centro. Quando o capitalismo começa a mostrar ao centro uma ponta do iceberg de desgraça que ele operou e manteve sistematicamente na periferia, os intelectuais do poder no centro se apressam para achar um culpado e declarar o fim da socie-dade do trabalho. Esse desespero intelectual europeu só faz sentido hoje se reconstruirmos brevemente a narrativa europeia sobre as so-ciedades do trabalho. Ela é não linear em um aspecto específico. O anúncio profético do fim da sociedade do trabalho tem data e contex-to exato: ele é a resposta intelectual europeia ao mundo diante do fracasso de sua grande utopia, a realização do Welfare State. Ao mes-mo tempo é uma cartada ideológica estratégica, nem sempre explíci-

5 Como Jessé Souza vem mostrando. Ver SOUzA, 2009. 6 Blackwell Publishers.

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ta e assumida, para refazer o sistema de legitimação da dominação do centro do capitalismo.

O Welfare foi o ápice da realização positiva do capitalismo no sé-culo XX. A utopia que se realizou e simbolizou a meta final de todas as “sociedades do trabalho”. O significado do Welfare é o de uma so-ciedade perfeita, pois concilia as realizações positivas do mundo mo-derno em suas três dimensões: na economia, na política e na vida social. Na economia significa empregabilidade e renda para toda a população. Na política significa democracia plena e participativa com cidadãos ativos. Na vida social significa segurança física e segurida-de social.7 A narrativa europeia da sociedade do trabalho só fez sen-tido para os europeus enquanto isso funcionou para eles. As socie-dades do trabalho nesta narrativa sempre aparecem como sociedades nacionais e não como um sistema mundial do trabalho, como a velha tese marxista da divisão internacional do trabalho sempre insistiu em enfatizar. Neste aspecto, capitalismo e sistema mundial do traba-lho são sinônimos. Quando este sistema total falha em sua lógica mundial, ou seja, de expurgar para a periferia suas realizações nega-tivas enquanto condição necessária para suas realizações positivas no centro, o centro vai tentar dizer que ele agora é “outra coisa”. Esta outra coisa é a sociedade do conhecimento que continua realizando a mesma entropia centro-periferia com dados concretos e meias-ver-dades novas.

É interessante a forma como a ciência social periférica colonizada compra os paradigmas centrais sem nenhuma crítica, como se estes já estivessem explicando o brave new world de Beck e bastassem ser apenas aplicados. Esta recepção nem sempre é explícita. Esta leitura da sociedade do conhecimento não está defendida principalmente na sociologia do trabalho brasileira. Esta ainda é marcadamente mar-xista, no sentido mais ortodoxo da teoria do valor. Por isso ela é o empecilho mais evidente e mais fraco de uma teoria crítica do traba-lho desde a periferia. É no campo específico da chamada “teoria so-cial” no Brasil onde o paradigma da sociedade do conhecimento é inteiramente comprado e reproduzido. Um exemplo impressionante desta recepção distorcida e colonizada é achar que a ideia de brasili-zação do Ocidente significa um elogio e a tematização de uma virada no jogo centro-periferia. Umas das maiores ondas pseudocríticas no Brasil hoje é o discurso da nova ordem mundial “descentrada” ou sua versão “Caetano Veloso” da nova “desordem” mundial.

7 Tomo esta excelente explicação de Robert Castel em seu grandioso livro From manu-al workers to wage laborers. New Jersey: Transaction Publishers, 2003.

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A nova “desordem” que para nós parece vitória para os europeus significa “perigo”.8 Não por acaso Offe chamou de capitalismo “desor-ganizado” o que na verdade é uma reorganização da produção e de seu sistema de legitimação na ciência e na política contemporâneas. O rótulo pseudocrítico de brasilização do Ocidente vem do medo in-telectual europeu. Medo do perigo crescente de que todas as realiza-ções negativas que o sistema mundial do trabalho jogou historica-mente para debaixo do tapete ideológico europeu (ou seja, a periferia) agora leve a cabo o já iniciado processo de destruição das realizações positivas do capitalismo que sempre foram vistas como realizações nacionais, e principalmente de nações europeias.9 Falar do medo eu-ropeu não significa dizer que estamos oferecendo alguma ameaça da periferia. Pelo contrário. O medo europeu, explícito em Beck10, um dos mais influentes pensadores alemães hoje, é na verdade uma an-tecipação do sistema de legitimação dominante diante de mudanças que de fato assolam o mundo atual, visando à autoproteção dos Es-tados nacionais que historicamente levaram vantagem com as reali-zações diferenciais do sistema mundial do trabalho.11 Suas preocu-pações sociais e suas propostas políticas deixam isso muito claro, e estão explicitando algo que é consenso no pensamento europeu con-temporâneo. A questão explícita é unânime: “o que fazer com a socie-dade do trabalho contemporânea?”. A questão nem sempre explícita é: “agora que ela está falhando em suas realizações positivas para nós europeus”.

No pensamento europeu pós-welfare, dois inimigos estão cons-tantemente no centro da preocupação e eles vêm da periferia. Isso é explícito em Beck. O diagnóstico do capitalismo desorganizado e a preocupação em consertar o mundo do trabalho incluem a necessi-dade de lidar com eles. Um inimigo é passivo e o outro é ativo. Um é o imigrante trabalhador e o outro é o terrorista. Ambos condicionam a preocupação com a cidadania europeia e com a reformulação de suas instituições políticas. A chegada crescente do primeiro contri-bui para o manifesto pseudocrítico da brasilização do Ocidente. O segundo leva Beck e muitos outros a sugerirem sutilmente o fortale-cimento dos Estados europeus. As realizações negativas do sistema mundial do trabalho tomaram dimensões que levam agora o seu cen-

8 Não é outra coisa que dizem sociólogos influentes como Giddens e Beck com a am-plamente aceita ideia de “sociedade de risco”.

9 Os Estados Unidos realizaram a sociedade do trabalho e seus imperialismos por outro caminho, mas nunca puderam evocar o orgulho de um Estado de Bem-Estar.

10 Em textos de jornal ele fala diretamente ao povo alemão e assume a superioridade das instituições europeias e a necessidade de defendê-las.

11 Não por acaso Beck é autor de um texto intitulado “A sociedade civil e seus inimigos”.

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tro a necessidade de refazer sua economia e sua política. O feitiço começa a virar contra o feiticeiro e este agora já tenta apresentar um contrafeitiço: o manifesto do fim da sociedade do trabalho. Este novo feitiço é poderoso exatamente por sua nebulosidade inebriante: “saí-mos da sociedade do trabalho para não por nada em seu lugar” (Gorz); “o capitalismo está desorganizado” (Offe); “o que fazer com o problema do trabalho (mas só na Europa)?” (Beck).

As preocupações de Ulrich Beck sobre o que fazer com o proble-ma do trabalho na Europa são interessantes para se pensar em como se monta a narrativa europeia pós-welfare state e como a narrativa do trabalho na periferia precisa apresentar outra peculiaridade. A breve reconstrução aqui desta tese de Beck sobre o admirável novo mundo do trabalho, no sentido de “espantoso” novo mundo, e espan-toso principalmente para o europeu12, é importante para que fique claro como o início das realizações negativas do capitalismo em seu centro logo se tornam questões de preocupação quando ameaçam a dignidade nacional13 conquistada historicamente apenas em sua vin-culação com a indignidade generalizada na periferia. O que é um problema estrutural e sempre foi naturalizado na periferia do capita-lismo logo se torna motivo de alarde no centro, quando se apresenta ainda que de forma residual (não podemos especular que se torne estrutural, como já se faz atualmente. Quem tenta fazer previsões são ideólogos como Beck).

A lista de preocupações com a organização do trabalho na Europa são questões de ordem secundária, e não questões de ordem primá-ria como as da periferia. Tomando apenas um exemplo da lista do próprio Beck, ele coloca como questão básica que cada trabalhador tenha uma refeição no trabalho. A questão básica na periferia é an-terior: que cada pessoa simplesmente tenha trabalho. As questões de “vida ou morte”, como diria Bourdieu, da periferia ainda precisam ter a dignidade para toda a população no horizonte. As do centro já es-tão transformando questões de autenticidade, de realização pessoal – apenas possíveis de se imaginar quando a dignidade pelo trabalho está garantida para toda a população – em questões de dignidade. As preocupações de Beck sobre o novo mundo do trabalho, para se de-fender da “brasilização” criada pelo mesmo sistema mundial que só beneficiou o velho mundo, sugerem a criação de uma sociedade civil com cidadãos ativos e participativos, como se estes fossem garantir

12 O título original parece irônico: Schöne neue Arbeitwelt. 13 Jessé enfrenta a questão da generalização da dignidade desde seu Modernização

seletiva (2000). Ver especialmente sobre a periferia o seu A construção social da subcidadania (2003).

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por si mesmos uma estabilidade no mundo do trabalho europeu que na verdade já está garantida e agora é administrada, dentre outros meios, pelo discurso parcial da “sociedade do conhecimento”.

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A esfera pública em Jurgen Habermas e Hannah Arendt

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A construção conceitual de uma divisão entre uma dimensão pública e outra privada da vida humana é bastante recorrente nos debates em teoria política. Muitas das compreensões rela-

tivas à vida e à ação política se baseiam em distinções variadas entre aquilo que se refere ao âmbito da visibilidade e do reconhecimento ou da deliberação pública e ao espaço íntimo relativo ao resguardo dos olhares externos.

A reflexão acerca das posições demarcadas entre o que é público e o que é privado, em diversas contribuições na teoria política, abre caminho para uma compreensão mais profunda de pressupostos muitas vezes não muito claros no desenvolvimento das argumenta-ções de alguns pensadores.

Na perspectiva da análise do desdobramento da política na mo-dernidade, então, a concepção da dicotomia público-privado atraves-sa a compreensão da própria relação da sociedade com a atual con-figuração social e política do Estado, em que se precipitam, de maneira mais clara, as controvérsias referentes à política do espaço público e à ação política em seu sentido mais amplo.

O objetivo do presente artigo é um breve traçado exploratório so-bre a presença e a centralidade das categorias de público e privado existentes no pensamento de dois influentes filósofos na teoria polí-tica contemporânea, Hannah Arendt e Jurgen Habermas, bem como os reflexos dessa delimitação conceitual sobre o pensamento desses autores na concepção das relações entre o Estado e a sociedade em nosso tempo.

Hannah Arendt: uma política para a polisHannah Arendt, em sua obra A Condição Humana (1997), dedi-

cou-se a uma política remetida à prática da democracia grega da qual a pensadora extraiu a sua percepção normativa da política e das suas fronteiras com as atividades humanas.

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A esfera pública em Jurgen Habermas e Hannah Arendt

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O espaço do exercício da política e a localização das atividades humanas, para Hannah Arendt, se delineavam no olhar para uma construção já passada, mas que continha ainda, na concepção da autora, a força para a compreensão do ambiente político e das orien-tações ideais da política para a modernidade. Neste sentido, a apre-ensão da linha entre a esfera pública e a esfera privada era estabele-cida em uma dimensão de política idealizada no mundo grego.

A autora delimita a esfera pública e a privada entre um espaço de revelação e manifestação do indivíduo em sua liberdade e outro oculto de domesticidade e de realização das dependências e necessidades.

A esfera pública era caracterizada como espaço no qual o domínio absoluto e inconteste e a esfera política propriamente dita eram mutu-amente exclusivas (ARENDT, 1997, p. 36-37).1 Apreendida na atuação dos cidadãos livres, a esfera pública arendtiana era o lugar da ação discursiva e da manifestação reveladora da identidade de cidadãos em condição de igualdade em sua posição de libertação das necessida-des físicas saciadas na privacidade.

Era na esfera pública que os homens desempenhavam a ação política por meio do discurso e do contato com a pluralidade entre seus pares cidadãos. A revelação do ator, para Arendt, se estabelecia por meio da ação discursiva: na ação e no discurso, os homens mos-tram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e sin-gulares, e assim apresentam-se ao mundo humano (ibidem, p.193); no sentido da ação reveladora, portanto, a ação só seria possível com a existência de outros por meio dos quais a pluralidade daria a di-mensão da singularidade daqueles que também teriam a possibilida-de de se revelarem na esfera pública.

Contraposta à esfera pública, a esfera privada constituía o am-biente da hierarquia familiar e o espaço no qual a propriedade e o recolhimento para a satisfação das necessidades caracterizavam as atividades nela desenvolvidas.

Neste sentido, a esfera privada era concebida por Hannah Arendt enquanto ambiente das relações de força e de satisfação das neces-sidades biológicas referentes às condições físicas do homem; a desi-gualdade, a violência e a sujeição eram características nas relações entre os indivíduos situados no contexto da privatividade. Por outro lado, era a dominação das relações constituídas no privado que ga-rantiam ao chefe familiar a sua ascensão à esfera pública e ao seu mundo de liberdade entre pares.

1 ARENDT, Hannah. Condição humana, A. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 1997.

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Dessa forma, não obstante a reconhecida exclusão das mulheres, dos filhos e dos escravos do mundo da política da esfera pública, Hannah Arendt ligava, a esse modelo de relação entre as atividades humanas e o verdadeiro agir político, uma perspectiva na qual a po-lítica se constituía em um espaço para o novo, para a prática huma-na reveladora do inesperado, nos quais os indivíduos, motivados para além de suas necessidades, ascenderiam a uma esfera onde a igualdade se colocaria conjugada ao exercício da libertação das pri-vações dos imperativos físicos humanos.

Em oposição ao universo consumível e efêmero das atividades praticadas na esfera privada, onde a busca pela sobrevivência ape-nas adiaria o fim do ciclo do corpo e de seus processos biológicos com a morte, a política da esfera pública arendtiana era o espaço de revelação e de perspectiva de eternidade para quem nela atuava.

Entretanto, na análise da política moderna, Hannah Arendt per-cebe um deslocamento do qual a própria política é invadida pelo que ela chama de social, passando a figurar dentre uma das funções de regulação de uma sociedade na qual a dimensão da ação – tal como ela era compreendida na política – passa a ser substituída por uma dinâmica administrativa e burocrática, mobilizada na satisfação das necessidades, antes restritas ao plano da esfera privada familiar que não adentrava ao mundo da política.

Sob essa perspectiva, a política moderna se delineava pervadida pela administração estatal e por uma sociedade de massas cuja igualdade e a invasão das questões sociais de sobrevivência e satis-fação das necessidades tiraram da esfera pública o seu anterior es-paço de expressão da excelência e da manifestação dos indivíduos na pluralidade. Para Hannah Arendt, as esferas pública e privada pas-sam a dar, de então, lugar à grande esfera social.

Habermas: uma política para a sociedade civilA partir de uma observação dos contextos de mudança na socie-

dade europeia do século XVIII, a esfera pública habermasiana cons-titui uma construção conceitual situada historicamente na ascensão social burguesa.

Em seu livro Mudança Estrutural da Esfera Pública (1984),2 o au-tor desenvolve uma concepção do público e de sua relação com o

2 HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1984.

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privado orientada na constituição de um modelo no qual a instância pública da sociedade – tal como o autor chamaria a esfera pública (Ueffentlichkeit) – seria um canal de mediação das relações entre o Estado e a sociedade civil nascente.

Dessa forma, o desenvolvimento das relações de mercado – pro-cesso corrente à ascensão da burguesia – trouxe para a administra-ção dos negócios públicos uma dinâmica no qual os sujeitos privados passaram a discutir e formular opiniões entre si sobre os princípios relativos à regulação pública do Estado que intervinha sobre a forma como conduziam suas questões e interesses privados.

Nas palavras do próprio Habermas:

A esfera pública pode ser entendida inicialmente como a esfera das pessoas privadas reunidas em um público (...) a fim de discutir com ela as leis gerais da troca da esfera fundamentalmente privada, mas publicamente relevante, as leis de intercâmbio de mercadorias e do trabalho social. (HABERMAS, 1984, p.42)

Para além das discussões relativas à intervenção do Estado no mercado, a esfera pública burguesa criava uma cultura da conversa-ção livre entre indivíduos cuja mobilização no contexto da esfera pú-blica burguesa incorporava os valores da liberdade e os imperativos de uma política voltada à opinião e à validação pública.

Neste sentido, a esfera pública burguesa baseava a sua função política na contraposição à atuação do Estado por meio da conversa-ção e da formação de opinião de indivíduos cuja atuação pública estava fortemente ligada aos seus interesses e necessidades priva-das. A formação da opinião e a ação discursiva habermasiana repor-tavam a indivíduos enquanto sujeitos políticos ativos formados so-cialmente na esfera pública de pessoas privadas.

Para Habermas, a linha entre o público e o privado nesse contex-to se deslocava com um sistema de satisfação de necessidades que saltava da família para o mercado. Os indivíduos que compunham agora a esfera pública estavam inseridos em um espaço no qual as necessidades e as garantias de reprodução social não mais compe-tiam à família. Desse modo, a nova configuração do atendimento às necessidades da privacidade dos indivíduos duplicava a esfera priva-da entre a sociedade civil burguesa ligada ao mercado e a chamada pequena-família, o espaço do consumo e da reprodução da mais pro-funda intimidade. (HABERMAS, 1984, p. 44)

Em um trabalho posterior, Entre Facticidade e Validade (1997), Habermas transpõe a sua concepção teórica da esfera pública para a

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constituição de um modelo normativo. Em um contexto de transfor-mação já analisado pelo autor (ver HABERMAS, 1984), traça-se uma concepção da política adaptada a uma sociedade civil composta pe-las organizações e associações partidárias que haviam modificado a esfera da conversação e da formação de opinião na ação comunicati-va racional dos indivíduos da esfera pública literária burguesa.

Para Habermas, a nova esfera pública – dirigida à política de uma sociedade civil cada vez mais inserida nas atividades do Estado – compõe uma nova relação da formação da opinião pública com as experiências relativas ao privado.

Neste sentido, a esfera privada e a esfera pública canalizariam o fluxo de temas de uma esfera para outra de tal modo que a esfera pública, como tal, retiraria seus impulsos da vivência e da partilha de experiências particulares referentes à vida privada dos indivíduos, aos problemas sociais repercutidos em suas biografias particulares. (HABERMAS, 1997, p. 98)3

Em um espaço no qual associações, movimentos sociais e organi-zações da sociedade civil teriam a estrutura de acesso ao Estado, o papel dessas figuras políticas seria a de trazer ao público interpreta-ções sobre as suas experiências particulares e conduzir, por meio da pluralidade, a formação de uma opinião fundamentada racionalmen-te e mobilizada no debate público.

Além da dimensão da organização da esfera e da opinião públi-cas, os grupos da sociedade civil constituiriam o corpo da organiza-ção social que teria o poder de direcionar e orientar a agenda da es-fera pública política institucionalizada em favor do corpo legítimo da opinião pública constituída.

A esfera pública habermasiana, dessa forma, passa a relacionar uma adaptação de um ideal de política às condições na qual a opi-nião pública e a própria política é atualmente destacada.

Arendt e Habermas: alternativas em diálogoÉ possível identificar na obra habermasiana uma forte influência

do pensamento de Hannah Arendt. A perspectiva inicialmente retra-tada por Habermas desenvolve os traços da relação entre o público e o privado arendtianos.

3 HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2 vols. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.1997.

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A esfera pública em Jurgen Habermas e Hannah Arendt

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Na concepção da própria dicotomia conceitual público-privado na compreensão das atividades humanas, tanto Arendt como o próprio Habermas remetem à dimensão da vida e da política grega para o desenvolvimento de suas ideias.

Ambos os autores orientam sua contribuição na constituição da dimensão prática da política, isto é, constituída em um ideal de agir político e em concepções normativas demarcadas sobre o funciona-mento das instituições e espaços políticos.

Habermas e Hannah Arendt resgatam as dimensões das esferas da atuação humana para a apreensão de um agir e de uma concep-ção de política dirigida para a modernidade. Neste sentido, a conver-gência do pensamento desses autores no entendimento da ação polí-tica é considerável.

Não obstante, o pensamento dos dois autores se demarca em uma compreensão diferenciada do movimento daquilo que prefigu-ram questões políticas para serem discutidas pelo público.

Para Hannah Arendt, a presença e a tematização do privado e das necessidades na esfera pública figuram na decadência da categoria ideal da política e do público. Segundo ela, a passagem da sociedade – a ascensão da administração caseira, de seus problemas e recursos organizacionais – do sombrio interior do lar para a luz da esfera públi-ca não apenas diluiu a antiga divisão entre o privado e o político, mas também alterou o significado dos dois termos e a sua importância ao ponto de torná-los quase irreconhecíveis. (ARENDT, 1997, p. 47)

Além da desnaturalização das divisões entre o privado e o público na organização das atividades humanas, a autora via na ascensão e na visibilidade do social na esfera pública a decadência de um uni-verso da política voltada para a ação humana na excelência, na pos-sibilidade que a esfera pública e seu atributo de reconhecimento ti-nham em distinguir, por meio da ação, um indivíduo político dos demais (idem, p.58) – como que em uma dimensão de política agonís-tica. (BENHABIB, 1996, p.75)4

Habermas, por outro lado, compreendia a esfera pública e a sua atribuição política intrinsecamente ligadas à mobilização das experiên-cias privadas na formação do público e de sua opinião. As questões referentes ao interesse público eram as questões políticas que reper-cutiam sobre a vida e o interesse privados dos cidadãos que dialoga-vam e compunham a esfera pública habermasiana.

4 HABERMAS, Jurgen. O conceito de poder em Hannah Arendt. In: Coleção Grandes Cientistas Sociais n. 15 Sociologia. São Paulo: Ed. Ática. 1993.

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Neste sentido, a convergência dos dois filósofos por meio de uma ação política fundamentada na pluralidade comunicativa se separa em uma dimensão acerca da orientação que deveria guiar a política moderna.

Considerações finais

Benhabib, em sua análise crítica dos modelos de espaço público, menciona, talvez com certa ironia, as dificuldades de se pensar um modelo prático de política participativa para a modernidade.

É possível ainda considerar limitações e cortes no olhar de Ha-bermas e de Arendt para a política na modernidade, e notar ainda necessidades que a prática da própria política contemporânea criou ao seu contexto que ainda aguardam contribuições que venham con-templá-las e inseri-las em debate.5

Interessante, também, é observar situações por vezes colocadas em que a compreensão teórica e as normas são constituídas poste-riores ao exercício e à dinâmica prática e surpreendente da realidade – e dos acontecimentos presentes.

Não obstante, o esforço para a construção de uma compreensão teórica que dê conta da complexidade atual passa pelo contato com a contribuição de pensadores que se dedicaram ao estudo de uma política destinada a ser tão pulsante para o presente como a que se espera ser construída agora.

Neste sentido, as concepções de Hannah Arendt e de Jurgen Habermas figuram como peças-chave na organização conceitual para uma compreensão da política e do pensamento social na mo-dernidade. Para além dos usos e reproduções estanques da contri-buição desses autores, a importância em abordar suas categorias de pensamento está na possibilidade de uma apropriação crítica e refle-xiva para o presente – e que se espera ter sido feito neste artigo, ain-da que muito parcialmente.

5 KRITSCH, Raquel. Esfera pública e sociedade civil na teoria política habermasiana, Revista Brasileira de Ciência Política. Brasília. N.3, 2010.

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V. Questões de desenvolvimento

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Autores

Guilherme Leite da Silva DiasProfessor da Faculdade de Economia e Administração (FEA), da Universidade de São Paulo.

Demétrio CarneiroEconomista, especialista e pesquisador em políticas públicas, professor universitário no Distrito Federal, coordenador do blog Alternativa Brasil (www.alternativabrasil.org).

José Carneiro da Cunha OliveiraGraduação em Ciências Econômicas (2004), mestre em Economia de Empresa pela Uni-versidade Católica de Brasília (2007) e doutorando em Administração (Finanças) pela Universidade de Brasília. É professor assistente do Departamento de Administração da Universidade de Brasília.

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A produção agrícola de 148 milhões de toneladas em 2010 des-pertou pouca atenção dos brasileiros porque já é um fato corri-queiro, a cada três ou cinco anos superamos a marca anterior

e geramos um excedente de mais de 25% acima de nossas necessida-des de consumo alimentar. Uma análise superficial destes números diria que o país superou facilmente um dos grandes obstáculos do desenvolvimento econômico, a urbanização e o risco da carência de alimentos; a troca do trabalho por salário supera as necessidades básicas e abre espaço para a diversificação dos gastos de consumo.

O conflito, no entanto, é a marca mais característica de qualquer referência ao espaço rural e ao mundo dos negócios ligados à produ-ção, comercialização e distribuição dos alimentos no mercado do-méstico. Conflito neste caso quer dizer que a disputa entre os agen-tes da produção, comercialização e distribuição de alimentos pode escapar dos limites da lógica do mercado e da civilidade social, des-cambando para a violência e o arbítrio selvagem do mais forte contra os mais fracos. Ainda não chegamos neste ponto, o Estado é chama-do a intervir e evita o pior, mas não impede que a situação se repita logo adiante. Os atores sociais não aprendem com a recorrência dos conflitos, não mudam seus hábitos, não estabelecem um novo pa-drão de negociação das suas diferenças.

Suas lideranças e seus representantes políticos pedem a interven-ção do Estado para compensar todos os lados com alguma transferên-cia unilateral de recursos sem condicionalidades, ou seja, o comporta-

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mento dos atores não precisa ser modificado. Não é o processo econômico que vai mal é o político que pede uma forte renovação.

Acredito que não estou exagerando sobre este quadro contraditó-rio porque existem evidências de que estão deterioradas as relações entre os agentes do processo, em particular a dos agentes de produ-ção com o Estado. Um fato vem chamando a minha atenção, desde a publicação dos dados gerais do Censo Agrícola de 2006, indicando uma forte desconfiança em relação ao Estado de quem respondeu às perguntas do recenseador. Os produtores de menor tamanho (medi-do pela área total ocupada) e também os de grande porte omitiram de modo gritante os dados referentes à produção e o lucro obtido no seu estabelecimento.

Tabela 1 – Confronto entre os censos de 1996 e 2006

Fonte.: IBGE, cálculos do autor

A tabela acima apresenta o número de informantes que respon-deram aos quesitos relativos à renda obtida com a venda de produtos agrícolas (coluna 2 e 4) e aqueles relativos as despesas incorridas para gerar a produção (colunas 3 e 5); em 1996 estes números eram muito equilibrados com uma pequena omissão pelos grandes produ-tores, mas em 2006 a omissão é muito mais elevada, reduz um pou-co nos grupos intermediários e aumenta muito no maior grupo de tamanho onde apenas 59% dos produtores que identificaram as suas despesas também declararam as receitas obtidas. Atenção para o fato de que os declarantes não subestimaram a receita obtida, eles se omitiram de declarar qualquer receita embora tenham declarado de-talhes de suas despesas com a produção agrícola.

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A melhor interpretação para a subdeclaração das receitas é de que os pequenos produtores devem estar omitindo renda devido aos requerimentos de acesso às transferências de renda do Governo – os programas sociais – e o enquadramento no Programa de Agricultura Familiar. Os grandes devem ter omitido essas receitas para a Declara-ção Anual do Imposto de Renda e procuram evitar qualquer possibili-dade de cruzamento dos dados; este nível de informalidade da em-presa rural não impede o acesso ao financiamento de custeio e dos investimentos dado o elevado valor dos bens que podem ser usados como colateral destes contratos. (DIAS, 2010)

Este véu de desconfiança entre o agente econômico e o Estado impede o uso de informações objetivas para discriminar o tipo e a quantidade de transferências de renda que cada um deve receber; não é possível dar um tratamento personalizado onde direitos e obri-gações ficam bem estabelecidos entre o indivíduo e o Estado. Todos os produtores, “pequenos” e “grandes”, optaram por uma estratégia não cooperativa na qual escondem a informação relevante, desde o produtor familiar que se multiplica através dos filhos para aumentar o seu acesso às transferências de renda oferecidas pela política pú-blica em detrimento de outros produtores familiares, até os megaem-presários que declaram “lucros presumidos” na sua pessoa física e dos familiares, acessam crédito oferecendo colaterais expressivos que raramente geram lucros operacionais suficientes para honrar seus compromissos de dívida bancária, concentrando mais ainda a distribuição da riqueza.

A questão da representação políticaEsta tradição conduz a um vício na relação dos produtores com

as entidades que representam seus interesses; o que esta em jogo não é a negociação dos seus interesses mas o seu credenciamento para receber a transferência de renda do Estado. Num processo equi-librado de negociação, deveria aparecer um conjunto consistente de direitos e obrigações assim como uma forma de verificação do cum-primento do contrato; o que fica pressuposto é a identificação, caso a caso, do comprometimento de cada um dos representados com o que foi negociado. Se a transferência é incondicional não há razão para verificar o cumprimento de nenhuma clausula contratual só precisa haver um procedimento de credenciamento, apenas um pro-cesso burocrático.

A liderança é avaliada pelo montante de recursos que são transfe-ridos. Não existe um custo associado com o comprometimento de uma

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obrigação e, portanto, uma avaliação mais complexa da competência e da confiabilidade da liderança, fatores importantes para transformar esta liderança num negociador em uma situação de conflito.

É interessante observar como se multiplicam as organizações de representação de acordo com a natureza do instrumento de política agrícola que transfere recursos. Na política de intervenção sobre pre-ços de mercado (gerenciada pela Conab) multiplicam-se as associa-ções de produtores de cada lavoura para tipo de leilão de subsídios (soja-Aprosoja, algodão-Abrapa etc.) o que reduz a negociação ao vo-lume de subsídio oferecido em cada Estado; caso fosse apenas uma entidade estadual esta liderança teria de assumir a responsabilidade de priorizar uma lavoura em relação às outras, mas em compensação ganharia maior credibilidade para negociar numa outra situação de conflito com a agroindústria ou no encaminhamento de uma propos-ta de desoneração tributária dos produtos agrícolas.

O mesmo ocorre em relação ao Pronaf (fortalecimento da agricul-tura familiar), de início o interlocutor com o governo era a represen-tação sindical de caráter nacional (Contag), 15 anos depois existe a federação do trabalhador na agricultura familiar (Fetraf-Brasil), o movimento dos sem terra (MST), o movimento dos pequenos agricul-tores (MPA), um conselho das populações extrativistas etc. Todos mobilizam transferências incondicionais, nenhum tem poder de re-presentação para encaminhar uma mudança na legislação fundiária que favorece o reconhecimento das grandes posses de terras.

O padrão dos conflitos agroindustriaisNo padrão tradicional de conflito dentro das cadeias produtivas,

as lideranças ruralistas apontam ora as taxas de juros reais elevadas depois do Plano Real (antes eram as assimetrias dos fatores de cor-reção monetária), ora o poder oligopolístico das industrias de insu-mos e a assimetria de poder na negociação com os grandes compra-dores da safra.

O sistema oficial de crédito é pequeno para as necessidades da produção. De acordo com estimativas elaboradas, o sistema de crédito bancário é suficiente para algo como 25% a 30% do total de capital requerido para custeio e comercialização. A outra parte dos recursos é o capital próprio do produtor (ao redor de 35% das necessidades) e o capital oriundo das empresas de insumos e dos grandes traders, que, em muitos casos, são a mesma empresa. Este sistema empresarial de financiamento é caro para os produtores. Por conta do caráter dirigido

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do credito rural o sistema bancário não tem interesse em emprestar recursos aos fazendeiros. A baixa oferta de capital do sistema financei-ro faz com que a única fonte de recursos privada seja aquela com in-teresse comercial em relação à agricultura.

Os conflitos foram frequentes e poucos convergiram para um padrão cooperativo entre os agentes. Na cadeia de produção do açú-car e álcool, em 1999 tiveram problemas com a tentativa de formar estoques por uma ação coordenada das usinas, tentaram apresentar uma regulamentação com parceria pública/privada, mas não pros-peraram por falta de unidade no setor. A partir de 2003 dentro do atual ciclo de prosperidade do setor começaram as fusões, ajudadas pela entrada de capital externo, que estão gerando uma nova confi-guração para enfrentar a necessidade de ações coletivas.

As montadoras de tratores e os fabricantes de fertilizantes come-çam um ciclo de fusões no mercado internacional com reflexos na concentração da produção doméstica. Em 2005 o Cade aprovou a última fusão deixando apenas quatro produtores mundiais de trato-res no Brasil. Nos fertilizantes o controle da produção de fosfato no Brasil ficou com uma única empresa. A indústria têxtil e os produto-res de algodão entram em conflito sobre um excesso de importações em 2000; o governo intermediou com um sistema de venda e recom-pra de opções que mantêm um equilíbrio precário no setor até hoje. O custo destas operações é elevado e representa uma forte concen-tração da capacidade de intervenção da Conab em um único setor.

A indústria do suco de laranja iniciou um processo de concentra-ção vertical, passou por dois períodos de conflito acirrado com os fornecedores com contratos questionados no Judiciário em 2000 e 2005. Houve sucessivos ensaios de introdução de arbitragem sobre estes contratos, mas o processo não prosperou. Foi uma intervenção desagregadora do governo (com o imposto de exportação sobre o cou-ro “Wet Blue” em 2001) a responsável por minar forte desconfiança dentro da cadeia produtiva de pecuaristas e a indústria de couro e calçados. Hoje o imposto já caiu, mas a concorrência chinesa enfra-queceu severamente a nossa indústria de calçados, isolada e desgas-tada com o episódio anterior.

Em 2001 começa um processo de concentração nas indústrias de esmagamento de soja, em 2004 ocorrem os primeiros questiona-mentos na Justiça sobre contratos futuros de soja sobre o uso dos certificados de venda do produtor rural. Novos processos surgiram nos dois anos seguintes e ainda não existe jurisprudência unânime sobre o caso.

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Outros episódios ocorreram na cadeia dos lácteos e do arroz cor-roborando a hipótese de que temos uma tradição ruim de coordena-ção das cadeias agroindustriais e também na formação de um siste-ma de representação do interesse das partes envolvidas. Isto dificulta a definição de uma estratégia eficiente de crescimento ou de ajuste do setor produtivo diante de um mercado internacional muito dinâmico e ajuda a explicar as sucessivas crises de inadimplência no credito rural.

O processo é repetitivo, as lideranças apontam para um culpado pelos prejuízos e solicitam do Estado uma compensação financeira. Raramente apontam para a necessidade de um termo de ajuste de conduta dos agentes o que implicaria numa negociação direta entre as partes e novas regras, cujo cumprimento precisariam de fiscaliza-ção constante num ambiente de maior transparência.

A urgência da mudançaNo início do texto chamamos a atenção para o fato de que a trans-

ferência de recursos públicos sem condicionalidades, não cria direi-tos dos produtores, mas uma dependência com as lideranças e com a burocracia que faz a intermediação com o Estado. Depois vimos que a sucessão de conflitos na cadeia de produção agroindustrial não produziu uma tradição de negociação e consolidação de regras competitivas, ao contrario predominam sistemas de dominação.

Agora o conflito no meio rural tende a ficar mais complexo por força do cenário de globalização da questão de preservação do meio ambiente e, com o agravamento da escassez de fontes de energia fós-seis, os biocombustiveis aparecem como uma alternativa viável. O primeiro leva a compromissos de regulação do sistema produtivo com a exigência de transparência e certificação do produtor individual; o segundo coloca aquela frágil estrutura de representação diante do mais poderoso complexo industrial, o do petróleo e gás natural.

De um lado a fiscalização da unidade produtiva agrícola vai fi-cando inevitável, o custo do processo será sentido por todos os pro-dutores. Os critérios de aferição precisam ser negociados coletiva-mente, onde a força do interesse da classe produtora precisa ser sentido ou ele será subjugado pela melhor organização dos outros grupos mobilizados.

Do outro lado o crescimento no preço de energia contamina to-dos os preços da cadeia agroindustrial. É inevitável, portanto que temos de concentrar nossa atenção no quadro de grandes inovações

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tecnológicas combinadas com uma restrição na ambição de reprodu-ção incontrolada dos padrões de consumo dos países mais ricos o que requer um ambiente regulatório muito bem concebido para res-tringir os efeitos mais indesejáveis desta trajetória e acelerar o pro-cesso de inovação requerido com incentivos bem definidos.

Num cenário com este nível de desafios, o modelo de transferên-cias discricionárias de recursos tem de ceder espaço para um regime de subsídios concedidos com a transparência requerida pelas condi-ções que permitem aferir a sustentabilidade do modelo de produção de cada um dos produtores qualificados para o subsídio.

É preciso fazer uma revisão profunda dos instrumentos de apoio à renda do produtor rural com dois objetivos principais. O primeiro é aumentar as transferências diretas à renda do produtor, evitando-se intervenções no preço de mercado e subsídios na taxa de juros por-que a apropriação destes benefícios pode ficar com qualquer outro agente do mercado. O segundo é dar uma maior transparência aos números e à realidade da renda agrícola, somente assim aumentará o peso político deste segmento social, com credibilidade.

Por sucessivas vezes, predominam escolhas que privilegiam me-nos os produtores e mais os agentes que já detêm maior poder de mercado; por exemplo, quando os prêmios de apólices de seguro de produção agrícola são subsidiados, as empresas de seguro e os ban-cos se defendem admitindo sua aplicação apenas como colaterais de empréstimos de custeio. O capital do banco precisa de proteção con-tra o risco da volatilidade da renda agrícola, mas o capital de giro próprio do produtor não merece o mesmo tratamento.

O lucro operacional do produtor (definido como as receitas me-nos as despesas) deve ser o próximo objeto do subsídio. O problema é que não existe um registro contábil confiável do que acontece na empresa agrícola. Essa subvenção não pode ser calculada arbitraria-mente, resultando numa média idêntica para todos os produtores. Ela deve ser avaliada caso a caso, ter prazo para terminar e estar condicionada a objetivos finais da política social e econômica do go-verno. No caso da agricultura familiar, a condição de acesso à sub-venção deve ser a permanência da família na atividade rural. Quanto à empresa de produção comercial rural, o critério para concessão de subvenção deve ser a competitividade comercial de longo prazo. Se os filhos do produtor familiar preferem migrar para o trabalho urba-no de modo permanente, ou se a perspectiva de reconquistar merca-dos deixa de ser crível para o produtor comercial, o subsídio perde sua razão de existir. O produtor familiar de maior idade deve ser en-

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quadrado numa política social ou assistencial, e o produtor comer-cial, reconverter sua produção para uma atividade mais promissora.

Uma reforma da estrutura institucional da política agrícola desse porte exige um horizonte de transição de alguns anos, talvez cinco ou até uma década. O primeiro e fundamental desafio é a superação do modelo de controle social que hoje incide sobre grandes e pequenos produtores pelos mediadores das políticas governamentais. É no controle sobre o acesso a estes recursos que esta a fonte de poder da atual liderança e na fragmentação das identidades percebidas pelos diferentes grupos de produtores a estratégia bem sucedida de manu-tenção do poder.

Navarro (2002) fez a melhor análise deste processo referindo-se aos movimentos sociais que defendiam a reforma agrária, mas ela também se aplica aos interesses por trás da política agrícola. Quan-do inexiste uma liderança capaz de negociar os conflitos inerentes à própria organização social e econômica de um setor – por exemplo entre agricultura familiar e patronal, nativos e migrantes, grandes e pequenos – nenhuma destas identidades consegue exercer o direito de defender suas reivindicações diante de adversários que já supera-ram este problema político. Os mediadores da política governamental estão aí para garantir que estes grupos não obtenham sua emanci-pação social e política.

ReferênciasDIAS, Guilherme. A dificuldade de mudar: o caso da política agrícola no Brasil, cap.10 de A agricultura brasileira: desempenho recente, desafios e perspectivas, Ipea/Mapa, Brasília, no prelo, 2010.

NAVARRO, zander. Mobilização sem emancipação – as lutas sociais dos sem-terra no Brasil in: SANTOS, Boaventura de Sousa (org). Produzir para viver. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 189-232.

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Pacto federativo e localização regional

Demetrio Carneiro e José Carneiro da Cunha Oliveira

O presente artigo não tem nenhuma intenção de exaurir o de-bate ou catalogar posições. Mas apenas registrar, primeiro, a complexidade de um tema geral – Poder Local – que nor-

malmente é levado ao debate político naquilo que ele tem de mais ge-nérico e, por isto mesmo, acaba assinalando uma “leitura moderna” que é apenas formal e não tem a capacidade de fornecer elementos válidos para análises mais consequentes. Em segundo lugar e na tentativa de algum mapeamento, apresentamos algumas questões que julgamos devem ser melhor debatidas dentro do tema. Em es-pecial, procuramos chamar a atenção para a necessidade de que as análises que partem do conceito central de Poder Local se “abram” em espaços maiores para melhor compreensão de processos nada claros em nossa República Federativa como a questão das tensões regionais por conta do desenvolvimento desigual entre elas.

É um apanhado muito denso de problemas e questões pendentes. E, em nossa leitura, não há mais como tratar de Poder Local sem tratar de Desenvolvimento Municipal. Contudo, precisamos estabele-cer o que envolve o município, e uma das determinantes são as ten-sões entre regiões e precisamos analisá-las com mais profundidade. Trata-se apenas de um começo.

Já há um bom número de estudos acadêmicos e outros, produzi-dos por pensadores independentes e pelos partidos políticos, com referência à questão do Poder Local. Boa parte desses estudos não é apenas conceitual e caminha na direção de detectar a existência das estruturas do poder tradicional e as recentes transformações das re-lações locais de poder1.

O outro lado do Poder Local, como estudo das relações tradicio-nais, é como proposta de transformação fundada na constatação da presença de novos atores políticos e nos atuais padrões de governan-

1 Um bom exemplo: AVRITZER, Leonardo. Sociedade Civil e participação social no Brasil. Disponível em: <http://www.democraciaparticipativa.org/files/AvritzerSo-ciedadeCivilParticipacaoBrasil.pdf>.

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ça democrática. Em último caso, não se busca a constatação, mas como essa proposta pode impulsionar a revisão das relações tradicio-nais de dominação e subordinação. É a chamada ressignificação2 ou a leitura diversa do conceito.

Existem, também, linhas claras de leitura das realidades. Algu-mas são mais objetivas.3 Outras, e são muitas, nem tanto. Olham para o conceito ressignificado e estabelecem um ideário que filtra a leitura e pode emprestar ao processo de alteração das relações locais um peso que talvez não tenha. Aquilo, por exemplo, que deveriam ser processos e estruturas inovadoras na questão Estado & Cidadania, movimentos sociais e cogestão, acabam de alguma forma capturados pelas estruturas existentes de poder, seja a partir dos grupos de po-der no aparelho do Estado, seja a partir dos grupos de poder nos partidos políticos ou no poder real local (há um debate a ser feito aqui), seja na linha de pensamento sobre Poder Local como consta-tação das relações de poder já existentes ou como ação de revisão dessas relações, o foco é a localidade. Não necessariamente o ente federativo mais “próximo” do mundo real, o município.

Admite-se, fundamentalmente, um conceito de pertinência, o pertencer a um lugar que pode ser o local de moradia ou o local de trabalho ou ambos, mas também pode chegar aos limites políticos municipais e mesmo seguir em frente até os limites regionais. De qualquer forma é uma evidente afirmação geográfica.

A Constituição Federal de 88 inovou e deu aos municípios novos papéis e nova personalidade. Mas não foi apenas isso. Ela também introduziu a novidade da democracia participativa e abriu o caminho para o debate a respeito da cogestão, da gestão partilhada de políti-cas públicas, cobrou transparência e habilidade de planejamento.

2 DA COSTA, João Bosco Araújo. A ressignificação do local: O imaginário político pós-80. Revista São Paulo em perspectiva, 10(3), 1996.

3 Entre outros: MALUF, Rui Tavares. Prefeitos na mira. São Paulo: Editora Biruta. 2001. WEBER, Luís Alberto. Capital social e corrupção política nos municípios brasi-leiros. Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Ciências Políticas/UNB. 2006. Disponível em: <http://bdtd.bce.unb.br/tedesimplificado/tde_arquivos/30/TDE-2006-11-07T164649Z-409/Publico/luiz_weber.pdf>. DE SOUZA, Clóvis Hen-rique Leite. Partilha de poder decisório em processos participativos nacionais. Disser-tação apresentada no PPG em Ciências Políticas da UNB como requisito parcial para a abtenção do título de Mestre em Ciências Políticas. 2008. Disponível em: <http://repositorio.bce.unb.br/handle/10482/5718>. ABERS, Rebecca; KECK, Margarete. Representando a diversidade: Estado e associações civis nos conselhos gestores. Ar-tigo apresentado no II Seminário Nacional do Núcleo de Pesquisa em Ciências So-ciais: “Movimentos sociais, participação e democracia” UFSC. 2007.

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A questão do Poder Local tomou um foco geográfico-político, mu-nicipal e passou então a interessar o quanto a Carta Constitucional, o novo conceito de cidadania nela embutido, o acúmulo das lutas contra a ditadura, a ampliação da rede de organizações do movimen-to social, podem ou não alterar as relações pré-existentes de poder e como isso se dá.

No interesse prático dos partidos políticos, a questão do Poder Local tomou outro caminho e virou elemento de discurso.

O discurso se dá em diversos níveis dentro de um dado partido e comparativamente entre eles. Atualmente todos os principais partidos políticos brasileiros incorporaram este discurso. Mas, ter virado elemento de discurso não implica em que tenha virado ele-mento de projeto, projeto de poder transformador. Ou de prática política sistematizada.

Um vez estabelecido o Poder Local como proposta nos partidos muitas experiências de gestão passaram a incorporar práticas típi-cas dessa leitura “ressignificada” ou diversa. Na maior parte dos ca-sos, a proposta acabou se transformando em instrumento de proces-sos hegemônicos e de cooptação. O ciclo de auge e decadência do Orçamento Participativo é um bom exemplo.

Uma parte da explicação talvez esteja no fato de que mesmo os partidos supostamente defensores do parlamentarismo são, na prá-tica, presidencialistas. Presidencialistas, na mais forte tradição re-publicana brasileira: verticalizantes e centralizadores.

Outra evidência fica por conta do ciclo eleitoral. Há evidente con-centração no ciclo ligado às eleições federal/estaduais em detrimen-to do ciclo das eleições municipais que são vistas como uma preocu-pação de segunda linha. De modo geral, as próprias estruturas de poder interno dos partidos deixam exposta sua proposta de projeto de poder, pois são todas igualmente verticalizantes e centralizadoras.

Na prática, os partidos respondem à visão ideológico-política de toda a sociedade: estamos muito longe de sermos uma federação e o texto constitucional é apenas uma autorização genérica. Mesmo em contexto no qual o texto constitucional acabou estimulando o lado participativo, como nos Conselhos de Saúde Municipais do SUS, ain-da assim fica bem clara a captura da estrutura e seu uso manipula-tório pelas estruturas de poder tradicionais.

Olhando para a Federação, como um todo, se percebe uma autên-tica correia de transmissão que vai do Executivo Central diretamente para os municípios e passa por uma extensa rede de negociações

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envolvendo deputados estaduais, governadores, deputados federais, senadores, ministros de Estado e mesmo o gabinete da Presidência de República, que tem poder de decisão em diversos assuntos de in-teresse municipal.

Vista assim a Federação, a capacidade transformadora da leitura ressignificada ou diversa precisa ser relativizada. Ainda será neces-sária uma avaliação crítica concreta e a partir desse contexto. Na realidade, há outro debate a ser feito: ou se forma uma rede de mu-nicípios ou dificilmente esses ganhos de ressiginificação ou diversi-dade se transformarão em elementos permanentes e sustentáveis. O Poder Local é visto pontualmente. Em cada município isoladamente, dificil será um processo sustentável.

Verdadeiramente, a ressiginificação ou diversidade do Poder Lo-cal foi conquistada, diferentemente de outros combates políticos, mas há evidente fratura entre a intenção do constituinte e a Repúbli-ca Real que todos ajudamos a criar, pois votamos e elegemos.

A república centralizante e vertical, o inverso completo da leitura ressignificada ou diversa, foi uma escolha pública. Aqui abre-se ou-tra linha para o debate.

A regionalidade como um “outro tipo” de Poder Local a se debater

Além do que já comentamos, a Constituição Federal de 1988 deu ao governo central a incumbência de buscar a eliminação das dife-renças regionais.4 Com efeito, o constituinte, olhando para macror-regiões, definiu com clareza a obrigatoriedade de políticas públicas que compensassem as evidentes diferenças macrorregionais.

Não é outro o motivo de estarem lá tanto o Fundo de Participa-ção dos Estados como o Fundo de Participação dos Municípios. Mais tarde, coube à Lei de Responsabilidade Fiscal, ao estabelecer o planejamento orçamentário, dar ao Plano Plurianual o papel prá-tico na ordenação dos programas federais e de também priorizar o papel do investimento público na superação do desenvolvimento desigual das regiões.

4 Cito como uma boa introdução ao debate federativo: REZENDE, Fernando; AFON-SO, José Roberto. A federação brasileira: Fatos, desafios e perspectivas. Disponível em: <http://info.worldbank.org/etools/docs/library/229990/Rezende%20e%20Afonso.pdf>.

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Pacto federativo e localização regional

Demetrio Carneiro e José Carneiro da Cunha Oliveira

Especificamente, a Lei que criou o FPE, Lei Complementar nº 62, de 1989, destinou 85% das cotas aos estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, ficando os restantes 15% para Sul e Sudeste. Original-mente, o Congresso Nacional teria até o ano de 1992 para debater e estabelecer novos parâmetros. Evidentemente, o crescimento econô-mico pode gerar alterações nos perfis, pedindo alteração no regime de cotas. Sucessivas protelações colocaram o assunto sob a alçada do Supremo Tribunal Federal que decidiu dar prazo até 2012 para uma revisão da Lei Complementar.

Previsível que teremos uma questão de embate federativo. Quan-do da aprovação da Lei Complementar, José Sarney era o presidente da República. Hoje, ele retorna à próxima legislatura como principal, e discreto, fiador do equilíbrio de centro.

Seria interessante uma leitura que revelasse a diferença entre poder nacional e os diversos poderes subnacionais, olhando de for-ma mais atenta para a questão subnacional e a formação de arcos de aliança macrorregionais, seus vínculos com o poder nacional e sua acomodação na questão federativa da forma como ela se dá hoje. Ou não se dá. Questões que envolvem não apenas o FPE ou o FPM, mas também a própria composição das bancadas na Câmara Federal e o comportamento dos partidos políticos que se sentindo nacionais refletem muito mais as demandas regionais e as contra-dições entre elas, que são resolvidas no interesses das elites domi-nantes mais tradicionais.

A lógica de transformação de relações também precisa chegar à região e estratégias devem beneficiar olhares para a formação de re-des nas micro, meso e a macrorregiões. Na direção inversa da pro-posta de olhar em bloco para as regiões, sem querer desmerecer que há tensões internas entre os blocos regionais, talvez o comportamen-to prático e realmente federativo fosse outra postura.

A provocação final aqui fica por conta de propor que a questão do desenvolvimento desigual seja vista a partir da ótica municipal e não regional, já que o desenvolvimento desigual pode afetar municípios indistintamente. É possível pensar o estabelecimento de parâmetros socioeconômico-ambientais, pelo menos, que qualifiquem uma dada localidade, independentemente de sua inserção regional, a receber ou não os benefícios da partição federativa.

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Autores

Rubens RicuperoDiretor da faculdade de economia da Faculdade Armando Álvares Penteado (Faap), é presidente honorário e fundador do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial. Foi embaixador nos Estados Unidos, ministro da Fazenda e secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) em Genebra.

Edgard Leite Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense e professor de História Con-temporânea da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj-Unirio).

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A política exterior pós-Lula1

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A conquista da estabilidade política e econômica após o fim do regime militar e da criação da Nova República, em 1985, criou as condições para que o Brasil atingisse o ponto mais alto de

seu prestígio internacional. Resultado de uma conjunção excepcio-nal de oportunidades externas e internas favoráveis, essa ascensão não se deve apenas a um ou outro governante, mas ao esforço cumu-lativo de sucessivos governos.

O presidente Lula potencializou e multiplicou essas condições propícias ao simbolizar de certo modo, pela sua história pessoal, o exemplo de ascensão do país como um todo. Sua identificação com as grandes causas sociais de luta contra a fome e a pobreza, o caris-ma de personalidade autoconfiante, a vocação inata à negociação foram elementos adicionais para reforçar a percepção externa da emergência do Brasil como ator global.

No entanto, Lula tornou-se vítima de seu próprio sucesso. A adu-lação generalizada que o cerca fez com que esquecesse a contribui-ção das condições objetivas do país e do mundo, alimentando o per-sonalismo excessivo. Os dirigentes atuais não souberam resistir à tentação de se atribuírem o crédito total pelos eventuais êxitos que tiveram. Buscaram fazer crer que era novo e sem precedentes tudo o que empreendiam. Lula e seus colaboradores jamais valorizaram, nos assuntos que apresentavam continuidade com o passado, a par-

1 Resumo, feito sob autorização do autor, de artigo originariamente saído no Braudel Papers n. 45, publicação do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, do qual o ex-ministro é fundador e presidente honorário.

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cela que herdaram de governos anteriores, preferindo apropriar-se de todo o mérito em nome do governo atual e de seu partido.

Apesar do sucesso internacional do presidente, sua política ex-terna está longe de comandar internamente o mesmo grau de apro-vação e consenso que até recentemente encontrava no exterior. Cresce a impressão de que a linha internacional se radicaliza, dei-xando-se contaminar por motivações ideológicas e partidárias. Nas questões cruciais de valores – os direitos humanos, a democracia, a não proliferação nuclear, o aquecimento global – o governo denota preferir ganhos de curto prazo, mostrando indiferença calculista diante das violações cometidas por regimes opressivos. Busca alian-ças duvidosas em detrimento de interesses universais. Os exemplos abundam: a condescendência em relação aos violadores de direitos humanos; os erros da mediação do acordo sobre o enriquecimento do urânio iraniano; a descrição das relações com um regime que condena mulheres ao apedrejamento como “parceria estratégica”; a comparação das acusações de fraude nas eleições iranianas a uma briga de torcidas no Fla-Flu; os elogios desmedidos ao personalis-mo autoritário de Chávez.

Tancredo Neves declarava num discurso de 1984 que “se há um ponto na política brasileira que encontrou consenso em todas as cor-rentes de pensamento, esse ponto é a política externa levada a efeito pelo Itamaraty”. Transcorridos 25 anos, a simples leitura dos jornais ou o acompanhamento dos debates no Congresso são suficientes para indicar que esse consenso deixou de existir, destruído por uma diplomacia de partido que impossibilita converter a diplomacia em causa autenticamente nacional.

A “diplomacia paralela” do Partido dos Trabalhadores junto a governos ou movimentos ideologicamente afins, exercida por meio de contactos fora dos canais diplomáticos e emissários como o as-sessor de política externa da Presidência da República, converteu-se em causa de inúmeras complicações. E os exemplos do problema são abundantes.

Após Lula, a política exterior precisa mudar para menos per-sonalismo, menos grandiosidade vazia, menos ideologia, e mais aten-ção aos interesses específicos do Brasil num mundo complexo. Na véspera da posse do novo governo no começo de 2011, é preciso dar atenção ao debate da orientação internacional que mais convém ao Brasil como um todo e não apenas a um projeto de poder pessoal ou de um partido.

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O contexto político e econômico internacionalEm termos políticos globais, assiste-se ao aparecimento de espa-

ço propício à afirmação de um novo policentrismo, isto é, à possibili-dade de que atores de poder intermediário (Brasil, Índia, África do Sul, Turquia) tomem iniciativas autônomas em temas globais antes reservados às potências preponderantes (os cinco membros perma-nentes do Conselho de Segurança da ONU: EUA, China, Rússia, Rei-no Unido, França). O policentrismo se viabiliza aos poucos. O conse-quente enfraquecimento relativo do poder e do prestígio americanos sofrerá o desgaste adicional da crise econômico-financeira, levando à aceitação pelo próprio governo Obama dessa alteração na realidade internacional.

No domínio econômico, o cenário aparece de início (2003-2008) marcado por fase sem precedentes de expansão da economia mun-dial (preços das commodities, liquidez financeira, juros baixos). A gi-gantesca crise financeira, que se seguiu, desorganizou e debilitou de preferência as economias ocidentais de capitalismo avançado, refor-çando assim os efeitos da emergência econômica da China e precipi-tando a aceitação do G-20 como instância substituta do G-7 na co-ordenação da economia global.

Na América Latina, caracteriza-se um vazio de liderança, pro-vocado pela acentuação do desvio da atenção dos EUA para outras regiões prioritárias do ponto de vista de segurança e pelo apagamen-to temporário do México e da Argentina. Ao mesmo tempo, aumen-tam em intensidade as divergências e a heterogeneidade de regimes em decorrência das experiências radicais de refundação do regime político na Venezuela de Chávez, na Bolívia de Morales e no Equador de Correa, complicando as perspectivas de efetiva integração econô-mica ou de colaboração político-estratégica.

As tendências de policentrismo e expansão econômica se reforça-ram uma à outra, abrindo possibilidades inéditas para atores inter-mediários favorecidos por condições de estabilidade político-econô-mica e dotados de capacidade de formulação e iniciativa diplomáticas como o Brasil no começo de 2003. Superados os solavancos econô-micos iniciais, graças ao equilíbrio com que restabeleceu a confiança abalada, o governo Lula foi o afortunado herdeiro de uma Nova Re-pública que havia consolidado a democracia de massas, a coesão social interna e a estabilidade econômica. O seu mérito foi o de saber aproveitar circunstâncias raras para viabilizar uma política exterior de ambiciosa projeção do país.

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Os eixos principais da diplomacia do presidente LulaInspirada pelo desejo de aproveitar as oportunidades surgidas,

sobretudo em âmbito global, a política externa do governo Lula se desdobrou desde o início ao longo de quatro eixos principais:

1. A obtenção do reconhecimento do Brasil como ator político glo-bal no sistema internacional policêntrico em formação, o que se vem traduzindo pela busca de posto permanente no Conselho de Segu-rança da ONU, mas pode assumir eventualmente outras modalida-des de realização como a participação nos recém-criados agrupa-mentos do G-20, BRICs e o Fórum IBAS (Índia, Brasil, África do Sul).

2. A consolidação de condições econômicas internacionais que favoreçam o desenvolvimento a partir das vantagens comparativas brasileiras concentradas na agricultura, objetivo que se expressa primordialmente na conclusão da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), mas que se estende também aos temas financeiros sob a égide do G-20.

3. A dimensão reforçada emprestada às relações Sul-Sul, enseja-da naturalmente pela forte e visível emergência da China, Índia, Áfri-ca do Sul, pela retomada do crescimento africano e expressa na pro-liferação de foros de contactos, alguns superpostos aos gerais (Ibas, Brics em parte), outros originais, como Afras (Cúpula África-América do Sul), Aspa (Cúpula América do Sul-Países Árabes), Brasil-Cari-com (Comunidade do Caribe) etc.

4. A edificação de espaço político-estratégico e econômico-comer-cial de composição exclusiva sul-americana (implicitamente de pre-ponderância brasileira no resultado, se não na intenção), a partir da expansão gradual do Mercosul.

O balanço provisório dos resultados alcançados pela diploma-cia mostra que, dependendo do tema, os avanços variam, não se tendo atingido plenamente os objetivos em nenhum dos casos, com a possível exceção do mais fácil, o Sul-Sul.

As grandes questõesNa ONU e na OMC, ainda que o Brasil faça tudo certo, sua capa-

cidade de influenciar os acontecimentos não é suficiente para resol-ver os impasses da maneira que desejamos. Por mais que nos esfor-cemos, não se logrou até agora produzir consenso para reformar o Conselho de Segurança, nem para concluir a Rodada Doha, quanto mais para fazê-lo de acordo com os interesses do Brasil. É inegável

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que, no caso do Conselho de Segurança, o Brasil conquistou uma situação diferenciada em relação a outros aspirantes latino-america-nos como o México e a Argentina, reflexo principalmente do próprio crescimento econômico e estabilidade brasileiras.

Esses avanços foram recentemente comprometidos pela súbita guinada da atitude brasileira em relação ao regime iraniano, objeto de várias sanções do Conselho de Segurança. A consistência da polí-tica que o Brasil vinha perseguindo sai arranhada da aproximação em nível presidencial com nação desafiadora das sanções, violadora da democracia e dos direitos humanos, negacionista do Holocausto, empenhada em adquirir armas atômicas, contrariando o Tratado de Não Proliferação Nuclear. As implicações negativas do gesto junto a parcelas importantes e influentes da opinião pública mundial segu-ramente pesarão no momento de eventual reformulação do Conselho de Segurança.

O futuro governo terá de aprender a escolher com critério cuida-doso as oportunidades de atuar, buscando medir sem ilusões o ba-lanço de custos e benefícios potenciais e esforçando-se, sempre que as circunstâncias o aconselharem, a agir de maneira cooperativa com outros atores, de modo discreto, sem excessos ou jactâncias geradoras de resistências e reações hostis. Aliás, o Brasil deve se impor pelos méritos de uma diplomacia que represente uma força de moderação e equilíbrio, de conciliação e aproximação de adversários, em consonância com a situação de um país como o nosso, que não é potência nuclear nem militar, não possui veleidades hegemônicas nem está comprometido com rivalidades em conflitos regionais.

Quanto aos novos grupos de coordenação diplomática, os es-forços de articular agrupamentos diplomáticos inéditos com a Rús-sia, a Índia e a China (Brics) ou com a Índia e a África do Sul (Ibas) oferecem a vantagem do fato consumado: pelo próprio peso específi-co, sem qualquer necessidade de delegação dos outros, o Brasil tor-nou-se efetivamente o representante da América Latina nesses gru-pos. Não por acaso, eles reúnem os membros permanentes do Conselho de Segurança (China e Rússia) e os aspirantes a essa po-sição que têm em comum a circunstância de não serem aliados dos Estados Unidos na Otan. Seria uma espécie de clube dos “candida-tos naturais” a um status internacional mais elevado em cada um dos três continentes: Índia (Ásia, a candidatura do Japão ficando por conta dos norte-americanos), África do Sul (África) e Brasil (América Latina).

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O desafio a superar no futuro consiste em contribuir para formu-lar uma plataforma de ação conjunta que signifique na prática um verdadeiro valor adicional desses grupos em relação ao que já vem sendo feito pelo G-20. Para isso seria necessário unificar o compor-tamento internacional de países com interesses tão heterogêneos como os dos dois grupos mencionados. Ambos são como o G-20 ex-pressão do mesmo fenômeno: a procura por instituições e mecanis-mos de coordenação e de governança global.

Para o Brasil o salto foi significativo por nos habilitar a aceder ao âmbito das grandes decisões financeiras e monetárias a que antes só comparecíamos como réus relapsos de moratórias e atrasos de paga-mento. Tratou-se também da ampliação da presença e da influência do país em uma área nova, complementar e decisiva em relação à esfera comercial na qual sempre estivemos atuantes.

O próximo governo terá de ajudar a assegurar a contínua relevân-cia do G-20 como foro central das decisões no momento em que as crises atuais, concentradas na Europa, cobram maior urgência. Isso significa que o Brasil se deve preparar a contribuir com competência intelectual e técnica à tarefa de edificar uma economia nova, menos sujeita a crises catastróficas periódicas e evitáveis. Para tanto, não bastará limitar-se a uma atitude de resistência à tendência das maio-res economias avançadas no sentido de reverterem os avanços de democratização do processo decisório uma vez se retorne à normali-dade. Será indispensável que, além da atitude vigilante, o governo ganhe efetiva capacidade propositiva no debate sobre a economia mundial e instituições de regulamentação e supervisão.

No tocante às negociações na OMC, houve diferenças inegáveis em relação ao governo anterior na ênfase dada pelo governo Lula ao Con-selho de Segurança, bem como nas oportunidades antes inexistentes sobre agrupamentos que surgiram agora como o G-20, os BRICs. En-tretanto, há muito mais continuidade do que mudança na linha segui-da pelos governos brasileiros nas negociações comerciais, primeiro no Gatt (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), mais tarde na sua su-cessora, a Organização Mundial de Comércio. Mesmo as eventuais alterações afiguram-se quase sempre desdobramentos naturais im-postos por novas fases da Rodada Doha, originando-se nos governos passados muitas das posições e alianças utilizadas na OMC.

O recurso à abertura de contenciosos exemplares como o dos subsídios ao algodão contra os Estados Unidos (posteriormente con-tra os subsídios da União Europeia ao açúcar) é uma boa ilustração da continuidade de política de Estado, pois havia sido iniciado pelo

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governo do presidente Fernando Henrique. É também raro exemplo de coordenação com órgãos competentes na substância como o Mi-nistério da Agricultura e entidades privadas dos produtores, cuja co-laboração, inclusive no financiamento da causa, se revelou decisiva.

Diante do persistente impasse nas negociações da Rodada Doha, o próximo governo não poderá deixar de conduzir um exame criterio-so da conveniência de remanejar as prioridades da diplomacia co-mercial do Brasil. Não se trata de desconhecer o valor insubstituível da OMC como o foro para avanços em temas sistêmicos como o dos subsídios agrícolas ou para a solução quase judicial de contenciosos. A indústria brasileira, que sofre de problemas crônicos de competiti-vidade, revela escasso entusiasmo pelos ganhos potenciais da Roda-da Doha, temendo que os benefícios da eventual redução nos picos tarifários em produtos sensíveis (têxteis, calçados, artigos de couro) sejam praticamente monopolizados pelos chineses e outros asiáticos. Receia ainda que, em decorrência de tal redução, terá o ônus adicio-nal da maior penetração asiática no mercado doméstico brasileiro.

No tocante aos problemas do comércio exterior brasileiro, temos que constatar, antes de tudo, que este vive aguda crise de competiti-vidade, manifestada no acelerado declínio do saldo na balança co-mercial e no alarmante agravamento do déficit em conta corrente. E que a gravidade da situação é acentuada pela tendência aparente-mente irreversível para a erosão das vantagens competitivas dos pro-dutos manufaturados e a crescente concentração das exportações em número sempre menor de commodities e artigos de baixo nível de elaboração derivados de recursos naturais.

Na raiz do problema existem sérios desequilíbrios macroeconômi-cos: crescimento puxado quase exclusivamente pelo consumo do go-verno e dos particulares, baixa poupança, investimento insuficiente e a inelutável contrapartida de todo esse quadro, que consiste no aumento da dependência em relação à poupança externa e aos influ-xos financeiros de fora. A taxa de câmbio representa papel funda-mental na deterioração das contas externas, não sendo possível co-gitar de solução duradoura para os problemas do comércio exterior em abstração da questão cambial.

Além do câmbio, outras deficiências estruturais afetam a capaci-dade brasileira de concorrer nos mercados mundiais com os asiáti-cos. O altíssimo custo do capital, a sufocante carga de tributos, a burocratização e baixa qualidade da regulamentação governamental, a péssima infraestrutura de transportes e portos, enfim, o conjunto dos fatores que formam o “custo Brasil”, responsável pelo alto custo

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de transação em nosso país. O futuro governo terá de encaminhar solução para os problemas que ora afetam negativamente a taxa cambial e os outros componentes da competitividade.

Problemas existem ainda no que tange ao futuro do Mercosul, como a criação de uma União Tarifária, formal ou informal (alinha-mento voluntário como na Asean), com flexibilidade para negocia-ções externas em separado, sem a sobrecarga burocrática das exi-gências para uma efetiva União Aduaneira. No mesmo plano, é preciso considerar que o Brasil não tem evidentemente condições de rivalizar, como mercado importador ou fonte de investimento com os EUA, uma vez que há décadas acumulamos com quase todos os sul-americanos saldos comerciais crescentes. Nem mesmo dentro do Mercosul o país conseguiu desempenhar o papel de mercado impul-sionador do crescimento do Uruguai e do Paraguai.

A contradição entre a busca incessante de resultados de prestígio nos agrupamentos como o G-20 e os Brics contrasta com o desempe-nho sensivelmente mais mitigado no eixo de direta influência brasi-leira, o imediato entorno da América Latina e do Sul. Não que te-nham faltado aqui exemplos do talento inesgotável de criar foros novos (o Conselho de Defesa) ou de rebatizar grupos pré-existentes (como a Comunidade de Nações Sul-Americanas ou Casa, transfigu-rada em Unasul).

Esse tipo de diplomacia (não só do Brasil) merece talvez o qualifi-cativo de “gestual” no sentido de que a ausência de condições objeti-vas ou de resultados palpáveis é menos importante do que o gesto em si mesmo. Nesse domínio, o futuro governo deveria preocupar-se me-nos em multiplicar estruturas novas do que em tornar efetivas e ope-racionais as estruturas ou processos já existentes, sobretudo quan-do estes se justificam por razões concretas e de permanente validade.

Questões polêmicasAs prioridades da próxima administração e a efetividade de sua

diplomacia deverão ser avaliadas pela capacidade que revele de en-caminhar solução para os seguintes problemas: a) a persistente in-capacidade de resolver os contínuos atritos e contenciosos com a Argentina em matéria comercial; b) a passividade e falta de iniciativa corretiva frente ao descrédito do Mercosul; c) a incompreensível re-núncia a acionar os meios pacíficos do direito internacional em defe-sa de direitos brasileiros atropelados em incidentes como o da viola-ção boliviana de tratados e contratos sobre o gás; d) a imprudente

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ingerência nas eleições bolivianas e paraguaias por motivo de simpa-tias ideológicas; e) a parcialidade na campanha contra o acordo mili-tar entre a Colômbia e os Estados Unidos, em contraste com a omis-são diante de iniciativas de compra pelos guerrilheiros da Farc de armamentos de Chávez ou de suas frequentes provocações ao gover-no colombiano; f) a falta de senso de medida e equilíbrio em relação ao golpe hondurenho, ao mesmo tempo em que se mantinha incoe-rente complacência frente a regime controvertido como o cubano, sem falar no iraniano.

Muitas dessas dificuldades nos foram impostas por uma adversa evolução na região, nestes últimos anos, em direção oposta à conver-gência de valores e modelos de organização político-econômicos re-gistrada na Europa e no mundo após o fim do comunismo. Na Amé-rica do Sul, ao contrário, a integração e até o bom convívio normal têm sido dificultados por processos radicalizados de refundação e lideranças polarizadoras de tensões e conflitos, internos e externos, quando se deveria abrir espaço a uma diplomacia alternativa mais sintonizada com os países que adotam posturas econômicas e políti-cas centristas mais próximas às nossas. Não por acaso, esses países são aqueles que, pelo tamanho ou desempenho econômico, oferece-riam oportunidades mais promissoras: México, Chile, Colômbia, Peru, Uruguai.

Por sua vez, o país continua a sofrer de persistente incapacidade de alcançar com os Estados Unidos relação madura e construtiva baseada, entre outros elementos, em crescentes vantagens mútuas no comércio e na complementação de cadeias produtivas e exporta-doras. A tensão oriunda da multiplicação de tais desencontros, em especial sobre o Irã, começa a encontrar expressão na imprensa e no Congresso dos EUA e só tem sido disfarçada na área oficial pelo re-conhecimento do papel moderador do Brasil num contexto sul-ame-ricano conturbado por personalidades mais abrasivas e provocado-ras que as dos nossos líderes.

Em muitas questões de conteúdo da diplomacia atual existem diferenças honestas de avaliação e julgamento que corroem o relativo consenso multipartidário prevalecente na véspera de fundação da Nova República. Além dessas divergências substantivas sobre a polí-tica externa propriamente dita, concorrem para a crise do consenso problemas da “política interna” da diplomacia, isto é, a maneira como ela é formulada e apresentada à opinião pública, a seus formadores, aos políticos e o modo como é percebida por esses últimos.

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Um dos piores aspectos da diplomacia de Lula é a invariável su-bordinação da promoção dos direitos humanos, do meio ambiente e da luta contra as armas de destruição maciça a uma estreita e egoís-ta consideração de interesses de curto prazo. São conhecidos alguns exemplos dessa insensibilidade, tais como a apologia da repressão do governo cubano contra dissidentes, a assimilação de greves de fome de desesperados prisioneiros de consciência a ações de criminosos comuns ou a relação com o regime iraniano que, dias antes da visita do presidente brasileiro, havia enforcado vários dos participantes das manifestações contra as fraudes eleitorais.

Tem sido muito menos divulgado, fora de círculos especializados, o comportamento no Conselho dos Direitos Humanos da ONU em Genebra da delegação do Brasil, que se vem notabilizando pela cum-plicidade com a sinistra aliança responsável pelo bloqueio das tenta-tivas de investigação ou pressão sobre violações maciças dos direitos mais elementares. Em direitos humanos, o Brasil se afasta de sua proclamada identificação com os valores latino-americanos. Con-trastando com a Argentina, o Chile, o México, que honram as melho-res tradições da América Latina, o governo brasileiro se tem alinhado na matéria aos mais notórios violadores como Cuba e Paquistão.

O governo brasileiro tem colaborado, por omissão absenteísta ou ação bloqueadora, na vergonhosa tarefa de obstruir o correto funcio-namento do Conselho. Ademais, vem concorrendo ativamente para proteger e favorecer os autores dos piores atentados aos valores hu-manos nos dias atuais, na Coreia do Norte, em Sri Lanka, no Congo, no Irã, no Sudão do genocídio de Darfur.

Ao preferir ganhos diplomáticos imediatistas aos valores univer-sais, o governo brasileiro se torna culpado de dupla contradição. De um lado, suscita dúvidas sobre a sinceridade das causas que afirma sustentar internamente como, por exemplo, ao decretar o controver-tido Plano Nacional de Direitos Humanos. Do outro, enfraquece e desmoraliza o próprio fundamento de seu recém-adquirido prestígio internacional, que deriva da conjunção de duas imagens, a do Brasil e a de Lula, ambas associadas a valores humanos como a paz, o com-bate à fome, à injustiça e à miséria.

O que habilitou o Brasil a se tornar credor de crescente prestígio internacional foi justamente a cultura de paz, o fato de não ser po-tência nuclear nem militar, de não se comportar como os demais. Naquilo que não é reflexo do tamanho e da economia, a irradiação brasileira é fruto do exemplo, da encarnação de valores morais. Por

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que então destruir essa reputação ao se confundir com os inimigos do reforço mundial dos direitos humanos?

Sem ser exaustivo, este inventário analítico das principais áreas de ação da diplomacia brasileira serviu para mostrar que o problema não resulta da inexistência de alternativas às políticas discutíveis que vêm sendo aplicadas. A consideração e eventual adoção das al-ternativas sugeridas estão sujeitas às condições internas, inclusive de natureza político-partidária, à qualidade e competência da lide-rança governamental e às circunstâncias do entorno internacional.

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Utopias iluministas e comunhões conservadoras

Edgard Leite

As transformações ocorridas no Ocidente – e no mundo – após as grandes revoluções do século XVIII são amplas e profun-das. Os pressupostos de realidade que as fundamentam, por

exemplo uma nova concepção de ser humano – que engendra uma nova ontologia, plural e objetiva –, não são fáceis de serem negados. Como há muito apontaram Lukács e Heller, o ser renascentista pre-figurava essa transformação fundamental do ser, que deu origem à contemporaneidade. Um ser que se legitima a partir do trabalho e da objetividade transformadora do mundo.

Não escapava aos pensadores iluministas do século XVIII a intui-ção de que a humanidade, isto é, como entenderemos a partir do século XIX, o homo sapiens, a espécie humana, deveria ser entendida em uma perspectiva quantitativa, concreta e real. Que a liberdade deixava de ser uma experiência espiritual e subjetiva e passava a ser material e objetiva, emergindo da propriedade do ser de seu próprio corpo. Que o direito de propriedade não emanava do Rei, ou de Deus, mas do efetivo exercício de pleno controle do corpo – que podia, ou não, ser expressão de um Deus, mas de um Deus que passava, a partir de Espinosa, a ser entendido como substância ou natureza. Cognoscível pela geometria, ou pela ciência quantificadora. A liber-dade, a propriedade do corpo e de tudo aquilo que o corpo produzia através do trabalho, isto é, ideias, falas, mercadorias, deveria ser garantida através da lei.

Os fundamentos das duas grandes revoluções, a americana e a francesa, estão solidamente repousadas nesse princípio. Emancipa-cionista, essencialmente. A existência de uma dimensão econômica fundamental nesse pensamento tornou-se claro para os pensadores de então. Adam Smith, por exemplo. E suas implicações maiores, históricas, foram depois expostas por Marx.

O mundo que emergiu então, e que continua emergindo, é muito complexo. É um mundo de emancipações. Emancipação do conheci-mento de formas arcaicas de controle e ignorância. Do ser individual

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de mecanismos de controle subjetivos e metafísicos. Dos diferentes setores sociais e étnicos outrora submetidos à hierarquia de classifi-cações subjetivas e qualitativas: judeus, ciganos, negros. Das amar-ras das milenares formas de divisão sexual do trabalho: emancipa-ção da mulher, emancipação dos homens de seus papéis tidos por naturais, emancipação das crianças de sua posição qualitativamente subordinada. Emancipação das inclinações afetivas e sexuais das condenações ignorantes sobre a complexa natureza do ser. Emanci-pação dos trabalhadores.

Todos esses movimentos são plurais e ocasionam e ocasionaram reações diversas no Ocidente. Geraram entusiasmos absolutos e reações violentas. Talvez por isso Walter Benjamim visse a moderni-dade como catástrofe. No entanto, em que pese todas as tentativas de barrar seu aprofundamento ou de limitar seu alcance, avançam de forma às vezes confusa, mas persistente ao longo dos últimos sé-culos. Todos os grandes movimentos no sentido de controlá-lo, ou de sufocá-lo, são derrotados. Em grande medida porque tais transfor-mações caminham junto com o conhecimento e propiciaram o perío-do de maior crescimento econômico da história, o maior crescimento demográfico proporcional de todos os tempos e a maior ampliação das expectativas de vida que se tem notícia.

As suas contradições, é claro, são imensas, pois o modelo con-centra capital em dimensões absurdas. O grau de extração de rique-zas do mundo natural também cresce em dimensões geométricas, colocando desafios para a preservação do meio no qual o homem vive. Mas sua solidez intelectual e existencial é imensa. De forma gradual submete aos poucos todas as sociedades, as destrói ou as força a adaptações.

Desde o século XVI civilizações milenares desapareceram ou se submeteram aos poucos aos seus movimentos. Depois da II Guerra Mundial, não há, de fato, qualquer país que não se veja inserido de uma forma ou de outra nos seus paradigmas políticos ou econômicos, e as declarações das revoluções de 1776 e 1789 foram adaptadas e transfiguradas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Carta das Nações Unidas, que todos reconheceram (voluntária ou for-çadamente) como padrões centrais morais e ideológicos da ordem in-ternacional. Mesmo que discordem de suas perspectivas. O líder líbio Muamar Kadaffi, por exemplo, rasgou a carta da ONU no seu discur-so à Assembleia Geral, em 2009. Mas o fez lá, e seu direito de fazê-lo foi garantido pela mesma carta. Além do mais, não consta que tenha saído da ONU ou recusado a beneficiar-se dos diversos mecanismos multilaterais que sob ela foram criados nas últimas décadas.

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Mundo

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As sociedades e as culturas que não compartilharam da realidade histórica que engendrou essas transformações foram, de fato, pegas de surpresa por elas. E tem todos os motivos para reagir. O projeto iluminista destrói as relações tradicionais entre setores sociais, entre gêneros e altera a natureza e funcionamento das famílias. E das eco-nomias. Os seus efeitos sobre ordens que tem milênios de continui-dade é portanto revolucionário.

Quando assistimos o lento colapso da Igreja Católica nos últimos séculos, por exemplo, ou a perplexidade crescente das lideranças religiosas diversas no Ocidente depois das revoluções, podemos per-ceber que formas qualitativas e metafísicas anteriores estão em per-manente crise. A emancipação do indivíduo, e a emergência do ser potente, explicam em parte isso. Novas e livres especulações e expe-riências espirituais também. Mas para os povos, culturas e civiliza-ções que não viveram essa realidade de transformação, o modelo ilu-minista nem sempre aparece como libertador, mas como força externa destruidora. Tanto predatória, do ponto de vista econômico, na medida em que esse sistema emerge no decorrer de um processo de expansão de poder, como também como aniquiladora do ponto de vista cultural. A natureza desse conflito compõe grande parte da his-tória dos últimos cinco séculos.

Nesse momento vivemos um dos inumeráveis desdobramentos dessa complexa expansão, com todas suas contradições. Parece cla-ro que cada vez menos povos tem condições de opor-se à marcha avassaladora desse processo. Os muçulmanos, tentam. Os latino-americanos, ainda esboçam alguma tentativa. Os chineses dão alguns passos, nada tímidos, na sua direção. Hindus o entendem perfeita-mente. Russos se adequam ao seu modelo geral, depois de tentar, por décadas, limitar suas implicações, ou reafirmar um aspecto do seu desenvolvimento, que é a emancipação do trabalho. E, talvez, nessa limitação, estivesse a fragilidade que afinal demostraram.

A transferência de riquezas que acompanha o desenvolvimento de tal processo fornece elementos concretos para reações. Mas nelas, como a história mostra, se misturam também reações conservado-ras. Às vezes determinantes. O problema, para certos grupos locais, não está na transferência de riquezas, mas sim na emancipação que esta eventualmente engendra. Assim, os ayatolás, no Irã, denunciam o capitalismo em nome de Deus, e não em nome das forças que even-tualmente são as beneficiadas pela emancipação e que talvez fossem prejudicadas pelo capital internacional. O caráter conservador das reações contra a modernização iluminista escapa às vezes aos mo-dernos intérpretes das teorias imperialistas, que não conseguem, ou

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não querem, avaliar o processo de expansão do Ocidente sobre o mundo em seu caráter multifacetado.

A defesa dos valores culturais alternativos, igualmente, esbarra na realidade de que os princípios que estruturam a saúde do ser no Ocidente, ou lançam os fundamentos da utopia iluminista, que é também a utopia socialista, estruturam-se sobre diferentes graus de satisfação objetiva, oriundo de avaliações quantitativas, que em to-das as esferas convidam à ruptura com formas arcaicas de entendi-mento do mundo. Inclusive com relações familiares limitadoras da livre expansão do ser. Não é o direito tradicional de colocar a burka que está em discussão, mas o conforto afetivo e material que advém da emancipação das mulheres e como isso alivia as tensões das rela-ções familiares como um todo. Evidentemente que isso tem um as-pecto econômico e que o mundo contemporâneo emancipou as mu-lheres e as tornou produtoras e consumidoras, mas isso também tem um aspecto libertador que acaba, no fim, por ser o intimamente de-terminante. Pois permite um olhar do ser absolutamente revolucio-nário sobre o mundo.

A facilidade com que certa esquerda latino-americana apoia o re-gime iraniano só pode refletir, sob esse ponto de vista, por exemplo, uma comunhão conservadora. Porque a defesa da emancipação do trabalho não pode estar descolada de outras tantas emancipações. E sabemos bem, pela experiência soviética, que isso é assim. E gravitar uma política em torno de um regime que sustenta as limitações qua-litativas hostis ao iluminismo e ao socialismo e que não aponta para a emancipação do trabalho, mas para a sua submissão qualitativa, só pode representar uma cumplicidade no mesmo grau. Pois o pró-prio Marx foi sensível, muitas vezes, à tese de que a Inglaterra cum-pria um papel modernizador, na Índia, especificamente.

Mas qual comunhão conservadora? Em primeiro lugar, resistên-cia à amplitude dos processos emancipadores. Resistência à tese de que os seres humanos devem universalmente se realizar. Que aquilo que são deve tornar-se acontecimento. Resistência à tese que a uto-pia iluminista, ou socialista, é a da realização plena da potência do ser. Isto não se traduz apenas na emancipação do trabalhador, mas na emancipação do ser humano em todas as suas dimensões. No controle político cada vez maior pelo indivíduo da realidade que o cerca. A hostilidade às forças econômicas centrais não é fundada no entendimento da complexidade de sua expansão, mas simplesmente naquilo em que ela ameaça uma visão de mundo qualitativa, limita-dora e arcaica. A forma como a esquerda latino-americano se agrupa em torno do caudilhismo, do messianismo e de formas antigas de

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hierarquia salvífica social, a iguala à resistência fundamentalista muçulmana. Essa é uma das bases dessa estranha aliança.

A proposta de ambas as forças não é modernizadora. Mas clara-mente arcaizante. Não contemplam propostas objetivas de amplia-ção da produção e de melhoria da qualidade do trabalho ou de co-nhecimento e consolidação desse conhecimento através do sistema educacional. Mas apenas estabelecem uma situação de beligerância irracional que não tem condições de vitória, diga-se de passagem. Pois falta a essa comunhão conservadora a força criadora do projeto iluminista, e sua proposta é o estreitamento da vontade individual dos povos e sua submissão a grupos que, em nome de Deus, ou de nações, justificam regimes retrógrados e totalitários.

Pequenos acidentes de percurso na marcha dos pensamentos libertadores, essas pequenas comunhões conservadoras podem, no entanto, ser prejudiciais à humanidade e aos seus povos, na gravi-dade do desespero arcaizante que podem vir a demonstrar. O que não seria demais, aos olhos de Benjamim, que entendia a catástro-fe como natural da modernidade. E, podemos acrescentar, como dinâmica intimamente entremeada no avanço das emancipações. Lutar para que a humanidade caminhe na direção da utopia, desta utopia emancipadora, implica, provavelmente, na reflexão perma-nente sobre a complexidade dos processos históricos e sobre a arte de optar politicamente. E na denúncia, assim parece, daqueles que contra ela conspiram.

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VII. Vida Cultural

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Autores

A. P. Quartim de MoraesJornalista, é editor associado da Global Editora. <[email protected]>

Vladimir CarvalhoCineasta, professor, pesquisador e artista plástico. Autor de documentários como O País de São Saruê, Conterrâneos Velhos de Guerra e O Engenho de Zé Lins. Publicou o livro Cinema Candango, além dos roteiros de alguns de seus filmes. Criou e mantém em Bra-sília a Fundação Cinememória. Foi o primeiro presidente da Fundação Astrojildo Pereira (2001-2006).

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No reino dos best-sellers1

A. P. Quartim de Moraes

As listas de livros de ficção mais vendidos no Brasil revelam claramente que a indústria editorial brasileira, no segmen-to sintomaticamente denominado trade (livros de interesse

geral comercializados no varejo), está totalmente atrelada à nor-te-americana. Muito especialmente na ficção, o livro que não pas-sa, primeiro, pelos best-sellers do jornal The New York Times tem escassas possibilidades de entusiasmar as nossas casas publica-doras. Esse desinteresse – fenômeno de natureza originariamente comercial, fruto também da globalização da economia – condena ao estiolamento a literatura brasileira. Não tem como evoluir uma literatura que não é publicada.

No ranking semanal de ficção divulgado no suplemento Sabático deste jornal em 28 de agosto, dos oito autores dos dez, digamos, ro-mances mais procurados nas livrarias, cinco são americanos (Rick Riordan e Nicholas Sparks, com dois títulos cada, e ainda P. C. Cast, Dan Brown e Lauren Kate). Os outros três são a chilena Isabel Allende e o canadense William P. young, não por coincidência, ambos radica-dos nos Estados Unidos, e, last but not least, um brasileiro, o novato Eduardo Spohr, autor de A Batalha do Apocalipse: da Queda dos Anjos ao Crepúsculo do Mundo. A lista da revista semanal Veja é semelhante, à exceção da substituição de Lauren Kate por Paulo Coelho. Questão de critério, já que, na relação do Sabático, o Aleph figura entre as obras não ficcionais. Mas também não faz a menor diferença...

1 Publicado originariamente no jornal O Estado de S.Paulo, edição do dia 04/09/2010, e aqui reproduzido por fraterna concordância do seu autor.

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Vida Cultural

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Para publicar um best-seller da lista do New York Times uma edi-tora brasileira precisa investir pesado. Os direitos de publicação des-sas obras são geralmente adquiridos em leilões cujos lances costu-mam superar os US$ 100 mil. E ainda há o custo da tradução, mais o da impressão de uma tiragem inicial de, no mínimo, 15 mil ou 20 mil exemplares necessários para atingir o ponto de equilíbrio. Soma-se a isso o dinheiro gasto na divulgação midiática e comercial. Quan-do dá certo, é uma beleza! Mas a experiência de prejuízos acumula-dos com advances não recuperados demonstra dramaticamente que o oráculo supremo das nossas casas publicadoras – as listas do New York Times ou da Amazon – está longe de garantir sucesso de vendas no Brasil.

O negócio do livro nunca foi, em época alguma, em nenhuma par-te, campeão de lucros. Mas sempre cumpriu de alguma maneira sua função civilizadora. No entanto, desde que meia dúzia de grandes corporações multinacionais passou a dominar, nos últimos 30 anos, o negócio da comunicação no planeta, absorvendo nos conglomera-dos as mais importantes editoras europeias e norte-americanas, os conteúdos literários passaram a ser nivelados por baixo, partindo do princípio tolo de que para aumentar o número de consumidores de livros é necessário publicar obras “ao alcance” da maioria.

Bem, esse é o mundo em que vivemos, e ninguém está querendo defender a elitização dos conteúdos literários, a produção exclusiva de biscoito fino para um público selecionado. Cada vez mais, aqui e em todo o mundo, essa é uma tarefa que tem recaído sobre os om-bros das pequenas editoras independentes, das casas publicadoras universitárias, daquelas mantidas por instituições públicas ou priva-das sem fins lucrativos.

Mas, quando nos deparamos com a presença dominante e quase exclusiva de autores estrangeiros nas listas de romances mais vendi-dos no país, somos levados a uma de duas conclusões: o nosso big business editorial está negligenciando os autores nacionais ou estes estão desaparecendo/trabalhando mal. Pode-se descartar a segunda hipótese sem medo de errar. Qualquer editor conhece muito bem a enorme quantidade, e a qualidade que daí se pode extrair, de origi-nais oferecidos por miríades de autores inéditos e também, em nú-mero igualmente surpreendente, por excelentes escritores que en-contram as portas fechadas para seus novos livros apenas porque ainda não conseguiram produzir um best-seller.

Há editores e livreiros que alegam, como que se desculpando, que “o nosso leitor realmente não gosta de histórias brasileiras”. Não fica

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No reino dos best-sellers

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muito claro, mas esse argumento parece significar que o consumidor de livros no Brasil constitui uma elite intelectual que, como tal, tem um gosto apurado demais para o “produto nacional”. Daí a tendência natural de oferecer ao distinto público o “produto importado”. Muito chique. Mas alguém explique, por favor: a ficção que frequenta as listas do New York Times é, no geral, de feitio a agradar a alguém de “gosto apurado”? É melhor admitir logo que o que importa mesmo é a grana.

A verdade é que literatura brasileira vende pouco porque as gran-des editoras, que ditam os rumos do mercado, não estão dispostas hoje, salvo as honrosas as exceções de praxe – e, mesmo assim, va-mos com calma! –, a botar dinheiro nela. Ninguém parece atentar para o fato de que conteúdos genuinamente brasileiros vendem, e muito bem, no mundo inteiro, quando se trata de teledramaturgia, porque as nossas emissoras de televisão há cinquenta anos inves-tem pesado nas novelas e acabaram criando um padrão internacio-nal de excelência.

No mundo do livro, também se investe muito, em caríssimos títu-los estrangeiros – grande parte, apenas lixo – que chegam comercial-mente credenciados apenas por altos índices de vendas lá fora. En-tão, se o segredo é o dinheiro, por que não botá-lo com a mesma generosidade na criação literária brasileira? E apoiar a produção li-terária nacional não significa apenas editar eventualmente uma obra com tiragem de 2 mil exemplares e abandoná-la à própria sorte.

Os publishers brasileiros precisam olhar para o futuro e pensar tam-bém na responsabilidade social e cultural que o seu negócio implica.

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Uma missionária da pesquisa

Vladimir Carvalho

Brasília é a capital da República, referência mundial pelo seu moderno traçado urbano e genial arquitetura, tombada como patrimônio cultural da humanidade, e goza da fama de ter

completado a chamada Marcha para o Oeste, que nesses quase cin-quenta anos de existência ensejou significativas transformações no país com a sua presença no seu centro geográfico. Entretanto, no âmbito das artes e da cultura, a despeito de seu desenvolvimento socioeconômico, com uma população que já ultrapassou a casa dos dois milhões e meio de habitantes, a cidade ainda padece de lacunas que já deviam há muito ter sido superadas.

Duas delas – para dar exemplo – saltam aos olhos dos especialis-tas e dos seus habitantes: até hoje Brasília não tem a sua cinemate-ca, como acontece no Rio de Janeiro e em São Paulo, a despeito de ter sido aqui que surgiu o primeiro curso regular de cinema, funcio-nando na UnB nos meados de 1960, sob a inspiração e direção do eminente e saudoso Paulo Emílio Salles Gomes. Como também não dispõe, a essa altura “do campeonato”, do seu museu de arte com projeto que de fato supra a demanda represada e que ficou só na saudade, desde quando o clarividente e operoso Mário Pedrosa pro-pôs a criação de um original Museu da Civilização Brasileira, em tudo adequado ao seu perfil, ainda na época de sua inauguração.

Mesmo assim, no caso do cinema – e isso é o que nos interessa aqui – a cidade mantém com ele uma profunda ligação. Primeiro por-que desde a sua construção Brasília foi registrada pelo cinema já a partir do dia em que foi lançada a sua pedra fundamental, cercada de enorme pelotão de cinegrafistas, sendo que Juscelino Kubitscheck manteve de plantão aqui uma equipe de filmagem encarregada de acompanhar passo a passo todo o evoluir da obra. Inaugurada Bra-sília, veio a sua universidade e com ela uma intensa cogitação da arte cinematográfica em torno das figuras de seus primeiros profes-sores, o já citado Paulo Emílio, Nelson Pereira dos Santos, Jean-Claude Bernardet, entre outros que deram vida não só às tarefas didáticas como à própria prática do cinema, dando início a um ciclo de produção que, intermitente ou não, chegou aos nossos dias.

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Uma missionária da pesquisa

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Hoje, com seu festival de cinema consolidado e intrinsecamente ligado ao desenvolvimento da produção brasileira, de que se tornou a principal vitrine, com seu Polo de Cinema e suas atuantes associa-ções de classe, e um movimentado e rendoso circuito exibidor, Bra-sília gerou, nessa área, um alentado volume de registros de toda sorte, esparsos e sem sistemática catalogação, que poderia ter outro destino não fosse a indiferença dos setores que por definição têm a obrigação de preservá-lo.

É nesse contexto que surge quase como uma ave solitária a abne-gada figura de Berê Bahia. Essa pesquisadora, cujo nome de pia é Berenice Rosalina da Silva, não teve como não adotar o carinhoso apelido que ganhou dos amigos e da sua origem baiana. Ele está pos-suído da mesma carga sinérgica que emana “da boa terra”, e Berê justifica plenamente a benção telúrica que recebeu do seu chão nati-vo: é a um só tempo delicada, tenaz e resistente como uma flor de cactus do seu sertão de Jacobina, onde nasceu. Ali sonhava com um mundo que só iria conhecer muito depois; frequentava assiduamente as sessões do cinema local e lia as colunas especializadas das revis-tas O Cruzeiro e Manchete, fazendo já seu álbum de recortes.

Quando deu conta de si, véspera dos exames vestibulares, em ja-neiro de 1972, tinha arribado para Brasília, disposta como muitos dos seus a iniciar vida nova aqui. Já picada pelo vírus do cinema, trazia na bagagem uma admiração quase fanática pelo cinema de seu con-terrâneo Glauber Rocha, sobretudo por causa das repetidas sessões de Deus e Diabo na Terra do Sol, que até hoje enfileira ao lado de Viri-diana, de Luis Buñuel, e dos filmes de Fellini, paixões para toda a vida. Cursando Direito (havia de ter um ofício!) na Universidade do Distrito Federal, UDF, depois de largar as aulas de Pedagogia na UnB, Berê sobreviveu como professora primária e como revisora, entre ou-tros bicos. Na faculdade, sempre antenada pelo cinema, ligou-se rápi-do aos grupos de estudantes que faziam oposição subterrânea ao regi-me militar. Guarda dessa fase a sua câmera super-8 e a lembrança de um curta inacabado. As ideias fervilhavam em sua cabeça e queria concretizá-las com a câmera que tinha à mão como qualquer jovem que se mirava em Glauber Rocha e sua divisa visionária.

As naturais dificuldades em produzir, entretanto, foram adiando para sempre o projeto de se tornar uma realizadora cinematográfica. Em seu lugar foi se insinuando e se instalando outro perfil mais con-forme com as suas condições, o de cineclubista e de militante na política estudantil. Já a essa época enfrentava também o problema de saúde que a acometera desde os sete anos de idade e que se refle-te até hoje na dificuldade de locomoção. Mesmo assim, valente como

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Vida Cultural

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os de sua raça sertaneja, jamais enjeitou parada. Fundou com os colegas de turma o CineClube 3X4, na UDF, o primeiro de uma série que se espalhou por Brasília, sempre com sua assistência e partici-pação. Um dia, melhor uma noite, no 3X4 o tempo fechou: a progra-mação foi interrompida, a repressão baixou pesada numa sessão em que se exibia O Caso dos Irmãos Naves, de Luís Sérgio Person; a luz do auditório foi cortada e a custo a cópia do filme foi salva e remetida de volta à distribuidora. O regime pesava sobre todos e ainda mais sobre aqueles que ousavam enfrentá-lo. Mas Berê e sua turma não se deixavam abater, e os prélios com a ditadura tinham sequência.

De uma outra feita, por ocasião do primeiro ano da morte de Bob Marley, o CineClube Gavião e a comunidade do Cruzeiro, de forte presença cultural em Brasília, resolveram prestar-lhe uma homena-gem póstuma com um show e a exibição de filmes focalizando a figu-ra do músico, com a colaboração da embaixada da África do Sul. Os cineclubistas, ao comando de Berê, bloquearam parte do trânsito na praça central do bairro. A polícia não se fez esperar, e foi um deus nos acuda. Na confusão, Berê ainda conseguiu lançar mão das bobi-nas indo literalmente se homiziar na vizinhança, enquanto outra parte dos cinéfilos foi dormir no xilindró. Na sua história também não faltaram os percalços e as tensões de um congresso pela recons-trução da UNE, realizado a duras penas em Piracicaba, São Paulo.

Mas o tempo foi passando e as relações com o cinema e a militân-cia foram se tomando menos turbulentas. Berê acumulava experiên-cia e cada vez mais se aproximava de sua vocação natural para a pesquisa. Sempre fora uma colecionadora inveterada, guardando tudo quanto era recorte de cinema, em especial no que se referia a Glauber Rocha, de quem mantém um alentado arquivo que não para de crescer. Depois o estudo, as mostras, a convivência com os basti-dores do Festival de Brasília, as oficinas com especialistas, a leitura apaixonada dos textos de Paulo Emilio, as tarefas que aos poucos foram lhe sendo confiadas, completaram o quadro do seu engaja-mento definitivo na área da pesquisa. Um dos momentos definidores dessa sua opção, ainda que inconsciente, foi o encontro e a amizade com Maria do Rosário Caetano, na fase em que esta ensaiava seus primeiros passos na imprensa, com ela fundando o chamado Movi-mento Candango de Dinamização Cultural (Cuca), de existência um tanto meteórica, mas que marcou sobretudo o público jovem sempre interessado no cinema e na música.

Daí por diante, Berê vai entendendo o sentido missioneiro de sua vida em relação ao cinema. O seu amor pela atividade da pesquisa se toma uma espécie de compensação para aquela menina que se fez

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Uma missionária da pesquisa

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introspectiva, privada muitas vezes, por conta de sua saúde precá-ria, dos folguedos com as outras crianças, e poupada em casa de tarefas mais exigentes. Sua vida passou a se confundir com sua ati-vidade, que ela mesma, numa entrevista, classificou jocosa e modes-tamente de “catadora de papel”. Hoje em dia, se tivesse vingado a ideia sempre recorrente da criação de uma cinemateca em Brasília, certamente esse anjo bom da cultura não seria dispensada de dirigir um dos setores de documentação e pesquisa da entidade. Enquanto a cinemateca não vem, Berê segue em frente realizando a sua cruza-da pela coleta de dados preciosos para a história do cinema em Bra-sília, pela conservação de sua memória, sem jamais perder o alto sentido de sua militância cultural, transformando-se mesmo na mais confiável fonte de informação sobre a existência de filmes, localiza-ção de datas, nomes e eventos. É simplesmente espantosa a sua ca-pacidade de empreender e levar a cabo tarefas que resultam sempre na preservação da memória do cinema, seja o de Brasília como o de outros centros produtores mais importantes, porque a sua especiali-dade e a sua dedicação vão todas para o cinema brasileiro, sem nun-ca dispensar de ser espectadora das mais assíduas do cinema es-trangeiro de expressão universal.

Essa lavra benfazeja vem desde os anos de 1980, quando dá iní-cio a um trabalho paralelo como programadora junto ao circuito al-ternativo, municiando órgãos públicos e privados, escolas, universi-dades, cineclubes, associações e sindicatos. Em meio às tarefas que vai acumulando – e cedendo mais uma vez ao viés da militância – ainda encontra tempo para assumir a vice-presidência da ABD-DF, ajudando os realizadores locais a organizarem a entidade. Incansá-vel, atende apelo do seu velho amigo Guido Araújo e vai para Salva-dor dar uma mão na preparação da Jornada Internacional de Cine-ma. No mesmo passo, é conselheira e jurada em várias edições do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e de outros tantos, como os do Sesc, da Eletronorte e de Fortaleza. Nomeada pelo ministro Aluí-sio Pimenta, integra a comissão encarregada de detectar as causas do fechamento das salas de cinema em Brasília. Igualmente, integra a comissão organizadora da 2ª Jornada Nacional de Cineclubes. É jurada de cinema e vídeo no 2° e 3° Prêmio Luís Estevão de Cultura, que contempla a atividade artística da capital. Preocupada com a sorte e o estado precário em que se encontra o que foi o melhor ci-nema da cidade, funda com um grupo de cinéfilos a SACI – Socieda-de de Amigos do Cinema Brasília, produzindo exaustivo dossiê da situação da sala em seu amplo conjunto arquitetônico, obra de Os-car Niemeyer.

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Vida Cultural

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Seu trabalho de formiguinha é notado pelos mais sensíveis e fi-nalmente surge uma oportunidade de contar com os meios e condi-ções para realizar parte do seu sonho. É convocada pelo Ministério da Cultura e vai coordenar como pesquisadora as atividades da fil-moteca da Fundação do Cinema Brasileiro, em Brasília, que tem sob seu controle a preservação e circulação de significativo acervo de fil-mes. Cria ali a seção Vá e Veja, que logo disponibiliza para consulta do público vasto material como livros, jornais, revistas, cadernos de pesquisa e de crítica, cinejornais e guias de filmes, contabilizando-se perto de oito mil sinopses e fichas técnicas de filmes nacionais e es-trangeiros. A sua sala no térreo do Minc transforma-se em referência na Esplanada dos Ministérios, verdadeiro caminho de formigas dos cinéfilos e pesquisadores de todos os níveis, ávidos por informação e contato com o cinema. Formam-se filas para o atendimento, tal é a demanda. Sobretudo depois que se implanta a Sala Paulo Emílio, resultante de convênio entre a Embrafilme, o governo do Distrito Fe-deral e o Minc, que passa a oferecer movimentadas exibições e deba-tes de filmes com a presença de diretores do Rio, de São Paulo e de toda parte. Infelizmente, a insensibilidade e a incúria de administra-ções desastrosas inviabilizaram a iniciativa que tinha tudo para ser a semeadura de um processo irreversível para a criação de uma cine-mateca em Brasília. Quando Berê, por sua vez, teve de afastar-se por motivos de saúde, já não havia nada a fazer ali.

Mas a pérola de sua persistente atuação no meio cinematográfico estava por vir. Mesmo se deslocando com esforço, trabalha intensa-mente para a Secretaria de Cultura do DF em cima de projeto que já tinha em mente, desde meados dos anos 90, garimpando nos arquivos da antiga Fundação Cultural, revirando pastas, documentos e acervos fotográficos, costurando datas e dando sentido aos números e relató-rios, para produzir o que seria a obra de referência fundamental para a história do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Para isso asso-cia-se ao jornalista Celso Araújo, trabalhando a quatro mãos, numa parceria das mais felizes. A obra 30 Anos de Cinema e Festival – A His-tória do FBCB, 1965-1997, um vistoso volume de quase 500 páginas, tem caráter exaustivo, recuperando em todos os seus aspectos a me-mória do festival com um sem número de dados e informações crite-riosamente pesquisados e “tabulados” que vão desde a história da criação do certame até o mais mínimo detalhe de fichas técnicas, da-tas, sinopses, de todos os filmes apresentados, com o natural desta-que para os premiados, bem como relação das mostras paralelas, composição de júris, perfis dos autores etc. Escrito no melhor estilo jornalístico, leve e claro, o texto é absolutamente fiel aos acontecimen-tos, oferecendo uma contextualização impecável com uma linha do

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Uma missionária da pesquisa

Vladimir Carvalho

tempo que gera um clima para toda a trajetória do evento. Dando lu-gar a um paralelo com o que se passava no país, notadamente no que diz respeito às crises políticas, à censura e aos movimentos sociais, se rebatendo e afetando a vida cultural. Por tudo isso se transformou em fonte permanente de consulta quando o assunto é o Festival e suas circunstâncias. Enfim, uma verdadeira “bíblia”.

Depois dessa empreitada e da coordenação e produção do catálo-go realizado para a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) intitulado O Olhar da Igreja, com o histórico dos concorrentes e lau-reados do prêmio anual da entidade, a nossa pesquisadora mal teve tempo de respirar e já estava às voltas com a elaboração de um livro que lhe é muito caro, e para o qual contou com o apoio da editora da Universidade de Brasília. Veio à luz, em 2003, Luz, Câmera, Mesa e Ação: O Cinema Brasileiro na Cozinha, um precioso “álbum” de gas-tronomia em que astuciosamente mistura da forma mais criativa os seus dotes culinários com saborosos textos e títulos de notáveis fil-mes do cinema brasileiro, resultando em deliciosa e insopitável leitu-ra, tanto para os interessados na boa cozinha como para os amantes do cinema. De quebra, e tecendo o tempo com mãos de fada, con-cluiu extenso levantamento e publica a árvore genealógica de sua família. A dimensão desses feitos se torna ainda mais incrível se con-siderarmos as condições enfrentadas por sua autora, a começar pe-las suas condições físicas. Quem não conhecer pessoalmente Berê Bahia ou quem nunca a tenha visto nas suas aparições na mídia não adivinhará naquela mulher morena e ainda jovem, de baixa estatura e riso simpático e solidário, que percorre arrimada à sua bengala os corredores da burocracia de Brasília, a força e o carisma que a con-duz. Não imagina que naquele corpo frágil e claudicante existam la-tentes tanta energia e possibilidades de ação. Com um prontuário de treze cirurgias realizadas para continuar se locomovendo, mesmo com dificuldade, Berê é uma espécie de Frida Kahlo, a sofrida mas extraordinária pintora mexicana, notória também pelas batalhas que travou contra a doença. Elas pertencem à mesma linhagem de cria-turas capazes de ir ao último ponto na resistência e superação de suas restrições físicas.

E Berenice Rosalina da Silva está muito longe de entregar-se a uma forçada aposentadoria: nos últimos meses trabalhou diuturna-mente e tem pronto, recém-saindo do fomo de sua inquietação, um ciclópico projeto. São cerca de 300 filmes localizados e minuciosa-mente fichados, inclusive com os respectivos endereços onde podem ser encontrados, e que constituem um soberbo panorama de obras que se ocupam direta ou indiretamente de Brasília, seu surgimento

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Vida Cultural

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e sua influência, e que pretende exibir em grande gala durante as comemorações dos 50 anos de existência da capital brasileira, a se realizarem em 2010. É a chamada mostra “de arromba”, só faltando o apoio e o aval dos poderes públicos e privados para se materializar. Berê está partindo com certa antecedência para a luta, no ritmo co-nhecido e aparentemente lento do seu passo tardo, mas na verdade numa cadência só sua e que de longe supera, como sempre superou, a pasmaceira e a má vontade da burocracia. Ela mais uma vez have-rá de subverter a ordem “natural” das coisas e chegará a tempo, porque “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

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VIII. Ensaio

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Autores

Ricardo Luiz AlvesLicenciado em História pela PUC/RJ, bacharel em Direito pelo Centro Integrado de Ensino Superior do Amazonas (Ciesa), servidor da Justiça do Trabalho em Manaus (AM).

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Montesquieu e a Teoria da Tripartição dos Poderes

Ricardo Luiz Alves

Desde a Antiguidade Clássica, sobretudo a partir das obras do genial Platão e do seu discípulo não menos genial, Aristóte-les, é reconhecido que o Estado, independentemente do seu

regime, exerce três funções essenciais: a legislativa, a judiciária e a executiva.1

Nos dias atuais a Ciência do Direito e a Ciência Política reconhe-cem que um dos pressupostos do Estado Democrático de Direito é a existência de três poderes independentes e harmônicos, quais sejam: o Poder Legislativo, o Poder Judiciário e o Poder Executivo.

O presente trabalho funda-se em duas hipóteses distintas, mas conexas, a saber: 1) a Teoria da Tripartição dos Poderes Estatais já havia sido formulada por pensadores anteriores à Montesquieu, muito embora tenha sido ele – Montesquieu – que a tenha explicitado de for-ma coerente e sistemática pela primeira vez; 2) a teoria em foco, nos

1 O historiador inglês M. I. Finley, um dos maiores especialistas em Grécia Clássica do século XX d.C., preleciona que “a teoria política dos gregos era, basicamente, a reflexão a propósito da natureza da polis, dirigida como empreendimento intelectual autoconsciente, diverso – e em nível mais geral – do debate sobre matérias políticas específicas. A teoria política, era, portanto, uma atividade secundária, a respeito do nível em que era tratado seu assunto.” (FINLEy, M. I. O Legado da Grécia: Uma Nova Avaliação, p. 49. Grifo no original)

Neste contexto, podemos atribuir aos gregos antigos, sem a menor sombra de dúvi-da, a elaboração dos fundamentos epistemológicos e éticos do pensamento político ocidental até hoje vigente, indicando os caminhos a serem trilhados no decorrer dos séculos subsequentes por todos os pensadores políticos e reformadores sociais.

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moldes em que foi explicitada por Montesquieu, não se destinava à construção de um regime democrático alicerçado no controle mútuo dos poderes do Estado através de pesos e contrapesos recíprocos, mas tão somente destinava-se, por um lado, à conferir legitimidade política e jurídica à um regime monárquico de caráter constitucional e, por outro lado, conferir uma racionalidade funcional e política à burocra-cia estatal da Monarquia da França da época de Montesquieu, buro-cracia que estava nas mãos da assim denominada “nobreza togada” da qual Montesquieu foi membro e um defensor ardoroso.

A obra de Charles-Louis de Secondant, barão de Montesquieu e senhor de La Brède, como de qualquer outro pensador ou cientista do passado ou do presente, não surgiu e se desenvolveu ex nihil.

A produção intelectual do pensador em tela, como não poderia dei-xar de ser, se encontra vinculada às condições intelectuais e materiais da sua época, se constituindo numa reflexão acerca das múltiplas in-terações entre o Estado nacional laico e a sociedade de sua época, reconhecendo no Estado, consoante a feliz expressão do professor F. Châtelet, o princípio soberano e unificador da dita sociedade.

Conforme a concepção acima esboçada, não se pode deixar de con-cluir que Montesquieu é, ainda nos dias de hoje, um pensador atual.

Nas sábias palavras do professor Raymond Aron:

(...) num nível mais elevado, os historiadores das ideias situam Mon-tesquieu ora entre os homens de letras, ora entre os teóricos da po-lítica; às vezes como historiador do direito, outras vezes entre os ideólogos que, no século XVIII d.C., discutiam os fundamentos das instituições francesas, e até mesmo entre os economistas. A verdade é que Montesquieu foi ao mesmo tempo um escritor, um jurista, um filósofo da política e quase um romancista.2

Na verdade, é impossível classificar de maneira satisfatória a obra de Montesquieu, haja vista o caráter multidisciplinar do pensamento do pensador francês. Neste sentido, procuraremos desenvolver o pre-sente trabalho, conforme as hipóteses de trabalho já explicitadas no subtópico supra, tendo por base os ditames metodológicos fundantes da Ciência Política e da História Política.

2 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico, p. 21.

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Um breve painel histórico

A vida de Montesquieu transcorreu entre meados do século XVII d.C. e a primeira metade do século XVIII d.C., período que abrange o apogeu do Ancient Regimé na França.

A noção de monarquia clássica comanda o devir político dos países franceses entre 1450 e 1789: ela corresponde a um Antigo Regime muito “alongado” que se escoa, e depois se esborra, em paz ou furor, desde o fim das Guerras dos Cem Anos até o declínio do reinado de Luís XVI.3

A formulação do ideário do Regime Absolutista e, em especial da Monarquia Absolutista, nasceu concomitantemente ao próprio surgi-mento do Estado Nacional Moderno, a partir do século XV d.C.

De fato:

(...) a explicação clássica do Absolutismo veio da França, onde, duran-te séculos, tendências centralizadoras se tinham revelado, tais como a luta dos publicistas contra o papa. (...) A política de Estado devia ser separada da religião, a teologia, de qualquer doutrina. Uma política secularizada... era única sob cujo signo se podia unificar a nação. (...) O último vínculo entre a doutrina política e a teologia foi o conceito da Graça divina. (...) O teórico da monarquia francesa não confessional foi Jean Bodin.

(...) Para Bodin, o poder do Estado, e portanto do Soberano, identifica-se com o poder absoluto: não pode imaginar outro, pelo menos em teoria.4

De fato, em termos históricos, o Absolutismo Político se encontra vinculado à implantação de um Estado centralizado politicamente com a consequente implantação de uma “racionalização” burocrática do aparelho administrativo dos Estados nacionais europeus surgidos a partir do século XIV d.C. Tais Estados nacionais possuem como forma política de governo a Monarquia, usualmente conhecida como Monarquia Absolutista.

Ressalte-se, todavia, como bem colocado pelo professor E. Le Roy Ladurie, “fora da Corte e da sede governamental, a monarquia clás-sica se distingue por um sistema de administração que é apenas em parte, por vezes fracamente, centralizado.”5

Ante o exposto, e na esteira do magistério do professor Perry An-derson, a expressão “absolutista” era um qualificativo impróprio para

3 LADURIE, Emmanuel Le Roy. O Estado monárquico, p. 9.4 THEIMER, Walter. História das Ideias Políticas, p. 101-104.5 LADURIE, Emmanuel Le Roy. O Estado monárquico, França: 1460-1610, p. 15.

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as Monarquias existentes nos Estados pacionais da Época Moderna, eis que:

(...) nenhuma monarquia ocidental gozara jamais de poder absoluto sobre seus súditos, no sentido de um despotismo sem entraves. Todas elas eram limitadas, mesmo no máximo de suas prerrogativas, pelo complexo de concepções denominado direito ‘divino’ ou ‘natural’.

(...) A monarquia absoluta no Ocidente foi sempre, na verdade, du-plamente limitada: pela persistência, abaixo dela, de corpos políticos tradicionais, e pela presença, sobre ela, de um direito natural abran-gente.6

Na Monarquia Absolutista europeia da Era Moderna, o sistema de coerção política e social não estava baseado num sistema de contro-le centralizado nas mãos de uma única pessoa, como poderia parecer a primeira vista, mas, conforme o país e a época, era um sistema de coerção sociopolítico com diferentes níveis de coercibilidade e, por via de consequência, com graus diversos de autonomia dos segmen-tos sociais que integravam a sociedade frente à pessoa do monarca.

Por outro lado, à guisa de conclusão deste tópico, ressalte-se que a partir de meados do século XVII d.C.:

(...) cumprira-se uma mudança de orientação dos espíritos. O huma-nismo cristão do século XVII estava preocupado com o homem em si. Via-se agora no Homem o ser social em suas relações não apenas com o sistema da natureza e com Deus, mas igualmente com o seu meio e suas instituições. Transformara-se de tal maneira que só aceitava o que fosse conhecido pela observação e pela experiência. As institui-ções religiosas, políticas e sociais deveriam ser submetidas à luz da razão. (...)

(...) O desenvolvimento da economia de troca, a ascensão da burguesia, a crítica das instituições sociais provocam uma mudança de valores sociais. A sociedade de ordens, praticamente desaparecida das cida-des holandesas, encontra-se arruinada na Inglaterra onde só existem alguns vestígios seus. Por sua vez, é posta em discussão na França.7

A Teoria da Tripartição dos Poderes segundo Montesquieu

No Espírito das Leis Montesquieu se preocupa, essencialmente, em explicar e distinguir, através de uma lógica inteligível, a gênese e o desenvolvimento dos sistemas legais in abstracto através das múl-

6 ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista, p. 48-50.7 CORVISIER, André. História Moderna, p. 353.

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tiplas diversidades desses sistemas legais e das distintas formas de governo, conforme a época e o lugar, a partir das condições históri-cas, geográficas, psicológicas etc.

A partir de uma leitura atenta desta sua magnum opus, podemos concluir que Montesquieu foi um dos precursores do método compa-rativo-indutivo atualmente empregado tanto pela Ciência Política quanto pela História Política.

O Espírito das Leis inicia-se com uma teoria geral das leis, a qual constitui a base da filosofia política de Montesquieu. Na sequência, “Montesquieu, com o intuito de fazer uma obra de ciência positiva, remodela as classificações tradicionais dos regimes políticos. Distin-gue três espécies de governo: republicano, monárquico e despótico. Em cada tipo de regime, que observa aqui ou ali pelo mundo, ele es-tuda sucessivamente a natureza, ou seja, as estruturas constitutivas que nele se podem notar, e o princípio, ou seja, o mecanismo do seu funcionamento.”8 Por fim, procura analisar os meios e fatores que, numa perspectiva jurídica-normativista e política, eventualmente conduzem ao “bom governo”.

A Teoria da Tripartição dos Poderes do Estado não é criação de Montesquieu. John Locke, filósofo liberal inglês, cerca de um século antes de Montesquieu já tinha formulado, ainda que implicitamente, a teoria em questão. Entretanto, cabe a Montesquieu o inegável mé-rito de colocá-la num quadro mais amplo.

A teoria ora em comento “(...) foi inspirada pelo sistema político constitucional, conhecido quando de sua viagem à Inglaterra, em 1729. Ali encontrou um regime cujo objetivo principal era a liberdade.”9

Ressalte-se que Montesquieu não foi um liberal na acepção mo-derna do termo, ainda que sua Teoria de Separação dos Poderes te-nha servido como um dos alicerces para a construção do Estado De-mocrático Liberal. Realmente, “Montesquieu crê na utilidade social e moral dos corpos intermédios [da Sociedade] (sic), designadamente os parlamentos e a nobreza.”10

Nesta mesma esteira de raciocínio, os professores José Américo M. Pessanha e Bolivar Lamounier prelecionam que Montesquieu:

(...) opta claramente pelos interesses da nobreza, quando põe a aris-tocracia a salvo tanto do rei quanto da burguesia. Do rei, quando a

8 HUISMAN, Denis (dir.). Dicionário dos Filósofos, p. 705. Grifo no original.9 PESSANHA, José Américo Motta; LAMOUNIER, Bolivar. Montesquieu (1689-1755):

vida e obra, p. XXIII.10 TOUCHARD, Jean (org.). História das ideias políticas. 4. v., p. 60.

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teoria da separação dos poderes impede o Executivo de penetrar nas funções judiciárias; dos burgueses quando estabelece que os nobres não podem ser julgados por magistrados populares. (...)

(...) Por outro lado, como autêntico aristocrata, desagrada-lhe a ideia de o povo todo possuir poder. Por isso estabeleceu a necessidade de uma Câmara Alta no Legislativo, composta por nobres. A nobreza, além de contrabalançar o poder da burguesia [estamento social em rá-pida ascensão social e econômica na França dos séculos XVII e XVIII], era vista por ele como capacitada, por sua superioridade natural, a ensinar ao povo que as grandezas são respeitáveis e que monarquia moderada é o melhor regime político.11

Em suma, Montesquieu, jurista oriundo da nobreza togada do Ancient Régime, reconhece que, independentemente da espécie de governo ou regime político de um dado país, a ordem social é, em si, heterogênea e sujeita a desigualdades sociais as mais diversas. Se, por um lado, ele aceita, ainda que de forma implícita, uma estrutura política e social pluralista, também é verdade que Montesquieu en-tende que o povo é de todo incapaz de discernir sobre os reais proble-mas políticos da Nação e, portanto, não deve e nem pode ser o titular da soberania.12

Dentro dessa ordem de coisas, o objetivo último da ordem políti-ca, para Montesquieu, é assegurar a moderação do poder mediante a “cooperação harmônica” entre os Poderes do Estado funcionalmente constituídos (legislativo, executivo e judiciário) com o escopo de as-segurar uma eficácia mínima de governo, bem como conferir uma legitimidade e racionalidade administrativa à tais poderes estatais, eficácia e legitimidade essas que devem e podem resultar num equi-líbrio dos poderes sociais.

Os interlocutores de Montesquieu no Espírito das Leis são a Mo-narquia Absolutista de um lado e a sociedade estamental da França do século XVIII d.C. de outro, sociedade essa que, ao longo da vida de Montesquieu, já apresentava sérias cisões políticas e sociais ao ponto de desembocar, cerca de uma geração após a morte de Montes-quieu, na Revolução Francesa (1789-1799).

11 PESSANHA, José Américo Motta; LAMOUNIER, Bolivar. Montesquieu (1689-1755): vida e obra, p. XXIII.

12 Neste sentido, importa destacar que no famoso capítulo 6 do Livro XI do Espírito das Leis, p. 172, Montesquieu expressa a sua opinião que o chefe do Poder Executivo e titular da Soberania deve ser um monarca hereditário, “(...) porque esta parte do governo, que precisa quase sempre de umas ação instantânea, é mais bem adminis-trada por um do que por vários...”

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Desse ponto de vista, Montesquieu é um representante da aristocra-cia, o qual luta contra o poder monárquico, em nome de sua classe [a nobreza togada], que é uma classe condenada. Vítima do ardil da história, ele se levanta contra o rei, pretendendo agir em favor da no-breza, mas sua polêmica só favorecerá de fato a causa do povo. (...)

(...) A concepção de equilíbrio social, exposta em L’Espirit des lois está associada a uma sociedade aristocrática; e no debate da sua época sobre a Constituição da monarquia francesa, Montesquieu pertence ao partido aristocrático e não ao do rei ou ao do povo13

Ante ao exposto, e por derradeiro, a Teoria da Tripartição dos Po-deres explicitada por Montesquieu adquire um cunho nitidamente conservador, segundo os nossos padrões políticos e sociais atuais, mais foi uma teoria nitidamente liberal frente à sociedade e ao Esta-do da sua época. A sua adoção por Montesquieu, em consonância com a sua opção clara por um regime aristocrático, visava a realiza-ção não de um regime democrático politicamente pluralista mais ga-rantir uma dinâmica governamental mais perfeita cuja principal fi-nalidade é garantir o “bom andamento” – leia-se o funcionamento racionalmente ordenado mediante normas jurídicas “justas” – do próprio Estado.

Reflexões finais

A obra de Montesquieu foi conhecida e reconhecida já por seus contemporâneos, quer fossem franceses, quer fossem estrangeiros, em especial a partir dos desdobramentos teóricos da sua doutrina de separação dos poderes, tanto a nível da Ciência Política, quanto a nível do Direito Constitucional.

Se Montesquieu pretendeu ser um estudioso experimental do so-cial e do político e resvalou para o dogmatismo, ou então, se em vá-rias partes da sua magnum opus deixou-se levar por uma paixão passional tipicamente gaulesa, ao ponto de demonstrar as suas pre-dileções políticas e intelectuais (em detrimento da objetividade im-

13 ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico, p. 35. Grifo no original. É importante lembrar que na época de Montesquieu a nobreza francesa, via de re-gra, apresentava-se subdividida em nobreza de espada ou “de sangue” e nobreza to-gada. Enquanto a primeira espécie tinha origens na nobreza tradicional, cujas raízes remontavam aos primórdios medievais da monarquia gaulesa, a segunda espécie de nobreza era, geralmente, oriunda dos quadros sociais da burguesia francesa. Tal diversidade quanto à origem social de ambas as espécies de nobreza explica, pelo menos em parte, a cisão que ocorreu no início da Revolução Francesa (1789-1799), quando membros de tradicionais famílias do Segundo Estado (a nobreza) apoiam a aludida Revolução.

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parcial necessária a um magistrado e cientista social), ainda assim não se pode negar que ele fez uma análise crítica da gênese e desen-volvimento da lei, procurando compreender, à luz da História, Filoso-fia, Geografia e até mesmo da Psicologia, o que distingui a lei – en-quanto norma de conduta social dotada de força coercitiva – daquelas outras regras de conduta derivadas do capricho arbitrário do ho-mem, quer de cunho ético, quer de caráter consuetudinário.

Ainda na esteira do magistério do professor Jean Touchard, em adendo ao exposto no item anterior, “a doutrina da separação dos po-deres não tem em Montesquieu o alcance que os seus sucessores lhe atribuíram. (...) Na realidade, não há em Montesquieu uma teoria (ju-rídica) da separação dos poderes, mas uma concepção (política-social) do equilíbrio das potências – equilíbrio que tende a consagrar uma potências entre as outras: a da aristocracia”.14 Por outras palavras, ainda que aceitasse e preconizasse a separação dos poderes estatais, Montesquieu insistia mais na colaboração estreita dos poderes do Es-tado e menos no equilíbrio funcional entre os poderes em tela.

A Teoria da Tripartição dos Poderes foi “importada” pelos funda-dores da República norte-americana em meados do século XVIII d.C. e foi nos EUA que ela adquiriu a sua feição constitucional contempo-rânea, a qual, certamente, causaria inúmeras perplexidades no ma-gistrado de Bordéus.

Realmente, foram os assim denominados “pais fundadores” da grande República do Norte que agregaram à Teoria da Tripartição dos Poderes do Estado o conceito de pesos e contrapesos políticos mútuos a fim de garantir a autolimitação do próprio poder político.15

À título de fecho deste trabalho, Montesquieu, conforme bem des-tacado pelo ilustre sociólogo e historiador Raymond Aron, foi um fi-lósofo político inserto numa sociedade estamental tipicamente abso-lutista do século XVIII d.C. que não meditou acerca da sociedade moderna de caráter industrial alicerçada na Democracia das Mas-

14 TOUCHARD, Jean (org.). História das Ideias Políticas. 4. v., p. 60.15 Por oportuno, registre-se que os fundadores da República norte-americana (Thomas

Jefferson, Benjamim Franklin, George Washington etc.) não foram homens incultos ou pessoas alheias às ideias políticas, sociais e econômicas vigentes na sua épo-ca. Basta lembrar que tanto Jefferson quanto Franklin viveram em Paris, França, durante algum tempo, onde, certamente, entraram em contato com as obras dos iluministas franceses, incluindo as de Montesquieu. Neste sentido, a elaboração da constituição estado-unidense ocorreu sob um prisma dúplice: 1º) a preservação da liberdade, principalmente mediante a adoção de medidas que evitassem o abuso do poder do Estado; e 2º) a garantia dos direitos e garantias individuais do cidadão frente ao próprio Estado e frente à sociedade em geral.

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sas, pelo simples motivo que tal espécie de sociedade ainda não exis-tia na sua época.

Neste contexto, ele – Montesquieu – meramente ignorou a catego-ria sociológica e histórica de progresso, tanto em termos econômicos ou industriais, quanto em termos culturais e científicos.

Na medida em que concentrava sua atenção nos regimes políticos, era levado a não ver no curso da história um movimento unilateral na direção do melhor. De fato, como Montesquieu o percebeu, depois de muitos outros, o devenir político até os nossos dias é feito alternân-cias, de movimentos de progresso e depois de decadência. Montes-quieu devia, portanto, ignorar a ideia de progresso que surge natural-mente quando se considera a economia ou a inteligência.16

De fato, enquanto “filho das Luzes”, Montesquieu somente procu-rou construir um sistema político-jurídico que permitisse, com base na Razão e nos ensinamentos da História, Geografia e da Filosofia Política, a reforma da Monarquia Absolutista então existente, sem que isto resultasse numa ruptura social e econômica total com o re-gime político e a estrutura social estabelecidas. Neste aspecto, a His-tória não lhe deu ouvidos.

ReferênciasANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. Tradução de João Roberto Martins Filho et al. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985.

ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. Tradução de Sérgio Bath. São Paulo: Ed. Martins Fontes; Brasília: Ed. UnB, 1982.

CHATELET, François et al. História das ideias políticas. Tradução de Carlos N. Coutinho. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1985.

CORVISIER, André. História Moderna. Tradução de Rolando Roque da Silva e Carmen Olívia de Castro Amaral. São Paulo, Rio de Janeiro: Difel S/A, 1976.

FINLEy, M. I. O Legado da Grécia: uma nova avaliação. Tradução de yvette Vieira P. de Almeida. Brasília: Ed. UnB, 1998.

HUISMAN, Denis (dir). Dicionário dos filósofos. Tradução de Cláudia Berliner et al. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001.

LADURIE, Emmanuel Le Roy. O Estado Monárquico. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.

16 ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico, p. 57.

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PESSANHA, José Américo Motta; LAMOUNIER, Bolivar. Montesquieu (1689-1755): vida e obra in: Montesquieu: Do Espírito das Leis. 2. ed. São Paulo: Ed. Abril, 1979. (Coleção “Os Pensadores”).

SECONDANT, Charles-Louis de. Barão de Montesquieu: Espírito das Leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1996.

TOUCHARD, Jean (org.). História das ideias políticas. 4. v. Tradução de Mário Braga. Lisboa: Publicações Europa-América, 1970.

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IX. Memória

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Autor

Beatriz BissioSocióloga, jornalista, fundadora junto com o ex-marido Neiva Moreira, da revista Cader-nos do Terceiro Mundo, da qual foi editora e diretora.

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Lembranças de um momento histórico

Beatriz Bissio

Completam-se 35 anos do fim do último grande império colo-nial, que fora iniciado no século XV, quando os navegantes portugueses dominavam os mares. Um império derrotado no

século XX em território angolano, num dos mais dolorosos episódios do processo de emancipação do continente africano. A América Lati-na esteve presente nesse processo através de dois protagonistas com papéis diferentes, porém igualmente determinantes: um no plano di-plomático e o outro no terreno militar, Brasil e Cuba. Uma data que suscita uma reflexão sobre o custo em vidas humanas e em sacrifí-cios que alicerçou o caminho para a Angola do século XXI.

Aproxima-se o 11 de novembro de 2010: o 35º aniversário da in-dependência de Angola! A data evoca lembranças daquele histórico e dramático momento em que a mais rica das colônias portuguesas na África conquistava – ainda que em meio a muitas incertezas – o alme-jado estatuto de Estado independente.

Neiva Moreira e eu acompanhamos essa data em Luanda. Estáva-mos em Angola a convite do MPLA, em representação de uma publi-cação proibida de circular no Brasil, Cuadernos del Tercer Mundo, que só teria condições de transferir a sua sede para o Rio de Janeiro cinco anos mais tarde, em 1980.1

1 Neiva viajava com um documento expedido pelo governo peruano – residíamos, na altura, no Peru. Exilado, banido pelo AI n.1, pelo governo militar que lhe cassara os direitos políticos, era um apátrida sem direito a ter documentos brasileiros.

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Ao longo do ano de 1975, tínhamos estado em Luanda em várias oportunidades, alternando visitas a Moçambique, Somália, Tanzânia, e outros países africanos. Numa das visitas tínhamos sido recebidos pelo presidente Agostinho Neto, que nos concedeu uma entrevista ex-clusiva histórica, publicada pela nossa revista, à época circulando so-mente em espanhol, com grande repercussão.

O presidente Neto considerava que se fosse publicada em portu-guês, a nossa revista, feita majoritariamente por jornalistas latino-americanos comprometidos com os movimentos sociais do continen-te e muito próximos das lutas dos movimentos de libertação africanos e asiáticos, seria uma ferramenta importante na formação de qua-dros, um desafio que a Angola independente enfrentaria em breve. E, efetivamente, daí surgiu a Cadernos do Terceiro Mundo, publicada inicialmente em Lisboa, especialmente para as recém-proclamadas repúblicas africanas lusófonas, e que só depois da anistia de 1979 no Brasil teria uma sede no Rio de Janeiro.

Numa dessas viagens, chegamos à Luanda poucos dias antes da independência, convidados especialmente para as comemorações. Fomos alojados no Hotel Intercontinental, onde encontramos nume-rosos correspondentes estrangeiros, sobretudo europeus e norte-americanos. A maior parte deles era hostil ao MPLA e acredito que não poucos estavam lá acreditados como jornalistas, mas trabalha-vam como agentes de algum serviço secreto ocidental.

Alguns deles, principalmente os franceses, costumavam ter “no-tícias confidenciais” que transmitiam com simulado sigilo, alegando um privilegiado acesso a fontes militares. Curiosamente, o que anun-ciavam eram sempre avanços das forças contrárias ao MPLA. O fato era que Luanda permanecia sitiada, pelo Norte e pelo Sul. Derrota-dos na batalha de Luanda e expulsos da cidade, o FNLA e a Unita tinham iniciado uma dupla ofensiva, rumo à capital. Na verdade, sob o nome de FNLA, forças regulares do exército do Zaire penetravam em território angolano a partir da fronteira Norte. E, pelo Sul, avan-çava, através da Namíbia (na altura anexada, de fato, pela África do Sul), sob a bandeira da Unita, o exército do regime de minoria branca sul-africano. Apesar do desafio de uma eventual intervenção militar internacional, o povo angolano continuava tocando a vida, embora vigilante e atento.

No entanto, inegavelmente o dia a dia da cidade estava profunda-mente afetado pelo quadro militar. Entre outras dificuldades, havia racionamento de comida. A luz sofria frequentes blecautes, a água escasseava e a situação militar ia se tornando crítica já que a frente

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de guerra estava muito próxima da capital, em Caxito e Kifangondo, onde está a represa que abastece de água a Luanda.

Uma noite, fomos convidados a integrar um grupo que realizaria uma ronda pelos subúrbios da capital, em companhia de comandan-tes do MPLA. Um deles era o major Saidy Mingas, assassinado barba-ramente dois anos mais tarde, na tentativa de golpe de Estado de maio de 1977. Estávamos identificados como jornalistas estrangeiros, mas isso não nos assegurava nenhuma imunidade. Afortunadamente, a visita transcorreu em paz e desfrutamos da privilegiada companhia de um grupo de quadros de alto nível. Particularmente agradável foi a conversa com o brilhante comandante Mingas, com quem desenvolve-mos uma bela amizade. Sem sofrer sobressaltos, retornamos ao hotel depois de ter constatado o elevado nível de tensão que se vivia nos bairros de Luanda, que aumentava na medida em que nos aproximá-vamos das periferias mais expostas. Essa visita à periferia constituiu um momento privilegiado, com o qual todo jornalista sonha, numa situação como aquela: um tour com guias experientes pelo cenário da luta, sem restrições para falar com a população. Uma experiência que não teria sido possível se eles não confiassem na nossa capacidade de utilizar de forma adequada a informação que eventualmente pudesse decorrer do levantamento feito.

O dia 10 de novembro foi inesquecível. Pela manhã, muito cedo ainda, a bandeira portuguesa foi hasteada pela última vez no mastro da imponente fortaleza que domina a baía de Luanda; observando-a, a população se dirigia a seus postos de trabalho. Pouco a pouco, a cidade portuguesa que havíamos deixado da última vez que lá estivé-ramos, um mês antes, havia-se transformado em uma urbe completa-mente africana, com o êxodo maciço da população branca e a afluên-cia à zona asfaltada da população negra.

O complicado trânsito de Luanda fluía bem melhor do que antes, já que o número de automóveis em circulação tinha diminuído sen-sivelmente. Os que ficaram abandonados, agora geralmente sem pneus, remetiam à fuga apressada do dono; podia também se tratar de um terceiro carro de algum endinheirado colonizador que, depois de ter enviado para o exterior outros dois, não tinha encontrado ma-neira de burlar a legislação para enviar um terceiro para Lisboa. Al-guns Mercedes chegaram a ser trocados por maços de cigarros, já que o valor deles, para quem partia e não podia carregá-los, equivalia ao poder de troca de quem ficasse...

As antigas estátuas portuguesas foram arrancadas de seus luga-res pelo povo e os austeros pedestais tinham sido pintados com as

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cores do MPLA, combinadas com criatividade. Surgira, assim, uma decoração nova, sem dúvida muito mais acorde com a sensibilidade e o estado de espírito da população angolana do que a fria fisionomia de um navegador do século XV ou de um colonizador.

Nesse dia, tivemos ocasião de participar de um episódio que con-firmou a presença de forças zairenses na guerra. A convite do minis-tro de Comunicação, o poeta e escritor Manoel Rui Monteiro, e do comandante “Jujú”, porta-voz do exército angolano, fomos entrevis-tar o primeiro soldado do Zaire capturado perto de Luanda com o seu blindado Panhard. Coube-me, junto com Neiva Moreira, perguntar ao prisioneiro de guerra sobre a sua patente e o motivo de sua pre-sença num tanque do Zaire, em território angolano. Um número con-siderável de autoridades angolanas acompanhava o depoimento.

O soldado respondeu prontamente, em francês, que era zairense, chamava-se Antoine, tinha 25 anos, e pertencia ao Esquadrão Blin-dado B do Exército do Zaire. Tinha chegado havia 15 dias, junto com a sua unidade, à cidade de Ambriz, um porto da província de Uíge. Tripulava o blindado com dois mercenários brancos, cuja nacionali-dade desconhecia, e avançara sem problemas, até o seu tanque ser atingido por uma bazuca das Fapla. Os dois mercenários consegui-ram fugir, mas ele, inconsciente depois da explosão, terminou captu-rado pelos soldados angolanos e levado para Luanda com o seu blin-dado francês. Meses depois da independência, encontramos esse pequeno tanque no topo de um dos antigos pedestais portugueses, no centro de Luanda; para que a população, que desfrutava de um breve interregno de paz, lembrasse do elevado preço da guerra.

Os nomes das ruas também tinham começado a mudar. Os he-róis do império lusitano progressivamente foram substituídos pelos comandantes do MPLA mortos durante os anos de luta pela liberta-ção. Assim como no aeroporto da “ponte aérea” só ficou a recordação de algumas canalizações arrebentadas, na cidade as vitrines vazias das lojas, antes cheias de artigos portugueses e importados, falavam do processo de remoção de um passado secular.

Alguns ambientes populares, buliçosos nesse dia da véspera da Independência, cheios de jovens e de mulheres de andar cadenciado, lembravam o povo do Brasil.

Novos cartazes enfeitavam as paredes, comemorativos da Inde-pendência. Concomitantemente, outros desapareceram. Nem uma referência à Unita, nem uma só inscrição, das muitas que havia me-ses antes, da FNLA. O povo, em sua carinhosa e dedicada preparação da capital para o dia da grande celebração, tinha apagado, meticulo-

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samente, todo vestígio daquelas presenças, que provocaram tanta dor e fizeram derramar tanto sangue. De fato, da época em que em Luanda conviviam com o MPLA os que o povo sentia como descara-dos instrumentos dos interesses estrangeiros, só ficaram os prédios atingidos pela artilharia e o sacrifício de 15 mil vidas.

Entre os combatentes havia muitos garotos (“miúdos”, como os chamavam os angolanos, ou pioneiros, engajados no MPLA). Eles prestaram serviço à causa da independência, pois coube-lhes a mis-são de garantir as comunicações entre os guerrilheiros do MPLA – a maioria, camponeses, que chegavam à Luanda pela primeira vez – e conduzi-los pelas vielas dos musseques, que não conheciam. A epo-peia desses garotos-guerrilheiros está retratada num dos livros de Manoel Rui.2

Meses depois do fim da batalha de Luanda eles continuavam brincando com seus revólveres de ferro velho e suas metralhadoras de madeira, à espera do inimigo. Não fora essas marcas deixadas nos grandes edifícios dos violentos duelos de artilharia travados dentro da cidade, alguém que desconhecesse os antecedentes poderia pen-sar que Luanda sempre fora baluarte inexpugnável do MPLA.

De certa forma, isso era verdade. Era muito expressivo o apoio popular a esse movimento político e muito especial o sentimento em relação ao presidente Neto. Percorremos vários musseques, outras zonas distantes, ministérios, locais públicos. Todos, literalmente, es-tavam cobertos de cartazes do movimento. Em todos esses locais éramos tratados como “camaradas” e a saudação obedecia à tradição do movimento: um tríplice aperto de mão, que representava a pala-vra de ordem Unidade-Trabalho-Vigilância.

Pouco antes da independência visitara Luanda a representação da Organização de Unidade Africana (chamada de União Africana desde 2002) e brigadas de voluntários dos musseques em poucos dias ajudaram a mudar o aspecto da cidade, abandonada e suja du-rante a época do massivo êxodo português.

Quando começou uma inesperada chuva muitos comentaram que se tratava de um presságio de felicidade. “Também em Moçambique choveu no dia da independência. O povo diz que é a mensagem de nos-sos mortos”, nos disse um dos soldados com os quais falamos. Para outros, a chuva simbolizava as lágrimas dos colonialistas que não se resignavam à perda irreparável de uma Angola tão rica. Presságio ou

2 MONTEIRO, Manuel Rui. Sim. Camarada. Lisboa: Edições Setenta.

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não, essa chuva foi uma espécie de batismo da jovem nação, cujo nas-cimento estava pondo fim ao colonialismo português em África.

No aeroporto era visível a diferença com a situação que havíamos deixado em Luanda. Os milhares de portugueses que lá acamparam durante semanas a fio, na longa espera pela ponte aérea que os leva-ria para Lisboa tinha dado lugar a um aeroporto limpo, organizado e coberto de cartazes, entre eles um, enorme, de Agostinho Neto, e es-tava enfeitado de bandeiras do MPLA. Na sala vip, repleta de delega-ções estrangeiras, membros do Comitê Central do Partido recebiam os convidados e mostravam o controle do aeroporto – até então, sob a direção portuguesa – por parte das forças populares. Fora do aero-porto, a mesma sensação de mudanças.

As delegações estrangeiras haviam começado a chegar três ou quatro dias antes, augurando um importante reconhecimento inter-nacional ao governo do MPLA. Continuavam a chegar jornalistas de todas as partes do mundo, entre eles alguns amigos do MPLA desde os primeiros tempos. Um grupo deles já se havia organizado para dar a sua contribuição à luta do povo angolano, instalando uma campa-nha para doar sangue aos feridos de guerra.

No Ministério da Informação, os correspondentes recém-chega-dos recebiam as suas credenciais na medida em que a capacidade de trabalho de um eficiente grupo de funcionários permitia. Álbuns de fotografias do desenvolvimento da luta nos últimos meses passavam de mão em mão. Vários colegas elogiavam o fato de que a imprensa tinha ampla liberdade de ação, mesmo aqueles que, em lugar de mandarem crônicas com fatos concretos, preferiam lançar ao mundo ecos de boatos de todo o tipo que continuavam a proliferar.

A imprensa e os meios de comunicação dedicavam extensas aná-lises às semanas decisivas de fins de outubro e começos de novem-bro de 1975, já que estava sendo escrita uma página decisiva da história do MPLA e de Angola. E os porta-vozes do MPLA se empe-nhavam em divulgar campanhas tendentes a formar uma nova ética revolucionária, exortando o povo a mudar as atitudes individualistas que cada um leva dentro de si.

Os combates continuavam na frente Norte, a 30 km da cidade; o povo seguia atento o desenrolar da luta, mas não se furtava a prepa-rar a festa. “Há apenas 14 anos só os sonhadores tinham a convicção de que seríamos dirigidos por um presidente angolano e estamos em vésperas de que isso se torne uma realidade. Por que deveríamos estar pessimistas hoje? A luta continua; a vitória é certa”, comentava uma militante dos velhos tempos, citando o lema do MPLA. Era um

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fato palpável que o povo sentia confiança na vitória e que, diante disso, qualquer sacrifício era válido.

Nem uma só queixa ouvimos quando chegava ao fim o quarto dia de falta de água na cidade. Na verdade, se tratava de uma medida preventiva às vésperas do 11 de novembro, porque a artilharia inimi-ga tinha por alvo principal a represa de Kifangondo.

O povo demonstrava estar muito acima dessas vicissitudes. Ne-nhuma menção, tampouco, para a escassez de alimentos. O pessoal do hotel esforçava-se para manter a rotina. Mas a cidade se compene-trara do clima bélico e as restrições da guerra eram aceitas com apa-rente normalidade.

A guerra na TV e a frente à volta da esquinaNa tarde do dia 10, os empregados do hotel, em determinado mo-

mento, desapareceram. Naquele ambiente de tensão, tudo era visto com temor. Teria sido ocupada a cidade? Não. Estavam todos no sa-lão principal, assistindo à primeira transmissão da TV angolana, re-cém-inaugurada. Um esforçado grupo de jovens, organizado por Lu-andino Vieira, escritor militante da primeira hora, hoje reconhecido internacionalmente e com obra traduzida em numerosas línguas, conseguira colocar no ar, nas vésperas da Independência, um pro-grama especial, feito durante uma reunião realizada na véspera em Maputo, Moçambique. Lá, representantes de São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo Verde, tendo como anfitrião o presidente Sa-mora Machel, receberam com honras excepcionais ao líder do MPLA, Agostinho Neto, e expressaram o apoio incondicional dos novos Es-tados africanos de língua portuguesa ao irmão ainda em guerra. E, em especial, proclamaram o reconhecimento do MPLA como único governo legítimo de Angola.

A programação inaugural da televisão angolana continuava com filmes feitos na própria frente de combate, que provocaram uma grande emoção no povo que assistia às imagens através de 400 apa-relhos distribuídos por todos os bairros e musseques, nas sedes de organizações desportivas e núcleos de organizações de base. Os tiros de artilharia mostravam que não se estava brincando de guerra, mas travando uma luta sangrenta e perigosa. Uma artilharia, aliás, que à noite ouvia-se nitidamente desde qualquer canto de Luanda; durante o dia, os ruídos da cidade a abafavam, mesmo que os tiros fossem disparados de tão perto.

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Naquele 10 de novembro, a conferência de imprensa do comodoro Leonel Cardoso foi o único ato “frio”. Era a última cerimônia oficial, do lado português, já que havia a decisão do governo da ex-metrópo-le de não estar presente à proclamação da independência, essa noite, por parte de Agostinho Neto.

Para os que, como nós, haviam tido o privilégio de estar presentes na Independência de Moçambique e, assim, admirar um fato históri-co único, com aquelas boas-vindas e honras militares aos represen-tantes de Portugal – uma enorme comitiva, encabeçada pelo general Vasco Gonçalves – essa proclamação unilateral de Portugal, o seu afastamento de Angola sem participar nas comemorações da meia-noite, a partida sem grandeza e sem glória, deixaram a todos frustra-dos. Ao povo angolano, também.

Em contrapartida, foi emocionante o momento em que os últimos soldados portugueses se despediram de Angola. Primeiro deram um longo passeio pelas ruas de Luanda, com os braços erguidos, num adeus definitivo e emocionado à última colônia de Portugal na África. Logo após, já na ilha de Luanda, posando para as objetivas dos fotó-grafos de várias nacionalidades, receberam aos militares que iriam substituí-los a partir daquele momento: os membros das Forças Po-pulares de Libertação de Angola. Tinham a exata noção de que o seu embarque, (o do último contingente português em terras africanas) marcava simbolicamente o fim de cinco séculos de colonialismo: ou melhor, para sermos exatos, fechava-se a etapa histórica aberta em 1483, quando as primeiras embarcações portuguesas chegaram à foz do rio Congo.

Ao cair da tarde do último dia de colonialismo, o povo dirigiu-se organizadamente para o Largo 10 de Maio, onde se realizariam as solenidades. Os tão alardeados bombardeios da cidade não se con-cretizaram. Nos bairros periféricos, que não dispunham de meios de transporte para alcançar o local das solenidades, foram colocados alto-falantes e estrados com mastros de bandeiras para que a procla-mação de independência fosse reproduzida em cada um desses lo-cais. O mesmo acontecia nas zonas rurais mais afastadas. Desde cedo, as crianças tratavam de colocar cartazes e faixas coloridas nas casas, ajudadas por suas mães e irmãs, que pintavam letreiros e fra-ses revolucionárias. Um dos mais difundidos era sobremaneira signi-ficativo: “Devemos fazer a guerra para terminar com a guerra”.

Curiosamente, em muitas dessas proclamações populares a meia-noite não foi esperada, mas, mesmo assim, as cerimônias fo-ram até mais formais do que a própria cerimônia central: o povo

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procurou uma bandeira portuguesa para realizar retirá-la do mastro e içar a nova bandeira, do mais novo país independente.

No Largo 10 de Maio, os lugares começavam a escassear. Os pio-neiros, que há tanto tempo se haviam preparado para esta ocasião, desfilavam mais firmes do que nunca, orgulhosos de suas armas de fabricação caseira, sempre com os uniformes velhos e rotos sobrando dos seus braços delgados e arrastando com dificuldade e graça as grandes botinas militares que haviam herdado dos mais velhos.

As mulheres, agrupadas na Organização das Mulheres Angolanas (OMA) entoavam hinos revolucionários e canções de outras nações de língua portuguesa. Poucos minutos depois da meia-noite os pri-meiros combatentes, armados de catanas – símbolo da primeira eta-pa da luta – acenderam a “Chama Eterna”, enquanto Agostinho Neto chegava ao palanque oficial, em meio de grandes aclamações do pú-blico, que se espraiava pelo imenso largo.

Milhares de tiros lançados ao ar pelas FAPLA, com balas traçan-tes que se cruzavam nos céus, gritos de júbilo, abraços, canções e lágrimas estremeceram o coração de todos os que ali se comprimiam. Seria o ataque tantas vezes anunciado? Milhares de guerrilheiros consideraram aquelas rajadas parte da festiva comemoração, que de-veria ser imitada.

Agostinho Neto, imperturbável, continuou lendo o seu discurso, emocionado. Nele delineava as principais diretivas políticas que o Mo-vimento Popular de Libertação de Angola adotava como plano de go-verno. Depois, cantou com o povo o novo hino nacional. Pediu, ainda, um minuto de silêncio em memória dos mortos pela liberdade e pela independência, e esse gesto foi o mais sentido tributo a todos os com-panheiros ausentes, aqueles que não viveram para assistir esses dra-máticos e emocionantes momentos. Muitas das viúvas e das mães dos mártires choravam e eram amparadas por pessoas amigas.

A República Popular de Angola nascia marcada pelo júbilo do povo, pela unidade de combate aos inimigos e pelo sacrifício comum e coletivo que a todos engrandecia sobremaneira.

Subiu ao mastro central a bandeira negra e vermelha: negra como o continente africano; vermelha como o sangue dos que haviam tombado.

Neiva Moreira e eu estávamos em frente ao palanque oficial. A multidão era imensa. Lá estavam os principais dirigentes do MPLA, delegações africanas e duas presenças que tinham significação espe-cial, por motivos diferentes, a do representante do Brasil, embaixa-

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dor Ovídio Meio, e a do representante do Vietnã. Ambos estavam muito próximos do presidente Agostinho Neto.

De forma improvisada, o presidente convocou o povo a reunir-se do Largo do Palácio do Governo logo após o encerramento das soleni-dades, já de madrugada. Pela noite adentro, o povo deu vazão à sua alegria com danças, canções e passeatas cheias de entusiasmo, até o nascer do primeiro dia de plena vitória contra o colonialismo. As ten-sões vividas, o cansaço acumulado, as responsabilidades diariamen-te assumidas, pareciam desaparecer nos semblantes do reduzido grupo de dirigentes do MPLA que teve a direção da luta e da instala-ção do novo Estado. Muitos dos ideais que os haviam levado a empu-nhar as armas convertiam-se em realidade, embora soubessem que era difícil e longo o caminho que os separava da vitória definitiva.

As celebrações tiveram um ponto culminante às 11 horas do dia 11 de novembro de 1975, quando em nome do Bureau Político do MPLA, Lúcio Lara investiu Agostinho Neto como primeiro presidente constitucional da República Popular de Angola e foi anunciado que mais de vinte nações tinham já reconhecido o novo Estado e seu go-verno. No ato público em que foi lida a relação dos governos que re-conheciam o novo Estado independente foi anunciado o reconheci-mento do Brasil o qual quase não se concretizara, e que só o empenho pessoal do embaixador Ovídio Melo e, ao que tudo indica, a forte per-sonalidade do general Geisel, que decidiu “comprar a briga” com os adversários dessa política africana, asseguraram a proclamação feita pela chancelaria brasileira.

Na tarde do dia 11 de novembro de 1975, no desfile popular pela Avenida do Catete, novas emoções: as FAPLA saudaram o presidente Neto num desfile nada tradicional; as forças que ali marchavam es-tavam mobilizadas e tinham participado dos combates poucas horas antes, na frente de batalha para a qual voltariam assim que o desfile acabasse. Esse fato deu à Independência de Angola uma densidade histórica percebida facilmente.

Trinta e cinco anos depois, ainda me emociono profundamente ao reviver aqueles momentos. Eles marcaram a história do povo angola-no e também a minha própria vida.

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X. Resenha

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Autores

Elide Rugai BastosGraduada em Filosofia pela PUC de São Paulo (1960), tem mestrado em Ciência Polí-tica pela USP (1980) e doutorado em Ciências Sociais pela PUC-SP. Livre-docente em Pensamento Social pela Unicamp, atualmente é professora titular daquela universidade. É autora de vários e importantes livros, como O pensamento de Oliveira Viana, junto com J.C. Quartim de Moraes.

Edmur FonsecaJornalista, cientista político, escritor. Ex-diretor do Centro Brasileiro de Estudos da Améri-ca Latina, da Fundação Memorial da América Latina – edmurjosé@hotmail.com

Martin Cezar FeijóProfessor na Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP, professor no Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura na Universidade Mackenzie, doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, e autor de vários livros, entre eles,

(São Paulo, Brasiliense, 1984) e O revolucionário cordial. Astrojildo Pereira e as origens de uma política cultural (São Paulo, Boitempo/Fapesp, 2001).

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Um pensamento vivo e provocador

Elide Rugai Bastos

Trata-se do primeiro volume da coleção Pensamento Político-So-cial da Editora Hucitec. Nada mais justo do que a publicação deste livro para a abertura da série, pois a mesma foi idealiza-

da por Gildo Marçal Brandão, que não chegou a vê-la realizada dada sua morte prematura em fevereiro de 2010. Os textos, organizados por Simone Coelho, referem-se a vários momentos da produção des-se pesquisador e expressam o acerto da expressão de Brasílio Sallum Jr. na introdução: são testemunhas da “trajetória interrompida do intelectual no auge de seu vigor criativo”.

Primeiro, o Memorial apresentado no final de 2009 ao concurso para professor titular de Ciência Política, que se realizaria em março de 2010, um mês depois de sua morte, por si só justificaria o título do livro, pois rememora seu itinerário intelectual – os anos de formação, a intensa atividade política e a dedicação à vida acadêmica. Depois, a reunião dos trabalhos em três grupos Teoria Política, Pensando a Política e Pensa-mento político indica o eixo da visão de Gildo que compreendia a uni-dade do compromisso com a vida intelectual e a política. A palavra italiana impegno aplicada a alguns intelectuais, cuja conotação não encontra referência plena nas traduções brasileiras – empenho ou compromisso – ajustava-se perfeitamente a ele que pensava a associa-ção do rigor teórico e do projeto de emancipação humana.

O marxismo, que foi referência importante da geração à qual per-tencia permitiu-lhe, através da leitura de inúmeros autores, pensar a possibilidade de associar “o destino do indivíduo com o sentido de uma época. Numa palavra, o projeto de vida e a esperança que então

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Resenha

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acalentava” (p.41). Os artigos que compõem as secções mostram essa inquietação e expressam respostas à indagação: como é possível tra-balhar com a articulação entre categorias teóricas e formas históri-cas de existência?

Os ensaios que compõem A Teoria Política mostram como o hege-lianismo marxista constitui o substrato a partir do qual emerge a reflexão de Gildo sobre autores, temas, controvérsias. A tese princi-pal já está colocada no primeiro trabalho que abre a sessão, A Teoria Política é possível? A ênfase dada à crítica de uma visão fragmenta-dora, que considera os fenômenos sociais, políticos, culturais de for-ma isolada, ilustra claramente o ponto de partida de sua reflexão e o eixo que atravessa suas pesquisas: é fundamental a reconstrução dos liames entre o objeto de estudo e o processo histórico do qual faz parte. Nessa direção entende as ideias como parte do conjunto de forças sociais em confronto, lutando no sentido de definir projetos sobre o destino da sociedade. É exemplar dessa intenção o texto To-talidade e determinação econômica, publicado originalmente no pri-meiro número da revista Temas de Ciências Humanas, em 1977. Logo no início do artigo explicita a polêmica, dizendo que passará em revista “alguns descaminhos metodológicos nos quais as ciências acadêmicas estão acostumadas a trilhar a muito tempo” (p.146). Não se trata de um exame visando apenas os acertos ou desacertos inter-nos às várias interpretações, mas visa a demonstração dos efeitos interpretativos de caráter social e político dessas análises. Em outros termos, mostra que a escolha do método é política. Ou seja, um mé-todo não está sozinho no campo interpretativo: ele completa, se opõe, dialoga, entra em conflito explícito ou implícito com outros métodos.

Na mesma parte, em Representação e participação política, reto-ma o tema a partir de outro patamar. Questionando o fato da maior parte dos analistas perceberem representação e participação como uma forma de expressão do antagonismo entre os ‘antigos’ e os ‘mo-dernos’, lembra que os elementos histórico-sociais que caracterizam a sociedade contemporânea – extensão territorial, dimensão popula-cional dos sistemas políticos modernos, circunstâncias que os indu-ziram a incorporar cada vez mais essa população – configuram as novas perspectivas a partir das quais o problema se coloca. Outra faceta que aponta a necessidade de pensar concomitantemente teo-ria e história, mostra que representação é fenômeno polivalente.

Os diferentes textos que compõem Pensando a política referem-se a conjunturas e a temas diversos, pois foram escritos entre 1969 e 2006 e refletem sobre cinema, ação de partidos políticos, livros que provocaram debates, etc. O mais antigo está referido a Gildo jovem estudante, um dos organizadores do Cinema de Arte de Maceió, que

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Um pensamento vivo e provocador

Elide Rugai Bastos

reunia, em um momento difícil da história brasileira, amigos que dis-cutiam, motivados pelos filmes projetados, a relação entre cultura e política. Entre as dezenas de comentários a essas apresentações escri-tas por Gildo, como lembra no prefácio Denis Bernardes, figura a re-flexão sobre Glauber Rocha, Onde se fala do ‘dragão’ e do ‘bravo’ (e se tenta entender a coisa chamada ‘cinema brasileiro’). Uma frase desse artigo prefigura o itinerário de Gildo – Alagoas, Recife, São Paulo; po-lítica, jornalismo, trabalho acadêmico – “...os filmes ditos ‘políticos’ do cinema novo são isso: tentativas desesperadas, típicas do intelectual ‘revolté’ e marginalizado, que corre – desesperadamente, ainda – atrás da realidade, procurando seu entendimento.” (p. 243)

Ainda nesse bloco, A ilegalidade mata. O Partido Comunista e o sistema partidário (1945-1964) está articulado em torno de uma po-lêmica que envolve os partidos de esquerda no Brasil na qual Gildo se posiciona com a veemência que coloca em todos os seus debates: posiciona-se contra “a percepção arraigada e, ainda hoje, subjacente à historiografia dos partidos de esquerda (...) que, de um lado, toma a relação institucional em termos puramente instrumentais e, de ou-tro, considera, contra toda a evidência histórica, que a legalidade, não a ilegalidade, mata, digamos, qualquer originalidade, eventual grandeza ou eficácia desse tipo de partido.” (p. 172)

Não poupa, também, autores consagrados. Em Descontruindo Huntington provoca: “se em vez de terrorista, Osama Bin Laden fosse um acadêmico de prestígio, um frio analista da política mundial, ele teria escrito O choque de civilizações, de Samuel P. Huntington.” (p. 230) Falando sobre a presença no passado das posições defendidas pelo autor, afirma que “ressuscita catacumbas famosas”, confirman-do “sofisticadamente todos os estereótipos que, durante séculos, o homem branco criou sobre o Oriente.” (p. 237)

Na seção dedicada ao Pensamento Político abre-se à discussão do pensamento brasileiro. Compõem-na artigos e prefácios a livros de seus orientandos, escritos entre 1976 e 2002. Nele afirma a neces-sidade de pensar em conjunto a realidade brasileira, não só através do cruzamento de várias disciplinas, mas de um diálogo coletivo a ser alimentado. Retoma afirmações de trabalhos anteriores, e novas, como aquelas expressas em seu memorial, mostrado os efeitos de-sastrosos da compartamentalização dos estudos sobre o Brasil. “...a tecnificação da atividade intelectual e a fragmentação da pesquisa científica numa miríade de disciplinas e subdisciplinas fechadas e especializadas no exame de limitados objetos, acabam por bloquear a possibilidade de pensar o conjunto, reduzem a reflexão à expressão reificada do próprio processo social” (p.268). A partir daí pergunta-se: “Em um mundo em que os conflitos radicais não foram elimina-

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Resenha

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dos e o fenômeno ideológico teima em não morrer, deve uma situação na qual as grandes interpretações do país continuam a ser chave na formação da vontade e na direção política dos grandes grupos so-ciais, ser descrita como atraso, resíduo, ou como antecipação em relação à evolução mundial?

Adicionada a esses três blocos, figuram as notas que Gildo toma-va para preparar a conferência que apresentaria em seu concurso para titular em Ciência Política na Universidade de São Paulo. Trata-se de texto inacabado, Ideias e argumentos para o estudo da história das ideias políticas no Brasil, no qual levanta novas indagações em relação a seus trabalhos anteriores, em especial ao livro Linhagens do Pensamento Político Brasileiro. Uma das hipóteses presentes nes-sa formulação é a da necessidade de estudo das ideias “no sentido de visões de mundo que, por um processo de decantação, se convertem em ideologia, isto é, em instituições e ‘senso comum’ de distintos e variados grupos sociais. As obras e intelectuais que não se prestam a esse tipo de tratamento podem ser vistos em contraponto, como individualidades significativas e isoladas” (p. 304). Trata-se da hipó-tese principal do projeto temático apoiado pela Fapesp, que coorde-nava desde 2007, mas que tem raízes anteriores reunindo pesquisa-dores, além da USP, da UFRJ, da Unifesp, da Ufscar, da Unicamp.

Além dos prefácios assinados por Denis Bernardes e Brasílio Sallum, Luís Eduardo Soares escreve uma sugestiva orelha ao livro.

Parte importante, que ilustra magnificamente os diferentes itine-rários de Gildo Marçal Brandão é a de imagens ordenadas por Simo-ne de Castro Tavares Coelho, que as introduz com o texto Os voleios da pipa. Não só o escrito como as fotos selecionadas mostram a ins-tigante figura desse intelectual e amigo inesquecível.

Acompanha o volume um DVD com a última entrevista, sobre o papel da esquerda no Brasil, realizada pelo Instituto Vladimir Herzog que Gildo concedeu poucos dias antes de sua morte. Nela podemos captar o pensador vivo, provocador e que, segundo palavras de Ga-briel Cohn, estava em pleno voo.

O conjunto de escritos dele e sobre ele, as fotos e sua própria fala são o testemunho de vida e pensamento do intelectual, orientador e amigo que perdemos, e explicação dos lamentos que acompanham sua morte.

Sobre a obra: Gildo Marçal Brandão. Itinerários intelectuais, de Simo-ne de Castro Tavares Coelho (org.). São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2010.

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Memorialista de uma geração

Edmur Fonseca

Passageiro do Tempo, de José Bento Teixeira de Salles, é um livro de memórias que se inscreve, desde sua publicação, no grupo dos testemunhos mais importantes da história recente

de Minas Gerais.

Jornalista, militante político, líder indiscutível da juventude uni-versitária de seu tempo, tornou-se conhecido pela acuidade de sua atuação e o sentido humanístico de suas convicções. É autor de um livro clássico para a melhor compreensão de como se estabeleceu, através da prática democrática, o lento, mas efetivo processo de der-rubada dos viciados sistemas de poder, herdados da velha Repúbli-ca: Milton Campos, uma vocação liberal.

Ele é também figura exponencial da grande geração de cronistas mineiros: Carlos Drummond de Andrade, Felix Fernandes Filho, Fer-nando Sabino, Franklin de Salles, Jair Silva, Milton Amado, Otto Lara Rezende, Paulo Mendes Campos, e Ruben Braga (este nascido no Espírito Santo deu início à sua carreira em Belo Horizonte, que lhe possibilitou revelar-se como jornalista exímio e modelar escritor).

José Bento Teixeira de Salles teve origem semelhante. De lingua-gem clara e objetiva, reafirma a cada novo texto, peculiar nos seus achados de humor, a finura da observação, lirismo intenso e reflexivo, análise lúcida sobre os acontecimentos submetidos a uma crítica mo-ral do mais sincero altruísmo. Há, no decorrer de suas lembranças, instantes intencionais de sarcasmo diante das agruras do dia-a-dia.

Apesar de sua militância partidária, coincidente com a criação da União Democrática Nacional, a UDN, de que é um dos fundadores no Estado, a cujo ideário se manteve fiel, mesmo depois do seu desapare-cimento como legenda, não há quem possa contestá-lo como persona-gem intelectual de destaque entre nossos homens públicos de méritos.

Há cerca de dez anos dizíamos, no lançamento de Vigílias – Crôni-cas, que cada página da referida seleção traçava o perfil ágil do viver belorizontino, absorvendo com agudeza os aspectos marcantes dos fatos e bem assim das particularidades e conflitos correntes.

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Resenha

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Ampliando e consolidando essas características, Passageiro do Tempo traz uma dimensão nova, a da memorialística, ou seja, não só a descrição de ocorrências a que se refere pessoalmente, mas a toda uma época. Todo bom memorialista tem sempre de cultivar a neces-sária equidade exigida pelo relato dos fatos e o exercício escrupuloso das próprias ideias.

Trata-se, no caso de Passageiro do Tempo, de uma obra rara, di-ferente em sua disposição semântica, fascinante pela variedade dos temas tratados.

José Bento (permitam-me chamá-lo só pelo nome, em virtude da admiração que lhe tenho desde a adolescência) é um apaixonado pelo futebol. É assim que foi buscar no seu esporte favorito a estrutura básica de seu livro, que tem início pela Preliminar, uma meditação retrospectiva sobre um possível ajuste de contas dos muitos anseios e fantasias da mocidade e a dura realidade de sua vida. Observa-se o correr das horas e o passar “dos dias, os anos se escoando na gran-de provação da incerteza”. Faz-se a apresentação dos tempos regula-mentares: o Primeiro Tempo, dedicado às histórias da infância e ju-ventude; o Segundo Tempo para a complexidade mnemônica da maturidade e a Prorrogação, síntese do término decisório de uma eliminatória ou finalíssima.

Vem igualmente da prática esportiva o uso sistemático dos sub-capítulos sucessivos e contínuos, ininterruptos como nos planos ci-nematográficos, uma sequência desdobrada em tomadas rápidas de significativa unidade visual.

Nascido em 1922, José Bento compartilhou com Santa Luzia, sua cidade de origem, e Belo Horizonte, residência de seus pais, a jovia-lidade moderna da capital, e o barroquismo colonial dos velhos casa-rões e das igrejas luzienses. A fé mobiliza os moradores quando do Jubileu. Há a quaresma e o mês de Maria. Há os festejos natalinos, os folguedos infantis e os recantos pitorescos, como a

Carreira Comprida, símbolo do recuo desordenado das tropas de Caxias, em 1842, frente aos revoltosos liberais, em seus conflitos com os conservadores.

Antes da enumeração circunstanciada das artimanhas dos meni-nos, José Bento faz um apanhado – pode-se dizer substancial – da Historia de Santa Luzia: as tradições religiosas e culturais, os bens materiais e sociais da família, base real da prevalência política. A proximidade imaginada da morte, aos 85 anos, logo superada pelos avanços da medicina preventiva, dá lugar a uma ponderada conside-

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ração sobre “eventuais confusões ou mesmo equívocos da memória”, a passagem do tempo como a árdua provocação da descrença exis-tencial, como parte do insondável mistério do desconhecido, em face da visão cristã da eternidade.

É com palavras como essas que José Bento justifica o amplo pa-norama de impressões e sentimentos que se projetam em sua obra, revelando como essencial no espaço da vida o que lhe resta diante da perspectiva da morte. Terminados os itens inaugurais, vem a humil-de confissão de possíveis defeitos junto às qualidades herdadas do passado, a que se acrescentam novas qualidades e se aprimoram novos defeitos.

José Bento, pela sua própria avaliação, foi uma criança retraí-da, que levou uma infância comum, cercada de episódios banais e aconchegos familiares, cuja única glória (infantil) foi a de ser um ótimo aluno.

Porque então escrever suas memórias? Pelo gosto, talvez, de transcrever no papel “suas memórias dos outros” ou de relacionar as personagens que valorizaram o transcurso do cotidiano.

Voltando a Santa Luzia: avulta, desde logo, a individualidade do bisavô, Manoel Teixeira da Costa, senador estadual e chefe político da região, território de grandes dimensões, abrangendo o que é hoje a superfície de 14 municípios.

A sucessão no comando prossegue com Ari Teixeira da Costa, tio avô, médico e deputado, de que é continuador, o Pai Juca, o avô, e a peculiaridade de temperamento de seu pai, o Teixeira, como era cha-mado pelos amigos. Celebrado pelo azedume contra certo tipo de pessoas, popularizou-se, na plenitude de suas convicções, por inte-ressante manuscrito, em prosa e versos, reunindo além de esparsos documentos, textos de incontida revolta e saborosa jocosidade em seu repúdio permanente à política de Getúlio Vargas. Isso após a anulação das eleições de 1937 e a instauração do Estado Novo

A impressão que ficou para José Bento é que sua casa se tornara uma trincheira democrática. A ele lhe caberia o dever de resistência ao arbítrio ditatorial. O ensinamento doméstico persistiu com a mon-tagem, por seu pai, de um segundo volume, sobre o governo de Mi-nas, então ocupado por Benedito Valadares, descrito maliciosamen-te, em termos passionais. Os versos, distribuídos clandestinamente, mostram toda a veemência oposicionista do inconformado liberal.

Na Faculdade de Direito, José Bento Teixeira de Salles assumiu indiscutível posição de liderança, que o levaria à presidência do Di-

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retório Acadêmico, seguindo-se à da UEE e a da vice-presidente da UNE, órgão máximo de representação estudantil.

O trabalho desenvolvido pelo jovem presidente da entidade esta-dual, tanto no plano associativo como cultural, tem como exemplos a vinda a Belo Horizonte do Balé da Juventude e a criação do Teatro do Estudante, sob a direção de João Ceschiatti, pioneiro de sua es-pecialidade na Capital.

1943 foi o ano do lançamento do “Manifesto dos Mineiros”, pro-nunciamento que contribuiu, expressivamente, como grito de alerta e despertar de consciências pela derrubada do Estado Novo.

Como se poderia esperar, o documento levou José Bento e seus companheiros a se aproximarem dos signatários da decisiva procla-mação. Monopolizado pelos novos combatentes em fase de filiação, sobressai de importância a seriedade descontraída de Milton Cam-pos, que viria exercer influência determinante na configuração mo-ral, intelectual e ideológica do correligionário nascente.

Essa foi a época na literatura, da chamada geração de 45, que no âmbito das letras repetia a lição dos predecessores modernistas, re-volucionários no que se refere aos critérios artísticos e inconforma-dos com a realidade do país. José Bento fala da evolução nas artes plásticas e na música sinfônica, na arquitetura, e na postura política dos escritores. Tudo se refletindo nos jornais e revistas, sobretudo as publicações dos mais jovens. Como contrapartida à agitação intelec-tual, ganha corpo o tumulto crescente nos meios universitários, na busca de reformas para a construção de uma realidade sociopolítica e econômica de configuração moderna

José Bento faz um relatório pormenorizado dos comícios realiza-dos no centro de Belo Horizonte, os concursos de oratória na Facul-dade de Direito, o “Júri Simulado de Hitler”, interessante paródia burlesca de larga repercussão na cidade.

É estimulante a descrição de como se dava a resistência, em gru-pos organizados nos moldes das células comunistas, encarregados da distribuição de panfletos, boletins e proclamações, acrescidos mais tarde de um jornal, também clandestino. Seu nome, “Liberdade”.

Intensifica-se a gerência de Simão da Cunha Pereira, a quem se refere nosso memorialista com indisfarçável admiração e respeito.

Amplia-se o sentimento oposicionista de que participava, José Bento, através de seguidos pronunciamentos e atos de reação aos equívocos governamentais.

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As idas à polícia em razão de suas atuações nos movimentos de rua, os apelos pela unidade nacional em prol da democracia, de que resultaria, tempos depois, a União Democrática Nacional (UDN), são narrados, com propriedade, por José Bento, no que lhe resta de per-sistente continuidade.

A exposição de Arte Moderna, promovida pelo prefeito Juscelino Kubitscheck, mas cercada do passionalismo que tomou conta das conferências, como a de Oswald de Andrade, e outros, todos imbuí-dos de alto fervor antifascista.

A invasão da Europa pelas forças aliadas e a entrada do Brasil na guerra aumentaram ao máximo a militância universitária, em seu empenho pela derrocada das instituições locais. Apesar dos compro-missos funcionais – lecionar, estudar, presidir a UEE – José Bento arranjava tempo para ler, criações como “Quincas Borba”, sobre a qual faz procedentes apreciações.

Antes do término do “Primeiro Tempo”, 1945 foi crucial para a mocidade da época. Assinala o fim da guerra mundial com a derrota do nazifacismo, a queda posterior do Governo Vargas, o início da re-democratização, a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes, e, no plano pessoal, a descoberta de Maria Amélia por quem se apaixonou, para casar-se em seguida.

No “Segundo Tempo” têm lugar os amplos espaços dedicados a Milton Campos e Cid Rebelo Horta, falecido tragicamente em um aci-dente automobilístico. Ambos foram presenças destacadas na conso-lidação dos princípios morais e intelectuais que virão orientar José Bento nos longos anos de sua vida. No que concerne a Milton Cam-pos, chamam a atenção os acontecimentos que envolvem sua intran-sigente defesa dos direitos humanos, o restrito respeito aos adversá-rios e, sobretudo, a eliminação no serviço público das remoções por divergências ideológicas ou partidárias. Nada de atos de vingança contra opositores. Impôs-se uma lição permanente de praxe demo-crática, em conflito quase sempre com interesses menores de corre-ligionários ou coligados no governo. Rompiam-se de vez os grilhões da censura à imprensa, conquistava-se a liberdade individual e im-plantava-se o regime da justiça e da lei.

Milton Campos era um liberal, não no sentido do impiedoso jogo do mercado e sim no da evolução não extremada das instituições, conforme o radicalismo Francês dos séculos XIX e XX, uma posição não conservadora, benéfica às modificações gradativas, coadjuvante de uma espécie de neocapitalismo de acentuada perspectiva social. Tanto assim que é na administração Milton Campos que se dá a pri-

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meira ação de planejamento em Minas Gerais, o Plano de Recupera-ção Econômica, gênese direta da Cemig e demais iniciativas de vulto, determinantes do desenvolvimento estadual.

Mais que a crônica emotiva de uma convivência de dezenas de anos, as páginas dedicadas ao ilustre mineiro recorrem a depoimen-tos, artigos de jornais e documentos históricos de uma oportunidade de comprovação que faz jus aos mais credenciados pesquisadores. Dele diz José Bento: “Penso que o saudoso mineiro está por merecer um estudo sério e profundo de seu pensamento político, mostrando a extraordinária dimensão do programa de realizações empreendidas de março de 1947 a janeiro de 1951”

Não é possível, numa resenha simples como esta, detalhar todas as manifestações de amizade de que desfruta José Bento, o exercício do jornalismo como profissão, a atividade político-administrativa e partidária, o emprego como noticiarista na Imprensa Oficial, (onde fez carreira e por duas vezes respondeu pela diretoria da repartição), as reminiscências da Rua da Bahia como centro boêmio e social, a experiência frustrada na advocacia, o ingresso no serviço de Divulga-ção e Imprensa da Companhia Siderúrgica Belgo Mineira, precursora da moderna siderurgia no Brasil, em que permaneceu até aposentar-se. Foi ali que lhe foi dada a oportunidade de conviver com o jorna-lista e professor Cid Rebelo Horta, chefe do SDI. Dele diz o autor:

De perspicaz e arguta inteligência, sólida cultura humanística, com-petente, honesto e compreensivo, desde logo ele deixou de ser um simples chefe de serviço para se tornar um fraternal amigo. Aqueles atributos eram reforçados por uma simplicidade a toda prova, o que fazia dele um sábio modesto – não fossem modestos todos os sábios.

Há a assinalar as viagens ao exterior e as ocorrências de vários tipos e variadas proporções, causadoras das surpresas, todas elas fascinantes, pela originalidade de sua exposição.

Belo Horizonte, proporcionalmente a sua população, é a cidade do Brasil com o maior número de bares. Gerações inteiras tiveram sempre, como ponto de referencia, um bar ou alguns bares, para congraçamento dos amigos. Para José Bento e companheiros desde a juventude, destaque especial para a Gruta Metrópole, local que se tornaria, logo de sua criação, o “ponto de encontro diário de jornalis-tas, artistas, professores, poetas e políticos, filósofos, advogados, médicos e dentistas, publicitários, empreiteiros, bicheiros, contra-bandistas e banqueiros, estudantes e funcionários, além de outros representantes de variada fauna boêmia da mocidade”.

Numa citação a mais:

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Não há dúvida de que a Gruta Metrópole teve particular importância na vida da cidade, já que representou um reduto da tradição boêmia da Rua da Bahia. Em plausível exagero poderia ser dito que a Gruta não era propriamente um bar, era antes uma instituição”.

“A Gruta foi a mais admirável mixórdia humana que o álcool sou-be produzir”.

A confusão era geral. Discutia-se sobre todos os assuntos: política, esportes, negócios, artes, literatura, jornalismo, filosofia, religião, co-nhecimentos gerais e particulares, o diabo a quatro, mas tudo na mais santa paz do Senhor. Derrubava-se a ditadura e construía-se o mundo ideal do futuro.

Dissecava-se o último best-seller e criticavam-se as instituições fali-das. Escalava-se a seleção brasileira de futebol e puniam-se os res-ponsáveis pela irresponsabilidade que grassava. Descarregavam-se os sofrimentos do dia, as angústias da semana e os desesperos do mês. Em compensação, vibrava-se com a vitória do Atlético, com o primeiro prêmio do jogo do bicho, com a derrota do governo na Câmara ou com o lançamento do livro do Murilo Rubião.

Caracterizado o agrupamento a que pertenceu por anos a fio, encerremos a leitura das preciosas evocações elaboradas por José Bento, constatando que o principal mérito de Passageiro do Tempo é a extrema objetividade do seu texto, o senso do humor de que fala-mos anteriormente. Essas qualidades, a par de um estilo ameno e coloquial, fazem de Passageiro do Tempo uma obra brilhante, envol-vente e rara pela humanização das peripécias de uma vida. A despei-to do apreciável material coletado, os tempos em que se dividem os capítulos têm um tom de familiaridade, que tornam os fatos narra-dos, parte integrante da visão pessoal de cada leitor.

Em Passageiro do Tempo desfilam muitos dos maiores nomes da política, da economia, da literatura e das artes de Minas Gerais e do Brasil, personalidades de relevo na construção e testemunhos do processo de desenvolvimento nacional.

José Bento Teixeira de Sales dá-nos, a constância e coerência de suas reflexões e observações sobre o próprio comportamento, ade-mais da dimensão, de proporções antológicas, do discorrer de seu tempo, que é tempo de nosso país e do mundo. Trata-se da criação de um novo imaginário, que não pode deixar de ser lido.

Sobre a obra: Passageiro do Tempo, de José Bento Teixeira de Sal-les.

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Antes de começar o filme Tropa de Elite 2 – O inimigo agora é outro (José Padilha, Brasil, 2010) há um alerta bastante reve-lador na tela: pode haver coincidências com a realidade, mas

esta é uma obra de ficção. O curioso é que toda discussão jornalística do Tropa de Elite 2, assim como foi no Tropa de Elite, do mesmo dire-tor, gira em torno da realidade que o filme trata: a luta do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) do Rio de Janeiro, na figura do capitão Nascimento (Wagner Moura) no 1º, contra o crime organi-zado de traficantes de drogas nas favelas cariocas; e no 2º, da luta do tenente-coronel Nascimento, anos depois, não só contra as milícias, mas com um sistema mais complexo que as sustenta.

Desta vez, cuidados especiais garantiram que o filme de maior público depois da retomada (já havia ultrapassado oito milhões de espectadores no momento em que este texto estava sendo concluído) não fosse prejudicado pela pirataria como foi o primeiro. E todos ga-nham com tais medidas de segurança, que inclusive confirmou que não havia sido uma estratégia de marketing a distribuição ilegal de cópias piratas do filme, como chegou a ser aventado na ocasião.

Uma produção, com um orçamento que ultrapassou 12 milhões de reais, contou em sua equipe técnica de experientes profissionais de Hollywood: Bruno Van Zeebroak (Transformers), William Boggs (Ho-mem-aranha), Keith Woulard (Independence Day e Forrest Gump). Tam-bém se reconstruiu, em estúdio de mil metros quadrados, o presídio de Bangu 1, cujas cenas iniciais já demonstram que “o bicho vai pegar”...

O filme também inovou, pelo menos no caso brasileiro, na produ-ção que contou com venda de cotas para pessoas físicas e empresas, assim como a participação da Globo Filmes. Uma nova forma de pro-duzir e distribuir cinema no Brasil, tendo em sua estreia esquema de blockbuster (o que efetivamente é), em 600 cópias distribuídas em 600 salas, mas tendo que aumentar logo em seguida devido à demanda.

Tropa de Elite, o primeiro, chegou segundo pesquisa do Ibope a ter mais de 11 milhões de espectadores, a maioria através de cópias

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Martin Cezar Feijó

piratas, e gerou desde debates pertinentes sobre a necessidade do cinema brasileiro em encontrar seu público, mas também algumas bobagens do tipo ser “um filme fascista” só porque demonstrava cenas de tortura, ou porque o personagem central, capitão Nasci-mento, não ter pruridos em utilizar sacos de plásticos para obter informações dos bandidos, uma prática mais que condenável em todos os sentidos, mas infelizmente presente no cotidiano da corpo-ração retratada.

O tema é local, mas a linguagem é globalO que não se pode negar é que os filmes sejam violentos, na me-

lhor tradição do melhor cinema norte-americano, de Stanley Kubrick a Martin Scorsese, a quem o cineasta José Padilha não nega referên-cias. É bom que se diga que isto se relaciona com a opção cinemato-gráfica não muito comum no cinema brasileiro: é um filme policial e de ação. Atende muito mais aos requisitos necessários ao épico do que ao intimista, próprio de um cinema de poucos recursos compa-rados ao mainstream de Hollywood. Mas não é de ação no estilo Ram-bo, como foi injustamente acusado, e sim de ação no sentido de mo-tion pictures (imagens em ação), cinema puro.

O que é interessante é que os filmes de José Padilha – desde os documentários Ônibus 174 e Garapa aos dois Tropas de Elite – tra-zem ao cinema brasileiro uma grande novidade: o tema é local, mas a linguagem é global. Talvez isto explique boa parte do sucesso, por-que o sucesso em sua totalidade envolve identificação, clareza de exposição, suspense, emoção, mas principalmente credibilidade. En-fim, é um filme atual.

Em uma obra cinematográfica, já dizia Eisenstein, a verossimi-lhança é mais decisiva que a literalidade. E, outro aspecto impor-tante é que não são filmes ideológicos. Poderia se dizer, com certo risco assumido, até que são científicos. O que talvez se explique pela formação do cineasta. Padilha é físico de formação, e trabalha com uma equipe bastante heterogênea: desde um ex-policial militar que virou escritor, vindo do próprio Bope, como Rodrigo Pimentel; um roteirista consagrado como Bruno Mantovani, sem deixar tam-bém de ter a contribuição artística do elenco, Wagner Moura em primeiro lugar (também sócio desta produção). Uma equipe que re-úne a experiência e a sensibilidade garante uma riqueza antropoló-gica extraordinária. Padilha não esconde, com muita tranquilidade e segurança, que seus filmes são frutos de trabalho em equipe, que ele coordena com muita competência.

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De herói problemático a herói trágicoNão é só o Brasil atual que vemos diante da tela grande, e sim o

mundo atual. É o registro de uma contemporaneidade fascinante, mesmo que assustadora em alguns momentos. No Tropa de Elite, houve uma discussão se o capitão Nascimento com seu jeito violento poderia ser considerado herói, como se o conceito de herói se confun-disse com juízo de valor associado ao bem. Os heróis tanto da mito-logia grega – como Aquiles – quanto da literatura moderna não são necessariamente bons, e sim, decisivos. Seja no enfrentamento, às vezes até de forma arrogante, muitas vezes de forma desastrada, do destino imposto pelos deuses (caso do herói trágico, como Édipo); seja no questionamento de seus limites, apesar do enfrentamento do que buscou solucionar, seja pessoal ou social, duvidando do poder do destino, embora muitas vezes impotente para mudar o rumo das coisas, no caso do romance moderno, e que o cinema incorporou (he-rói problemático, como os personagens de Dostoievski, por exemplo, mesmo os associados ao mal, e que Georgy Lukács estudou tão bem).

O capitão Nascimento, promovido por mérito tenente-coronel, e depois promovido “para baixo”, quando assume, como subsecretário da Segurança, o setor de inteligência da Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, enfrenta os dois momentos nos dois filmes, com maior intensidade e complexidade no segundo. O próprio ator, Wag-ner Moura, declarou preferir este por ser mais complexo tanto o per-sonagem quanto o a estrutura narrativa do filme.

De herói problemático, ele se torna – ou é tornado – herói trágico. De aparentemente dono de seu destino, bem treinado e determinado, que sabe de quais estratégias se utilizar para vencer a guerra, so-frendo com os revezes e os percalços domésticos; ele se vê, de repen-te, impotente para enfrentar o “sistema” com as armas de que dispu-nha, das quais é inclusive subtraído. Sofre a perda da mulher, que acaba se casando com um adversário público de peso, alguém do campo acadêmico, muito diferente do seu, militar. Diogo Fraga (in-terpretado por Irandhir Santos), professor universitário de história, um homem de esquerda ligado à política internacional de direitos humanos, é fã de Carlos Marighela e Rosa Luxemburgo. Personagem inspirado no deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL do Rio de Janeiro, que também prestou assessoria na elaboração do roteiro.

Magistral o momento em que o professor é reclamado por presos rebelados, chefiados por Beirada, um líder do Comando Vermelho (em extraordinária interpretação do cantor Seu Jorge) e ao entrar no

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presídio, Nascimento que está no comando das forças do Bope, ex-clama com ironia: – Che Guevara acaba de entrar...

Mas, surpresas aguardam o próprio tenente-coronel Nascimento, e ao público por tabela, na relação com o professor de história que se candidata para levar as ideias que defendia em sala de aula para a tribuna da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O filme cami-nha para o embate no plano político explícito, esclarecendo pontos apenas indicados no primeiro filme. Como se Padilha respondesse item por item todas as cobranças que sofreu quando do sucesso de Tropa de Elite, demonstrando que a questão de segurança pública não é, como tantas outras, uma questão ideológica, de direita e es-querda, conceitos um tanto desgastados no mundo pós-queda do Muro de Berlim.

Um poder secreto na democracia modernaA questão desenvolvida com coerência e competência se desdobra

nos dois filmes: no primeiro, o treinamento necessário para se efetu-ar ações sobre pressão e perigo (caso da guerra que o filme trata, mas que também pode ser, como metáfora, transferida para o mundo cor-porativo); e no segundo, o enfrentamento de um poder político secre-to que mina todas iniciativas no combate ao crime.

Neste sentido, o segundo filme é mais objetivamente político, e atual, ao tentar desvendar aquilo que o pensador Norberto Bobbio definiu, ao analisar a democracia moderna, como marcada sempre por uma tensão entre uma política explícita (o que é dito pelos gover-nantes em campanhas eleitorais e ações públicas) e um poder para-lelo implícito, que não presta contas, e nem sempre é pego pela Jus-tiça, mas quase sempre pela imprensa, daí as tentações em “controles sociais”, eufemismo de uma nova censura.

Este poder secreto, muitas vezes, também pode se fazer valer de uma violência até maior do que o Estado e o crime organizado, como o caso das milícias formadas por policiais e ex-policiais. Como diz Nascimento em off: é no coração do “sistema” que se esconde o ver-dadeiro inimigo, e que ele desconhecia quando capitão.

Tropa de Elite 2 é um filme complexo, bem feito, coerente, e ao mesmo tempo, claro. Exige alguma atenção do espectador, mas nada que ele não tenha condições de acompanhar com os detalhes de informações que vai recebendo no decorrer do filme. O especta-dor percebe que aquilo é realidade palpável, mas também se encan-ta com a construção ficcional equilibrada entre momentos de alta

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tensão e profunda emoção. O espectador não se sente enganado em nenhum momento, porque não é um filme isento, mas também re-conhece a profundidade com que os mecanismos de um poder invi-sível vão ficando cada vez mais claros para ele, assim como para o protagonista, o tenente-coronel Roberto Nascimento, que se huma-niza no processo.

É também uma história de redenção e superação, como nos me-lhores folhetins.

Da tragédia social ao drama pessoalO drama pessoal do pai policial que tem que ir a uma delegacia

liberar o filho adolescente, menor de idade, que é pego acompanhan-do uma moça com 100 gramas de maconha. Da dificuldade do pai que tem que enfrentar o filho que vive com um padrasto que diz o tempo todo que ele é “fascista” e “assassino”. Da paciência do solda-do disciplinado para ter que suportar a ex-mulher Rosane (Maria Ribeiro) que cobra dele, com toda razão, maior atenção ao filho. E, finalmente, da dor maior que um pai pode suportar, de ver seu filho correndo risco de vida.

Além das questões públicas que tem que enfrentar na Secretaria de Segurança, onde dirige o setor de inteligência, e onde, pelo para-doxal excesso de informação, já não sabe mais em quem confiar, ainda passa por um drama pessoal que o leva a descarregar (com razão, diga-se de passagem, apesar de tanta raiva) no próprio secre-tário da Segurança. Em várias sessões do filme, esta cena é aplaudi-da pela plateia.

Para piorar, ainda sofre do desprezo do oficial Matias (André Ra-miro), aquele que ele formou para substituí-lo no Bope, e que na cena final de Tropa 1 aponta seu fuzil para a plateia. E também tem que enfrentar policiais corruptos, como o policial militar que se torna chefe da milícia (Sandro Rocha), e coronel Fábio, o “pede para sair” de Tropa 1 (Milhen Cortaz), que se envolvem com o crime e fazem a ponta entre o mundo oficial e o mundo da marginalidade, na busca do voto como mercadoria barata.

Dramas pessoais, portanto, como um lar desfeito e um filho insa-tisfeito, dos quais nem sempre sabe como se safar, são refletidos em seus momentos de solidão em um modesto apartamento fruto de uma modesta remuneração para um soldado honesto, como Nasci-mento, que resolve heroicamente enfrentar o “sistema”.

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O “sistema” é um destino, como na tragédia grega; mas a força do herói é grande para tentar ampliar seu raio de ação, enfrentando a corrupção em seu grau mais sofisticado e violento. Um filme de ação, de suspense, no gênero policial refinado, que chega à condição de um épico, mesmo que o diretor indique não ter sido esta sua intenção. Isto explica o sucesso da ficção, da dramaturgia, da cinematografia, e que aborda uma realidade explícita no filme, quase documental.

É um equilíbrio constante, sendo citando até Shakespeare numa cena de humor negro, mas que o diferencia dos filmes aclamados do cineasta Quentin Tarantino, citado não por acaso, na epígrafe. Ta-rantino faz um cinema empolgante, mas sua referência é o próprio cinema, seu compromisso é com o diálogo com um cinema de fanta-sia que o antecede. Já José Padilha faz o que se pode dizer, um cine-ma realista, científico, estudado, meticulosamente construído não para defender uma tese, ou uma ideologia, mas para inquietar o es-pectador, fazê-lo refletir e abalar suas certezas. Poucas vezes se viu no cinema brasileiro, que já é historicamente muito bom, um filme tão inteligentemente elaborado.

São várias peças de uma engrenagem que se unem para montar um painel do Brasil contemporâneo: a polícia, a política, o crime or-ganizado, o mundo acadêmico e a mídia como parte de um sistema em que a cultura não poderia estar ausente. A mídia se desdobra, com coerência, em dois níveis: um programa de televisão sensaciona-lista que projeta seu apresentador demagogo para a política, Fortu-nato (André Mattos), facilitando votos para se eleger deputado esta-dual e que, apesar de toda sua indignação representada diante das câmeras, se revela um deputado corrupto; e o papel da imprensa escrita investigativa na figura de uma repórter corajosa, Clara (Tainá Muller), mas ingênua com relação aos perigos que corria em sua pes-quisa para uma matéria de primeira página no jornal.

Ingredientes que se interagem numa trama complexa que vai além de um filme de ação, mas de um filme de reflexão sobre a reali-dade social contemporânea, e não só brasileira.

A referência cinematográficaÉ por esta razão que não é Tarantino sua referência, como foi dito

antes, nem mesmo boa parte do cinema brasileiro (talvez Carandiru, de Babenco, um pouco), ou europeu, mas principalmente na preocu-pação com os detalhes e na profundidade, Tropa de Elite 2 remete a um Stanley Kubrick; ou no suspense, no amor ao cinema e respeito ao

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público, de um Martin Scorsese. O início do filme faz inclusive uma citação competente do filme Cassino, de Martin Scorsese, quando o personagem interpretado pelo ator Robert de Niro entra num carro e o carro explode, para depois ter início a própria história. Claro que a cena não é idêntica, que não é cópia, e sim um recurso legítimo mui-to utilizado no mainstream para tornar a narração mais dinâmica e reconhecível pelo público, o que explica os prêmios ganhos pelo Tro-pa de Elite, e as possibilidade bem plausíveis de prêmios para o Tro-pa de Elite 2.

Se José Padilha ganhou em Berlim o Urso de Ouro com Tropa de Elite, a Academia de Hollywood já descobriu seu potencial para um Oscar, seja de filme estrangeiro, como foi o caso do magnífico filme argentino O segredo de seus olhos, em 2010, ou ainda para um dos prêmios, que pode ser de melhor ator (Wagner Moura esteve em Los Angeles recentemente para discutir projetos no cinema norte-ameri-cano), diretor, fotografia (Lula Carvalho), efeitos especiais (já citados) e edição (Daniel Rezende), direção de arte (Tiago Marques Teixeira), em cada um, a marca do profissionalismo em benefício do filme.

Um filme que segue as regras básicas de excelente entretenimen-to, o chamado mainstream, mas que também inova na cinematogra-fia nacional ao conseguir de forma magistral enfrentar tudo que foi debatido quando do primeiro, e enfrentar neste filme, em que os ad-jetivos que sobraram para o primeiro são respondidos com compe-tência, e de forma substantiva.

Sem deixar de lado uma tradição cinematográfica de primeira li-nha, nacional ou internacional, José Padilha, cineasta relativamente jovem, de sólida formação intelectual e cinematográfica, nos apre-senta um cinema para o século XXI, em que os problemas não se escondem por trás de alegorias de difícil compreensão para burlar uma censura, e são enfrentados em toda sua crueza e realidade, como um tapa na cara – ou, melhor ainda metaforicamente como termina o primeiro filme, como um tiro na cara – para nos despertar de uma letargia que considera vivermos no melhor dos mundos – pelo menos, de acordo com a última campanha eleitoral, vivemos num patamar próximo ao da Suécia – , como se os problemas reais não devessem ser enfrentados, como os são em Tropa de Elite 2.

Um filme de ação, um filme policial, um filme de suspense, mas um filme político da melhor qualidade, que desvenda um poder se-creto na democracia moderna que tem que ser enfrentado com cora-gem, criatividade, conhecimento e competência. Ou seja, um filme para o nosso tempo.

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Proposições gerais

1. Confiantes em que após reflexão e julgamento atingiremos bom nível de consenso quanto às questões que a seguir levantamos, e diante do estado de abandono que por décadas caracteriza o IPCN, instituição pioneira nas lutas pela conscientização políti-ca, econômica e cultural do povo brasileiro, em especial dos afro-descendentes, um grupo de sócios e amigos desta entidade, como os autores deste Manifesto, convida a todos para um mu-tirão fraternal com vistas ao soerguimento da Instituição, a co-meçar pela restauração de sua fachada, resgatando-lhe o papel de núcleo produtor de conhecimentos e espaços de confraterni-zação para nosso imenso povo que se irmana na Diáspora Negra, fato histórico mundial que de modo geral do século 15 ao 19 dá dispersão planetária, como força de trabalho, aos povos e cultu-ras africanos. Guerreiros escravizados, assim nos tornamos pro-tagonistas da história da humanidade e nos fizemos presentes em todo o globo através da nossa música, nossa cultura, nossa cor. Reafirmamos, desse modo, que para nós a Diáspora é a dis-persão por todo o mundo do homem negro e da mulher negra, sua arte, sua cultura, não como escravos, mas como guerreiros, doadores de cultura e civilização, atributo que cumpre manter para sempre. Repudiamos em seu cerne a tese racista que pre-tende legitimar o racismo afirmando que nós e os povos coloni-zados somos parasitas de uma pretensa civilização europeia.

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2. É ponto pacífico a percepção geral de que a humanidade, nesse transcurso de séculos, passa por intenso e acelerado processo de mudanças, algo sem paralelo na história, dada a amplitude. E o povo brasileiro não pode se mostrar passivo nesse processo de transformações. Diante de nossos olhos, reformata-se o mundo velho, antecipando-nos o surgimento de um mundo diferente, fato que aguça nossa ansiedade. Do ponto de vista social, frente às novas condições históricas cumpre haver novos pactos entre os povos, com que se tente dar solução aos impasses vindos dos passados remoto e recente. Cumpre o surgimento de novas éti-cas. Hoje não mais se pode dizer que haja povos primitivos des-conectados da humanidade, defasados no tempo. Quando apa-recem, como recentemente nas matas peruanas, são saudados como prodígios. Hoje não mais se pode humilhar e escravizar o homem dessa ou daquela etnia diante de aplausos e indiferença gerais. Hoje não mais há terras “sem dono” a “descobrir”, mares “não navegados” a navegar, civilizações a destruir. Hoje todo mundo vê que os verdadeiros conquistadores do monte Everest são os Sherpas, etnia de montanheses do Nepal, sem a ajuda dos quais ninguém sobe ao Everest. Hoje Tarzan seria personagem bufão, bem-vindo a um circo mambembe em qualquer aldeia da África. Hoje não há mais Super-Homem, ou melhor, Super-Man. Diante das novas táticas de luta dos oprimidos, vê-se que os di-tos super-homens têm pavor da morte, também são homens de carne, osso e alma. Hoje, vendo as estátuas dos faraós pela in-ternet, a partir mesmo dos seus traços físicos todos podemos comprovar as teses do emérito antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop: a civilização egípcia era negra ou negróide, fato ja-mais revelado em qualquer livro didático de história do país. Por fim, se por um lado hoje aqui e ali há recidiva da escravidão, o trabalho braçal, por antieconômico em quase todo o mundo, ten-de à obsolescência. Como o patriarcado, a escravidão legitimada pela lei e costume é memória.

3. Hoje os fundamentos de uma oposição homem x sub-homem vão exigir das ideologias racistas novos argumentos, agora forjados a partir da base tecnológica à força tornada inacessível a toda a humanidade, vão depender de nível de renda salarial segundo os termos de um só modo de produção imposto à força, vão depen-der do domínio da dimensão lógico-simbólica dos homens, de sua força espiritual, da desvalorização de sua cultura, em espe-cial do truncamento da História. Necessariamente, como heran-ça da recente fase imperialista, a africanidade, a cor da pele, o cabelo crespo, tenderão a continuar como indicadores de inferio-

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ridade, prevendo-se, aqui e ali uma exceção, mas de modo que sempre se confirme a regra: – certos segmentos e grupos auto-assumidos como protagonistas exclusivos da História e já deten-tores de toda a riqueza, elevados ao nível de paradigmas da civi-lização, de poder, beleza e bem-estar, em oposição a um infinito oceano de miséria planetária. O darwinismo social aparente-mente justificado. É contra esse quadro que nos cumpre lutar.

4. Se até metade do século 20, os meios de comunicação – o relato oral, a imprensa, o rádio, o telégrafo, a fotografia – ainda conse-guiam nos veicular imagens de homens tidos como bárbaros pri-mitivos, como se dizia dos nossos irmãos índios, porque em vir-tude de diferenças acidentais eram apartados de nós, ou seja, a partir de uma foto nos fitavam em silêncio, não falavam (note-se que a fotografia é por definição muda), a indumentária mínima ou singular, e por fim, o território habitado era a priori conside-rado como terra de ninguém. Hoje a imagem audiovisual a tempo real e a dispersão ubíqua de certos objetos de contemporaneida-de emblemática, equivalentes às antigas bugigangas, como as marcas Coca-Cola ou Nike, além da imagem da Terra como pla-neta solitário, juntamente com a veiculação da fala e do gesto ao tempo em que ocorrem, atestam quanto à posse por todos os homens dos inquestionáveis atributos de humanidade, de con-temporaneidade, de pertinência. Ao contrário, hoje, dada a agressão mega-industrial aos fatores ambientais e a toda a bios-fera, a humanidade jaz com os povos antes ditos primitivos.

5. Hoje os filhos da Terra podem imediatamente inferir que lhes pertence o território em que, desde tempos imemoriais, estão assentadas as cinzas de seus ancestrais. A Região Polar é terra dos Inuit, isso ninguém poderá jamais contestar. Nesta, como em outras questões, impõe-se uma nova ética. Só há um modo de os homens ocuparem em comum todos os continentes, divi-dindo suas riquezas: como irmãos. Habitantes desse planeta, so-mos homens de uma só espécie, vivendo sob sistemas de cren-ças, convenções, chamem-nos, a esses sistemas, de costumes, leis, protocolos, pactos ou alianças. Esses sistemas necessaria-mente apresentam uma dimensão profana e uma sagrada. E se equivalem, podendo se combinar, se harmonizar, mutuamente se fecundando. São patrimônios espirituais da humanidade... Não podem ser objeto da sanha odienta do mais forte. A teoria do choque de civilizações pretende dar justificativa moral à barbárie dos que se dizem civilizados. Benditos sejam os Ciganos, por exemplo, com sua santa rebeldia por viverem a seu modo. Afinal

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de contas, que sentido haveria em evoluir para se tornar cada vez mais bárbaro?

6. Em nossos dias, todos os filhos da Terra sabem que não há, não teria podido haver, descontinuidade na história da humanidade. Os Maia e os Inca sempre esperaram a vinda dos Europeus, isso hoje é fato. Hoje todos os filhos da Terra sabem que são todos protagonistas dessa infinita fieira de eventos que começou na África. Na história da humanidade não há “figurantes” como quer certa linha de pensamento racista; todos são protagonistas, caso contrário desaparece o conceito de humanidade e nos ani-malizamos de vez.

7. Nessa ordem de reflexão, não pode haver nação cujos filhos se-jam “filhos de chocadeira”, parasitas da cultura dominante, sem pertinência ou pertencimento, sem cultura e sem história pró-prias, tenham surgido num território por obra de um demiurgo ou senhor de engenho qualquer, dessa ou daquela etnia, aparta-dos da Árvore e da História de onde todos descendemos. Não pode haver nação cujos filhos que já antes ocupavam o território devam ser tidos como primitivos, não-cidadãos, obrigados a se voltarem para os estrangeiros. Se tal nação existisse, nem ela os mereceria nem eles a ela.

8. O Brasil é nação formada por homens e mulheres provindos de todos os troncos da Árvore da Humanidade, os quais poderão es-tar evoluindo para uma misteriosa síntese DNA-Cultura, recipro-camente doando e recebendo suas heranças materiais e espiritu-ais. Em nosso caso, esse patrimônio cultural e material é o capital com que cada tronco participa do concerto nacional. Cada tronco protagonizou e protagoniza papéis de importância capital no con-certo que justifica nossa união aqui e no mundo. Os papéis são importantes não apenas porque os protagonistas sejam negros, índios ou brancos, mas porque são seres humanos. O que está em jogo daqui para o futuro é o inquestionável reconhecimento por todos dessa obviedade histórica: – Brasil, uma nação de todos, formada pelo patrimônio de todos, onde o racismo e a intolerância religiosa são crimes inafiançáveis. A haver desigualdades – condi-ção em certos aspectos inerente à vida social, essas não podem se basear no pertencimento a esse ou àquele tronco, a essa ou àque-la cor, religião ou orientação sexual.

9. Dada à inércia específica ao nosso tradicionalismo autoritário, a cada dia a dinâmica de desenvolvimento da sociedade brasileira mais tende a reforçar, a partir de critérios étnicos, o modelo de

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origem colonial concentrador de renda, promotor da exclusão e da barbárie. Aqui a riqueza tem cor, tem “raça”, embora para tal os poucos privilegiados não tenham fundamento histórico legiti-mado pela moral. O modelo que os enriqueceu vem da Colônia e da escravidão. A Nação, que desde 1888 é integrada a partir de suas raízes pelas etnias que lhe deram e lhe dão sustentação no campo da produção, do trabalho em sua expressão real, encon-tra colossais forças de retrocesso e ruptura nas práticas de exer-cício antidemocrático do poder político, de concentração da ren-da socialmente produzida, de apropriação das riquezas do território nacional, apropriação exclusivista e cada vez mais rea-lizada antes por consórcios estrangeiros que por elites brasilei-ras saídas do entrechoque competitivo entre todos os brasileiros. Em contrapartida, da posse da terra o povo é excluído há qui-nhentos anos, não obstante a Independência e as diversas Repú-blicas. Lutemos para que os próximos governos avancem na questão do direito à terra como tem acontecido do ano 2000 para cá. Aqui a riqueza tem cor, tem raça, embora para tal os poucos privilegiados não tenham fundamento histórico e social legíti-mos, repita-se. Aqui, diferente do que ocorreu na Europa, a tal “nobreza” jamais defendeu a terra. Aqui, sempre, é o povo de base que tem tirado da inércia, da preguiça e pasmaceira esse e aquele grupo de aristocratas e classes médias mais rebeldes, pondo-os à testa de processos históricos anunciadores do devir, processos a princípio por eles repudiados. No período colonial, tenha-se em mente o Quilombo de Palmares – a ideia de uma nação nossa, não deles, começa com os escravos, com o povo negro e índio. No período nacional, citemos a Petrobrás, a origi-nal CSN e as demais indústrias de base criadas com o dinheiro dos que aqui pagam imposto, para não irmos mais longe. Ainda soa aos ouvidos de muitos o mote dos reacionários ao grito de “O petróleo é nosso” – “E a borracha também” (o cassetete).

10. Especificamente relacionados às questões de natureza interétni-ca, há fatos caracterizadores de impasse, ruptura, retrocesso, muitos nascidos a partir da necessidade de obediência a manda-mentos da Constituição Cidadã de 1988.

11. A começar pelo principal objetivo da nação – criar uma nação justa. Esse mandamento exige imenso conjunto de políticas pú-blicas de efeito imediato, que levem alguns jovens dos segmentos eternamente massacrados a uma etapa de formação escolar tão eficiente que lhes abra perspectivas sociais, e isso já para a atual e para as próximas décadas. É aí que se levantam as forças de

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oposição, arguindo contra a constitucionalidade dessas normas, descaracterizando-as, até mesmo forçando a anulação das expe-riências relacionadas à política de quotas, hipocritamente pro-testando-se, nessa hora, apoio à melhoria da escola pública de primeiro e segundo graus, antecipando ironicamente que essa discutível melhoria poderá ocorrer daqui a mais de cinquenta anos. Ocorre que a se deixar como sempre esteve, continuare-mos a ter as quotas às avessas, isto é, para os ricos. Lamentável é que graças à ignorância e alienação, alguns segmentos do pró-prio movimento negro, direta ou indiretamente, concordam com essa interpretação.

12. A seguir temos também a questão das terras quilombolas e das reservas indígenas, apresentadas como concessões ilegítimas, a serem cassadas, num próximo governo e congresso reacionários, esquecendo-se de que o estado colonial ou nacional jamais tive-ram a posse legítima, o poder incontestado de ocupar a maioria dessas terras, sendo elas de fato ocupadas por quem nelas sem-pre viveu e vive sem ajuda de ninguém, sua propriedade devendo lhes ser deferida como legítima após quinhentos anos de defesa e posse. Opte-se por novos ocupantes – como se quer, aí então que a legitimidade da doação ficará escandalosamente conspur-cada pelo racismo.

13. Há a questão das duplas e triplas nacionalidades. Como sabemos, dos anos 70 para cá, as ex-potências colonizadoras e estados reli-giosos passaram a abertamente estender a nacionalidade aos fi-lhos de seus emigrantes em todas as partes do mundo, quando solicitado. O estado brasileiro tem respeitado esse princípio até para pessoas jurídicas. Nada a opor. Para esses indivíduos, obser-ve-se, não há pertinência nacional exclusiva. De posse de nova nacionalidade, nada impede que esses brasileiros saúdem nova bandeira, assimilem nova história nacional, nova pauta de hábi-tos e costumes, façam novas alianças e assumam nova identida-de. A brasilidade de cada um passa a ser questão de foro íntimo.

14. Mas, de pronto se levanta uma questão de “lesa majestade”, de traição ao Brasil, de ruptura do tecido social, quando se trata de aplicar a Lei 10.639, de 2003, que tornaria obrigatório (caso a lei ganhasse aplicação) o estudo da história e cultura africanas no ensino médio e fundamental do Brasil, aplicação de lei que, constitucionalmente aprovada, se espera naturalmente ocorra em todo país que respeite a sua própria ordem jurídica. Aqui não. Dois pesos, duas medidas. A má vontade política das elites em conluio com professoras, professores, orientadoras e direto-

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ras de escolas públicas, autoassumidos como “juízes de última instância”, nesses quase dez anos, em obediência a atávicos sen-timentos “racistas”, têm burlado a lei, acintosamente dando como desculpa que assim o fazem para que no Brasil jamais haja “racismo” (..?..). Nada obstante, como vemos, o racismo perma-nece, levando de quebra a destruição de templos de religiões afro-brasileiras, o genocídio de jovens negros e pobres etc. etc. Para completar, agora há brasileiros “livres”, de duas e três na-cionalidades, e brasileiros compulsórios, de uma só, com a agra-vante de serem considerados deserdados dos pontos de vista material e cultural, filhos de chocadeira, além de cidadãos de segunda classe, gente sem História, parasitas da cultura dos ou-tros, como despudoradamente afirma o discurso racista. Por ób-vio que, segundo a compreensão dos brasileiros afrodescenden-tes, o conhecimento da história e das culturas africanas e da sua grande Diáspora Negra jamais irá de encontro à nossa inquestio-nável brasilidade, já que mais que formadores, somos criadores do Brasil, somos raiz. Não podemos repudiar o que construímos com sangue. Queremos só e simplesmente que a “escola” legiti-me nosso orgulho, legitimando nossas origens e passado, mos-trando a todos o que já intuímos pela consciência profunda: não obstante a “estória” que nos ensinam há quinhentos anos, so-mos protagonistas da História da humanidade. Inserida nessa questão está a imposição goela abaixo do Estatuto da Igualdade Racial, recentemente aprovado após descaracterização total do projeto original, que já nos era insuficiente.

15. Há, ainda, entre os objetivos do soerguimento do IPCN a luta por impedir a prossecução de tendência em curso desde os anos 80, responsável pela descaracterização e destruição das organiza-ções ligadas aos movimentos sociais orientados a partir de uma militância ética, aquela que visa um futuro melhor para todos. Referimo-nos à necessidade de dar um basta à cooptação como prática sistemática, fato indutor da fragilidade estrutural das entidades associativas do povo, cujos membros de base passam a ser imagens da internet, uma insólita “second life”, seus dire-tores e presidentes sendo estimulados a viverem de propinas de empresários e agentes político-partidários, a partir da aceitação de dinheiro oriundo de projetos sociais geralmente duvidosos e de promessas e oportunidades de cargos públicos, desde que se ponham a reboque desses partidos políticos, igrejas e empresas. Nada a opor quanto à participação do Estado e das empresas públicas e privadas no financiamento das atividades culturais ou mesmo do custeio das entidades associativas da sociedade

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Documentos

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civil, as Oscips, fundações e associações legalmente constituídas e geridas para a realização de trabalhos em defesa dos bens e valores materiais e espirituais de nosso povo. Essa prática forta-lece a democracia. Mas o efeito é totalmente contrário quando essas entidades e suas diretorias são falazes, fajutas e visam interesses pessoais.

16. Com relação à política de cooptação, cabe ainda denunciar a pro-liferação, a partir de 1988 nos níveis estadual e municipal do Es-tado brasileiro, de “secretarias de promoção dos negros, negras etc.”, geralmente criadas por decreto, extinguíveis à vontade do governador ou prefeito, sem participação no orçamento, logo sem verbas e metas, sem quadro de funcionários próprios, vazias de qualquer capacidade de autogestão, de realização, mas que en-chem seus titulares de empáfia e enganam o povo. São secretarias para “inglês ver”, cumpre que todo o povo brasileiro saiba e peça sua substituição – esses “prêmios” aos cooptados, pagos por nós mesmos –, por órgãos que resultem de lei, com verbas e quadros adequados a objetivos e metas definidos. Que adianta nomear um negro para uma secretaria “de negro” vazia, ao passo que se exclui o negro dos escalões superiores da administração?

17. No Brasil como em qualquer parte do mundo, para os seres hu-manos o desafio continua a ser o mesmo, como formulado pelos humanistas do Renascimento: ou a Humanidade pertence a meia dúzia de homens, ou meia dúzia de homens pertencem à Humanidade. Substitua o termo humanidade por Brasil, por Planeta, por cultura universal... Na luta por um Brasil de todos os movimentos sociais são imprescindíveis. É a partir dessa compreensão que devemos começar a falar em democracia.

18. Para que não nos acusem de maniqueístas ou racistas, admitimos que sob a pressão da miséria, exclusão e fome endêmica antes e após o 13 de Maio de 1888, alguns de nossos irmãos, em proporção nem maior nem menor do que ocorre com outras etnias, têm abai-xado a guarda quanto à proteção espiritual e o nível da própria autoestima, desse modo geralmente confirmando certas expectati-vas do discurso racista: abandono de si, marginalização, delin-quência, incapacidade de levar a bom termo suas iniciativas... Pois bem, o soerguimento do IPCN é também para negar validade a esse discurso, PORQUE SIM, NÓS QUEREMOS.

Benedito Sérgio e Ailton Benedito de Sousa

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XII. Centenário do poeta do povo

Noel Rosa

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Noel de Medeiros Rosa, o Poeta da Vila, estaria completando um século de vida, no dia 11 de dezembro de 2010, e a revista Política Democrática não poderia deixar de registrar em nota o

importante fato. Por uma razão simples: Noel encarna o que o Brasil tem de melhor em matéria de síntese cultural.

Senão, vejamos. Membro da classe média baixa da Zona Norte do Rio de Janeiro, de tez branca, criado no asfalto, ele subia os morros dos arredores de seu bairro, a mítica Vila Isabel, para aprender piano com ninguém menos do que Sinhô, o Rei do Samba, um homem do povo totalmente comprometido com a cultura negra carioca.

Estudante de Medicina, não hesitou em abandonar a vida acadê-mica pelo samba, demonstrando que lá em Vila Isabel quem é bacha-rel não tinha mesmo medo de bamba.

Sua visão boêmia e irreverente do mundo, ao melhor estilo cario-ca, por sinal, jamais o impediu de apontar as nossas mazelas sociais, em composições como O orvalho vem caindo, Filosofia, São coisas nossas, Onde está a honestidade, Com que roupa?, Três apitos e João Ninguém criticava abertamente o Brasil dos poderosos, revelando as-sim seu compromisso com aquele outro Brasil, o dos oprimidos e ofendidos. Cronista, Noel ia direto ao assunto, recorrendo a uma lin-guagem ágil, quase um modernista no samba. Tudo com muito hu-mor. Convivia com alguns dos maiores malandros da época - confor-me lembrava sempre sua amiga e intérprete Aracy de Almeida, a Araca do Balacobaco – como Brancura, Gargalhada, Canuto, Ismael, uma turma da pesada.

Além de excepcional compositor, Noel também se apresentava em programas de auditório, nas principais emissoras do Rio, participava de shows em teatros, cinemas e bares, junto com outros artistas, assim como escrevia trilhas sonoras para filmes e radionovelas.

Informações coletadas daqui e dali indicam que o Poeta da Vila nu-tria simpatia pela causa socialista, recebendo regularmente das mãos de um dentista do Partido Comunista o jornal A Classe Operária.

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Centenário do poeta do povo Noel Rosa

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Noel era uma síntese em permanente construção. Estava para a música como Mané Garrincha para o futebol. Ou seja, o poeta era, à sua maneira, a alegria do nosso povo, “a cigarra vadia que, em toda a sua agonia, cantava para morrer...”

Abaixo, algumas letras de Noel, com acentuado conteúdo social:

Com Que Roupa?

Agora vou mudar minha conduta, eu vou pra lutapois eu quero me aprumarVou tratar você com a força bruta, pra poder mereabilitar Pois esta vida não está sopa e eu pergunto: com que roupa?Com que roupa que eu vou, pro samba que você me convidou?Com que roupa que eu vou, pro samba que você me convidou?Agora, eu não ando mais fagueiro, pois o dinheiro nãoé fácil de ganharMesmo eu sendo um cabra trapaceiro, não consigo ter nem pra gastarEu já corri de vento em popa, mas agora com que roupa?Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou? (bis)

Eu hoje estou pulando como sapo, pra ver se escapodesta praga de urubuJá estou coberto de farrapo, eu vou acabar ficando nuMeu paletó virou estopa e eu nem sei mais com que roupaCom que roupa que eu vou pro samba que você me convidou? (bis)

João Ninguém

João NinguémQue não é velho nem moçoCome bastante no almoçoPra se esquecer do jantar...Num vão de escada

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Movimento em prol do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras

Manifesto ao Povo Brasileiro

Fez a sua moradiaSem pensar na gritariaQue vem do primeiro andar.João NinguémNão trabalha e é dos taisMas joga sem ter vintémE fuma Liberty OvaisEsse João nunca se expôs ao perigoNunca teve um inimigoNunca teve opiniãoJoão Ninguém Não tem ideal na vidaAlém de casa e comidaTem seus amores tambémE muita gente que ostenta luxo e vaidadeNão goza a felicidadeQue goza João Ninguém!João Ninguém não trabalha um só minutoE vive sem ter vintémE anda a fumar charutoEsse João nunca se expôs ao perigoNunca teve um inimigoNunca teve opinião.

O Orvalho Vem Caindo

O orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéue também vão sumindo, as estrelas lá do céu Tenho passado tão malA minha cama é uma folha de jornal

Meu cortinado é um vasto céu de anilE o meu despertador é o guarda civil(Que o salário ainda não viu!)

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Centenário do poeta do povo Noel Rosa

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O orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu (bis dos primeiros quatro versos)

A minha terra dá banana e aipimMeu trabalho é achar quem descasque por mim (Vivo triste mesmo assim!)

O orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu bis dos primeiros quatro versos)

A minha sopa não tem osso e nem tem salSe um dia passo bem, dois e três passo mal(Isso é muito natural!)

Onde Está a Honestidade?

Você tem palacete reluzenteTem joias e criados à vontadeSem ter nenhuma herança ou parenteSó anda de automóvel na cidade...E o povo já pergunta com maldade:Onde está a honestidade?Onde está a honestidade?O seu dinheiro nasce de repenteE embora não se saiba se é verdadeVocê acha nas ruas diariamenteAnéis, dinheiro e felicidade......Vassoura dos salões da sociedadeQue varre o que encontrar em sua frentePromove festivais de caridadeEm nome de qualquer defunto ausente...

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Movimento em prol do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras

Manifesto ao Povo Brasileiro

São Coisas Nossas

Queria ser pandeiroPra sentir o dia inteiroA tua mão na minha pele a batucarSaudade do violão e da palhoçaCoisa nossa, coisa nossaO samba, a prontidãoE outras bossas,São nossas coisas,São coisas nossas!

Malandro que não bebe,Que não come,Que não abandona o sambaPois o samba mata a fome,Morena bem bonita lá da roça,Coisa nossa, coisa nossa (bis dos cinco versos)

Baleiro, jornaleiroMotorneiro, condutor e passageiro,Prestamista e o vigaristaE o bonde que parece uma carroça,Coisa nossa, muito nossa (bis dos cinco versos)

Menina que namoraNa esquina e no portãoRapaz casado com dez filhos, sem tostão,Se o pai descobre o truque dá uma coçaCoisa nossa, muito nossa (bis dos cinco versos)

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Centenário do poeta do povo Noel Rosa

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Filosofia

O mundo me condena, e ninguém tem pena Falando sempre mal do meu nome Deixando de saber se eu vou morrer de sede Ou se vou morrer de fome Mas a filosofia hoje me auxilia A viver indiferente assimNesta prontidão sem fimVou fingindo que sou ricoPra ninguém zombar de mim

Não me incomodo que você me diga Que a sociedade é minha inimiga Pois cantando neste mundoVivo escravo do meu samba, muito embora vagabundoQuanto a você da aristocracia Que tem dinheiro, mas não compra alegriaHá de viver eternamente sendo escrava dessa genteQue cultiva hipocrisia.

Três Apitos

Quando o apito da fábrica de tecidosVem ferir os meus ouvidosEu me lembro de vocêMas você andaSem dúvida bem zangadaOu está interessadaEm fingir que não me vêVocê que atende ao apito de uma chaminé de barroPorque não atende ao gritoTão aflitoDa buzina do meu carro

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Movimento em prol do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras

Manifesto ao Povo Brasileiro

Você no invernoSem meias vai pro trabalhoNão faz fé no agasalhoNem no frio você crêMas você é mesmo artigo que não se imitaQuando a fábrica apitaFaz reclame de vocêNos meus olhos você lêQue eu sofro cruelmenteCom ciúmes do gerenteImpertinenteQue dá ordens a você.

Sou do sereno poeta muito soturnoVou virar guarda-noturnoE você sabe porqueMas você não sabeQue enquanto você faz panoFaço junto ao pianoEstes versos pra você.

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