Nº 12 Agosto de 2016 São Paulo - SPblia...DO ANTIGO TESTAMENTO ... Teologia e Sociedade é editada...

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1 Nº 12 Agosto de 2016 São Paulo - SP BÍBLIA E MINISTÉRIO PASTORAL LER EM PERSPECTIVA HERMENÊUTICA Pablo R. Andiñach TEOLOGIAS NO AT: POLIFONIA OU CACOFONIA Erhard S. Gerstenberger RITUAIS E INSTITUIÇÕES LITÚRGICAS DO ANTIGO TESTAMENTO Dallmer Palmeira Rodrigues de Assis MARCOS E O CONFLITO Elsa Tamez CRISTIANISMO: RELIGIÃO DA CASA RELIGIÃO SEM TEMPLO Ricardo de Oliveira Souza A RELAÇÃO ENTRE O ANTIGO E O NOVO TESTAMENTO Marcos Paulo M. da C. Bailão A BÍBLIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL Marcelo da Silva Carneiro BÍBLIA E QUESTÕES SOCIAIS Sue´Hellen Monteiro de Matos RESENHAS POSTCOLONIAL PERSPECTIVES Paulo Sérgio de Proença CRIANÇAS NA BÍBLIA HEBRAICA Rodrigo Bezerra Dalla Costa ATOS DOS APÓSTOLOS Lysias Oliveira Santos

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    N 12 Agosto de 2016 So Paulo - SP

    BBLIA E MINISTRIO PASTORAL

    N 12 A

    gosto de 2016 So Paulo - SP

    LER EM PERSPECTIVA HERMENUTICA Pablo R. Andiach TEOLOGIAS NO AT: POLIFONIA OU CACOFONIA Erhard S. Gerstenberger RITUAIS E INSTITUIES LITRGICAS DO ANTIGO TESTAMENTO Dallmer Palmeira Rodrigues de Assis MARCOS E O CONFLITO Elsa Tamez CRISTIANISMO: RELIGIO DA CASA RELIGIO SEM TEMPLO Ricardo de Oliveira Souza A RELAO ENTRE O ANTIGO E O NOVO TESTAMENTO Marcos Paulo M. da C. Bailo A BBLIA E TRANSFORMAO SOCIAL Marcelo da Silva Carneiro BBLIA E QUESTES SOCIAIS SueHellen Monteiro de Matos

    RESENHAS POSTCOLONIAL PERSPECTIVES Paulo Srgio de Proena CRIANAS NA BBLIA HEBRAICA Rodrigo Bezerra Dalla Costa ATOS DOS APSTOLOS Lysias Oliveira Santos

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    Expediente

    Editor: Eduardo Galasso Faria

    Colaboradores deste nmero: Marcos Paulo M. da C. Bailo,

    Marcelo da Silva Carneiro e Ricardo de Oliveira Souza.

    Reviso: Gerson Correia de Lacerda

    Conselho Editorial: Jos Adriano Filho, Leontino Farias dos Santos,

    Pedro Lima Vasconcellos, Shirley Maria dos Santos Proena, Reginaldo von Zuben, Ronaldo Cardoso Alves e Waldemar Marques.

    Presidente da FECP: Heitor Pires Barbosa Junior

    Planejamento grfico e capa: Ana Paula Pires

    Ilustrao: Fotolia Impresso: Grfica Potyguara

    Tiragem: 700 exemplares Verso eletrnica: www.teologiaesociedade.org.br

    Teologia e Sociedade editada pela Faculdade de Teologia de

    So Paulo da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil Rua Genebra, 180 So Paulo / SP CEP 01316-010

    www.fatipi.edu.br

    N 12 Agosto de 2016 So Paulo - SP

    BBLIA E MINISTRIO PASTORAL

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    DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAOTeologia e Sociedade / Faculdade de Teologia de So Paulo Vol. 1, n 12 (2016). So Paulo: Potyguara, 2016.

    AnualISSN 1806563-5 1. Teologia Peridicos. 2. Teologia e Sociedade.3. Presbiterianismo no Brasil. 4. Bblia. 5. Pastoral.CDD 200

    As informaes e as opinies emitidas nos artigos assinadosso de inteira responsabilidade de seus autores.

    ACESSE

    www.teologiaesociedade.org.br

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    EDITORIAL .....................................................................................................4 LER EM PERSPECTIVA HERMENUTICA....................................................6 Pablo R. Andiach TEOLOGIAS NO AT: POLIFONIA OU CACOFONIA.................................22 Erhard S. Gerstenberger RITUAIS E INSTITUIES LITRGICAS DO ANTIGO TESTAMENTO...............................................................................................38 Dallmer Palmeira Rodrigues de Assis MARCOS E O CONFLITO............................................................................48 Elsa Tamez CRISTIANISMO: RELIGIO DA CASA RELIGIO SEM TEMPLO...........74 Ricardo de Oliveira Souza A RELAO ENTRE O ANTIGO E O NOVO TESTAMENTO...................88 Marcos Paulo M. da C. Bailo A BBLIA E TRANSFORMAO SOCIAL.................................................106 Marcelo da Silva Carneiro

    BBLIA E QUESTES SOCIAIS..................................................................128 SueHellen Monteiro de Matos RESENHAS POSTCOLONIAL PERSPECTIVES.............................................................144 Paulo Srgio de Proena CRIANAS NA BBLIA HEBRAICA............................................................154 Rodrigo Bezerra Dalla Costa ATOS DOS APSTOLOS............................................................................160 Lysias de Oliveira Santos

    Sumrio

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    EDITORIAL

    No primeiro semestre de 2015 os professores da rea de Bblia da FA-

    TIPI, Ricardo de Oliveira Souza, Marcelo da Silva Carneiro e Marcos Paulo

    Monteiro da Cruz Bailo, foram procurados pela Direo da FATIPI para

    que organizassem a Semana Teolgica que tradicionalmente acontece no

    segundo semestre letivo dessa casa. Esses docentes viram nesta proposta

    um duplo desafio e oportunidade: seria a chance de trabalhar importantes

    temas que normalmente no se consegue tratar em sala de aula e tambm

    a ocasio para abordar questes que envolvem o lugar das Escrituras Sa-

    gradas na vida da igreja. Assim, o tema da Semana Teolgica de 2015 ficou

    definido como: O lugar da Bblia na vida e na igreja.

    Este evento aconteceu entre os dias 26 e 30 de outubro de 2015 e

    contou com a contribuio de professores de outras instituies, como o

    Dr Jos Ademar Kaefer, da Universidade Metodista de So Paulo, e Prof.

    Paulo Teixeira, Secretrio de Publicaes da Sociedade Bblica do Brasil, de

    pastores da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, como a Reva. Ms.

    SueHellen Monteiro de Matos (ex-aluna) e do Rev. Ms. Dallmer Palmeira

    Rodrigues de Assis (ex- docente), alm dos docentes da casa. Alm deles, e

    como j se tem tornado hbito nessas ocasies, alguns formandos de 2015

    da FATIPI tiveram a oportunidade de apresentar Comunicaes sobre

    os resultados de seus trabalhos de concluso de curso antes do incio das

    palestras. Todas essas contribuies enriqueceram o dilogo produzido na

    Semana Teolgica.

    Este nmero da revista Teologia e Sociedade tem suas razes neste

    evento. Tem suas razes, mas no uma simples reproduo do que ali

    aconteceu. Por um lado, e infelizmente, os trabalhos do Dr. Jos Ademar

    Kaefer sobre a ligao entre exegese cientfica e leitura popular da Bblia, e

    do Prof. Paulo Teixeira sobre a histria e mtodos de traduo bblica no

    esto aqui includos. Esperamos que eles sejam publicados em outro espao

    oportunamente. Por outro lado, neste nmero da Revista contamos com os

    estimulantes trabalhos dos biblistas Dr, Pablo Andiach, Dra. Elsa Tamez

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    e Dr. Erhard Gerstenberger. Para completar a proposta desse nmero,

    contamos com resenhas crticas escritas por pessoas ligadas histria da

    FATIPI: Rev. Dr. Paulo Srgio de Proena, Rev. Prof. Lysias Oliveira Santos

    (ambos ex-professores) e Lic. Rodrigo Bezerra Dalla Costa (ex-aluno).

    O primeiro artigo, de autoria de Andiach um convite leitura da Bblia

    com o intuito de compreender a sua mensagem com mais profundidade e a

    partir da realidade do texto que se d em trs nveis: a redao, a estrutura

    e a interpretao do texto. O provocativo trabalho de Gerstenberger nos

    chama a ateno para o fato de que o Antigo Testamento (como tambm

    podemos considerar toda a Bblia) no um todo homogneo, mas abrange

    uma grande diversidade de expresses de f. Assis estuda os rituais litrgicos

    do Antigo Testamento e faz atualizao dessas experincias para as expres-

    ses de f do povo de Deus na atualidade. Tambm provocador o artigo

    de Tamez em que explora o conflito como pano-de-fundo do Evangelho de

    Marcos. A obra lucana o ponto de partida para que Souza afirme que o

    cristianismo uma religio de relacionamentos pessoais mais do que rituais,

    cujo lugar original era a casa e no os templos. Bailo apresenta uma forma

    de ler a Bblia numa perspectiva integradora dos dois Testamentos. E por

    fim, mas no menos importantes, esto os trabalhos de Matos e Carneiro

    que relacionam a Bblia a importantes questes ticas contemporneas.

    A todos os autores e autoras, o nosso agradecimento pela preciosa con-

    tribuio. Tambm a nossa gratido se estende direo da FATIPI como

    sua Mantenedora, Fundao Eduardo Carlos Pereira, pelo imprescindvel

    apoio. A todos os alunos, alunas e demais participantes da Semana Teolgica

    de 2015, bem como aos leitores e leitoras, nosso muito obrigado.

    Esperamos que este nmero de Teologia e Sociedade contribua, assim

    como os nmeros anteriores j vm contribuindo, para o estmulo ao di-

    logo teolgico. Neste caso especificamente, estimule a reflexo em torno

    da Bblia e com ela a respeito dos desafios ticos, pastorais e teolgicos do

    povo de Deus na atualidade.

    Pela equipe organizadora,Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailo

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    LER EM PERSPECTIVA HERMENUTICA1

    Pablo R. Andiach2

    1Traduzido para o portugus de Marcelo da Silva Carneiro2Pablo R. Andiach pastor metodista argentino, doutor em Teologia ISEDET, e cursou estudos de Ps-Graduao na Universidade Hebraica de Jerusalm e na Iliff School of Theology, Estados Unidos.3ANDIACH, Pablo. Introduo hermenutica ao Antigo Testamento. So Leopoldo: Sinodal/EST, 2015.

    Este artigo , em boa parte, uma adaptao das primeiras pginas da minha recente Introduo hermenutica ao Antigo Testamento publicada pela Editora Sinodal3. Mas no um resumo nem cpia e, sim, uma tentativa para apresentar o desafio que significa ler um texto como o bblico, seja o Antigo ou o Novo Testamento. Ao oferec-la aqui o fazemos com a inteno de ajudar a compreender nossa perspectiva. O ato de ler pe em ao diversas realidades que desejamos expor para que, tornando-as conscientes, nos ajudem a melhorar nossa leitura e compreenso da mensagem. Em ltima instncia, o que nos interessa que possamos ler as Escrituras com maior profundidade e compreenso de sua men-sagem. De certa forma, no fim toda leitura a proclamao da Palavra e, consequentemente, o que buscamos entend-la melhor para compartilhar melhor a mensagem recebida.

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    Hermenutica Polissemia Crculo Hermenutico releitura bblica -

    Cnon Teologia da Libertao

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    A Introduo hermenutica

    Que queremos dizer quando falamos em hermenutica? Hermenutica

    uma palavra de origem grega que significa interpretar e que, no contexto

    desta obra, a utilizamos para nos referir ao ato de interpretar textos bbli-

    cos. Um postulado bsico e inicial da hermenutica que o sentido de um

    texto no algo que est depositado nele e que tem que ser tirado dele,

    mas que o sentido produto do encontro de um texto com um leitor, que

    pode ser individual ou coletivo. Isso significa que, no momento da leitura

    de um texto, so ativados uma srie de fatores que possibilitam a produo

    de sentido.

    A leitura que gera o sentidoToda leitura interpretao e isso vale no s para os textos como tam-

    bm para a vida em si. Interpretar parte da condio humana e um ato

    cotidiano que se mostra tanto ao descobrir figuras nos contornos das nuvens

    quanto ao ler um jornal pela manh. Todos eles so atos irrepetveis e, como

    tais, capazes de suscitar novas leituras cada vez que voltamos a exercit-los.

    Mas, nesta oportunidade, nos atemos interpretao dos textos do Antigo

    Testamento, se bem que os que participam nessa condio geral de toda

    interpretao tem suas prprias particularidades.

    A hermenutica no uma dentre a multiplicidade de mtodos exe-gticos que se aplicam leitura dos textos bblicos. Em princpio porque

    no se especializa num aspecto especfico do texto como fazem outros

    mtodos (a histria, a estrutura, a psicologia dos personagens, as relaes

    sociais e polticas, a retrica, a leitura narrativa, etc.), mas, em vez disso,

    busca estabelecer uma convergncia de mtodos. Mas tambm porque a

    hermenutica no busca excluir e, sim, somar. Ela postula que o acesso

    ao sentido no pode limitar-se a uma entrada apenas ao texto, pois desse

    modo se reduz a dimenso de sua mensagem medida de cada mtodo.

    Cada texto um testemunho de vida e a vida tem muitas facetas que so

    irredutveis e que se devem ter em conta a fim de evitar o empobrecimento

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    da plenitude de sentidos presentes nas obras que lemos.

    Em segundo lugar, porque a hermenutica, longe de competir, clama

    pela necessidade de atravessar o texto pelos diversos mtodos mencio-

    nados que contribuem para clarificar as relaes literrias internas, os

    aspectos ideolgicos e polticos, a histria da redao, etc. No se pode

    fazer uma interpretao sem prescindir da crtica bblica, mesmo que esta

    seja considerada somente um passo do caminho at o sentido. Ao mesmo

    tempo, como de esperar de toda leitura fundamentada, a hermenutica

    considera de maneira crtica as ferramentas que utiliza para evitar que a

    interpretao fique presa por conceitos distantes do texto. Mas, chegado

    o momento em que se submete o texto a um estudo detalhado, a herme-

    nutica se apresenta como indicaremos mais adiante como o salto final

    at o sentido do texto tal como lido em cada contexto particular. E no

    pretende pelo prprio princpio ser a interpretao definitiva nem a

    correta pelo simples fato de que considera que toda leitura, no momento

    em que acontece, assumida pelo leitor como a melhor possvel, mas, sem

    dvida, que passvel de ser modificada em cada nova situao.

    Tudo que foi dito at aqui quer dizer que, ao falar de perspectiva her-

    menutica, nos referimos aplicao na interpretao de determinados

    critrios que devem ser considerados e fazer evidentes os mecanismos que

    conduzem a toda interpretao. Com essa expresso fazemos aluso a uma

    leitura que leva em conta determinados elementos prprios do ato de ler.

    Aqui expomos os principais:

    1. O sentido surge no cruzamento de um texto com um leitor.

    O leitor pode ser pessoal ou comunitrio, mas o que interessa

    aqui que o cruzamento exige dos dois realidades diferentes.

    Por um lado, a realidade do texto que em nosso caso um

    texto fixado pela sua condio de cannico e, por outro, a

    realidade do leitor. Enquanto que, ao completar a leitura, o

    primeiro permanece invarivel, o segundo modificado por

    ela. No somos mais os mesmos ou a comunidade no mais

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    a mesma depois de termos explorado o sentido de um texto

    e de havermos sido interpelados por ele.

    2. Todo texto tem uma reserva de sentido que se revela na leitura. Mas a leitura no pode esgotar essa reserva, pois toda leitura

    est condicionada pelo contexto do leitor que lhe permite

    descobrir ou atualizar um sentido, mas persistem outros

    que sero atualizados em futuros encontros. A esse processo

    chamamos de releitura porque os textos bblicos por sua

    natureza so lidos e relidos por cada gerao. De modo que

    o texto se revela como uma realidade insondvel da qual, por

    mais que se o interprete e estude com profundidade, sempre

    haver mais gua para beber desse poo.

    3. A afirmao no ponto anterior se prolonga na constatao de

    que os textos so polissmicos. Isso quer dizer que abrigam uma multiplicidade de sentidos e que requerem ferramentas

    para traz-los luz. Apesar disso valer para toda escrita um

    poema, uma novela no caso dos textos bblicos, adquire uma

    dimenso particular, pois lidamos com textos de elaborao

    complexa e, em quase todos os casos, produto de sucessivas

    redaes. Esta redao progressiva complica a aproximao ao

    texto, mas, ao mesmo tempo, o enriquece, pois o revela no

    s como testemunho do passado, como tambm do percurso teolgico e conceitual impresso nele.

    4. Um texto uma entidade objetiva e fechada porque o texto

    j no pode ser modificado -, porm esse texto fechado

    aberto quando interpretado num estudo comunitrio ou

    no ato de pregar sobre ele. A tarefa do intrprete abrir o

    texto para exp-lo no comentrio ou na pregao. Ao faz-lo

    traz a nova realidade de leitura, que sua prpria realidade.

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    5. A hermenutica afirma que o exerccio da interpretao faz

    crescer o sentido. Uma leitura literal, parcial ou tendenciosa, oferecer pouco retorno hermenutico. Poder ficar na

    superfcie da narrativa ou buscar concordncias com a

    realidade para aplicar o que se narra a situaes parecidas da

    vida cotidiana. Este ltimo tem seu valor, porm no esgota

    o valor do texto, antes pode limitar o sentido do texto. Pelo

    contrrio, deve-se compreend-lo como uma realidade a ser

    interpretada a partir de diversos ngulos ou que abre a uma

    pluralidade de sentidos que antes permaneciam latentes. A

    mensagem de um texto cresce na medida em que o exploramos

    com ferramentas diversas, sem que ningum pretenda ter a

    exclusividade de ser a nica chave de leitura.

    As trs dimenses do textoOs textos seculares ou profanos tambm participam de vrias destas

    caractersticas, mas os textos bblicos tm elementos que os distinguem. Eles no vm de nenhum valor mgico, mas do fato de ser fruto de um

    longo processo de elaborao e de serem textos coletivos e annimos que

    em sentido inverso se apresentam como obra de um s autor. A fim

    de dar conta dessa realidade que falamos de um por trs do texto.

    Este consiste no processo que conduziu a que o texto que temos hoje

    como cannico chegou a ser. Por exemplo, podemos distinguir diferentes

    mos nos livros de Isaas ou de Zacarias ou no livro de Joel. A formao

    do Pentateuco outro claro exemplo de diversas obras concatenadas. O

    esforo em descobrir o caminho que o conduziu, desde os estgios orais

    conformao de blocos textuais e, finalmente, o livro que conhecemos

    hoje, um trabalho que nos ajuda a evitar as leituras literais ou ingnuas.

    Quando consideramos trs ou quatros estratos em Isaas, descrevemos, por

    um lado, o longo processo de produo que conduziu obra que temos

    hoje, mas, por outro lado, no mbito da mensagem, afirmamos que o que

    interessa de um texto o que ele diz e no quem o diz. O autor material do

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    texto diludo e cresce o autor semitico, que a figura virtual que subjaz

    a toda narrao e que se observa ao considerar a dimenso sincrnica do

    texto. Mas agora o que nos interessa destacar que os textos bblicos, por

    sua natureza, tm um por trs que revela sua condio de obra composta

    ao longo de sculos e por diferentes mos. Costuma-se dizer que h uma

    arqueologia dos textos bblicos no sentido de que se busca reconstruir um

    hipottico texto original a partir dos restos literrios que sobreviveram

    no texto atual. um erro hoje cada vez mais comum considerar que

    o sentido do texto aparece quando se descreve ou distingue esses estgios

    anteriores. Quando se pensa assim, se distinguem textos originais do

    autor de textos agregados, tardios, glosas, etc. e se considera que

    os textos originais so os que revelam a verdadeira mensagem, enquanto

    que os demais so secundrios. A perspectiva hermenutica no aceita tal

    distino e considera que estudar os distintos estratos permite compreender

    a histria do texto, suas repeties e lacunas, e que isso contribui para a

    interpretao. Mas considera que os textos chamados secundrios so obra

    da redao final e so to importantes como os outros porque revelam o

    processo de expanso do texto e colocam em evidncia a teologia do relato

    final e definitivo, que o que coloca o marco literrio em toda a obra. O

    sentido no ser encontrado num texto fragmentado, mas na compreenso

    da totalidade da obra. Buscar e ficar nos supostos textos originais obscurece

    boa parte do potencial do texto e desvia o sentido da obra como totalidade.

    A segunda dimenso o texto em si mesmo, como uma entidade aca-

    bada e sujeita a uma estrutura literria. Esta dimenso tem sido explorada

    pela semitica e outras disciplinas da linguagem que desenvolveram para a

    literatura que, como bvio, no possui um por trs do texto nem uma

    arqueologia. Considera o texto tal qual ele , sem indagar pelos seus estgios

    anteriores e busca descrever as relaes internas que geram o sentido. H

    dois nveis desta anlise do texto. Um que indaga as profundas relaes e

    revela os valores que esto em jogo em cada texto. Esclarece os atuantes e

    os eixos de sentido e descreve as foras distintas em conflito em geral em

    pares de oposio . til, se estas aparecem confusas ou contraditrias

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    e, portanto, requerem ser explicadas. Um segundo nvel a anlise da su-

    perfcie do texto e o que chamamos de anlise literria. Estuda, descreve,

    avalia as relaes presentes no texto tais como os personagens, os cenrios,

    a evoluo da trama, as palavras-chave, as voltas lingusticas. Quando

    pertinente, busca comparar o texto em questo com outros textos bblicos

    ou extrabblicos no que chamamos de intertextualidade. A anlise literria

    considera cada detalhe do texto como um ator semitico. Por exemplo, se

    um livro proftico comea com a informao da data da atuao do profeta,

    no se pergunta sobre a veracidade dessa informao; antes ela assumida

    como informao semitica que oferece sentido ao relato. Se os Cantares

    so atribudos em 1.1 a Salomo, no interessa constatar se, na realidade,

    ele foi o autor, mas se faz a pergunta: que significa que o livro diga que foi

    composto por Salomo? Ao ver que Gn 12.10-20 e 20.1-18 narram duas

    histrias muito parecidas sobre Abrao e Sara, a pergunta da semitica

    qual o sentido de constarem estas duas histrias. A anlise do por trs

    nos revela que cada histria provm de fontes distintas (a primeira, javista;

    a segunda, elosta), mas isso no suficiente para explicar a presena de ambas narrativas, pois o narrador poderia ter omitido uma delas. A anlise

    literria observar que uma cena acontece no Egito enquanto a outra em

    Gerar, prximo de Cana; que o expulsam do Egito no fim, enquanto que,

    em Gerar, os acolhem e lhes do animais e dinheiro, e lhes oferecem que

    escolha uma terra para viver. Estes e outros detalhes ampliaro o sentido

    dos textos e permitiro uma indagao que levar a interpretar o porqu

    de incluir as duas narrativas.

    Uma vez percorrido o texto pela anlise literria, compete passar di-

    menso seguinte. Chamamos de diante do texto a tarefa hermenutica

    propriamente dita. Esta se desenvolve como uma explorao do sentido

    do texto. J mencionamos que todo texto tem uma reserva de sentido a

    ser investigada pelo leitor ou a comunidade que l. A situao do leitor

    de certo modo privilegiada porque dotada do que chamamos o trplice

    distanciamento. O primeiro distanciamento do autor material do tex-

    to que, ao produzir uma obra e d-la por acabada, se afasta dela e ela

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    adquire autonomia em relao a ele. A busca pelo autor histrico de um

    texto bblico do Antigo Testamento no faz sentido, em primeiro lugar,

    porque no contamos com ferramentas para reconstruir o passado em

    seus detalhes; porm, mesmo que, em algum caso, se pudesse estabelecer

    no teria nenhum valor no momento de interpretar o texto, pois pouco

    importa quem construiu a obra, mas o que ela diz. Uma vez constituda a

    mensagem e as relaes semnticas que a compem, j no precisam do

    autor material, a ponto de se poder dizer que, para efeitos hermenuticos,

    o autor est morto.

    O segundo distanciamento o que corresponde ao interlocutor ao qual

    o texto foi dirigido pela primeira vez. Sucede o mesmo que com o autor

    que, ao perder-se o contexto da comunicao e desconhecer-se a situao

    particular desse interlocutor, a pergunta por suas preocupaes e interesses

    perde todo sentido. A pergunta pelo que quis dizer o autor e pelo que

    pde significar para os primeiros ouvintes ou leitores tem valor como parte

    por trs do texto, como uma reconstruo hipottica que fornece um

    aspecto valioso e a considerar, porm que reconhecemos como limitado e

    necessitado de ser superado na aproximao hermenutica.

    O terceiro distanciamento tem a ver com o contexto inicial que pode

    ser social, psicolgico ou cultural e esta requer algumas precises. O

    contexto inicial tambm desaparece no texto, porm em algumas ocasies

    substitudo pelo que chamamos de contexto textual. pouco o que

    se pode dizer do contexto, por exemplo, de uma coleo de Provrbios,

    mas como ler um livro como Daniel cujo contexto textual a corte do

    rei Nabucodonosor na Babilnia, porm que a crtica bblica nos mostra,

    sem dvida alguma, que foi escrito durante as perseguies de Antoco IV

    Epfanes (meados do sc. II a.C.)? A princpio, devemos perguntar-nos o

    que significa esta transferncia contextual do sculo II para o VI, qual seu

    interesse, porque foi eleito como contexto textual. preciso investigar o

    que ocorria em Jerusalm naquele momento (sculo II) para que induza a

    escolha para o relato de um contexto distinto do prprio. Se a narrativa se

    situa num momento determinado, esse contexto tem valor semitico, com

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    a independncia de sabermos que no o contexto material da produo

    do texto. O mesmo vale para toda informao sobre o tempo ou lugar que

    um relato informa. Como informao oferecida pelo relato, indicador de

    sentido totalidade da obra. Deve-se insistir em afirmar que o esforo da

    crtica bblica em descrever o contexto social, religioso, cultural em que

    surgiu cada livro um aporte de grande valor, que, a princpio, evita as

    leituras literalistas e simplistas, mas, como j percebemos, o sentido no

    est nessa reconstruo, porm a hermenutica se aproveita dela para ir

    mais alm.

    Da experincia aos textos

    Ao chegar a este ponto vemos que a hermenutica se desdobra no diante

    do texto mas no esquece nem descarta as outras duas dimenses -. Aps

    ter passado pelas outras anlises, a interpretao explora o sentido do texto

    para a situao particular do leitor ou de sua comunidade, sentido que ser

    desvelado, caso se produza a devoluo da mensagem ao mbito da vida.

    A experincia humana na histria, nos acontecimentos relevantes para a

    vida pessoal ou de um povo, caso seja profunda e deixe marcas, narrada

    e, portanto, gera uma palavra que transmitida de forma oral de uma

    gerao a outra. Chega um momento que essa tradio quando permanece

    e se deseja preservar das distores prprias da fala se pe por escrito e

    se torna texto. Um povo produz muitos textos, mas alguns deles recebem

    uma ateno especial por sua condio de representar aquilo que constitui

    a si mesmo e d sentido sua existncia; esses textos adquirem um valor

    fundamental para estruturar a identidade religiosa, poltica e cultural da

    comunidade. Quando ocorre isso, o texto se fixa, adquire valor como

    escritura sagrada e se converte em cnon. O que descrevemos pode ser

    observado na maneira como os livros do Antigo Testamento foram escritos,

    mesmo se vemos que cada um tem seus prprios matizes.

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    O Cnon

    Uma forma de clausura ou fechamento do texto o que chamamos de

    cnon. Isso ocorre porque um cnon no pode ser modificado, nem se pode

    acrescentar ou tirar pginas. Isso acontecia quando a narrativa ainda no

    era cannica, mas, sim, uma coleo de tradies reverenciadas, porm

    abertas a modificaes. Entretanto, ao canoniz-las, se fecha o processo de

    crescimento material do texto. Contudo, toda comunidade que gera um

    cnon necessita que esse texto lhe sirva para viver e interpretar sua vida

    atual. Embora aparentemente seja um registro do passado todo cnon

    narrao de acontecimentos do passado, seja as oraes, bem como os

    salmos ou as reflexes dos sbios expressas em provrbios ou em poemas

    se espera que o texto feito cnon ilumine o presente e seja uma palavra

    atual. E como palavra atual, modifica o leitor e o conduz a mudar seu

    presente e a histria que vive. De modo que o texto que nasceu de uma

    experincia vital devolvido vida na releitura que muda a vida do leitor

    e o conduz a modificar sua realidade pessoal, social e poltica. A releitura

    chega a seu ponto culminante na proclamao da Palavra, que quando

    os textos voltam a confrontar-se com a vida e a enriquecer a experincia

    histrica. Neste sentido, na perspectiva da comunidade que entesoura

    uma escritura sagrada, esse texto para sempre eterno e contemporneo.

    A circularidade hermenutica

    Aqui preferimos falar de circularidade no lugar da clssica expresso

    crculo hermenutico. Com ela se expressa o processo que se faz de um

    ponto de partida at outro e, depois, a outro, at que se retorna ao ponto

    inicial, mas agora modificado pela leitura; dali volta a iniciar o caminho

    e a circularidade. Como entidade, a hermenutica excede a leitura de

    textos, porm imprescindvel compreender sua dinmica para avali-la

    de forma plena. Concretamente, a leitura da Bblia no um ato isolado de outras experincias, seja social ou religiosas e, sim, acontece no mbito das tradies judaicas e crists, participa de suas teologias e da compre-

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    enso prpria da experincia de f. Foi Juan Luis Segundo quem definiu

    com muita clareza este aspecto do ato hermenutico em sua obra clssica

    Liberacin de la Teologa, publicada em 1973. Ele o descreveu como a contnua mudana de nossa compreenso da Bblia em funo da cont-

    nua mudana de nossa realidade presente, tanto individual como social.

    Logo se levanta que o crculo se rompe, caso a teologia considere que pode

    responder s perguntas do presente sem ser ela mesma modificada ou sua

    leitura da Bblia, ou se nossa interpretao da Bblia no muda frente aos

    novos problemas e perguntas e, portanto, estas permanecem sem resposta

    ou recebem respostas velhas, inteis ou conservadoras. O crculo tem

    quatro pontos e, neste caso, os adaptamos linguagem desta Introduo:

    1. O primeiro a interpretao da realidade que nos leva a

    suspeitar que nossa compreenso dos fatos histricos ou

    personagens pode estar equivocada.

    2. O segundo ponto a aplicao dessa suspeita teologia e

    maneira de ler a Bblia.

    3. O terceiro ponto , como consequncia do anterior, que

    revisamos nossa teologia e a leitura de Bblia, e a relemos.

    4. O quarto consiste em que o resultado dessa releitura uma nova

    hermenutica bblica que conduz a uma nova interpretao da

    realidade. E comea a circularidade...

    Este breve esquema nos permite visualizar o quo importante a

    hermenutica para a leitura bblica, pois no se trata somente de voltar a

    ler os textos antigos, mas de que essa leitura modifique nossa compreenso

    da histria, da teologia e da vida. Temos sinalizado com acerto que no

    um esquema rgido e que se pode ingressar no crculo por qualquer um de

    seus pontos. Em algumas ocasies, a leitura (ou releitura) de um texto

    bblico que nos desperta a uma nova interpretao da realidade e, a partir

    dali, pe-se o crculo a andar.

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    Crticas e riscos da perspectiva hermenutica

    So duas as principais crticas aproximao hermenutica dos textos

    bblicos. Uma delas aponta que a hermenutica, por sua prpria natureza,

    se torna um subjetivismo. Sustenta-se que, se o leitor gera o sentido, a con-

    sequncia natural disso ser que a interpretao ir expressar sempre seus

    prprios gestos, interesses e tendncias. Cada ideologia ou teologia ajustar

    sua interpretao a seu prprio perfil e, portanto, no h uma verdadeira

    aproximao ao texto para ver o que h nele, mas que s uma desculpa

    para dar matiz bblico a decises tomadas anteriormente.

    A segunda observao que a hermenutica no uma instncia crtica,

    mas o final do processo de leitura levado a cabo pelos mtodos crticos,

    sejam os histrico-crticos, estruturais ou literrios. Se for assim, o que

    chamamos perspectiva hermenutica no agregaria nada ao que, por du-

    zentos anos, a leitura crtica tem feito, qualquer que seja seu smbolo ou

    tendncia, porque a hermenutica no seria outra coisa que a homiltica, a

    leitura popular ou a contemplativa: formas de interpretao que podem uti-

    lizar os resultados da investigao crtica, mas que so independentes dela.

    Diferentemente de uma crtica, devemos considerar o que aqui cha-

    mamos um risco a evitar para quem abraa a perspectiva hermenutica.

    Algumas vezes, ouve-se falar que, considerando a leitura como criao de

    sentido, nega-se a objetividade do texto. Sustenta-se que, se todo texto

    lido a partir do ponto de vista particular do leitor ou da comunidade

    leitora, este tem como corolrio que no h texto externo ao processo de

    leitura. Conclui-se que o texto bblico e todo texto que se leia no

    uma entidade autnoma e, portanto, no oferece um sentido a ser explo-

    rado, a no ser que o seu sentido se construa em sua totalidade em cada

    ato hermenutico. Esta postura tambm encontra certo respaldo material

    na situao do cnon. Se no levarmos em conta um texto cannico, mas

    uma lista de livros e, por sua vez, se esse texto (hebraico ou grego) tem

    variantes que a crtica textual deve analisar, chegamos concluso de que

    tampouco existe um texto objetivo, mas uma multiplicidade de cpias e

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    verses dentre as quais tem que se optar para chegar a um texto sobre o

    qual logo se executar o ato hermenutico. A isso se agrega que as distintas

    tradies crists Ortodoxos, Catlicos Romanos, Protestantes sustentam

    como cannicas diversas colees de livros; diante dessa situao, como

    possvel que se fale de um texto objetivo e cannico como entidade prpria

    e externo ao leitor?

    As trs observaes so sagazes e expressam riscos comprovveis que

    o hermeneuta deve evitar. No primeiro caso, sem dvida uma interpreta-

    o simples do texto, baseada na prpria experincia do leitor e em seus

    conhecimentos sejam muitos ou poucos , dificilmente no culmina em

    uma leitura que reflita seus prprios interesses e os de sua comunidade, e

    revele pouco da mensagem do texto. Contra este risco preciso recordar

    que toda hermenutica deve se basear numa leitura crtica do texto em

    todos os seus nveis, desde a crtica textual, passando pelo estudo do con-

    texto literrio e social presente no texto, at as exploraes da estrutura

    do texto. O subjetivismo presente em muitas pregaes e outros modos

    de leitura so produto no da atividade hermenutica, mas justamente de

    sua ausncia.

    A segunda crtica nos leva considerar um dos pontos centrais do processo

    hermenutico. Consiste em que a conscientizao de que toda leitura um

    processo hermenutico de seleo e criao de sentidos leva a suspeitar e

    ver de forma crtica as ferramentas tcnicas que so utilizadas no processo.

    Isso assim porque se reconhece que o recurso aos distintos mtodos de

    anlise no so atos puros e alheios a tendncias filosficas, teolgicas e

    at ideolgicas. Desde a traduo de um texto hebraico ou grego que, em

    alguns casos, ao optar por uma leitura reflete posies alheias ao texto (tais

    como moralismo, tendncias culturais, racismo e outras formas de desvios

    de sentido) at a aplicao ao texto de mtodos que provm da literatura

    ou da lingustica, requerem uma considerao crtica para evitar possveis

    desvios metodolgicos. Em xodo 1.2-4, os nomes dos filhos de Jac so

    enumerados em grupos com o fim de destacar as mes de cada um, porm

    geralmente, nas tradues, apresentada uma lista corrida de nomes que

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    torna difcil descobrir esse detalhe. Quando a mulher de Cantares diz

    em 1.5 sou negra e formosa, a maioria das tradues apresenta porm formosa, manifestando esperamos que inconscientemente prejuzos

    culturais e at raciais. Considerar a traduo como parte de um processo

    hermenutico e no uma cincia objetiva e sem tendncias permite

    colocar em evidncia estas irregularidades e refletir sobre elas. O mesmo

    vale para as leituras que vinculam o histrico como ferramenta principal

    da interpretao. importante saber como era a sociedade israelita no

    tempo dos diferentes profetas ou da elaborao dos textos sapienciais, mas

    devemos lembrar que toda reconstruo do passado precria e sujeita

    a que novas descobertas a modifiquem. De modo que, ao dar um alto

    valor ao contexto de produo do texto a fim de assegurar uma leitura

    crtica, corre-se o risco de considerar como slida uma ferramenta que,

    na verdade, voltil. A perspectiva hermenutica considerar os dados de

    matiz histrica presentes no texto mesmo quando estejam distantes da histria factual como um dado semitico que influencia na construo

    do sentido. A atribuio a Moiss de todo o Pentateuco (Dt 31.24) no

    tem apoio na histria factual, mas tem valor semntico e desempenha

    um papel muito importante na forma como o Pentateuco se oferece a si

    mesmo ao leitor. Desta maneira, a perspectiva hermenutica questiona o

    zelo excessivo pela origem histrica de um texto, mas valoriza os dados

    histricos que o texto apresenta ao dar-lhes valor como atores semiticos

    e, portanto, reconhecendo sua condio de criadores de sentido do texto.

    A ltima observao no menos importante, pois questiona a existncia

    de um dos pontos do ato hermenutico. A diversidade de cnones no afeta

    as doutrinas centrais das distintas igrejas. Por outro lado, a crtica sobre a

    dificuldade em definir o texto devido multiplicidade de variantes no

    supera o fato de constatar que, ao observar as variantes dos diferentes ma-

    nuscritos, vemos que estas se tornam mais graves quando consideramos o

    versculo isoladamente e se diluem, se as colocamos no contexto maior da

    passagem ou do livro em questo. Nenhuma variante, por mais significativa

    que seja, chega a alterar o sentido geral de um livro ou de uma corrente

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    de pensamento dentro dos textos bblicos. Mas o ponto mais srio o que

    comentaremos a seguir.

    H um texto a ser lido ou s temos leituras de um texto? A herme-

    nutica pressupe o encontro entre o leitor e um texto. O sentido surge

    desse encontro, mas, enquanto o leitor modificado pela leitura, o texto

    permanece invarivel. Isso vale para uma obra de Lope de Vega1 que

    ser encenada dezenas de vezes com matizes prprios dados pelo diretor

    e seus atores e ainda mais para a hermenutica bblica cuja contrapartida

    do leitor um texto cannico. verdade que um texto no at o mo-

    mento em que lido, mas tambm certo que a multiplicidade de leituras

    possveis no infinita, pois esto limitadas pelo texto em si: um texto

    passvel de mltiplas interpretaes, porm o intrprete no pode dizer

    que o texto afirma algo que ele no afirma. Ao observar um dicionrio da

    lngua, percebemos que um reservatrio quase infinito de combinaes

    das quais um texto uma combinao particular e nica de uma seleo

    de palavras contidas neste dicionrio. Por isso, um texto uma realidade

    imensa, mas no infinita e, de certo modo, todo texto exige ao leitor que

    se submeta aos seus prprios limites semnticos. Isso significa que toda

    interpretao todo intrprete deve prestar contas perante o texto

    que tem diante de seu particular modo de interpret-lo. Ao aplicar estas

    reflexes ao texto bblico, podemos ver que as narraes do evangelhos

    ou do Gnesis so, para uma comunidade do sculo XXI que os l, uma

    fonte de orientao para sua f e prtica crist assim como emocionaram a

    Agostinho, no sculo IV, Teresa de vila, no sculo XVI, ou John Wesley,

    no sculo XVIII. A perspectiva hermenutica explora e tira proveito dessa

    dupla condio do texto de entregar-se para que o leitor o percorra e, ao

    mesmo tempo, estabelecer os limites de sua leitura e evitar desvios. Sem

    um texto externo ao leitor no existe leitura possvel.

    1Flix Lope de Vega Carpio foi um dramaturgo espanhol que viveu entre 1562 a 1635, criador da comdia espanhola e prolfico autor de obras literrias na lngua espanhola (nota do tradutor).

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    A PLURALIDADE TEOLGICA

    DA BBLIA: POLIFONIA OU

    CACOFONIA DA F?

    Erhard S. Gerstenberger1

    [email protected]

    A leitura mais comum e simples da Bblia pressupe uma ho-mogeneidade na sua mensagem e nas suas expresses de f. Os estudiosos, no entanto, j admitem atualmente que ela guarda diferentes concepes teolgicas, decorrentes de diferentes contex-tos originais, como a casa ou o palcio monrquico, por exemplo. Essa pluralidade enriquecedora no mundo atual, em quase tudo diferente das estruturas da poca da Bblia. Leva-nos a pensar na aceitao da diversidade e no a impor violentamente um nico modelo de f e de sociedade.

    Palavras-chave

    Diversidade Antigo Testamento culto familiar culto estatal santu-rios locais dilogo inter-religioso

    1Erhard Gerstenberger alemo, pastor luterano, estudou teologia em Marburg, Tbingen, Bonn e Wuppertal. Lecionou em Wuppertal, Yale (EUA), So Leopoldo (Brasil) e Marburg. autor de muitos livros e artigos em alemo, ingls e portugus.

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    1. Normalmente, leitores e leitoras da Bblia leem os textos

    sagrados como se fossem um livro coerente e uniforme, partindo

    do pressuposto de que a voz divina igualmente soa por pgina aps pgi-

    na do volume amado. Existe algo de verdade nesta perspectiva. Mas, se

    queremos entender melhor a palavra eterna, que s fala no verncu-

    lo (Pedro Casaldliga), temos que considerar os contextos histricos e

    culturais, nos quais surgiram as palavras particulares dentro do conjunto

    bblico. As cincias vetero e neotestamentrias dos ltimos dois sculos e

    meio descobriram a grande variedade de testemunhos antigos, sendo eles

    via de regra annimos, que contriburam na composio e transmisso

    das palavras queridas. So, ento, milhares de pessoas que, ao longo do

    desenvolvimento do cnon bblico (ca. 1100-100 a.C. para o AT e 50-150

    d.C. para o NT) formulavam e reformulavam as mensagens de vida e f

    contidas em inmeros gneros literrios da antiguidade oriental. Ser que

    um livro to misto e refinado por geraes de colaboradores pode falar

    com uma nica voz?

    2. Grande parte dos biblistas modernos admite a heterogenei-

    dade das tradies antigas bem como a particularidade e a contextualidade

    das interpretaes hodiernas. Mesmo assim, eles muitas vezes continuam

    a procurar a unidade doutrinria da Escritura, a harmonia das diferentes

    conceituaes teolgicas dentro da Bblia, a no-ambiguidade das normas

    ticas, a concordncia de vises variadas do mundo e da humanidade, na

    antiguidade mesma e tambm em relao aos parmetros modernos, etc. Os

    meios de harmonizao so diversos. Bem frequentemente, os intrpretes

    da Bblia declaram uma ideia das Escrituras, uma camada bblica, uma figura

    literria, um evento histrico, etc., a coisa mais importante ou central de

    todo o cnon. Prosseguem por subordinar outras constelaes ao assunto

    principal predileto ou as ignoram completamente. Desta forma, surge uma

    interpretao mais ou menos homognea das Escrituras to complexas e

    diversas. Vale investigar a riqueza teolgica prpria das Escrituras.

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    3. Como se apresenta a pluralidade teolgica no AT?

    Os autores individuais e annimos dos escritos nunca pensaram em uma

    coletnea final chamada Bblia, com tantas camadas literrias, livros par-

    ticulares, poesias, narraes, pores legislativas, adorativas, meditativas,

    etc. No s autores originais falhavam em prever o cnon completa dos

    escritos hebraicos. Tambm os transmissores dos textos tradicionais ainda

    no enxergaram o conjunto da Escritura Sagrada. Mesmo aqueles escribas

    e peritos da herana espiritual de Israel que conscientemente tentaram

    ajuntar as palavras de Jav a partir do sculo 5 a.C. mal imaginaram o cnon

    do primeiro sculo d.C. (e tambm este foi objeto de mudanas atravs

    dos sculos seguintes at hoje). O que , ento, que ns podemos descobrir

    no Antigo Testamento da nossa herana confessional (isto , os escritos

    hebraicos traduzidos por cones da igreja como Lutero ou Almeida ou os

    mesmos escritos transmitidos na cultura grega e latina apresentam grandes

    diferenas de composio e contexto cultural)?

    Certamente, poderamos analisar o AT meramente sob aspectos cul-

    turais, conceituais, lingusticos. Mas as estruturas sociais, bem visveis no

    AT, exerciam papel importantssimo na articulao da f adequada a cada

    nvel da sociedade. Por isso, tentemos incluir os aspectos sociolgicos em

    nossa argumentao, sem deixar de lado os momentos relevantes da histria

    cognitiva e intelectual. Enxergamos, no AT, os cinco nveis principais de

    organizao do povo de Israel ao longo da sua histria religiosa (cf. Gers-

    tenberger, 2007).

    3.1 F em divindades protetoras de famlias e cls

    notvel a clareza com qual a transmisso das lendas patriarcais (Gn

    12-36) confia no organismo familiar como receptor e guardio da religio

    primordial. Abrao e a sua descendncia, alm de ser prottipo do pai do

    povo todo (cf. Gn 12.2; 15.18; Ex 2.24; etc.) representa um chefe familiar

    e, assim, a teia de parentesco ntimo. O deus dos pais, identificado por

    Albrecht Alt em 1929 como modelo arcaico de religio no Oriente Mdio

    Antigo (cf. Toorn, 1996), na verdade, era um protetor do grupo ntimo

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    da sociedade. Ele cuidava dos problemas bsicos da famlia: procriao,

    bem-estar, sade (cf. os salmos de queixa individuais). A permanncia

    da famlia dependia muito das mulheres e de sua capacidade de fornecer

    prognitos masculinos. Assim, a concorrncia de Raquel e Lia em dar luz

    a filhos masculinos (Gn 29-30) no s serve para narrar os incios do povo

    de Israel, mas, no fundo, aponta aos desejos fundamentais das famlias.

    No de estranhar, portanto, que as mulheres em casa cuidavam das pe-

    quenas esttuas das divindades protetoras caseiras (Gn 31.19, 30-35; 1Sm

    19.11-16), quer dizer do deus do pai. Este mesmo deus caseiro estava

    localizado no umbral da porta (Ex 21.6). Artefatos cultuais encontrados

    por escavaes arqueolgicas em moradias simples de israelitas antigos

    confirmam a existncia de cultos familiais (cf. Schroer, 1987). Mais ainda,

    a tradio larga e profunda mesopotmica, de tratar pessoas doentes atravs

    de cnticos e preces, refletida tambm nos salmos individuais de queixa

    (ou lamentao), implica nas divindades de proteo familiar e de deuses

    maiores. Em todos os casos, a religio familiar nasceu nos grupos primrios

    da pr-histria e se manteve bsica at tempos modernos, embora a famlia

    perdeu muito da sua importncia desde o incio da poca industrial. A f

    vivida neste grupo ntimo se desenvolvia no mbito dos interesses e vivncias

    desse organismo fundamental da humanidade. Existem diferenas enormes

    entre a f familiar e a f de outras organizaes sociais.

    3.2 Assentamentos locais e os seus santurios

    Os livros histricos (no judasmo chamados de profetas anteriores)

    do AT falam muito dos santurios locais (bamot, morros, cf. Gleis, 1997) da poca pr-estatal. Supostamente, eles foram destrudos por

    reis de Jud, fieis a Jav, por constiturem cultos alheios e proibidos pela

    teologia deuteronomista (1Rs 14.22-23; 15.12-14; 2Rs 12.4; 14.4; etc.).

    A verdade histrica um pouco diferente. O Javismo exclusivo s surgiu

    depois da derrota da monarquia em Jud; a concentrao do culto do Jav

    nico e universal em Jerusalm apenas aconteceu com o segundo templo

    (dedicado 515 a.C.). Isto quer dizer que os santurios locais funcionavam

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    legitimamente pelo menos at o fim do reinado de Jud (586 a.C.). Que

    tipo de teologia se vivia nestes cultos locais?

    Um assentamento de vrias famlias dentro de uma aldeia ou cidade exige

    outras estruturas de vida, diferentes das existentes nos grupos primrios. A

    convivncia maior de 50 at 1000 cidados no pode mais ser organizada

    conforme as regras de solidariedade de sangue, do parentesco mais ntimo.

    A se assume uma responsabilidade total para com um membro do grupo

    nuclear, filhos para os pais, mulher para homem e vice-versa (com limitaes

    patriarcais!). Quanto mais distante se torna a relao parental, tanto menor

    vale a solidariedade pessoal (cf. os costumes de vingana de sangue ou do

    casamento do levirato - Dt 25.5-10; Rt 4.1-11). Regras de convivncia ou

    leis civis tm que ser estabelecidas e aprovadas, de preferncia provindas

    de autoridades divinas. O culto local, portanto, tem que garantir a paz e

    a justia internas da comunidade. Outros assuntos de significado comu-

    nitrio certamente eram interesses bsicos comuns, a saber, o bem-estar

    do organismo social, especialmente em termos de fertilidade das roas e

    dos rebanhos, a segurana externa, os interesses econmicos (intercmbio

    de bens naturais e do artesanato), as regras de exogamia. Nestes campos

    da vida, precisavam-se de divindades de porte maior do que de proteo

    simples. Alguns nomes locais dentro do territrio judaico revelam que

    divindades como Anat e Baal serviam como chefes de cidades (Js 15.9-

    10, 29; 21.18; 1Rs 2.26; Jr 1.1). Tambm Jerusalm mostra sua afinidade

    com um deus antigo shalim (fundao do Shalim). Jav no ocorre em nomes geogrficos; s em nomes pessoais. O culto em lugares pequenos

    acontecia em um morro perto do assentamento. Os utenslios do recinto

    sagrado eram, muitas vezes, um altar para sacrifcios sangrentos e smbolos

    da presena de Baal (estela do membro viril) e de Asherah (rvore ou polo

    de madeira; Jz 6.25-32). Templos de material com sacerdcio estabelecido

    constituram santurios mais afluentes e com fama regional (cf. Shiloh;

    Arad; Nob; Gibeo).

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    3.3 O deus guerreiro de tribos e alianas de tribos

    Povos nmades ou seminmades via de regra se organizam em cls

    itinerantes ou tribos de forma segmentria e sem cabea autoritria

    (a-cefala; cf. Sigrist, 1967). A coeso vivencial desses grupos sociais

    sempre precria; predominam, entre os seus interesses comuns, a ne-

    cessidade de se defender contra os povos vizinhos e manter o usufruto

    de um territrio que garanta a sobrevivncia dos rebanhos bem como a

    oportunidade de caar, recolher frutos selvagens e praticar agricultura.

    Crculos de ancios, quer dizer, conselhos de chefes dos cls, debatiam

    assuntos importantes e tomaram decises por unanimidade. A religio

    comum de tribos ou alianas de tribos se limitava mais ou menos a um

    culto guerreiro (cf. por exemplo, as tribos indgenas dos Estados Unidos

    nos sculos 18 e 19). Deus defendia os direitos tribais e um lder especial

    era nomeado por aclamao do povo ou por determinao divina (cf. 1Sm

    10.1-6, 19-24). Ele exercia uma autoridade maior nas necessrias batalhas

    de defesa. No AT, os juzes [comandantes] de Israel representam tais

    figuras carismticas, inclusive em guerras santas de sobrevivncia. Parece

    que a arca da aliana originalmente era um smbolo porttil da presena do

    Deus Jav, tpica divindade tribal da guerra (cf. Nm 10.35-36). Saul e Davi

    comeavam a sua carreira como lderes tribais. Davi ainda usava para a sua

    orientao em tempos de conflito um sacerdote especialista que consultava

    Jav atravs dos urim e tumim, contidos em uma caixa chamada efod (1Sm 14.18; 23.6, 9-12), um tipo de adivinhao tribal. A histria tardia

    da arca se conta em 2Sm 6. Jav, provavelmente herdado dos midianitas

    (cf. Ex 18), recebeu o sobrenome deus dos exrcitos [celestes] (2Sm

    5.10; 1Rs 19.10, 14). Ele decididamente entrou nas batalhas das suas tri-

    bos com troves, relmpagos, granizo, tempestades e conquistou a vitria

    (Ex 15.21; Jz 4-5; Sl 68). pouco provvel que as tribos israelitas tenham

    mantido santurios locais estveis, embora o AT mencione alguns lugares

    de encontro tribal (Gilgal; Shiloh; Siqum; etc.). Sobre rituais avulsos,

    irregulares s podemos especular. Contedos principais imaginveis so

    sacrifcios e preparaes para a guerra. Orientaes ticas para a vida diria

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    provavelmente no fizeram parte de cultos mveis.

    3.4 Davi e a construo de um culto estatal

    Uma ruptura profunda, socialmente dita, aconteceu com a introduo

    da monarquia em Israel (ca. 980 a.C.). Os livros do AT de Juzes e de

    Samuel deixam transparecer uma resistncia forte contra a autocracia dos

    reis vindouros (cf. Jz 9.7-21; Crsemann, 1978). Essa crtica implica con-

    tornos religiosos. A hibris dos governantes semi-divinos destri o equilbrio

    da sociedade (cf. 1Sm 8.10-18; crtica retrospectiva deuteronomista). Foi

    justamente isto o que aconteceu em Israel. Os reis davdicos transformaram

    o culto tribal de Jav em uma religio estatal (2Sm 6-7; 1Rs 4.4) visando a

    permanncia eterna da dinastia governante (2Sm 7; Sl 89). O rei terrestre

    foi considerado, conforme padres tradicionais do Oriente Mdio Antigo,

    o filho de Deus (Sl 89.20-30; 2.7-9; 110.1-3) e vice-regente do Deus

    supremo na terra. Encontram-se perfis plausveis do rei quase omnipo-

    tente (2Sm 8.1-2; 1Rs 5.1-14, 27-32; 11.1-3) bem como perfis religiosos

    anacrnicos (2Sm 6.5, 14 - Davi dana diante da arca; Dt 17-14-20 o rei

    como estudante da Tor; 1Rs 8.12-61 - o rei como pregador sinagogal). O

    templo central da capital era propriedade do rei; os sacerdotes chefiados

    por Zadoque, velho sumo-sacerdote jebusita, eram funcionrios do governo

    real (2Sm 8.17). O santurio de Jerusalm, desta forma, de jeito nenhum

    servia diretamente ao povo. Este, por sua vez, com grande concordncia

    da corte, venerava as suas divindades caseiras e locais. Os sacrifcios e

    outros rituais da capital serviam para fortalecer e manter a dinastia real e,

    atravs do rei regente, manter o povo em sujeio. Tal teologia centralizada

    tornou o monarca como funil das graas divinas. A fertilidade das terras

    e dos rebanhos, as vitrias nos conflitos inevitveis, a justia da sociedade

    civil, a sade dos cidados e pees, isto , o bem-estar da nao toda fo-

    ram mediadas ou administradas pelo rei (cf. Sl 20; 21; 72 etc.). Ao todo,

    o servio a Jav dominava a corte e a capital de Israel. Como mostram os

    nomes pessoais da poca, o javismo entrou tambm na esfera pessoal da

    f. O deus nacional foi abraado em determinados crculos como protetor

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    individual (cf. Norin, 2013), como era costume no Oriente Mdio Antigo

    (cf. nomes com Baal, Marduque; Hadad; Ishtar etc. cf. Fowler, 1988). Isso

    tudo, no entanto, no impedia a adorao de vrias divindades nos nveis

    familiares e locais da sociedade israelita na poca dos reis.

    3.5 A inveno da organizao eclesial

    Um modo de crer muito novo tinha que se desenvolver aps da derrota

    do reinado de Jud diante dos babilnios em 587 a.C. Este fato histri-

    co constituiu a quebra mais profunda da existncia do povo israelita. A

    destruio da cidade e templo, o fim da dinastia davdica considerada

    eterna e a deportao da elite judeia para Babilnia significaram a perda

    da identidade tnica e religiosa do povo. O trauma do exlio se gravou na

    conscincia judeia da para frente, mas ele tambm se tornou uma fora

    inovadora considervel. Os exilados formavam comunidades distintas na

    Babilnia com certa autonomia civil sob liderana de ancios (Ez 1.1; 3.15;

    8.1; 14:1; Ed 2.59). Os judeus participavam, ao que parece, livremente da

    vida em sociedade (os arquivos de Murashu mostram clientes com nomes

    judeus: Stolper, 1985). Ao mesmo tempo, j existia uma comunidade de

    judeus no Egito, formada por mercenrios a servio do governo imperial.

    Esta congregao, conforme documentos escavados, vivia a sua prpria f

    atravs de um culto a Jav e sua companheira Anat-Bethel ou Aschim-

    -Bethel, em um templo distinto, mas em certa unio com os judeus de

    Jerusalm e Samaria (cf. Porten, 2011).

    A existncia de comunidades variadas de confisso javista nos leva a

    imaginar a potncia da f em Jav nas condies novas do imprio persa

    (cf. Gerstenberger, 2013). A congregao se reunia ao redor da Tor (Ne

    8; Sl 119). Cada um dos membros e cada famlia confessava sua adeso

    a Jav (Js 24.14-15; Dt 29-30: prdicas de converso). A comunidade se

    constitua por decises pessoais (familiares), no mais por descendncia

    paternal (como a f familiar). Os smbolos de pertena eram o sbado, a

    circunciso, a dieta especial (pura), as festas anuais, as peregrinaes, as

    regras de matrimnio, a relao com estrangeiros. No centro da vida co-

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    munitria se desenvolvia, na poca exlica e ps-exlica, o culto sinagogal da

    palavra. O primeiro vestgio claro a leitura da Tor por Esdras diante do

    povo unido (Ne 8.5-11), prottipo de liturgias sinagogais: leitura contnua,

    traduo para o vernculo (aramaico), interpretao por levitas, responsrios

    da assembleia. Faltavam apenas a parte dos hinos e das preces na liturgia.

    A estima pela Tor se reflete em Sl 1; 19 e 119 entre outros.

    Nenhum outro perodo da histria israelita foi to influente como este

    do imprio persa (539-331 a.C.; cf. Gerstenberger, 2013). As estruturas

    scio-religiosas da comunidade judeia confessional ou eclesial se pro-

    longaram para o cristianismo e o isl. Muitos detalhes da vida espiritual

    (festas; liturgias; traje dos sacerdotes; etc.) se perpetuaram nas religies

    seguintes. Tambm as conceituaes teolgicas seguem um padro comum.

    A comunidade religiosa confessional providencia, por um lado, um Deus

    bem pessoal, guardio do crente (no seu mbito grupal = paroquial), isto

    , parceiro e supervisor individual. Tal ideia provm, realmente, da religio

    familiar, agora com conotaes comunitrias. Em segundo lugar, o Deus

    da comunidade judaica era um deus da aliana, que apoiava o seu povo

    eleito dentre todas as naes do mundo (cf. Dt 7). Terceiro, o Deus Jav

    se tornou o Deus universal e exclusivo, porque a comunidade pequenssima

    em um imprio vasto tinha que se defender contra a presena esmagadora

    de Ahura Mazda, divindade superior dos Aquemenidas. Por outro lado,

    a falta de qualquer polmica contra a religio de Zoroastro pode levar a

    uma outra hiptese: o Deus universal Jav poderia ser considerado, quem

    sabe, o mesmo como Ahura Mazda, sob um nome judeu. O deus que A

    e a nica verdadeira divindade (Is 41.4; 44.6; 48.12; etc.) e tambm

    governador dos povos todos. Ele manda at o rei Ciro ser o messias de

    Israel (Is 44.24-45:7). Parece que a teologia do deus universal persa foi

    roubada dos imperialistas e incorporada em uma teologia israelita.

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    4. Como lidar com as variedades de f em parte sucessivas e

    em parte contemporneas dentro do AT?

    Fica claro que o AT no ensina uma teologia homognea, mas, sim, con-

    ceituaes de Deus contextualizadas. O Deus eterno s fala no vernculo

    (Pedro Casaldliga). Ou com palavras do Paulo: Cristo se esvaziou-se a

    si mesmo, e assumiu a condio de servo ... (Fl 2.7) e de Joo: O verbo

    se fez carne (Jo 1.14); Isto todo significa, visto por outro lado, que as

    capacidades mentais, intelectuais, lingusticas humanas no so capazes de

    entender a plenitude divina. A cautela da proibio de imagens (Ex 20.4-

    6) tambm toma conta desse fato das limitaes humanas. Mais ainda, da

    nossa perspectiva de hoje, afirmaes teolgicas (e seculares), por causa de

    razes epistemolgicas (cf. Ernst Cassirer; Michel Foucault; Bruno Latour

    e muitos outros), no podem acontecer do lado objetivo, divino, mas, sim,

    apenas do lado subjetivo, do crente. Podemos, isto sim, falar dos conceitos

    bem limitados de Deus, no do Senhor em si, em afirmaes essenciais.

    Em outras palavras: no possvel de captar, com os nossos meios sensuais

    e intelectuais, a realidade do outro, do mundo, de Deus. Gostamos, isto

    sim, da iluso de que a coisa por si mesmo seria alcanvel e manipulvel.

    O que realmente temos so imagens fabricadas pelos nossos crebros das

    experincias, sentimentos, preconceitos que constituem a nossa pessoa.

    Como conseguimos, ento, discursos teolgicos vlidos em nossos mbitos

    vivenciais?

    4.1 Para chegar perto de um discurso teolgico atual, temos

    que refletir a situao prpria de hoje em termos de nveis sociais, heran-

    as culturais, gneros sexuais, etc. e as mensagens diferentes da Bblia.

    As estruturas sociais, com certeza, mudaram pelos sculos passados, mas

    igualmente existem certas constantes antropolgicas. A grosso modo, os

    contornos teolgicos parecem alterados sobretudo nas esferas pessoal e

    global. Quais as camadas sociais principais onde acontece o crer em Deus

    hoje? A famlia perdeu bastante do seu significado desde a poca industrial.

    Hoje, raramente existem grupos ntimos de parentesco vivendo, trabalhan-

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    do, festejando em conjunto todos os dias da vida. As foras centrifugais do

    trabalho moderno enfraqueceram a coeso familiar. Cada pessoa tem que

    se cuidar por si mesmo, perseguir uma educao particular, lidar uma vida

    autnoma financeira e emocionalmente. A internet aumentou o isolamento

    do indivduo. Agora, a f uma coisa bem pessoal. Ningum mais deveria

    mexer com as convices espirituais do outro, mesmo dentro do grupo

    ntimo de parentesco. Da, embora a f na Bblia j fosse atributo da prpria

    pessoa, hoje em dia ainda mais o crente decide para si sozinho sobre a sua

    confisso religiosa, dividindo ainda mais as famlias. Da perspectiva bblica,

    abraamos, devido ao nosso modo de viver, um individualismo muito exa-

    gerado. Esse desenvolvimento geral, de fato, vai alm da individualizao

    antiga, e dificulta tendncias de unir e controlar as pessoas autnomas.

    (Existem outros fatores, no entanto, que promovem a massificao das

    populaes). Deus procurado como sustentador do indivduo.

    Agrupamentos secundrios sempre desenvolviam as suas maneiras de

    crer. Nem todos organismos sociais chegam a um culto explcito. De certo,

    porm, eles cultivam convices comuns, interpretaes do mundo, regras

    e valores sagrados. No mundo de hoje existem talvez mais tipos do que

    nunca de aglomerao social, clubes e associaes de interesse, profisso,

    ideologia poltica ou econmica. O nmero de organizaes espirituais,

    eclesiais, cultuais cresceu enormemente. Tambm as denominaes crists,

    judias, islmicas so incontveis. No fundo, porm, todos esses conjuntos

    civis ou religiosos seguem a linha antiga de arrumarem as suas prprias

    crenas. A teologia oficial deveria saber disto. Um papel especial (de-

    pois do sculo 19, que inventou o super-nacionalismo) ainda resta com

    os estados modernos. Eles ainda exigem a ltima fidelidade das pessoas,

    como se fossem divindades verdadeiras. As organizaes universais, como

    as prprias Naes Unidas, infelizmente, recebem uma ateno muito

    menor. Mas justamente os organismos globais, em muitas reas da vida,

    vo ser decisivos para a sobrevivncia da humanidade.

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    4.2 Outras mudanas histricas entram no quadro e tm que ser

    reconhecidas. Hoje, a humanidade, pelo menos parcialmente, vive em um

    mundo cientfico-tcnico, pressupondo relaes causais mecnicas em

    certas reas de vida. Por exemplo, doenas para ns normalmente tm

    origem no em vontades ms, mas, sim, atravs de infees ou processos

    qumicos nas clulas. O universo funciona por foras fsicas de expanso

    e rotao. A vida toda se desenrola por si mesma, sem a interferncia de

    entidades divinas externas. Quer dizer: os fenmenos naturais tm uma

    autonomia no personalizada. Isto tudo influencia por muito a conceituao

    teolgica. As mitologias antigas ao mximo constituem projees metaf-

    ricas do super-humano. Precisamos uma lngua condizente aos padres de

    pensar de hoje. Admite-se, porm, que boa parte dos seres humanos de

    hoje ainda est aderindo aos padres antigos de pensar. Isto , eles per-

    manecem, parcialmente, em um mundo pr-esclarecido, confiando em

    adivinhos, astrologia, magia, anjos, foras demonacas, etc. Mesmo assim,

    os crentes participam, tambm parcialmente, na vivncia causal-mecni-

    ca, no progresso cognitivo. Raramente resistem o progresso maravilhoso

    alcanado nos laboratrios de pesquisadores. Quem iria rejeitar um trata-

    mento medicinal em caso de perigo de vida? Consequentemente, ento,

    eles tm que articular a sua f em Deus tambm de maneira cientfica.

    4.3 Quais os valores ticos e mandamentos de Deus para

    hoje? Fica claro, de vez em quando, que as normas sociais da Bblia no

    oferecem mais orientaes vlidas para hoje. Por exemplo, ns cremos na

    democracia em vez da monarquia bblica. Ns acreditamos nos direitos

    humanos, sem considerar raa, gnero, confisso, nacionalidade, etc. Ns

    admitimos vrias formas de convivncia familiar. As experincias modernas

    da guerra quase excluem a admisso de conflitos violentos como soluo

    de problemas internacionais. Experincias modernas quase exigem uma

    alterao do mandamento: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra

    e submetei-a (Gn 1.28) por causa do excesso de populaes e a rpida

    deteriorao das condies de vida. Como avaliamos as normas sociais e

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    ticas de hoje? Temos que modificar as orientaes bblicas?

    4.4 Qual a viso legtima hodierna de terra, humanidade e

    histria luz de Bblia? legtima uma teleologia da histria mundial,

    da criao at a consumao do planeta e do universo? Os astrofsicos

    contam uma estria diferente daquela do AT. O universo agora to

    imenso que o nosso sistema solar fica insignificante. Mesmo se o nosso sol

    vai consumir-se em 5 bilhes de anos, o resto do universo no vai tomar

    conhecimento desse fato. Galxias inteiras implodem e nascem todos os

    dias no universo incompreensvel. A humanidade planetria, em todos os

    casos, tem pouco a ver com tal acontecimento distante. As histrias das

    criaturas terrestres se perdem no espao universal. O novo cu e a nova

    terra so sonhos irreais nos horizontes modernos. Podemos contar, isto

    sim, com grandes catstrofes no nosso planeta, mas dificilmente vamos

    chegar a um fim definitivo do sistema solar. As especulaes bblicas (e

    de outras escrituras sagradas) sobre um juzo final so construes antigas

    bem limitadas. O cosmos dos nossos antepassados, sabemos disso, contava

    com um universo geocntrico (!) de poucos mil quilmetros de largura e

    uma histria mundial com alguns milhares de anos de durao. E as nossas

    suposies quanto ao espao e tempo do universo?

    4.5 Os desafios teolgicos de hoje, ento, so claros: enfren-

    tamos uma cincia potente, tecnologias que se aproximam da categoria

    super-humana, uma economia global destruidora, uma poltica catica

    mundial que incapaz de lidar com os problemas criados pela humanidade.

    Como afirmar a f em Deus no contexto do mundo de hoje?

    a) Cada nvel da sociedade precisa de uma ateno teolgica bem como

    uma pregao especfica. Cada pastor sabe que isto a realidade dura e

    opressora das comunidades de hoje. Os indivduos necessitam fortaleci-

    mento e proteo para no serem esmagados pelos organismos potentes

    dos gigantes econmicos, polticos, militares. Deus, hoje em dia e mais do

    que nunca, um pai/uma me dos humildes, excludos, desrespeitados.

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    b) As famlias, ou melhor, as microestruturas da sociedade, enfraque-

    cidas, mas ainda de grande valor como fundamento da arquitetura social

    maior, reclamam amparo espiritual. Uma pastoral dos grupos ntimos pode

    ser o centro do trabalho paroquial. Sabemos bem que, nesta rea, mudaram

    os parmetros da convivncia. Lembremos, no entanto, que a Bblia tambm

    conhecia diferentes modelos de matrimnio e de convivncia (cf. Abrao e

    suas esposas; Rute e Naomi; Eliseu e os seus discpulos etc.). Hoje em dia,

    vive-se abertamente muitas formas de relaes de amor e solidariedade

    porque antigos tabus caram. Deus age como protetor dos grupos pequenos

    e minoritrios, podemos dizer.

    c) Organizaes secundrias entre famlia e estado hoje em dia tm boas

    razes de ser. Promovem elas, via de regra, o bem-estar dos adeptos ou

    membros e contribuem para a sade e felicidade de indivduos, bem como

    a estabilidade da sociedade maior. Teologias para estes grupos incluem a

    mensagem da irmandade e da paz entre entidades separadas. Os estados

    nacionais, por sua vez, merecem respeito religioso, mas tm de evitar o

    absolutismo tradicional. E os organismos eclesisticos, a partir da Bblia,

    no so chamados para dominar terras e povoaes, mas, sim, para servi-las.

    d) A pluralidade de confisses e articulaes de f facilmente pode

    resultar em uma cacofonia feia. imprescindvel, portanto, balancear as

    teologias pluriformes de um local, de uma regio, de um continente, da

    terra toda. Cada teologia tem o seu direito de ser, mas apenas dentro das

    teias sociais mais abrangentes. O indivduo no deve se orgulhar das bnos

    de Deus, ou seja, dos bens materiais provindos dos cus, se tantas outras

    pessoas so desprivilegiadas e sofrem fome. Famlias no podem se tornar

    dinastias de explorao do povo. Associaes quaisquer, incluindo naes e

    igrejas (religies organizadas), no so legtimas de assumirem posturas de

    vice regentes divinos. Deus nos livre! Os conceitos teolgicos reconhecidos

    na Bblia e realizados em nossos contextos vivenciais devem trabalhar em

    favor de uma polifonia universal, honrando o Deus nico e mundialmente

    ativo, atravs de tantas formas e conceitos. A ideia da justia superior e

    geral, incluindo os direitos humanos e a subsistncia para todos, fica bem

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    atual e fundada na Bblia.

    Concluses

    A pluralidade das confisses e crenas da Bblia conforme organizaes

    sociais diferentes (quem sabe se existem outras perspectivas fundamentais

    formativas?) enriquecedora e no destrutiva. Ela nos alerta para o fato

    de que ns mesmos estamos vivendo em diversas teias de relaes, que

    exigem cada vez mais anlises prprias e respostas teolgicas. A prtica pastoral nos ensina que sempre h necessidade de mensagens particulares

    para as associaes humanas diferentes. Na prtica, as igrejas crists (e

    outras religies) prestam ateno aos desejos, nsias, esperanas espirituais

    (enquanto esto legtimas!) de grupos distintos da comunidade. A plurali-

    dade de conceituaes e discursos teolgicos pode ser uma sintonia, mas

    traz consigo conflitos e possveis dissonncias. Por isso, os crentes, inclusive

    os telogos profissionais, tm a dura responsabilidade de mediar os nveis

    e articulaes conflitantes de f. At que ponto o indivduo tem que se

    adequar s exigncias espirituais da comunidade (ou da igreja toda, da na-

    o, da humanidade)? Na antiguidade bblica, certamente, a famlia e seu

    chefe valiam mais do que o membro solteiro (cf. Gn 12.10-20; 20.1-13, a

    entrega da mulher). Temos que ajustar a balana hoje mais para o lado do

    indivduo e a sua conscincia? Como podemos alcanar a unio de todos,

    da qual fala Jesus em Joo 17? A avenida certa a via dos dilogos inter-

    -confessionais e inter-religiosos sob condies iguais. O Deus universal tem

    que falar dialetos, porque as nossas mentes so incapazes de compreender

    ou articular uma lngua divina absoluta.

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    RITUAIS E INSTITUIES

    LITRGICAS DO ANTIGO

    TESTAMENTO E SUAS

    ATUALIZAES

    Dallmer Palmeira Rodrigues de Assis1

    O tema dos rituais e instituies litrgicas est sempre em pauta, pois so fundamentais para compreender a forma como a comunidade se encontra com Deus. Desde os tempos remotos os povos elaboraram oraes, rituais e consagraram lugares especiais para a adorao da divindade, cuja denominao em geral era de uma casa para o ser divino. Israel tambm adotou essa prtica, e com ele toda a tradio crist, em particular na tradio reformada. Por isso, conhecer o sentido desses elementos e atualiz-los tem muita relevncia para a identidade e a forma como a comunidade expressa sua f e adorao a Deus.

    Palavras-chave

    Liturgia Ritual Casa de Deus Templo Liturgia Reformada

    1 Dallmer Palmeira Rodrigues de Assis pastor da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, Mestre em Cincias da Religio (UMESP) e ex-professor da FATIPI

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    Uma palavra de gratido especial FATIPI (Faculdade de Teologia de

    So Paulo da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil) pela oportu-

    nidade de discusso de um tema to relevante quanto este que vivido

    no centro das comunidades presbiterianas independentes em todo o Brasil

    diariamente. O tema da liturgia e culto exige releitura em nossas comuni-

    dades para que haja, continuamente, vivificao das instituies litrgicas

    nas igrejas locais.

    Introduo

    Para este trabalho divide-se o tema em trs partes: na primeira, relem-

    bra-se o tema como era vivido nos templos e locais sagrados na poca do

    Antigo Testamento. Na segunda parte, revisa-se os conceitos prprios da

    Igreja Protestante Reformada no que se refere liturgia. Por fim, relembra-

    -se estes significados para uma cuidadosa atualizao nas comunidades de f.

    A ideia do encontro com Deus em comunidade expresso de vida que,

    muitas vezes, se confunde com a prpria existncia tanto pessoal quanto

    familiar, tribal e social. As manifestaes litrgicas do povo no passado e

    nas igrejas hoje revelam a identidade eclesistica, e muitas vezes respondem

    perguntas do tipo: Quem somos? De que forma existimos? O prprio texto

    bblico, como exemplo, apresenta, na boca de Miri, uma das mais antigas

    ou primeiras - formas de expresso litrgica comunitria de devoo a

    Deus no meio do povo: Cantai ao Senhor, porque gloriosamente triunfou e precipitou no mar o cavalo e seu cavaleiro (x 15.21), verso que revela quem era o povo e a situao vivencial naquele momento, pouco depois

    da sada do Egito.

    Igualmente um hino Acdio deusa Ishtar, escrito no final da primeira dinastia da Babilnia aproximadamente 1.600 a.C. - revela toda excelncia

    da divindade em relao aos outros deuses. Este antigo hino exprime quem

    era a deusa e o que pensavam seus seguidores quando cantavam: Hino a Ishtar: Louvada seja a maior de todos os deuses. Per-mitam reverncia senhora dos povos, a maior entre os grandes deuses dos cus. Louvada seja Ishtar, a maior de todos os deuses.

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    Permitam reverncia rainha das mulheres, a maior entre os grandes deuses dos cus. Ela est vestida com prazer e amor. Ela est cheia de vida, charme e volpia. Ela est vestida com prazer e amor. Ela est cheia de vida, charme e volpia (...).

    De forma que, sejam antigas ou mais recentes como orculos profti-

    cos do perodo ps-exlio, por exemplo - essas expresses comunitrias de

    devoo a Deus esto presentes na histria desde os tempos mais remotos

    e tm o objetivo de identificar o povo adoradores - em sua mais ntima

    relao com a divindade. De igual forma, as canes entoadas, as oraes,

    os sermes, as reunies nas casas, os coros das igrejas contemporneas

    mostram como se d essa expresso de adorao a Deus, revelando em

    ltima instncia sua identidade confessional e seus valores existenciais.

    O Antigo Testamento

    Olhando especificamente para o Antigo Testamento, h uma infinidade

    de possibilidades de leitura e estudo do tema. Para no ampliar demais o

    horizonte de reflexo, observa-se apenas a situao de Jud em Jerusalm

    no perodo que corresponde ao exlio e ps-exlio principalmente.

    Uma rpida, porm necessria, contextualizao proposta por Ro-

    land de Vaux que escreve: A queda de Jerusalm trouxe o desastre para

    o sacerdcio do templo. O sacerdote principal, o segundo sacerdote e os

    guardas da porta, ou seja, todos os oficiais do templo foram feitos cativos

    ou executados por Nabucodonosor, citando 2Rs 25.18. De acordo com

    o autor, a situao litrgica de Jud no perodo do ps-exlio era de quase

    total destruio.

    Para ilustrar ainda mais a situao da chamada casa do Senhor pelo autor bblico, veja o que relata o captulo 24.10-13 de 2Rs:

    Naquele tempo, subiram os servos de Nabucodonosor, rei da Babilnia, a Jerusalm, e a cidade foi cercada. 11 Nabucodo-nosor, rei da Babilnia, veio cidade, quando os seus servos a sitiavam. 12 Ento, subiu Joaquim, rei de Jud, a encontrar-se com o rei da Babilnia, ele, sua me, seus servos, seus prncipes

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    e seus oficiais; e o rei da Babilnia, no oitavo ano do seu reinado, o levou cativo. 13 Levou dali todos os tesouros da Casa do SENHOR e os tesouros da casa do rei; e, segundo tinha dito o SENHOR, cortou em pedaos todos os utenslios de ouro que fizera Salomo, rei de Israel, para o templo do SENHOR.

    A deportao e a execuo da liderana religiosa em Jerusalm no

    foram a causa dos maiores problemas. Nota-se, de acordo com o autor

    supracitado, que:

    A comunidade em Jud, de certa forma, ainda mantinha sua vida litrgica e religiosa em prtica. As pessoas ainda frequentavam os santurios nas provncias que reabriram depois das falhas da reforma josinica. Os mesmos cultos sincretistas, que foram proibidos antes da reforma, estavam sendo praticados nesses santurios. Contudo, algumas pessoas permaneceram fiis ao culto a YHWH.

    O autor escreve de um momento na histria de Israel que, por consequ-

    ncia dessa confuso generalizada em ambiente de destruio do templo e

    liturgia, que o povo maculou, trocou a adorao a YHWH por outros deuses.

    Para esse estudo, se torna demais valioso compreender o contexto so-

    bre o qual existem as instituies e rituais litrgicos no perodo do exlio

    e ps-exlio. A saber, os lderes religiosos so deportados ou executados.

    Os chefes do Estado so levados cativos. Os templos locais nas cidades

    so destrudos. Os que permanecem na terra procuram por outros deuses

    e os adoram. Uma minoria permanece fiel e lamenta diante das runas do

    templo: Disseram-me: Os restantes, que no foram levados para o exlio

    e se acham l na provncia, esto em grande misria e desprezo; os muros

    de Jerusalm esto derribados, e suas portas, queimadas (Ne 1.3).

    Assim, observa-se da anlise at o momento que a comunidade judaica

    tinha o templo como o centro de suas atividades litrgicas e cultuais. De

    forma geral, pode-se dizer que as manifestaes litrgicas veterotestamen-

    trias eram templocentristas. A prpria ausncia do templo revelava um

    tipo de relao existente entre o povo recm-chegado do exlio e Deus.

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