Mutações Sociais e Novas Tecnologias: O potencialradical da Web

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Mutações Sociais e Novas Tecnologias: O potencial radical da Web * Jorge Carlos Felz Ferreira Índice 1 Introdução 1 2 A era da eletricidade – a expansão da televisão 4 3 Novas tecnologias de comunicação 5 4 O potencial radical das novas tecnolo- gias 8 5 A circulação de informação na Inter- net 8 6 Bibliografia 10 1 Introdução Até bem pouco tempo, o fim do mundo co- nhecido ficava ali, logo depois da curva da estrada, na saída da aldeia. A travessia da fronteira entre o conhecido e o mundo es- tranho era coisa para vagabundos e forastei- ros... sujeitos de comportamento excepcio- nal que se permitiam vaguear, percorrer ca- minhos ou, para reis que faziam as guerras ou partiam em busca de alianças políticas ou comerciais. “Aventurar-se para além das fronteiras do mundo da comunidade de pertença, deste ter- ritório delimitado pelas fronteiras do espaço * Texto apresentado como requisito parcial da dis- ciplina “História social da Comunicação”- Umesp/ 2003. próprio de todos quantos se identificavam com as marcas simbólicas do território co- mum, representava sempre algo de excepci- onal, que exigia uma série de rituais destina- dos, ora a esconjurar as forças maléficas do desconhecido, ora a purificar as suas influên- cias nefastas para a comunidade”. 1 Esta relação do conhecimento e informa- ção (de)limitada com o ambiente repercutia de forma significativa na produção de sig- nificados para estes homens. Cada ação do homem girava em torno desse parco conhe- cimento do mundo. A produção e difusão da informação, re- duzida às poucas centenas de metros quadra- dos da aldeia, baseava-se na tradição da cul- tura oral, na escrita manuscrita e nas leituras coletivas de um número reduzido de textos. A leitura era mais intensiva , onde o “leitor é confrontado a um corpus limitado e fechado de textos, lidos e relidos, memorizados e re- citados, ouvidos e conhecidos de cor, trans- mitidos de geração em geração”. 2 Será a partir do desenvolvimento dos meios de transporte e do comércio no século 1 RODRIGUES, Adriano Duarte. Comunicação e Cultura – a experiência cultural na era da informa- ção. Lisboa: Editorial Presença, 2 a edição, 1999, p. 213. 2 CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros. Brasí- lia: UNB, 1994. P. 99

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Jorge Carlos Felz Ferreira

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Mutações Sociais e Novas Tecnologias: O potencialradical da Web∗

Jorge Carlos Felz Ferreira

Índice

1 Introdução 12 A era da eletricidade – a expansão da

televisão 43 Novas tecnologias de comunicação 54 O potencial radical das novas tecnolo-

gias 85 A circulação de informação na Inter-

net 86 Bibliografia 10

1 Introdução

Até bem pouco tempo, o fim do mundo co-nhecido ficava ali, logo depois da curva daestrada, na saída da aldeia. A travessia dafronteira entre o conhecido e o mundo es-tranho era coisa para vagabundos e forastei-ros... sujeitos de comportamento excepcio-nal que se permitiam vaguear, percorrer ca-minhos ou, para reis que faziam as guerrasou partiam em busca de alianças políticas oucomerciais.

“Aventurar-se para além das fronteiras domundo da comunidade de pertença, deste ter-ritório delimitado pelas fronteiras do espaço

∗Texto apresentado como requisito parcial da dis-ciplina “História social da Comunicação”- Umesp/2003.

próprio de todos quantos se identificavamcom as marcas simbólicas do território co-mum, representava sempre algo de excepci-onal, que exigia uma série de rituais destina-dos, ora a esconjurar as forças maléficas dodesconhecido, ora a purificar as suas influên-cias nefastas para a comunidade”.1

Esta relação do conhecimento e informa-ção (de)limitada com o ambiente repercutiade forma significativa na produção de sig-nificados para estes homens. Cada ação dohomem girava em torno desse parco conhe-cimento do mundo.

A produção e difusão da informação, re-duzida às poucas centenas de metros quadra-dos da aldeia, baseava-se na tradição da cul-tura oral, na escrita manuscrita e nas leiturascoletivas de um número reduzido de textos.A leitura era mais intensiva , onde o “leitor éconfrontado a um corpus limitado e fechadode textos, lidos e relidos, memorizados e re-citados, ouvidos e conhecidos de cor, trans-mitidos de geração em geração”.2

Será a partir do desenvolvimento dosmeios de transporte e do comércio no século

1 RODRIGUES, Adriano Duarte.Comunicação eCultura – a experiência cultural na era da informa-ção. Lisboa: Editorial Presença, 2a edição, 1999, p.213.

2 CHARTIER, Roger.A Ordem dos Livros. Brasí-lia: UNB, 1994. P. 99

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XV (embora as raízes deste desenvolvimentosejam mais antigas, situadas ainda no séculoXII, no surgimento das primeiras universida-des) que as distâncias geográficas são “redu-zidas”, alargando o mundo conhecido, que-brando a relação espaço/ temporal em vigor.

As alterações porém não ocorrem apenasnos campos da política e da economia, elasse multiplicam por todas as áreas. Junto àexpansão do mundo conhecido, há mudançasna forma da escrita e da leitura que afetame são afetadas por essas alterações. RogerChartier3 destaca uma primeira mutação fun-damental na longa história da escrita com aseparação das palavras – primeiro passo parauma leitura silenciosa.

Já a revolução de Gutenberg (1450) mo-difica a técnica de produção do texto, com aadoção dos tipos móveis para impressão, econstitui em si mesma uma forma altamenteespecializada de comunicação.

Na segunda metade do século XV as técni-cas de impressão se espalharam rapidamentee oficinas foram criadas em quase todas asgrandes cidades da Europa medieval. Estemovimento se constituiu no início da era dacomunicação de massa. Esta revolução nosmodos de comunicação ocorre em paraleloao desenvolvimento das primeiras formas deprodução capitalista e de comércio, de umlado e por outro, do começo do modernoestado-nação4. Vale ressaltar que o desenvol-vimento inicial da imprensa e das publica-ções esteve intimamente ligado ao exercíciodo poder político pelas autoridades respon-sáveis pelas estruturas administrativas dosestados-nações emergentes.

3 CHARTIER, Roger. Op.Cit. P. 98.4 THOMPSON, John B.Ideologia e Cultura Mo-

derna. Petrópolis: Vozes, 5a edição, 2001. P 231

Nessa fase, aparece um segundo tipo dehomem – leitor. Com as facilidades propor-cionadas pela imprensa, surge o leitor exten-sivo, fruto daLesewut5 que invadiu a Ale-manha dos tempos de Goethe. Visto comoum perigo para a ordem política, como umnarcótico ou “como um desregramento daimaginação e dos sentidos, esse furor de ler,choca os observadores contemporâneos. Eletem um papel essencial nos distanciamentoscríticos que, em toda Europa, afasta os sú-ditos de seu príncipe e os cristãos das suasigrejas”.6

Já no séculos XIX e XX o desenvolvi-mento da indústria do jornal foi marcadopor duas tendências principais: de um lado,o crescimento e consolidação da circulaçãomassiva de jornais, e de outro, a crescenteinternacionalização das atividades de coletae distribuição das notícias.

Esta expansão dos meios de comunicaçãoimpressos (jornais) foi resultado da moderni-zação dos métodos de produção e distribui-ção, incorporação de inovações tecnológicascomo o uso das máquinas, da divisão socialdo trabalho, pelo desenvolvimento dos meiosde transporte e aumento do nível geral de al-fabetizados.

O grande salto na difusão e produção dainformação ocorre no século XIX com odesenvolvimento do telégrafo7. O adventodeste sistema de comunicação, como assi-

5 Lesewut: termo alemão para leitura (leser) furi-osa (wut) ou a vontade de ler tudo o que existe. Go-ethe usou o termo para referir-se àqueles leitores queconsumiam avidamente toda sorte de impressos.

6 CHARTIER, Roger. Op. Cit. P. 100.7 As primeiras linhas telegráficas foram instaladas

nos EUA no início de 1840 e rapidamente se expandi-ram pelo interior e serviram como fator de coloniza-ção e modernização para muitas regiões do país.

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nala Carey8, o telégrafo permitiu pela pri-meira vez que a informação se dissociassedos meios de transportes. Até aqui, estradas,barcos e mensageiros estavam intimamenteligados à palavra escrita. O telégrafo vai darnova redação ao conceito de informação.

No fim do século XIX, iniciam-se as pri-meiras experiências de um novo tipo de te-légrafo, sem fio, onde a informação circulaatravés de ondas eletromagnéticas. Esta tec-nologia foi empregada a princípio para finsmilitares: comunicação com navios em alto-mar, troca de mensagens entre bases milita-res,etc.

Porém a utilização mais importante quefoi dada ao rádio não foi prevista por seusinventores. Após a 1a Guerra Mundial, em-presas como Westinghouse, G&E e RCA co-meçaram a produzir aparelhos receptores do-mésticos e a instalarem as primeiras estaçõesde transmissão.

Na década de 1920 há uma verdadeira ex-plosão dessas emissoras de rádio9. Em 1928,nos Estados Unidos, as emissoras já pos-suíam cobertura nacional – redes – numa es-trutura competitiva, onde o lucro era prove-niente da venda de espaços na programaçãopara a publicidade. Esta estrutura derivavada organização realizada um ano antes pelaComissão Federal de Rádio, substituída em1934 pela Comissão Federal de Comunica-ções (FCC).

Nos EUA, na década de 1930, milhões

8 CAREY, James. Communications as culture:Essays on media and society. Boston: Unwin Hyman,1989.

9 Entre os anos de 1920 e 1922 foram licenciadas,nos EUA, 570 estações de rádio, ou algo próximo a24 estações por mês. As licenças eram outorgadas aqualquer pessoa que as requeresse junto à Secretariado Comércio.

de ouvintes recebiam diariamente noticiáriosradiofônicos e programas de entretenimento.E, durante a 2a Guerra, o presidente ame-ricano reconquistou um privilégio: sua vozpodia alcançar a grande maioria dos cida-dãos do país. O rádio servia como ponto deunificação da nação.

“A presença de redes nacionais –estações de rádio espalhadas portodo o país, e alimentadas pelomesmo programa, enviado atravésde linhas da companhia telefônica– sem dúvida desempenhou um pa-pel importante no crescimento dopoder político federal durante asdécadas de 1930 e 1940. O pre-sidente se tornara uma figura maisacessível do que o prefeito”.10

Na Inglaterra, o sistema rádio tomou umaoutra forma de organização. Em 1926 foifundada a BBC (British Broadcasting Com-pany), empresa de caráter público, resultadoda união da iniciativa privada (fabricantes deaparelhos de rádio) e do governo e que per-mitiu o desenvolvimento de um ‘serviço pú-blico de difusão’ como um princípio básicopara o setor.

Cabe observar como o rádio acelera a ex-pansão da sociedade e a extensão dos limi-tes da identidade e interesses provocando atransferência da atenção do próximo (local)para o distante (global). “Os ouvintes se tor-naram residentes de uma comunidade etérea,povoada de presenças familiares, ainda quenão alcançáveis, cuja voz era acessível emqualquer parte”.11

10 STEPHENS, Mitchell.História das Comunica-ções. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. P.620.

11Idem.

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A implantação das primeiras emissoras detelevisão nas décadas de 1940 e 50 nos EUAe na Europa – especialmente na Inglaterra– vai proporcionar uma nova revolução nossistemas de produção e difusão da informa-ção. O crescimento acelerado da importân-cia da mídia televisão trouxe conseqüênciasimportantes para os outros segmentos da mí-dia, embora seja difícil avaliar a natureza e aexata dimensão do impacto.

2 A era da eletricidade – aexpansão da televisão

A televisão desde as primeiras experiênciasnão foi vista como mais um ‘simples’ meiotecnológico, mas

“como um objetivo tecnológico(...) uma nova forma social e,consequentemente, uma empresaeconômica em potencial, um sis-tema produtivo e institucional empotencial (...) a idéia da televisãotransforma-se no terceiro pólo deum setor agora inconfundível comoutros que lhes estão próximos (orádio, o cinema e a nascente televi-são são inteiramente diferentes daeletricidade, da telefonia, da tele-grafia, etc.) e manifesta, no nú-cleo deste setor, os principais sin-tomas de uma autonomia tecnoló-gica, cultural e social”.12

Embora anunciada como “o cinema emcasa”, a televisão logo ocupa espaços expres-sivos importantes, antes ocupados por meios

12 SARTORI, Carlo. O Olho Universal. In GI-OVANINNI, Giovanni. Evolução na Comunicação.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. p. 251-252

como o cinema, por exemplo, que para atraira público e garantir sua continuidade, tam-bém se altera. Meio de informação e entre-tenimento a televisão, com as transmissõesvia satélite, torna disponíveis para o resto domundo, valores da cultura ocidental (espe-cialmente a norte-americana) numa espéciede homogeneização da difusão audiovisual,incluindo a disseminação de significados so-ciais característicos de um determinado mo-delo de produção e expressão.

Essa idéia de disseminação de um únicomodelo de cultura acaba muitas vezes seconfundindo com a idéia de “aldeia global”.Para Sartori este conceito ainda está distante,uma vez que as emissoras e os receptores deTV não estão distribuídos uniformemente. Amaior parte das emissoras de TV (95%) estãosituadas na Europa, América do Norte, Rús-sia, Japão e Oceania13. O mesmo vale paraos aparelhos receptores .

O conceito de aldeia global deriva do pen-samento de McLuhan que via no desenvolvi-mento da tecnologia de transmissão de TVvia satélite uma possibilidade de retorno àorigem onde todos faziam parte do mesmogrupo – aldeia14.

“eletricamente contraído, o globojá não é mais do que uma vila.A velocidade elétrica, aglutinandotodas as funções sociais e políti-cas numa súbita implosão, elevoua consciência humana de responsa-bilidade a um grau dos mais inten-sos.”

13 SARTORI. Op. Cit. P.254-25514 MCLUHAN, Marshall.Os Meios de Comunica-

ção como extensões do homem. São Paulo: Cultrix,14a edição, 2001. P.19

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A aldeia global seria uma sociedade ondehá mais que o sentido de gruposcontidos em.Uma fase em que a sociedade e seus signifi-cados se misturam, se envolvem; as possibi-lidades de inclusão e participação são com-promissos obrigatórios. McLuhan referia-se ao nosso tempo como Idade da Angús-tia em contraponto ao século XIX, tempo daindústria mecânica onde as ações humanassão realizadas sem preocupações, talvez pelalentidão dos movimentos, talvez pelo afasta-mento permitido pelas extensões meramentemecânicas do homem.

Com a eletricidade e a eletrônica – e maisrecentemente com as novas tecnologias digi-tais – o nosso sistema nervoso, porta de en-trada para todas as sensações de mundo, éafetado de tal forma pela tecnologia que nãohá como não se envolver totalmente em cadauma de nossas ações.

Devemos ressaltar que, para o autor, o im-portante são as metamorfoses da sensibili-dade entre a tecnologia e o indivíduo, ondeo homem também é uma espécie de prótesedos meios de comunicação, uma peça ele-mentar na reprodutibilidade do próprio sis-tema midiático15 .

A indústria da mídia, inclusive a televisão,está passando nos últimos anos por transfor-mações de grande impacto na natureza dosprodutos e nos modos de produção e difu-são. Essas mudanças resultam das alteraçõesno cenário econômico mundial e, principal-mente, das novas tecnologias. O recente de-senvolvimento das telecomunicações e dossistemas de computadores permitiram novaspossibilidades de produção, transmissão, ar-

15 CÁDIMA, Rui. Modelos e Profecias da AldeiaGlobal. In História Crítica da Comunicação. Lisboa:Século XXI, 1996. P. 125.

quivo e acesso à informação e que ainda nãopodem ser totalmente medidas.

3 Novas tecnologias decomunicação

As novas tecnologias da informação surgi-das nas últimas décadas especialmente e,de modo particular, a Internet possuem umgrande e inexplorado potencial de comunica-ção que poderia ser utilizado para a transfor-mação social. Desde o primeiros anos da dé-cada de 1980, autores como Toffler16 e Cas-tells17 anunciam que as transformações emcurso na sociedade estão nos levando a umanova estrutura social: a sociedade da comu-nicação mediada pelas novas aparelhagensde informação (computadores, faxes, satéli-tes,...), capaz de levar o homem a um novoestágio de liberdade.

Estas transformações modificam não ape-nas a técnica de produção e reprodução dotexto, mas também as estruturas e as própriasformas de suporte que o comunica. Com atela do computador, a transformação é maisradical, uma vez que as formas de organiza-ção, de estruturação e consulta ao suporte dotexto se modificam.

O texto eletrônico também representa umarevolução da leitura. Ler numa tela digitalnão é ler um texto impresso, seja livro ou jor-nal. Abrem-se assim novas e imensas pos-sibilidades: substitui-se a materialidade doimpresso pela imaterialidade da imagem natela; às relações de contiguidade estabele-

16 TOFFLER, Alvin, A Terceira Onda. Rio de Ja-neiro: Nova Fronteira,1984

17 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede,vol.1, São Paulo, Paz e Terra, 2000.

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cidas opõem-se a livre organização de frag-mentos indefinidamente manipuláveis.

Além disso, o texto eletrônico permiteao seu leitor não apenas arquivá-lo, ano-tar observações, copiá-lo, desmembra-lo,recompo-lo, desloca-lo, mas ainda tornar-seseu co-autor ao construir um novo texto apartir de fragmentos recortados e reunidos18.

Mas, para James O’Toole, “nem semprefoi assim. A partir dos anos de 1930 até1970, as tecnologias de telecomunicaçõesforam muitas vezes tachadas de ‘instrumen-tos de tirania’ “19. Contudo, ainda segundoeste autor, se observarmos as evidências his-tóricas oferecidas a partir de 1990 , como opapel da Internet no processo de desmorona-mento dos países do Leste Europeu, o mundodos veículos de comunicação americanos eas atividades dos grandes conglomerados in-dustriais, seria complicado e seletivo falardas novas tecnologias como instrumento dedefesa ou limitação da liberdade. “Na ver-dade, o potencial impacto social das novastecnologias é quase sempre de efeito duplo:podem centralizar e/ou descentralizar o po-

18 Hoje discute-se intensamente as formas de com-bater o plágio/ cópia dos textos que circulam na In-ternet. Porém, as categorias que utilizamos desde oséculo XVIII para descrever as obras enquanto ato cri-ador individual não se ajustam aos modos de consti-tuição dos bancos de dados eletrônicos. Tanto que aSuprema Corte dos EUA não tem sido tem sido fa-vorável aos questionamentos uma vez que consideraque o autor primeiro de um texto ao disponibilizá-loem rede, submete-se às características desta, inclu-sive sujeitando-se à possível copiagem e manipulaçãode sua obra. Ver: GINSBERG, J. Copyright withoutwalls? Speculations on literary property in the libraryof the future. Representations (42), Futures Libraries,Spring, 1993. Pp. 53-57.

19 O’TOOLE, James.Informação e poder. In Re-vista Diálogo. N.o 2 (vol.26), 1993

der (...) e podem desumanizar e/ou dar podera trabalhadores e cidadãos”20.

Assim, embora possa-se exaltar a Inter-net e sua essência democrática, é preciso tera devida cautela. Afinal, este potencial detransformação social, embora parcialmenterealizado, é sempre passível de ser interdi-tado.

A Internet representa uma nova era paraa mídia, especialmente a mídia alternativa.A Internet é mais do que uma rede mundialde computadores que se comunicam, permi-tindo uma maior interatividade do que, porexemplo, a televisão. A Internet permite umarelação local - global muito mais próxima emais constante, mas condicionada pelos as-pectos socioculturais dos contextos em quese insere e dos sujeitos que a utilizam.

A Internet vai além de uma tecnologia quepermite o acesso à informação e onde ossujeitos são meros usuários. Os internau-tas21 são sujeitos no sentido mais literal destetermo, seres sociais que (re)constróem inter-subjetividades no processo de “navegação”,dando a esta tecnologia um caráter social.Como uma “tecnologia social utiliza os mes-mos métodos de forma a permitir que indiví-duos com interesses similares se encontrem,falem, ouçam e construam um leque de soci-abilidades”22

Algumas vezes nos referimos a esta soci-

20 O’TOOLE. Op. Cit.21 Internautas: como os aventureiros da Era das

Grandes Navegações, os sujeitos que se aventuramnas malhas da grande rede, são vistos como “navega-dores de mares desconhecidos”. Mais recentemente,são descritos como “surfistas” de ondas e praias radi-cais, talvez por conta de uma visão moderna da Webcomo um emaranhado de nichos e grupos de minorias.

22 CARDOSO, Gustavo.Para uma sociologia dociberespaço - comunidades virtuais em Português,Oeiras: Celta Editora, 1998. P.25

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edade, como um ambiente repleto de auto-estradas23 da informação e onde, quem cir-cula, adquire maior conhecimento, sendo asferramentas tecnológicas, apenas e tão só,um meio de as percorrer. É nesta perspec-tiva que Dominique Wolton define a Internetcomo a “rede constituída por diferentes re-des interconectadas à escala mundial. É opercursor das auto-estradas da informação”24

Entretanto, se pensarmos assim, incorre-mos numa redundância uma vez que a in-formação não é automaticamente sinônimode conhecimento, mas resultado de um pro-cesso de aprendizagem dinâmico, e experi-ência de uma construção individual. Alémdisso, falar de auto-estrada, torna-se impró-prio pois lidamos com um espaço não linearconhecido como Net (rede) ou Web25 (teia),onde se tecem contínuas e particulares liga-ções.

A Internet trás em si o potencial de tornar-se (kommenwerden), de vir a ser, enquantoalgo a se realizar no futuro, nossa primeira

23 Nos EUA, durante o governo Clinton, a ad-ministração federal projetou a criação de uma su-perhighway capaz de dar vazão a um imenso volumede informação gerado diariamente pelo país. A idéiaera além da criação destes supercorredores, a conexãoentre uma série de máquinas, em nada parecidas comas atuais: um misto de telefone celular, computador erelógio.

24 WOLTON, Dominique,E depois da Internet? –para uma teoria crítica dos novos médias. Lisboa:Difel, 2000.

25 A Web, ou melhor a WWW – Word Wide Web, éum sistema hipermídia distribuído e acessado atravésda Internet que permite navegar com facilidade poruma enorme quantidade de informação. A WWW foiiniciada nos laboratórios do CERN por Tim Berners-Lee com o objetivo de integrar informações acessíveisatravés de uma única rede de ordenadores porém me-diante sistemas diversos.

esfera pública global, um meio pelo qual apolítica pode tornar-se participativa. A In-ternet oferece aos indivíduos e coletivos achance de comunicarem-se com suas pró-prias vozes: websites pessoais e coletivos,listas de discussão, e-mails, salas de bate-papo online, videoconferências, mecanismosde busca,...

Esses meios de comunicação online per-mitem novas possibilidades e usos como adistribuição gratuita de softwares, a divul-gação de textos, exposição e divulgação deimagens e a conversação em tempo real e alonga distância. Além disso os usuários pos-suem muito maior controle sobre a produçãonesse meio.

Estas redes (teias) de comunicação nãosubstituem os velhos e tradicionais meios decomunicação, mas servem como incremen-tos destas e também proporcionam maior ra-pidez na disseminação e na troca de infor-mações. Como afirma Kernan26 “ (...) ne-nhum modo de comunicação humana, umavez usado, desaparece completamente (...)da mesma maneira a leitura não desapare-cerá na idade da TV e das comunicações ele-trônicas” mas são alteradas pelas transfor-mações provocadas por essas novas tecno-logias. O autor ainda lembra que estas tec-nologias (TV, fax, telefone, computador, Cd-rom e DVD) além de modificar a leitura e aescrita, mudam “(...) a consciência humanae também as práticas econômicas e de ne-gócios à medida que completam sua tarefade aniquilação da velha ordem” do impressocomo meio de comunicação privilegiado.

26 KERNAN, Alvin. Adeus à alfabetização?InRevista Diálogo. [s.d.], 1993.

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4 O potencial radical das novastecnologias

Apesar de todo este potencial de comuni-cação e transformação social, o desenvolvi-mento da Internet como meio democráticoencontra pela frente problemas. James Ca-rey27, num estudo sobre a trajetória de ou-tros avanços tecnológicos introduzidos origi-nalmente com expectativas utópicas de pro-gresso democrático, especialmente o telé-grafo, afirma que estes meios se converte-ram em serviços dominados por grandes gru-pos econômicos com cada novo desenvolvi-mento de suas tecnologias sendo usado paragerar lucros.

O’Toole28 destaca essa realidade quandodescreve a situação dos EUA onde o controlesobre a programação e audiência imposto pe-las três principais redes de televisão e opera-dores de TV por cabo representam o mesmotipo de ameaça à liberdade como foi o mono-pólio das comunicações nos países do LesteEuropeu.

Como as comunicações eletrônicas tradi-cionais estão sob controle das grandes corpo-rações, a Internet aparece como uma alterna-tiva e uma resposta a este controle. Os críti-cos porém destacam uma espécie de enclau-suramento no uso atual da Internet onde oacesso é limitado. Grupos minoritários con-tinuam a ter baixa ou nenhuma representa-ção. Como toda mídia alternativa, a Internettende a permanecer nas mãos dos especialis-tas em mídia.

Além disso, a Internet só pode ser efetiva-mente útil se estiver disponível e, até hojeestima-se que 80% da população mundial

27 CAREY, James. Op. Cit.28 Op. Cit.

não tem acesso sequer às comunicações maisrudimentares. Nos EUA, onde o serviço émais generalizado, até 1997, apenas 9% dassalas de aula, laboratórios e bibliotecas pú-blicas estavam conectados à rede, proporçãoque se reduzia à metade nas escolas freqüen-tadas por alunos mais pobres29. A idéia doacesso universal à rede é muito boa, masainda é muito cara e não se encontram so-luções para como financiar um projeto de talproporções. Shapiro30 estima que

“ (...) o custo de oferecer acessoà Internet a todas as salas de aulada rede pública dos EUA, em 2005,instalando-se um computador paracada cinco alunos, exigiria umdesembolso inicial de 47 bilhõesde dólares, mais 14 bilhões anu-ais para operações e manutenção.Mesmo o plano mais modesto –instalar em cada escola um labora-tório de informática com 25 com-putadores interligados, em 2000 –custaria cerca de 11 bilhões de dó-lares e mais 4 bilhões anuais paramanutenção”.

Aliás, o acesso à rede não envolve apenasos equipamentos, envolve também conheci-mento de mídia e de sistemas bem como re-cursos para pagamento dos especialistas.

5 A circulação de informação naInternet

A Internet permite um fluxo ininterrupto deinformações, abrangendo cada vez mais pes-

29 Estes dados estão disponíveis emhttp://www.oneworld.org/panos/briefing/telecoms.htm.

30 SHAPIRO, A. Total Access. In The Nation,264(1), 1995

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soas em suas malhas e pontos de conexões.Este acentuado fluxo de informações temsuas raízes, como destaca Gleick31, num ins-trumento de grande conectividade: “(...) otelefone que transformou o século XX deponta a ponta”.

Os críticos porém, lembram que esta in-formação que circula pela rede muitas vezesnão é confiável, é transitória ou tendenciosa.Há um certo fundo de verdade nisso tudo.Os sites podem apresentar conteúdos subje-tivos ou mudar de endereços ou desaparecerpor problemas organizacionais ou falta de re-cursos, mas tais críticas ao invés de seremconstrutivas acabam por privar os usuáriosdo exercício do poder, uma vez que se supõede antemão que estes não críticos ao dar cré-dito às fontes ou avaliar as situações de dife-rentes pontos de vista. Além disso, afirmarque a maioria das fontes da rede não são cre-díveis é esquecer que também as fontes ofici-ais também representam pontos de vista par-ticulares e, com freqüência divulgam infor-mações que não poderíamos considerar ver-dades absolutas32.

Desta forma torna-se importante dar à In-ternet um enfoque de mídia radical: buscar aparticipação de indivíduos e de grupos orga-nizados na criação de formas interativas decomunicação que atuem como força de com-pensação para o fluxo unilateral que é pró-prio das mídias comerciais. Apesar dos pro-blemas, a Internet pode ser um veículo pode-roso para a sociedade. O acesso ainda é limi-tado e irregular, mas cresce no mundo todo,inclusive em regiões rurais e pouco desen-volvidas.

31GLEICK, James.A transformação do telefone.In Revista Diálogo. [s.d.], 1993. P. 72

32 Ver as idéias de Noam Chomsky em TV CUL-TURA (SP) Programa Roda Viva, [s.d.]

Porém, inúmeras tentativas de adequa-ção estão colocando a comunicação alterna-tiva online sujeitas a campanhas que tendema enfraquecer o exercício do seu potencialtransformador, ameaçando sua eficácia atuale o seu futuro. Nos EUA, por exemplo, ogoverno que financiou com subsídios a rededesde o princípio, saiu do sistema e deixou ocaminho livre para a corporativização indis-criminada do ciberespaço.

McChesney33 diz que a doação do espec-tro digital às grandes corporações de comu-nicação (IBM e MCI) em 1995 foi um dosdez fatos mais importantes abafados pela im-prensa norte-americana naquele ano e que ovalor total do negócio seria da ordem de 70bilhões de dólares. O autor diz ainda que aInternet já se afastou consideravelmente doque prometia ser : uma esfera pública abertae independente, sem fins lucrativos.

Nesse cenário, o termoacessoaos poucosvai dando espaço para uma nova noção. Ade “mercado de idéias”, pois os mercadossó permitem que se tenha acesso ao que élucrativo, não ao que é possível. Destrói-se o conhecimento comum, dando lugar aoque é privado (no uso mais radical do termo).Priva-se a sociedade do acesso a sua herançacomum e dá os direitos sobre esta a proprie-tários individuais, além de tornar a informa-ção uma mercadoria.

Muitas outras tentativas de se restringir aliberdade de expressão ameaçam limitar opoder da Internet enquanto veículo para amudança social, ao mesmo tempo que pro-curam dificultar o apoio dos indivíduos aosmovimentos sociais de formas mais tradici-

33 MCCHESNEY, R.The global struggle for com-munication. In Monthy Review, 48 (2) Nova York,1996

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onais. Assim, embora os custos de acessoe uso básico da rede estejam mais baratos, épossível que o público encontre menos infor-mação provenientes de fontes mais voltadaspara a transformação social (radicais).

6 Bibliografia

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