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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA N.º 116/2018 – SDHDC/PGR Sistema Único nº 218756/2018 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 5804/RJ REQUERENTE: Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – Adepol/Brasil RELATOR: Ministro Gilmar Mendes Excelentíssimo Senhor Ministro Gilmar Mendes, AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 13.491/17. ALTERAÇÃO DO ART. 9º, II, DO CÓDIGO PENAL MILITAR. AMPLIAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR, PARA ABARCAR CRIMES SEM RELAÇÃO COM BENS JURÍDICOS MILITARES. OFENSA À CONSTITUIÇÃO. LIMITE IMPLÍCITO À MARGEM DE DISCRICIONARIEDADE DO LEGISLADOR NA PREVISÃO DE CRIMES MILITARES. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO JUIZ NATURAL E DA IGUALDADE. OFENSA À JURISDIÇÃO INTERNACIONAL QUE RESTRINGE A ATUAÇÃO DA JUSTIÇA MILITAR A CASOS ENVOLVENDO A PROTEÇÃO A BENS JURÍDICOS CASTRENSES. LEI N. 9.299/96. INCLUSÃO DO §2º NO ART. 8º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR. PREVISÃO DO ENCAMINHAMENTO DO INQUÉRITO PENAL MILITAR À JUSTIÇA COMUM, NOS CASOS DE CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA PRATICADO POR MILITAR CONTRA CIVIL, DE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. ESPAÇO A INTERPRETAÇÃO QUE PERMITE A TRAMITAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL MILITAR EM HIPÓTESE EM QUE O CRIME NÃO ESTÁ SUJEITO À JURISDIÇÃO CASTRENSE. ART. 144, §§ 1º E 4º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. REPARTIÇÃO CONSTITUCIONAL DE COMPETÊNCIAS. CORRELAÇÃO ENTRE OS ÓRGÃOS APURATÓRIO E JULGADOR. PARECER PELA PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. A delegação ao legislador ordinário da definição de crime militar não oferta margem à fixação arbitrária de jurisdição militar fora do âmbito de crimes tipicamente militares, sem relação com a proteção de bens jurídicos castrenses. 2. A ampliação sem limites da competência da Justiça Militar, para Gabinete da Procuradora-Geral da República Brasília/DF Documento assinado via Token digitalmente por PROCURADORA-GERAL DA REPÚBLICA RAQUEL ELIAS FERREIRA DODGE, em 28/08/2018 16:58. Para verificar a assinatura acesse http://www.transparencia.mpf.mp.br/validacaodocumento. Chave 9F48ECE5.D805B453.4EDDD5C1.61C6CEE7

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N.º 116/2018 – SDHDC/PGRSistema Único nº 218756/2018

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 5804/RJREQUERENTE: Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – Adepol/Brasil RELATOR: Ministro Gilmar Mendes

Excelentíssimo Senhor Ministro Gilmar Mendes,

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N.13.491/17. ALTERAÇÃO DO ART. 9º, II, DO CÓDIGOPENAL MILITAR. AMPLIAÇÃO DA COMPETÊNCIA DAJUSTIÇA MILITAR, PARA ABARCAR CRIMES SEMRELAÇÃO COM BENS JURÍDICOS MILITARES. OFENSAÀ CONSTITUIÇÃO. LIMITE IMPLÍCITO À MARGEM DEDISCRICIONARIEDADE DO LEGISLADOR NAPREVISÃO DE CRIMES MILITARES. VIOLAÇÃO AOSPRINCÍPIOS DO JUIZ NATURAL E DA IGUALDADE.OFENSA À JURISDIÇÃO INTERNACIONAL QUERESTRINGE A ATUAÇÃO DA JUSTIÇA MILITAR ACASOS ENVOLVENDO A PROTEÇÃO A BENS JURÍDICOSCASTRENSES. LEI N. 9.299/96. INCLUSÃO DO §2º NOART. 8º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR.PREVISÃO DO ENCAMINHAMENTO DO INQUÉRITOPENAL MILITAR À JUSTIÇA COMUM, NOS CASOS DECRIME DOLOSO CONTRA A VIDA PRATICADO PORMILITAR CONTRA CIVIL, DE COMPETÊNCIA DAJUSTIÇA COMUM. ESPAÇO A INTERPRETAÇÃO QUEPERMITE A TRAMITAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIALMILITAR EM HIPÓTESE EM QUE O CRIME NÃO ESTÁSUJEITO À JURISDIÇÃO CASTRENSE. ART. 144, §§ 1º E4º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. REPARTIÇÃOCONSTITUCIONAL DE COMPETÊNCIAS. CORRELAÇÃOENTRE OS ÓRGÃOS APURATÓRIO E JULGADOR.PARECER PELA PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.

1. A delegação ao legislador ordinário da definição de crime militarnão oferta margem à fixação arbitrária de jurisdição militar fora doâmbito de crimes tipicamente militares, sem relação com aproteção de bens jurídicos castrenses.

2. A ampliação sem limites da competência da Justiça Militar, para

Gabinete da Procuradora-Geral da RepúblicaBrasília/DF

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abarcar todo e qualquer crime, mesmo que não mencionado noCódigo Penal Militar, rompe a lógica da especialidade que gerou aprevisão da Justiça Militar na Constituição, e desrespeita ajurisprudência internacional de direitos humanos, em especial a daCorte Interamericana de Direitos Humanos (cuja jurisdiçãocontenciosa obrigatória o Brasil reconhece desde 1998), querestringe a atuação da Justiça Militar a casos excepcionaisenvolvendo a proteção de bens jurídicos especiais, de naturezacastrense.

3. A alteração legislativa afronta, ainda, o princípio da igualdade,uma vez que crimes sem relação com a proteção jurídica de bensjurídicos castrenses passam ao julgamento da Justiça Militar tãosomente pela condição do perpetrador, e o princípio do juiznatural, porque amesquinha-se, sem justificativa legítima, acompetência da Justiça comum.

4. A Constituição da República bem delimita as funções eatribuições de cada um dos órgãos integrantes do sistemajudiciário brasileiro, e faz estrita correlação entre os órgãosjulgador e apuratório de crimes, não dando margem àinterpretação que permita a instauração e a tramitação de inquéritopolicial investigatório de crime doloso contra a vida de civil, queseja de competência da Justiça comum, no âmbito da JustiçaMilitar.

5. Parecer pela procedência do pedido.

I. OBJETO DA AÇÃO

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Associação dos De-

legados de Polícia do Brasil – Adepol em impugnação ao art. 9º, II, do Código Penal Mili-

tar (Decreto-Lei n. 1.001/1969), após a alteração promovida pela Lei n. 13.491/2017, e ao §

2º do art. 82 do Código de Processo Penal Militar, incluído pela Lei Federal 9.299/1996.

Eis o teor dos dispositivos, com destaque para os trechos impugnados:

“Art. 9°. Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

I - (...)

II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando pra-ticados: (Redação dada pela Lei n. 13.491, de 2017)

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situa-ção ou assemelhado;

b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administraçãomilitar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

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c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza mili -tar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra mili -tar da reserva, ou reformado, ou civil; (Redação dada pela Lei n. 9.299, de 8.8.1996)

d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, oureformado, ou assemelhado, ou civil;

e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a admi-nistração militar, ou a ordem administrativa militar;

f) revogada. (Redação dada pela Lei n. 9.299, de 8.8.1996)”

“Art. 82. O foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra a vida praticadoscontra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz:

§ 1º. (…)

§ 2º. Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar en-caminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum”.

A requerente apontou, em relação ao art. 82, § 2º questionado, violação ao art.

144, §1º, IV, e § 4º, da Constituição1, que atribui às polícias federal e civil as funções de polí-

cia judiciária e de investigação de infrações penais. Segundo seu entendimento, não caberia à

Justiça Militar a instauração de inquérito policial militar em hipótese em que a competência

para o julgamento do crime é do Tribunal do Júri.

Quanto à expressão “e os previstos na legislação penal” inserida no inciso II do

art. 9º, afirma que houve significativa ampliação da competência da Justiça Militar, para abar-

car crimes não previstos no Código Penal Militar e não relacionados diretamente à atividade

militar, quando praticados por militar nas situações descritas nas alíneas 'a' a 'e'.

Pede o deferimento de medida cautelar, apontando, como periculum in mora,

caso concreto em que já verificado conflito de atribuição entre a Polícia Civil e a Polícia Mi-

litar para a instauração de inquérito, e, em caráter definitivo, a declaração de inconstituciona-

lidade dos preceitos impugnados ou: (i) sucessivamente, a declaração de

inconstitucionalidade da “totalidade da legislação federal guerreada”; e (ii) subsidiariamente,

a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto.

1 “Art. 144. (…) § 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pelaUnião e estruturado em carreira, destina-se a: (…) IV – exercer, com exclusividade, as funções de políciajudiciária da União; (…) § 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem,ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, excetoas militares”.

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A Presidência da República, em suas informações, defendeu a constitucionalidade

dos preceitos impugnados.

Afirmou que a Constituição atribuiu ao legislador ordinário a definição de crimes

militares e assentou a competência da Justiça Militar para o seu processamento e julgamento

(art. 124), e que nesse contexto foi publicada a Lei n. 13.491/2017. Sem descaracterizar a ati-

vidade dos militares como tipicamente militar, a lei teria apenas ampliado as hipóteses de

crime militar, nos limites da permissão constitucional.

Ressaltou, de outro lado, que a Justiça Militar da União é órgão do Poder Judiciá-

rio, composto em primeiro grau por juiz togado e, na instância superior, por Ministros a quem

garantida vitaliciedade, e que conta, ainda, com a atuação do Ministério Público Militar, “ór-

gão de acusação civil sem qualquer subordinação ou mesmo vinculação com as Forças Ar-

madas”, o que viabilizaria um julgamento isento de influências corporativistas.

No que se refere à impugnação ao art. 82, § 2º, do Código de Processo Penal -

“nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os

autos do inquérito policial militar à justiça comum” -, esclareceu, primeiramente, que o pre-

ceito tem alcance somente aos militares estaduais, considerada a alteração legislativa que des-

locou para a Justiça Militar (da União) o julgamento de crimes de tal natureza quando

praticados por militares das Forças Armadas.

Afirmou que a investigação criminal não é exclusividade das polícias civil e fede-

ral, invocando julgados do Supremo Tribunal Federal que amparariam a alegação. Para afas-

tar a argumentação no sentido de atuação corporativista, faz exame comparativo com a

hipótese de crime praticado por policial civil, o qual será investigado pela própria Polícia Ci-

vil, indicando a falta de fundamentação idônea do raciocínio no âmbito do IPM.

A Advocacia-Geral da União também defendeu a constitucionalidade dos precei-

tos normativos.

Afirmou que, ao contrário do averbado pela requerente, o § 2º do art. 82 do CPM,

inserido pela Lei n. 9.299/1996, objetivou preservar a continuidade do trabalho investigatório

na esfera civil dos crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil, conside-

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rada a supressão expressa da jurisdição castrense, pela mesma Lei n. 9.299, para o julgamento

de crimes de tal natureza.

Argumentou que, de todo modo, como reconhecido pelo Supremo Tribunal Fede-

ral (ADI 1494, voto do Ministro Carlos Velloso), é legítimo atribuir ao juízo militar o exame

primeiro da questão, para definir se o crime é doloso e, a partir daí, encaminhar ou não os au-

tos do inquérito à Justiça comum. Além disso, como assentado no mesmo julgado, não seria

relevante que a apuração de tais crimes tivesse início na esfera militar, tendo em vista a dis-

pensabilidade do inquérito policial para efeito de ajuizamento de ação penal.

Quanto à alteração promovida no art. 9º, II, do CPM, disse estar “dentro do es-

paço de conformação legislativa” estabelecido pelo art. 124 da Constituição. Argumentou

que a configuração de crimes de natureza militar é determinada pela afetação a bens jurídicos

relacionados às instituições militares e que a expansão do conceito de crime militar no caso,

para incluir os previstos na legislação penal, não foi aleatória ou desarrazoada, uma vez que

em todas as hipóteses relacionadas nas alíneas do art. 9º, II, do CPM, os agentes ativos são

militares em atividade, em serviço ou atuando em razão da função, o que “é suficiente para

denotar a existência de nexo entre a conduta delitiva e os interesses que garantem a coesão

das forças militares” e, assim, ensejar a sua apuração pela jurisdição militar.

É o relato do essencial.

A ação deve ser conhecida e o pedido julgado procedente.

Conforme será demonstrado, as alterações promovidas pelas Leis n. 13.491/2017

e 9.299/1996 contrariam preceitos constitucionais, além de violar tratados de direitos huma-

nos celebrados pelo Brasil.

II. LEGITIMIDADE DA REQUERENTE E PERTINÊNCIA TEMÁTICA

Cabe o registro preliminar da legitimidade da requerente para o ajuizamento de

ação direta de inconstitucionalidade. Embora, em momento pretérito, fosse outra a orientação

do Supremo Tribunal Federal, a jurisprudência atual reconhece à Adepol – Associação dos

Delegados de Polícia, entidade de classe de âmbito nacional, que congrega a totalidade da ca-

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tegoria dos Delegados de Polícia (civis e federais), legitimidade ativa para exercício do con-

trole concentrado de constitucionalidade. São precedentes nesse sentido, entre outros: ADI

5240, Relator o Min. Luiz Fux, DJe de 1.2.2016; ADI 3469, Relator o Min. Gilmar Mendes,

DJe de 28.2.2011; ADI 4009, Relator o Min. Eros Grau, DJe de 29.5.2009; e ADI 3288, Rela-

tor o Min. Ayres Britto, DJe de 24.2.2011, este último assim ementado no ponto:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 51 DA LEI 15.301, DE 10DE AGOSTO DE 2004, DO ESTADO DE MINAS GERAIS. APLICAÇÃO IMEDIATADE SUSPENSÃO PREVENTIVA A SERVIDOR DA POLÍCIA CIVIL, ASSIM QUERECEBIDA DENÚNCIA PELA PRÁTICA DE DETERMINADOS CRIMES. VIOLA-ÇÃO ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, DOCONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA (INCISOS LIV E LV DO ART. 5º DA CF).1. A Associação dos Delegados de Polícia do Brasil tem legitimidade para a propositurada ação direta, pois constitui entidade de classe de âmbito nacional, congregadora de 'to-dos os delegados de polícia de carreira do país, para defesa de suas prerrogativas, direi -tos e interesses' (inciso IX do art. 103 da Constituição Federal). [...]”.

Quanto ao requisito da pertinência temática, parece não haver controvérsia acerca

de seu cumprimento, havendo nexo de afinidade entre a finalidade da associação de defesa

dos interesses da categoria e o objeto da ação, voltada à invalidação de efeitos de alteração le-

gislativa que interfere na atuação funcional das polícias civil e federal.

A presença do requisito foi confirmada por esse Tribunal em anterior ação pro-

posta pela Adepol, com pedido semelhante ao da presente, que acabou extinta, entretanto, por

ilegitimidade ativa da requerente, como entendido à época (ADI n. 1.494). É o trecho do jul-

gado a esse respeito:

“No caso, existe o nexo de pertinência temática, eis que o conteúdo da norma impug-nada (investigação policial-militar de crimes dolosos contra a vida de civil, praticadospor policiais militares ou membros das Forças Armadas, agora sujeitos à competência daJustiça comum) afeta, de modo direto, as atividades de polícia judiciária que incumbem,privativamente, aos Delegados de Polícia”2. (grifos retirados do original)

III. MÉRITO

III. 1 O ART. 9º, II, DO CÓDIGO PENAL MILITAR E A AMPLIAÇÃO INCONSTITUCIONAL DA

COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR

2 ADI n. 1.494-MC. Trecho do voto do Ministro Celso de Mello, Relator. Julgamento de 9-4-1997. DJ de 18-6-2001.

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O art. 9º do Código Penal Militar disciplina os crimes militares em tempo de paz.

Com a alteração promovida pela Lei n. 13.491/17, ampliou-se de modo bastante significativo

a competência da Justiça Militar: o inciso II ora impugnado passou a abarcar, considerando-os

de natureza militar, os crimes previstos nas legislações penais comum e especial quando pra-

ticados por militar (estadual ou federal), ainda que sem previsão no Código Penal Militar.

A redação revogada estipulava que:

“II- os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição nalei penal comum, quando praticados: (...)”

Assim, não era competente a Justiça Militar (dos Estados e da União) para julgar

os crimes previstos na legislação penal que não fossem contemplados no Código Penal Mili-

tar. Os crimes de abuso de autoridade, tortura, organização criminosa, associação para o trá-

fico, entre outros, não eram da competência da Justiça Militar, que, assim, restava

minimamente dentro da lógica de sua criação, que é de julgar crimes que efetivamente repre-

sentem violação dos deveres militares que afetem diretamente os bens jurídicos militares.

Não se trata de questionar a própria Justiça castrense, mas de reconhecer que, ao

menos, a redação ora revogada do art. 9º, II restringia a competência da Justiça Militar aos

crimes que, de acordo com o próprio legislador, acolhiam bens jurídicos merecedores de con-

formar uma codificação militar penal.

Com a revogação desse limite, a Justiça Militar (dos Estados e da União) abar-

cará, sem nenhuma restrição, novos crimes, mesmo aqueles sem nenhuma relação maior com

os bens jurídicos militares. Qualquer legislação penal extravagante adicional passa a ser, hi-

poteticamente, de competência da Justiça Militar, independentemente da presença de inte-

resse militar.

Sobre a conceituação de crime militar, indispensável à conclusão almejada, são

relevantes as considerações que relacionam a natureza de tal crime, necessariamente, ao bem

jurídico que a norma que o prevê busca preservar – a hierarquia, a disciplina e outros valores

militares -, devendo ser este o ponto limitador da atuação legiferante. José Afonso da Silva

observa, a esse respeito:

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“3. CRIMES MILITARES. São definidos em lei. Mas, como dissemos acima, há limitespara essa definição. Tem que haver um núcleo de interesse militar, sob pena de a leidesbordar das balizas constitucionais. A lei será ilegítima se militarizar delitos nãotipicamente militares. Assim, por exemplo, é exagero considerar militar um crime pas-sional só porque o agente militar usou arma militar. Na consideração do que seja'crime militar' a interpretação tem que ser restritiva, porque, se não, é um privilé-gio, é especial, e exceção ao que deve ser para todos”.3

No julgamento do RE n. 122.706, o voto do Ministro Pertence dá valiosa contri-

buição à definição de crime militar:

“54. Essa necessária congruência entre a definição legal do crime militar e as razões daexistência da Justiça Militar é o critério básico, que tenho por implícito na Constitui-ção, a impedir a subtração arbitrária da Justiça comum de delitos que não tenhamoutra conexão com a vida castrense e os interesses de sua administração que a condiçãomilitar das personagens.

55. Se se admite que sendo, o agente e a vítima, militares, isso é bastante para que se de-fina o crime como militar, também o seria, ao nuto do legislador, que o fosse só o agenteou apenas a vítima; e, contra os princípios fundamentais recordados por Barbalho eLaudo de Camargo, a Justiça especial já se destinaria não aos crimes militares, mas cri-mes dos militares ou contra os militares em detrimento do prestígio e da autoridade que,na sua órbita própria, são devidos aos órgãos da jurisdição castrense”.4

Com isso, há limite implícito à margem de discricionariedade do legislador na

forma de organização do Poder Judiciário previsto na Constituição, que vem a ser a enumera-

ção de crimes militares em uma codificação voltada a proteção de bens jurídicos tipicamente

castrenses.

A ampliação sem limites da competência da Justiça Militar, para abarcar todo e

qualquer crime, mesmo que não mencionado no Código Penal Militar, rompe a lógica da es-

pecialidade que gerou a previsão da própria Justiça Militar na Constituição.

Consequentemente, viola o princípio do juiz natural, ao transferir, de modo des-

proporcional, o julgamento de crimes que nem sequer constam do Código Penal Militar, para

a Justiça Militar (da União ou dos Estados), amesquinhando-se a competência da Justiça Co-

mum sem justificativa legítima.

3 SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros. 2ª ed. 2006, p. 588.4 Trecho de voto vencido do Min. Sepúlveda Pertence. RE n. 122.706/RJ, Relator para o acórdão Min. Carlos

Velloso, julgamento de 21-11-1990, DJU de 03.-04-1992.

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Também fica vulnerado o princípio da igualdade, uma vez que crimes sem rela-

ção com a proteção jurídica de bens jurídicos castrenses passam ao julgamento da Justiça

Militar tão somente pela condição do perpetrador. Não há razão objetiva para tal ampliação,

uma vez que o devido processo legal é assegurado na Justiça Comum e não há outro valor

castrense a ser defendido - tanto é assim que o crime previsto na legislação extravagante não

consta do Código Penal Militar.

Cabe notar que essa vinculação da competência da Justiça Militar à afetação de

bens jurídicos militares justificou, no passado, a edição do Verbete n. 172 da Súmula do Su-

perior Tribunal de Justiça, segundo o qual “compete à Justiça Comum processar e julgar mi-

litar por crime de abuso de autoridade, ainda que praticado em serviço". Não havia e nem há

motivo para justificar tal deslocamento de feitos.

A partir de tais premissas, não resta dúvida da inadequação do texto legal aos li-

mites impostos pelo constituinte.

O preceito vai de encontro, ainda, à jurisdição internacional de direitos humanos

que restringe a atuação da Justiça Militar a casos excepcionais envolvendo a proteção de

bens jurídicos especiais, de natureza castrense.

No plano normativo, as prescrições constantes da Declaração Universal de Direi-

tos Humanos, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14) e da Convenção

Americana sobre Direitos Humanos (art. 8º) garantem a todas as pessoas julgamento por tri-

bunais competentes, independentes e imparciais. Por isso, a Justiça Militar, por ser um foro

de jurisdição especializada, não pode ter sua jurisdição ampliada sem vinculação com a prote-

ção de bens jurídicos tipicamente militares.

Além disso, há tratados que expressamente excluem a atuação da Justiça Militar.

Nessa linha, a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, con-

cluída em Belém, em 10 de junho de 1994 e promulgada pelo Decreto 8.766/2016, exclui, em

seu artigo IX, expressamente a jurisdição militar em casos desta natureza, que normalmente

têm civis como vítimas:

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“Os suspeitos dos atos constitutivos do delito do desaparecimento forçado de pessoas sópoderão ser julgados pelas jurisdições de direito comum competentes, em cada Estado,com exclusão de qualquer outra jurisdição especial, particularmente a militar. (...)”

Por sua vez, há inúmeras sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos

(Corte IDH), a cuja jurisdição contenciosa obrigatória o Brasil já reconheceu, que expressa-

mente estabelecem severos limites à jurisdição militar, podendo ser citada a sentença no caso

Durand e Ugarte vs. Peru, no qual se assentou:

“117. Em um Estado democrático de direito, a jurisdição penal militar deve ter um al -cance restritivo e excepcional e estar direcionada a proteção de interesses jurídicos espe-ciais, vinculados com as funções que a lei atribui às forças militares. Assim, deve estarexcluído do âmbito da jurisdição militar o julgamento de civis e só deve julgar militarespelo cometimento de delitos ou faltas que, por sua própria natureza, atentam contra bensjurídicos próprios da ordem militar”5.

No caso Cruz Sánchez e Outros vs. Peru, mais recente, a Corte IDH reafirmou sua

jurisprudência sobre o limitado alcance da competência criminal da Justiça Militar nos Esta-

dos Partes da Convenção Americana de Direitos Humanos:

“397. A Corte recorda que sua jurisprudência relativa aos limites da competência da ju-risdição militar para conhecer fatos que constituem violações de direitos humanos temsido constante no sentido de afirmar que em um Estado democrático de direito, a jurisdi-ção penal militar há de ter um alcance restritivo e excepcional, e estar direcionada à pro-teção de interesses jurídicos especiais, vinculados às funções próprias das forçasmilitares. Por isso, a Corte tem assinalado que no foro militar somente se deve julgar mi-litares ativos pelo cometimento de delitos ou faltas que por sua própria natureza atentemcontra bem jurídicos próprios da ordem”6.

E, de modo mais amplo, no caso Nadege Dorzema e outros vs. República Domi-

nicana, a Corte IDH decidiu que:

“A jurisdição militar não é o foro competente para investigar e, se for o caso, julgar epunir os autores de violações de direitos humanos, mas o processamento dos responsá-veis cabe sempre à justiça ordinária”.7

5 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Durand e Ugarte vs Perú. Sentença de 16 de agosto de2000, parágrafo 117.

6 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Cruz Sánchez e Outros vs. Perú. Sentença de 17 de abrilde 2015, parágrafo 397.

7 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Nadege Dorzema vs. República Dominicana. Sentença de24 de agosto de 2012, parágrafo 181.

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Assim, a partir da submissão, voluntária, do Brasil a atos normativos internacio-

nais de proteção de direitos humanos, bem como à jurisdição contenciosa da Corte Interame-

ricana de Direitos Humanos, instalou-se a possibilidade – e necessidade – de exercício

permanente de controle de convencionalidade da normatização interna. Dever idêntico re-

sulta da própria Constituição brasileira, à luz do art. 7º do Ato das Disposições Constitucio-

nais Transitórias de 19888.

O controle de convencionalidade ressai desse compromisso. No campo dos direi-

tos humanos, como ensina André de Carvalho Ramos, estabeleceu-se sistema de duplo con-

trole dos atos normativos de direito interno: o controle de constitucionalidade nacional e o

controle de convencionalidade internacional.

Para o citado autor:

“Os direitos humanos, então, no Brasil, possuem uma dupla garantia: o controle de cons-titucionalidade e o controle de convencionalidade internacional. Qualquer ato ou normadeve ser aprovado pelos dois controles, para que sejam respeitados os direitos no Brasil.Esse duplo controle parte da constatação de uma verdadeira separação de atuações, naqual inexistiria conflito real entre as decisões porque cada Tribunal age em esferas dis-tintas e com fundamentos diversos”(grifo do original retirado) 9. Da necessidade dessadupla compatibilização abstrai-se a impossibilidade de alegações de impedimentolegal como tentativa de justificar o descumprimento de decisões da Corte IDH.

No mesmo sentido, Luiz E. Fachin, Miguel G. de Godoy, Roberto Dalledone M.

Filho e Luiz H. Krassuski Fortes sustentam, ao tratar da temática que:

“Esse duplo controle exige, dessa forma, que toda norma ou ato interno sejamcompatíveis com a Constituição da República e também com os tratados e con-venções internacionais de direitos humanos.” 10

Deve-se também levar em consideração o caráter materialmente constitucional

dos tratados internacionais de direitos humanos, o que implica reconhecer a necessidade de

8 “Art. 7º. O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos”. 9 CARVALHO RAMOS, André. Curso de direitos humanos. 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2018, p. 530.10 FACHIN, Luiz Edson; GODOY, Miguel G.; MACHADO FILHO, Roberto D.; FORTES, Luiz Henrique

Krassuski. “O caráter materialmente constitucional dos tratados e convenções internacionais sobre direitoshumanos” in NOVELINO, Marcelo e FELLET, André (coords). Separação de poderes – aspectoscontemporâneos da relação entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Salvador: JusPodivm, 2018, pp. 281-303, em especial p. 296.

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“uma narrativa conjunta de tais direitos, ao mesmo tempo fundamentais (Constituição) e hu-

manos (tratados e convenções na ambiência internacional), o qual enlaça os âmbitos interno e

externo de concretização a partir da interpretação e aplicação, tanto da Constituição quanto

dos textos normativos internacionais a qual o Estado brasileiro se vinculou” (grifo do original

retirado)11.

Em síntese, como visto, a gramática de direitos prevista na CF/88, bem com as

obrigações internacionais de tratados de direitos humanos (de natureza materialmente consti-

tucional, conforme o teor do art. 5º, § 2º, da CF/88), impõem que a jurisdição penal militar te-

nha competência restrita ao julgamento de crimes envolvendo violação à hierarquia,

disciplina militar ou outros valores tipicamente castrenses. Aplicada ao caso específico dos

autos, exigem o imediato afastamento da jurisdição militar para o processamento e julga-

mento de crimes previstos em leis extravagantes, e não na codificação militar.

III.2 O § 2º DO ART. 82 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR E A INTERFERÊNCIA INDEVIDA E

INCONSTITUCIONAL DA JUSTIÇA MILITAR NA APURAÇÃO DOS CRIMES DOLOSOS CONTRA A VIDA DE

COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM

O 2º do art. 82 do Código de Processo Penal, alterado pela Lei n. 9.299/1996, es-

tabeleceu que, nos crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil, “a Justiça

Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum”.

A alteração é contemporânea ao excepcionamento da competência da jurisdição

castrense para o julgamento de crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra ci-

vil, em tempo de paz: a partir daquele instante, com a edição da mesma Lei n. 9.299/1996,

garantia-se expressamente o julgamento de tais crimes pela Justiça comum. Houve alteração,

nesse sentido, do caput do art. 82 do Código de Processo Penal Militar e, simultaneamente, a

inclusão de parágrafo único no art. 9º do Código Penal Militar, que passaram a dispor:

11 FACHIN, Luiz Edson; GODOY, Miguel G.; MACHADO FILHO, Roberto D.; FORTES, Luiz HenriqueKrassuski. “O caráter materialmente constitucional dos tratados e convenções internacionais sobre direitoshumanos” in NOVELINO, Marcelo e FELLET, André (coords). Separação de poderes – aspectoscontemporâneos da relação entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Salvador: JusPodivm, 2018, pp. 281-303, em especial p. 298.

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“Art. 82. O foro militar é especial e, exceto nos crimes dolosos contra a vida pratica-dos contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz: (...)”12

“Art. 9º. Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: (…)

Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida ecometidos contra civil, serão da competência da justiça comum”.

A Emenda Constitucional n. 45/2004, em relação aos militares estaduais, alçou a

patamar constitucional a alteração legislativa, fazendo ressalva expressa da competência do

Júri quando a vítima for civil no § 4º do art. 125 da Constituição.

A competência referida sofreu mais duas alterações legislativas (ambas no Código

Penal Militar), pela Lei n. 12.432/2011, que criou a primeira exceção à competência da juris-

dição comum para o julgamento de tal espécie de crime – Lei do Abate – e, mais recente-

mente, pela Lei n. 13.491/2017, que trouxe novas e significativas exceções quando praticado

o crime por militar das Forças Armadas.

O Código de Processo Penal permaneceu inalterado no ponto.

Essa breve digressão serve para bem definir o objeto da presente ação, bem como

esclarecer os limites de incidência do preceito impugnado. O debate levado à apreciação do

Supremo Tribunal Federal não passa pelo exame da competência em si da Justiça Militar para

o julgamento de crimes dolosos contra a vida praticados por militar – esse tema é objeto de

ação própria -, nem terá como possível efeito, acaso julgado procedente o pedido, retirar da

jurisdição militar a apuração dos crimes cujo julgamento, por expressa previsão legal/consti-

tucional, lhe compete, ainda que tal previsão seja posterior à norma impugnada.

Trata-se aqui, unicamente, de aferir a legitimidade da tramitação de inquérito po-

licial militar nas hipóteses em que o julgamento do referido crime é de competência da

justiça comum, fora das exceções previstas pelas Leis n. 12.432/2011 e 13.491/2017.

Eis a única questão a ser dirimida, portanto: é legítima a atuação da Justiça Mili-

tar na apuração de crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militar que sejam, por

previsão legal, da competência da Justiça comum?

12 Eis a redação original do preceito: “art. 82. O foro militar é especial e a ele estão sujeitos, em tempo depaz: (...)”.

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A resposta é negativa.

Em primeiro lugar, não cabe, para rebater a tese de inconstitucionalidade, a alega-

ção de que a norma do art. 82, § 2º, do CPPM veio apenas evitar fossem arquivadas, na Jus-

tiça Militar, as investigações sobre homicídios dolosos contra a vida de civis praticados por

militares iniciadas antes da alteração promovida pela Lei n. 9.299/1996.

A afirmação faria pleno sentido se compreendido o preceito impugnado como re-

gra de transição: retirada a competência da justiça militar para o julgamento de crimes dolo-

sos contra a vida de civil (caput do art. 82 do CPPM), o § 2º impugnado teria imposto a

remessa imediata, ao órgão de investigação civil, dos inquéritos policiais militares já instaura-

dos no momento da edição da lei. Seria consequência lógica da aplicabilidade imediata da al-

teração legislativa de competência.

Como regra de transição, entretanto, teria já há muito exaurido os seus efeitos.

Não foi o que ocorreu.

O texto do preceito tem dado espaço a interpretação que, ainda hoje, permite a

instauração de inquérito policial militar em hipótese em que o crime não está sujeito à jurisdi-

ção castrense, para só posteriormente ser encaminhado à esfera comum.

É possível dizer que, passados mais de vinte anos do início de sua vigência, a

norma segue produzindo efeitos, dando ensejo à atuação da jurisdição militar nos crimes do-

losos contra a vida praticados por militar.

Veja-se, exemplificadamente, a Resolução n. 54, de 18 de agosto de 2017, do Pre-

sidente do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo, que dispõe sobre a apreensão

de instrumentos ou objetos em inquéritos policiais militares13. Fazendo expressa menção, em

seus considerando, ao art. 82, § 2º, do CPPM, estabelece já no art. 1º:

“Art. 1º. Em obediência ao disposto no artigo 12, alínea 'b', do Código de Processo PenalMilitar, a autoridade policial militar a que se refere o § 2º do art. 10 do mesmo Código,deverá apreender os instrumentos e todos os objetos que tenham relação com a apuraçãodos crimes militares definidos em lei, quando dolosos contra a vida de civil”.

13 O ato teve seus efeitos suspensos em mandado de segurança que tramitou no TJSP, mas o writ foi,posteriormente, extinto, sob o fundamento de incompetência do órgão julgador (MS 2164541-26.2017.8.26.0000).

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Referida resolução é demonstrativa dos reflexos atuais da norma ora impugnada,

e prejudica a alegação de que o seu único efeito seria o de preservar, no momento da edição

da Lei n. 9.299/1996, a continuidade do trabalho investigatório na esfera civil. Ao permitir o

recolhimento de objetos da cena do crime pela própria polícia militar, o ato, amparado pelo

dispositivo legal impugnado, exclui a polícia civil do trabalho apuratório dos crimes dolosos

contra a vida praticados por militar contra civil, mais de duas décadas após a alteração legis-

lativa, como visto.

Também a reiterada submissão de conflitos de competência perante o Superior

Tribunal de Justiça entre as justiças comum e militar, para a apuração de homicídios dolosos

praticados contra civil, confirmam a manutenção de efeitos da regra impugnada. Nesse sen-

tido, dentre outros, o CC 131.899, Relator o Ministro Rogério Schietti Cruz, DJe 26.5.2014, e

o CC 144.919, Relator o Ministro Felix Fischer, Dje de 1º.7.2016, este assim ementado:

“PROCESSUAL PENAL. CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITOPOLICIAL. ADMISSIBILIDADE DE CONFLITO EM FASE PRÉ-PROCESSUAL.COMPETÊNCIA JUÍZO DA CAUSA. TEORIA DOS PODERES IMPLÍCITOS.

I - É assente na jurisprudência a admissibilidade de conflito de competência em fase in-quisitorial.

II - Embora previsto no artigo 125, §4º, da CF, ser da competência da justiça comumprocessar e julgar crimes dolosos contra a vida praticados por militar em face de civil,nota-se que inquéritos policiais persistem no juízo castrense indevidamente.

III - A interpretação conforme a Constituição Federal do artigo 82, §2º, do Código deProcesso Penal Militar compele a remessa imediata dos autos de inquérito policialquando em trâmite sob o crivo da justiça militar, assim que constatada a possibilidade deprática de crime doloso contra a vida praticado por militar em face de civil.

IV - Aplicada a teoria dos poderes implícitos, emerge da competência de processar e jul -gar, o poder/dever de conduzir administrativamente inquéritos policiais.

Conflito de competência conhecido para declarar competente o Juiz de Direito da Varado Júri e das Execuções Criminais da Comarca de Osasco/SP”14.

Os efeitos ainda atuais da norma, prejudiciais à atuação da autoridade policial ci-

vil, possibilitam o exame de sua constitucionalidade na presente sede. A definição do caráter

da norma – se é ou não de transição - é ponto de chegada e não de partida, tendo relevância

para a conclusão sobre o mérito da questão. Das duas, uma: ou se reconhece a norma impug-

nada como regra de transição e, nesse sentido, pelos fundamentos adiante expostos, inconsti-

14 CC 144.919. Relator o Ministro Félix Fischer. Terceira Seção. Julgamento de 22-6-2016. DJ de 1º-7-2016.

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tucional a leitura que lhe imprime efeitos permanentes equivocadamente, ou, compreendida

como regra de vigência indeterminada, declara-se a inconstitucionalidade do preceito em si,

por permitir a instauração de inquérito na esfera militar fora das hipóteses de competência da

Justiça Militar.

Dito isso, entende-se haver inegável ofensa ao texto constitucional.

Crimes de competência da Justiça comum tem o inquérito policial – não militar –

como instrumento investigatório. Negada a natureza militar da infração e, consequentemente,

afastada a competência da jurisdição castrense, incumbe à autoridade policial civil a instaura-

ção e a condução da investigação respectiva.

Há repartição constitucional de competências que bem delimita as funções e atri-

buições de cada um dos órgãos integrantes do sistema judiciário brasileiro, havendo estrita

correlação entre os órgãos julgador e apuratório de crimes. Causas que estejam sujeitas à

competência da justiça comum, como aquelas alcançadas pelo preceito impugnado (Júri), tem

o trabalho apuratório respectivo atribuído, no âmbito estadual, à autoridade policial civil, e,

no âmbito federal, à polícia federal.

É o teor do art. 144, §§ 1º e 4º:

“Art. 144. […]

§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantidopela União e estruturado em carreira, destina-se a:

I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens,serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, as-sim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacionale exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

[...]

§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressal-vada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infraçõespenais, exceto as militares”.

Não há espaço no texto constitucional para interpretação que permita a instaura-

ção e a tramitação de inquérito policial investigatório de crime comum (não-militar) no âm-

bito da Justiça Militar.

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De outro lado, a alegação de ausência de exclusividade das polícias civil e federal

para a investigação criminal – que não se nega – não se presta a desconstruir a tese de incons-

titucionalidade do art. 82, § 2º, do CPPM. Não se trata, aqui, de apontar a falta de atribuição

de um ou outro órgão (militar ou civil) para o trabalho apuratório – a ambos conferiu-se tal

atribuição -, mas, sim, de aferir a legitimidade de atuação investigativa na esfera militar

quando o crime não tem tal natureza. A atribuição é a mesma; cabe definir em qual esfera

pode/deve ser exercida.

Também não importa, para a presente análise, a dispensabilidade do inquérito

para fins de ajuizamento de ação penal. É amplo o espectro de atuação no campo investigató-

rio – perícia no local do crime, apreensão de objetos que tenham relação com o fato, por

exemplo - e real a possibilidade, conduzido o inquérito de forma equivocada, por autoridade

sem atribuição, de ocorrência de prejuízos irreversíveis, extensíveis à eventual ação penal.

Cabe o registro do exame anterior da questão por essa Corte, nos autos da ADI

1.494. Em caráter precário e por maioria15, o tribunal reconheceu a constitucionalidade da

norma, mas a ação foi posteriormente extinta, por ilegitimidade da requerente. Na visão da

Procuradoria-Geral da República, são relevantes as considerações feitas pelo Ministro Celso

de Mello, Relator, e dos que o acompanharam. O Ministro lembrou do contexto de criação da

lei impugnada, destinada a descaracterizar os ilícitos penais praticados por policiais militares

como delitos castrenses, motivada pela constatação, em comissão parlamentar de inquérito,

da participação de membros da Polícia Militar na execução criminosa de crianças e adoles-

centes, e apontou avanço legislativo, a despeito das críticas feitas à redação do preceito. Con-

feriu ao dispositivo, apropriadamente, interpretação que parte do propósito da alteração

legislativa:

“A preocupação social com condutas desviantes, reveladas com assustadora fre-quência por maus policiais militares, torna imperioso repelir qualquer ensaio de in-terpretação que possa conduzir à frustração dos objetivos maiores quejustificaram, como precedentemente já enfatizado, a edição da Lei n. 9.299/96.

Tive o ensejo de demonstrar, logo no início deste voto, que a Lei n. 9.299/96 realizou, demaneira incompleta, o objetivo maior de submeter o policial militar, em qualquer delito

15 Acompanharam a divergência, inaugurada pelo Ministro Marco Aurélio, os Ministros Carlos Velloso,Sidney Sanches, Néri da Silveira e Moreira Alves. Votaram pelo deferimento do pedido de liminar: oRelator, Ministro Celso de Mello, e os Ministros Maurício Corrêa, Ilmar Galvão e Sepúlveda Pertence. ADIn. 1.494-MC. Julgamento em 9-4-1997. DJ de 18-6-2001.

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praticado no exercício da função de policiamento ostensivo, à competência penal da Jus-tiça comum.

Com essa lei, deu-se um passo que, embora significativo, não exprime o generalizadosentimento social que reclama, para os policiais militares em tal situação, o mesmo trata-mento jurídico e processual já dispensado aos membros integrantes da corporação poli-cial civil. […]

Hoje, no entanto, propugna-se pela restauração da antiga prática fundada na tradiçãoconstitucional brasileira e na jurisprudência dos Tribunais, inclusive desta SupremaCorte, consagradora da competência penal da Justiça comum para processar e julgar po-liciais militares que hajam cometido ilícitos penais no exercício de suas funções ordiná-rias de policiamento ostensivo. [...]

Com a só exceção dos delitos militares, cuja apuração é realizada no âmbito de in-vestigação penal (IPM) dirigida por autoridade policial militar, no exercício dasatribuições de polícia judiciária militar – consoante expressamente prescreve a pró-pria Constituição da República (art. 144, § 4º, in fine) -, os demais ilícitos penaisexpõem-se à ação investigatória dos órgãos estatais que, no plano da União (PolíciaFederal) ou na esfera dos Estados-membros ou do Distrito Federal (Polícia Civil),exercem as funções de polícia judiciária.

Na realidade, a Constituição da República instituiu uma repartição material de compe-tência investigatória entre a União e os Estados, reservando às autoridades policiais mili-tares, em sede de I.P.M., unicamente a atribuição de identificar a autoria e apurar amaterialidade dos delitos militares, tais como definidos em lei.

A norma legal ora impugnada determina que, nos delitos dolosos contra a vida, cometi-dos contra civil por membros da Polícia Militar ou das Forças Armadas (infrações penaisestas agora incluídas na competência da Justiça comum), sejam tais ilícitos – não obs-tante despojados de natureza militar – objeto de apuração em investigação policial mili -tar, restringindo, indevidamente, desse modo, a atribuição constitucional queconfere à Polícia Federal e à Polícia Civil dos Estados-membros a prerrogativa deinvestigação penal. […]

Tenho pra mim – presentes todas essas considerações – que se revela extremamenteplausível a pretensão jurídica ora deduzida pela autora nesta sede processual.

É que, não mais competindo, à Justiça Militar, o processo e julgamento de crimesdolosos contra a vida, praticados por policiais militares ou membros das Forças Ar-madas contra civil, nada pode justificar – especialmente ante as regras inscritas noart. 144, § 1º, IV, e § 4º, da Carta Política – que tais infrações penais continuemsendo objeto de investigação, em I.P.M, pela autoridade policial militar, com evi-dente usurpação da atribuição investigatória constitucionalmente outorgada à Polí-cia Federal ou à Polícia Civil dos Estados-membros, conforme o caso. […]

Assim sendo – e considerando que se revela conveniente a suspensão cautelar de eficá-cia da norma legal ora impugnada, para evitar possíveis conflitos de competência e/oude atribuições, com graves reflexos sobre a apuração da verdade real e, até mesmo, sobreos direitos das pessoas eventualmente indiciadas (que podem vir a sofrer sérias restri -ções ditadas por medidas de coerção pessoal e/ou patrimonial), defiro o pedido de me-dida liminar e, em consequência, suspendo, com eficácia ex nunc, a execução e aaplicabilidade do art. 2º da Lei n. 9.299, de 07/8/96, que deu nova redação ao § 2º do art.82 do Código de Processo Penal Militar”. (grifos acrescidos)

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Acompanharam-no, nesse julgamento, os Ministros Maurício Corrêa, Ilmar Gal-

vão e Sepúlveda Pertence, este último com a consideração dos riscos inerentes à atuação por

autoridade incompetente:

“Ora, não havendo dúvida alguma quanto à inexistência de crime militar – hipótese que,nos crimes contra a vida, a lei reduziu à de inexistência de dolo – o que se tem é a deter -minação de que, não obstante o crime seja induvidosamente doloso – o quanto possa sê-lo, é claro, nesse exame preliminar – o que se abrirá é um IPM, com as consequênciasrelevantes de natureza coercitiva daí decorrentes.

Não se trata de impedir a apuração do fato. Apurar, a imprensa apura, o Ministério Pú-blico apura, o SNI apurava. O problema é o inquérito policial, que não é mera apuração,mas pressuposto condicionante de uma série de constrangimentos. Não obstante, aindana hipótese de evidentemente não haver sequer suspeita de crime militar, segundo a leiquestionada, essa relevante função é entregue à Polícia Judiciária Militar. […]

Não sei, data venia, o que possa ser arguição de inconstitucionalidade mais relevantepara impor, neste exame de delibação, a suspensão liminar da norma legal impugnada”.

O Superior Tribunal de Justiça, a seu turno, tem orientação no mesmo sentido

aqui exposto. Ao julgar o HC n. 47.168, impetrado por policial militar denunciado por homi-

cídio doloso, assentou o tribunal, por sua Quinta Turma:

“[...] IV. Os crimes de homicídio imputados ao paciente foram todos praticados, emtese, contra vítimas civis, sem exceção, sendo pacífico o entendimento desta Corte nosentido de que os crimes previstos no art. 9º, do Código Penal Militar, quando dolo-sos contra a vida e cometidos contra civil, são da competência da Justiça comum e,em conseqüência, da Polícia Civil a atribuição de investigar. Precedente.

V. Os delitos praticados pelo paciente e demais policiais militares que integravam a qua-drilha não se deram em “situação de atividade ou assemelhado” , exigida pelo art. 9º, in-ciso II, alínea b, para a caracterização de delito militar.

VI. Não caracterizada a natureza militar dos delitos imputados ao paciente, restaafastada a atribuição da Polícia Militar de proceder aos atos investigatórios, a qualpertence à Polícia Civil, conforme estabelece o art. 144, § 4º, da Constituição Fede-ral. [...]”16

Assim também ao julgar o Conflito de Competência n. 144.919, suscitado pelo

Juízo comum com a alegação de ingerência indevida do juízo militar na investigação de su-

posto crime de homicídio cometido com o envolvimento de policiais militares. Asseverou o

Ministro Félix Fischer, Relator, em seu voto:

16 Relator o Ministro Gilson Dipp, DJe de 13.3.2006.

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“[...] O Código de Processo Penal Militar preconiza no artigo 82, §2º, que os autos do in-quérito policial serão remetidos para a justiça comum em casos de crimes dolosos contraa vida: 'Art. 82. [...] § 2° Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Jus-tiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum'. AEmenda Constitucional 45 de 2004 extirpou de vez qualquer dúvida acerca da competên-cia do juízo para processar e julgar crimes dolosos contra a vida praticado por militarcontra civil:

'Art. 125 [...] § 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dosEstados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplina-res militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tri-bunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduaçãodas praças'.

Do mesmo modo, é assente na jurisprudência dos Tribunais Superiores tal posição, queinclusive já era adotada antes mesmo do advento da Emenda Constitucional 45/2004.

Observando-se a jurisprudência deste col. Superior Tribunal de Justiça, é notória a dis-crepância ocorrida em todo o país em se tratando de crimes dolosos contra a vida prati -cado por militar em face de civil, embora previsto na Constituição Federal acompetência de forma clara, tem-se que alguns procedimentos inquisitoriais se-guem sob administração da justiça castrense, que, inclusive, insiste em aplicar ex-cludentes de ilicitude admitindo pedidos de arquivamento de autos, conformeementa abaixo: [...]

Ora, é necessário realizar uma interpretação harmônica entre a Constituição Federal e oCódigo de Processo Penal Militar para dirimir tais conflitos definitivamente.

Na jurisprudência resta concretizado que o foro competente para processar e julgar oscrimes dolosos contra a vida praticado por militar em face de civil é da justiça comum.

Desta forma, sendo da competência do juiz de direito o processamento e julga-mento de tal natureza, não há dúvida que será também o juízo administrativo com-petente para conduzir o inquérito policial, ainda que com funções limitadas deverificar regularidades procedimentais, com raras exceções legais de decisões (prisãotemporária, busca e apreensão, arquivamento, etc.).

Tem-se como fundamento da conclusão supra, a aplicabilidade da teoria dos poderes im-plícitos, importada do Direito Norte Americano, consagrada no caso (case) McCUL-LOCH v. MARYLAND, quando John Marshall, Presidente da Suprema CorteAmericana, decidiu sobre os poderes dos estados federados frente ao governo federal,que em síntese define que do poder consagrado pela Constituição Federal emergem im-plicitamente demais poderes capazes de instrumentalizar o poder previsto constitucional-mente, teoria explorada de forma ímpar no voto do Ministro Celso de Mello no HC n.87.610/SC.

Desse modo, não há como dissociar a fase investigativa da fase processual, de modoa se criar um juízo de inquérito e outro de processo, como se o sistema processual(incluído pré-processual) brasileiro fosse misto ou francês. No sistema processual misto

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(francês), tem-se a figura do juiz instrutor e do juiz julgador, exposto por Renato Brasi -leiro de Lima, na obra Manual de Processo Penal, 3ª Edição, 2015, Editora JusPODIVM,folha 41:

'A primeira fase é tipicamente inquisitorial, com instrução escrita e secreta, sem acusa-ção e, por isso, sem contraditório. Nesta, objetiva-se apurar a materialidade e autoria dofato delituoso. Na segunda fase, de caráter acusatório, o órgão acusador apresenta a acu-sação, o réu se defende e o juiz julga, vigorando, em regra, a publicidade e a oralidade'.

Não há como permitir que inquéritos policiais que versam sobre crimes dolososcontra a vida praticado por militar em face de civil continuem sendo conduzidospela Justiça Castrense, porque não é dela a competência constitucional de proces-sar e julgar a ação penal.

Imperioso anotar que, nesta fase, vigora o princípio do in dubio pro societate e nãocomporta valorações por juízes especializados, como se percebe com alguns arqui-vamentos de inquéritos policiais militares, uma vez que se trata de usurpação depossível competência do juízo da causa.

Assim sendo, a regra é que a Justiça Comum conduza o Inquérito Policial adminis-trativamente e, caso perceba claramente não se tratar de delito doloso contra avida, remeterá o IP ao Juízo Militar o processo, e não o inverso”.

Com apoio também em tais precedentes, a Procuradoria-Geral da República posi-

ciona-se pela manifesta inconstitucionalidade da instauração de inquérito policial militar nos

casos em que a apuração do crime é de competência da Justiça comum. Espera-se dessa

Corte, nessa nova ocasião, compreensão que harmonize a interpretação do preceito impug-

nado com o seu propósito primeiro de afastar da jurisdição militar a apuração de crimes dolo-

sos contra a vida de competência da Justiça comum, tal como exposto nos votos vencidos na

ADI 1494.

O parecer é, assim, pela procedência do pedido.

Brasília, 21 de agosto de 2018.

Raquel Elias Ferreira DodgeProcuradora-Geral da República

STA

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