Música, Temporalidade e Filosofia Em Adorno

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Vol. 7 - Nº 1 - 2007 133 MÚSICA HODIE MÚSICA, TEMPORALIDADE E FILOSOFIA EM ADORNO MUSIC, TEMPORALITY AND PHILOSOPHY IN ADORNO Igor Baggio (UNESP) [email protected] Resumo: Este texto visa salientar alguns pontos em comum que a reflexão de Adorno sobre a música guarda para com o projeto filosófico contido na Dialética negativa. Através da discussão de alguns conceitos musicais como variação em desenvolvimento, material musical e idéia musical, que Adorno toma de Schönberg, será efetuado um cruzamento entre os mesmos e algumas noções características ao modelo adorniano de dialética. Por fim, pretende-se sustentar que a experiência filosófica de Adorno, contida principalmente na Dialética negativa, só pode ser propriamente compreendida se interpretada levando-se em conta algumas discussões fomentadas pelo filósofo em relação à experiência da temporalidade constituinte da música de Beethoven e daquela da segunda escola de Viena. Palavras-chaves: Música moderna; Variação em desenvolvimento; Temporalidade; Dialética negativa; Filosofia crítica. Abstract: This paper aim is to point out some common issues in Adorno’s reflections about music and the Negative Dialectic philosophical project. Trough the discussion of some musical concepts like developing variation, music material and musical idea, all Schönberg’s concepts, it will be done a discussion in parallel between these concepts and some notions characteristics to the Adorno’s model of dialectics. Finally, it will be sustained that the philosophical experience proper to Adorno and presented principally in Negative Dialectics can be properly understood only if interpreted in relation with some Adorno’s discussions about the temporality experience contained in the music of Beethoven and in that of the second viennense school. Keywords: Modern music; Developing variation; Negative dialectics; Temporality; Critic philosophy. A relação entre música e filosofia foi, para Adorno, sempre uma relação de complementaridade e de determinação mútua. Quando do mo- mento fatídico em que surge o questionamento sobre a possibilidade de uma filosofia após Auschwitz, o filósofo não vê outra saída senão a que se opõe a todo modelo anterior de filosofia que tivesse se constituído enquanto positividade sistêmica. Buscando no impulso mimético, presente na arte, a possibilidade de uma prelação objetiva no campo da teoria do conhecimen- to, Adorno advogará a favor da noção de que a filosofia precisaria ser com- posta (ADORNO, 2005, p. 42), tal qual uma composição musical. Por sua vez, a música deveria se constituir enquanto instância cognitiva e crítica. A tarefa filosófica presente na Dialética negativa, que consiste numa tentativa de se repensar a relação entre sujeito e objeto tendo em vista uma raciona- lidade crítica e autônoma, só pode ser propriamente entendida ao se lançar

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  • Vol. 7 - N 1 - 2007 133MSICA HODIE

    MSICA, TEMPORALIDADE E FILOSOFIA EM ADORNOMUSIC, TEMPORALITY AND PHILOSOPHY IN ADORNO

    Igor Baggio (UNESP)[email protected]

    Resumo: Este texto visa salientar alguns pontos em comum que a reflexo de Adorno sobre a msica guarda para com o projeto filosfico contido na Dialtica negativa. Atravs da discusso de alguns conceitos musicais como variao em desenvolvimento, material musical e idia musical, que Adorno toma de Schnberg, ser efetuado um cruzamento entre os mesmos e algumas noes caractersticas ao modelo adorniano de dialtica. Por fim, pretende-se sustentar que a experincia filosfica de Adorno, contida principalmente na Dialtica negativa, s pode ser propriamente compreendida se interpretada levando-se em conta algumas discusses fomentadas pelo filsofo em relao experincia da temporalidade constituinte da msica de Beethoven e daquela da segunda escola de Viena.Palavras-chaves: Msica moderna; Variao em desenvolvimento; Temporalidade; Dialtica negativa; Filosofia crtica.

    Abstract: This paper aim is to point out some common issues in Adornos reflections about music and the Negative Dialectic philosophical project. Trough the discussion of some musical concepts like developing variation, music material and musical idea, all Schnbergs concepts, it will be done a discussion in parallel between these concepts and some notions characteristics to the Adornos model of dialectics. Finally, it will be sustained that the philosophical experience proper to Adorno and presented principally in Negative Dialectics can be properly understood only if interpreted in relation with some Adornos discussions about the temporality experience contained in the music of Beethoven and in that of the second viennense school. Keywords: Modern music; Developing variation; Negative dialectics; Temporality; Critic philosophy.

    A relao entre msica e filosofia foi, para Adorno, sempre uma relao de complementaridade e de determinao mtua. Quando do mo-mento fatdico em que surge o questionamento sobre a possibilidade de uma filosofia aps Auschwitz, o filsofo no v outra sada seno a que se ope a todo modelo anterior de filosofia que tivesse se constitudo enquanto positividade sistmica. Buscando no impulso mimtico, presente na arte, a possibilidade de uma prelao objetiva no campo da teoria do conhecimen-to, Adorno advogar a favor da noo de que a filosofia precisaria ser com-posta (ADORNO, 2005, p. 42), tal qual uma composio musical. Por sua vez, a msica deveria se constituir enquanto instncia cognitiva e crtica. A tarefa filosfica presente na Dialtica negativa, que consiste numa tentativa de se repensar a relao entre sujeito e objeto tendo em vista uma raciona-lidade crtica e autnoma, s pode ser propriamente entendida ao se lanar

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    luz sobre esse modelo cognitivo hbrido constitudo entre msica e filoso-fia. Obviamente, Adorno no pensa em termos de uma pseudo-morfose entre msica e filosofia, idia criticada por ele como algo que desembocaria numa mera estetizao da filosofia e que consistiria, a seu ver, apenas uma outra maneira de escapismo filosfico. Trata-se sim de se reavaliar, em pa-ralelo, a dialtica entre forma e contedo, tanto no mbito da construo do pensamento filosfico quanto no da criao artstica. Assim, em seu ensaio de 1953, Sobre a relao contempornea entre filosofia e msica l-se: (...) uma anlise do status atual da msica em si deveria ser to produtivo para um insight filosfico como, inversamente, a reflexo filosfica inseparvel da situao contempornea da msica (ADORNO, 2002, p. 148).

    Para se ter uma idia mais concreta da constelao que Adorno visa colocar em movimento ao pensar a relao entre esses dois campos distin-tos, porm prximos do saber, examinemos por um momento a crtica aos projetos com perspectivas ontolgicas que o filsofo lana mo, tanto no contexto da reflexo sobre a msica, quanto naquele referente filosofia de sua poca. No ensaio citado acima, Sobre a relao contempornea entre filosofia e msica, Adorno questiona o reducionismo, o abstracionismo e a inevitvel tautologia em que essas reflexes se enredam ao tentar isolar a essncia da msica enquanto algo no mediado historicamente. A seguinte passagem, do ensaio em questo, nos dar subsdios para compararmos a crtica feita por Adorno aos projetos ontolgicos tanto no campo musical quanto no filosfico.

    Se de fato a msica, na observao de Schnberg, diz algo que pode ser dito apenas atravs da msica, ento ela assume como resultado uma qualidade que ao mesmo tempo incompreensvel e enfatica-mente contingente. Ns iramos ter que perguntar se inquirir sobre a raison dtre de qualquer coisa que uma imagem e no realidade no nos levaria ao vazio; a arte como um todo se torna provavelmente no receptiva a esse contexto de explanaes imanentes s quais per-guntam a tudo o quanto existe para que mostre seu passaporte, o qual nenhum outro que aquela mesma raison dtre. No final, a raison dtre de cada arte estar indisponvel para qualquer raison dtre, isto , para a justificativa de sua prpria existncia de acordo com critrios de auto-preservao, no importando o quo altamente sublimado es-tes possam estar. (ADORNO, 2002, p. 138)

    Na passagem acima citada, a inefabilidade da essncia do ser mu-

    sical enquanto algo ontolgicamente posto se configura, assim, como um

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    vazio que probe qualquer tentativa de explicao positiva quanto ao sen-tido dessa mesma essncia tomada de maneira abstrata. No mbito da filo-sofia, esse exatamente o mesmo problema que Adorno aponta como pre-sente na ontologia fundamental do ser heideggeriana, ponto de discusso preliminar no interior da obra Dialtica negativa. O contedo e a forma da crtica dispensada ao discurso tautolgico que resultaria dessa filosofia, muito semelhante com o da citao acima. Adorno critica a ontologia de Heidegger, argumentando em torno da idia de uma pretenso encanta-tria que o verbo Ser performaria no interior do discurso heideggeriano, pretenso esta que visaria substituir os possveis sentidos da categoria ser pelo da palavra ser. Essa manobra que Adorno v, ao longo da obra de Heidegger, qualificada por aquele como uma tentativa de se fundar uma ontologia do ente (ADORNO, 2005, p. 119-122). Manobra que, no entender de Adorno, direciona a filosofia de Heidegger em direo mitologia e ideologia enquanto instncias meramente afirmativas do contexto social heternomo. interessante a semelhana do teor dessa crtica com aquela efetuada por Adorno em alguns momentos tendo em vista os procedimen-tos composicionais de Stravinsky. Com uma construo amplamente am-parada na repetio de clulas rtmicas em forma de ostinatos e na afirma-o reiterada de fragmentos meldicos de carter exticos, obras como a Sagrao da Primavera parecem ser entendidas por Adorno como verses musicais do projeto filosfico presente em Ser e tempo. Em ambos os casos o sacrifcio do sujeito enquanto instncia auto-reflexiva interpretado por Adorno como sendo tematizado de maneira aberta e afirmativa.

    O que est em jogo na crtica s ontologias, tanto musicais quan-to filosficas a qualidade do contedo temporal prprio s experincias filosficas e estticas em questo. Para contrapor o estatismo constitutivo de tais perspectivas ontologizantes, Adorno procura na msica da tradio clssica austro-germnica um modelo cognitivo de carter dialtico a ser pensado juntamente com as categorias da Cincia da lgica de Hegel de maneira mutuamente determinante. Um dos frutos dessa tentativa ador-niana, em pensar simultaneamente uma dialtica no interior das formas musicais e no interior do discurso filosfico, so os fragmentos publica-dos postumamente sob o ttulo Beethoven e a filosofia da msica. Ali fica claro o quo importante se torna o tipo de experincia de constituio e dissoluo temporal prprios msica de Beethoven, com seus princpios

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    de manipulao motvica amparados em procedimentos de variao e de desenvolvimento, como uma instncia modelar para Adorno no que diz respeito construo de sua dialtica negativa. A figura dialtica da nega-o, por exemplo, rastreada no interior das composies de Beethoven e descrita da seguinte forma:

    [Em Beethoven] o conceito de negao como aquele que empurra o processo adiante pode ser precisamente compreendido. Ele envolve um deter-se de linhas meldicas antes que elas tenham evoludo em direo a algo completo e terminado, de maneira a impeli-las em dire-o prxima figura. (ADORNO, 1998, p. 19)

    Um pouco mais adiante, no mesmo texto podemos ler que: Uma forma a forma? da negao em msica a obstruo, onde a progresso emperra (ADORNO, 1998, p. 19). Em uma nota ao p da pgina Ador-no acrescenta que outra forma de negao na msica seria a interrupo, que geraria descontinuidade. Ora, desde A atualidade da filosofia, primeira tentativa do autor de elaborar o seu projeto filosfico, a tarefa que Adorno se coloca em relao dialtica poderia ser propriamente descrita como o desenvolvimento desta em termos de uma dialtica da obstruo, da inter-rupo e da descontinuidade.

    A figura da no-identidade e, portanto a da negao, sobre a qual tal tarefa filosfica estar fundada nortear o sentido de uma ainda poss-vel transcendncia, vislumbrada por Adorno resultando do processo de constituio de uma dialtica negativa junto experincia filosfica. A no-identidade entre sujeito e objeto, ou, colocado de outra maneira, en-tre o conceito e a coisa ter que se apoiar em um recurso s artes toma-das como modelos de uma racionalidade informal que, contudo, opera a partir de construes de constelaes materiais. Da emergir a diferena fundamental entre racionalizao e formalizao, ou construo, que ser fundamental tanto para o modelo adorniano de dialtica quanto para o en-tendimento do carter prprio aparncia do discurso que visa dar conta desse modelo. Essa proposta coloca-se para Adorno como a possibilidade de uma filosofia auto-reflexiva, baseada nos problemas filosficos herda-dos da tradio, sendo esses apreciados enquanto materiais que se pem resistindo ainda a uma meta-crtica. Por isso mesmo, retroativamente, a dialtica hegeliana ter que ser purificada de seu carter afirmativo via uma nova confrontao com Kant, bem como com Freud. Da mesma forma,

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    o materialismo vulgar precisar ser purificado via uma confrontao com o real, que se mostra em Adorno enquanto uma constelao de objetos es-sencialmente fragmentada e contingente.

    No mbito da histria da msica, a no-identidade entre sujeito e objeto ser interpretada por Adorno como uma no identidade entre forma e contedo. O filsofo situar o ponto no qual entende que a dissoluo das normas formais, aceitas tacitamente pelos compositores do passado como algo dado, comea a se transformar a partir da irrupo do prima-do da expresso e da reflexo subjetivas enquanto momentos constituti-vos das obras. Esse ponto da histria da tcnica musical determinar para Adorno a natureza do seu conceito de material musical e est claramente delimitado na seguinte passagem da Filosofia da nova msica:

    O passo da organizao musical subjetividade autnoma realizou-se graas ao princpio tcnico do desenvolvimento. No incio do sculo XVIII, o desenvolvimento constitua uma pequena parte da sonata. A dinmica e a exaltao subjetiva cimentavam-se nos temas expostos uma vez e aceitos como existentes. Mas com Beethoven o desenvolvi-mento, a reflexo subjetiva do tema, que decide a sorte daquele, con-verte-se no centro de toda a forma. Justifica a forma, mesmo quando esta segue preestabelecida como conveno, j que volta a cri-la es-pontaneamente. Auxilia-o um meio mais antigo que, por assim dizer, havia ficado para trs e somente numa fase mais tardia revelou suas possibilidades latentes; frequentemente na msica ocorre de resduos do passado chegarem ao estado atual da tcnica. E aqui o desenvolvi-mento se lembra da variao, (ADORNO, 1974, p. 51)

    Com Beethoven a prioridade do desenvolvimento frente mera

    variao dos motivos musicais passa a constituir o lcus da expresso sub-jetiva autnoma dos compositores, ao mesmo tempo em que d incio ao movimento de dissoluo dos esquemas formais tradicionalmente aceitos at aquele momento, estabelecendo assim, de uma vez por todas, a no-identidade entre forma e contedo musical enquanto progresso tcnico, na medida em que possibilitava, a partir de ento, uma maior autoconscincia por parte dos compositores em relao aos seus procedimentos criativos tomados como meios de produo. No momento historicamente avanado, no qual se encontra Adorno, em relao aos meios de produo estticos, a msica da segunda escola de Viena despontar como a que trabalha com o material musical historicamente mais avanado, justamente por incor-porar de maneira crtica a herana advinda do estado de coisas descrito

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    na citao acima. O termo cunhado por Schnberg de developing varia-tions (variao em desenvolvimento) e utilizado por este para descrever o procedimento composicional caracterstico principalmente da msica de Brahms, mas que remonta ruptura frente aos modelos formais clssicos em Beethoven descrita na citao acima, aparece nos escritos de Adorno sobre msica como o meio pelo qual a conscincia dos compositores ale-mes, em relao s suas foras de produo, se colocou frente na hist-ria em relao aos seus colegas franceses. Esse argumento central para todo o desenvolvimento posterior da reflexo filosfica de Adorno sobre a msica. Toda a idia de uma esttica musical que se pretende materialista depender do sucesso argumentativo em torno dessa questo. Da mesma maneira, toda a concepo da natureza da dimenso temporal inerente msica em sua essncia enquanto uma forma de linguagem depender de tal conceito.

    No que diz respeito s possibilidades de uma filosofia meta-crti-ca, essa deve, segundo Adorno, assumir a herana herdada da tradio filo-sfica do idealismo alemo, transformando-a. Tal modelo de filosofia deve pensar a sua relao com o passado como fizera msica de Schnberg, isto , assumindo a essncia temporal prpria ao seu discurso e passando a encarar o seu contedo como um material historicamente determinado e no mais como algo incondicionado e disponibilizado simplesmente a par-tir da criao de novas categorias. por isso que Adorno pensa em partir da tradio filosfica para se colocar posteriormente contra ela. Assim, os projetos filosficos que imaginariam poder dar um salto por sobre a hist-ria e por sobre as determinaes desta em relao aos seus contedos, em direo a um estado anterior de proximidade entre homem e natureza, ou entre homem e sociedade, estariam, na realidade, caminhando em direo a sua prpria impossibilidade enquanto filosofia. A seguinte passagem da Dialtica negativa est concebida segundo essas idias.

    A historicidade interna do pensamento inseparvel do contedo des-te e por tanto da tradio. Do contrrio, o sujeito puro, perfeitamente sublimado, seria o absolutamente desprovido de tradio. Um conhe-cimento que satisfizesse por completo ao dolo dessa pureza, a atem-poralidade total, coincidiria com a lgica formal, seria tautologia; nem sequer haveria j lugar para uma lgica transcendental. A atemporali-dade a que a conscincia burguesa, talvez como compensao de sua prpria mortalidade, aspira o cmulo da sua obcecao. (ADORNO, 2005, p. 60)

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    Tal atemporalidade, que Adorno atribui conscincia burguesa, faz eco s reflexes de Lukcs em Histria e conscincia de classe. A partir da incorporao dos mecanismos objetivos prprios diviso do trabalho, no mundo capitalista, ao nvel da conscincia subjetiva, o elemento tem-poral constituinte dessa se v transfigurado em um vazio espacial preen-chido por momentos fragmentrios de natureza objetiva como aqueles, o que impede a constituio de uma conscincia subjetiva verdadeiramente autnoma. Essa pseudo-morfose (termo muitas vezes utilizado por Adorno para se referir inverso de qualidades entre fenmenos diferentes) do tempo em espao tematizada numa passagem da obra de Lukcs aonde este cita e comenta Marx nos seguintes termos:

    O tempo perde assim o seu carter qualitativo, mutvel, fludo: fixa-se num continuum exatamente delimitado, quantitativamente mensur-vel, cheio de coisas quantitativamente mensurveis (os trabalhos realizados pelo trabalhador, reificados, mecanicamente objetivados, separados com preciso do conjunto da personalidade humana) num espao. (LUCKS, 1974, p. 104)

    A reificao da dimenso temporal no interior da conscincia dos sujeitos investigada por Adorno enquanto manifestando-se no prprio mecanismo identificador necessrio s formaes de conceitos. O momen-to de identidade necessrio a toda operao cognitiva se transforma as-sim, para o filsofo, em uma proto-forma de ideologia (ADORNO, 2005, p. 144) quando no reconhece seu momento contrrio, a no-identidade, como necessrio. No tocante msica, Adorno identificar exatamente o tipo de fenmeno descrito por Lukcs manifestando-se como elemento maior da construo musical de Debussy e Stravinsky, ao mesmo tempo em que comea a interpretar a msica da segunda escola de Viena, com-posta sob o princpio da variao em desenvolvimento, enquanto uma es-pcie de auto-crtica e antdoto do mesmo fenmeno.

    Claro est, na Dialtica negativa, que Adorno no pode e nem visa descartar o momento da identidade do interior do seu modelo cognitivo. A guinada pretendida se estabelece como uma manobra que parte dos mo-mentos de identidade em direo a um procedimento sinttico dos mes-mos concebido agora de maneira qualitativamente diversa. Adorno visa ilustrar, por meio da noo de sntese por constelaes, um mecanismo diverso daquele da sntese entre conceitos por meio da figura da identida-

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    de entre sujeito e objeto. Essa ltima faria violncia ao objeto na medida em que, ao impor uma identidade deste em relao ao sujeito, deixa de fora da equao justamente a diferena qualitativa que faz do objeto o que ele , contentando-se com a mera repetio do sujeito. O conhecimento do objeto, nesse caso, nada mais seria que o conhecimento das prprias facul-dades lgicas inerentes ao sujeito. Como opo, a sntese no-violenta que Adorno tem em mente s ser possvel se concebida nos mesmos termos aos de uma sntese esttica, ativa por parte do sujeito e que no abdica da qualidade material prpria aos objetos. Em um ensaio de 1934 intitulado O compositor dialtico, Adorno descreve a relao de Schnberg com o material musical nos seguintes termos:

    Em Schnberg a contradio entre rigorosidade e liberdade no resta j superada no milagre da forma. Essa contradio se transforma em energia produtiva; a obra no transmuta a contradio em harmonia, de maneira que uma vez e outra volta a evocar, para outorgar-lhe dura-o, a imagem da contradio, em traos cheios de rugas cruis: Frag-mento, como tudo (...). (ADORNO, 1985, p. 52)

    justamente essa energia produtiva proveniente das contra-dies reais, externas ao pensar filosfico, que Adorno parece pretender resgatar em sua filosofia. No trecho acima citado, a palavra harmonia in-terpretada como a figura da identidade entre forma e contedo que recha-ada por Schnberg. No momento histrico de ento, ao sujeito do com-positor no seria mais lcito tomar a contradio em um nvel puramente subjetivo, rapidamente resolvendo-a atravs da sntese lgica e formal; a postura responsvel de Schnberg, em relao ao material musical, confi-gura-se no momento em que o compositor assume a contradio como algo real, objetivo, no subsumindo esta no interior de um pensamento mera-mente ordenador. A presena de um substrato social heternomo, no in-terior do contedo do material esttico, impediria que artistas autnomos afirmassem tal heteronomia como sendo a natureza em si da obra, exigin-do, por outro lado, um desdobramento do contedo heternomo atravs de processos composicionais dinmicos e auto-reflexivos em direo ao estabelecimento de obras verdadeiramente autnomas. Os choques e as contradies materiais prprias ao real no so resolvidas, porm, seriam incorporados de maneira crtica pelas peas musicais aforismticas do pe-rodo expressionista.

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    Como dito anteriormente, a dialtica negativa de Adorno no visa ignorar o momento reservado identidade no movimento conceitual, mas sim estabelecer uma relao deste com seu momento outro, ou seja, com o no-idntico. Dessa forma, l-se o seguinte na segunda parte da Dialtica negativa:

    Com sua crtica, a identidade no desaparece; muda qualitativamente. Nela vivem elementos da afinidade do objeto com seu pensamento. hibris que a identidade exista, que a coisa se corresponda com seu conceito. Mas seu ideal no haveria simplesmente que desprez-lo: na recusa de que a coisa no idntica ao seu conceito vive tambm o anseio deste de que possa chegar a s-lo. (ADORNO, 2005, p. 145)

    Essa afinidade do objeto com o conceito vislumbrada por Adorno como uma afinidade de carter mimtico passvel de ser instaurada junto aos processos de identificao conceitual. Nesse sentido, uma possibili-dade de transcendncia cognitiva vislumbrada por Adorno partindo-se do plano de imanncia referente aos mecanismos identificadores mesmos. Uma transcendncia na imanncia ou, colocado de outra forma, uma no-identidade na identidade. Com essa concepo do momento transcenden-tal a ser instalado no interior mesmo do pensar, alcanamos o mago da problemtica concernente qualidade da transcendncia ainda possvel de ser tematizada pela filosofia no contexto histrico ps-metafsico.

    O conceito positivo de razo, que Adorno tem em mente, implica em uma teoria da linguagem capaz de traduzi-lo adequadamente. Assim como na arte, o momento da expresso material prprio linguagem tor-na-se central para o projeto filosfico adorniano. Ser a partir desse nvel de imanncia lingstica que a lgica da dissoluo em forma de constela-es se apresentar como possibilidade de transfigurao da conscincia reificada, em outra emancipada. A dialtica entre essncia e aparncia se v, assim, pendendo para o lado da aparncia como forma de liberao das essncias dos contedos objetivos. Isso descrito na Dialtica negati-va como uma salvao do momento retrico no interior do discurso filo-sfico. Para Adorno s dessa forma a filosofia conseguiria legitimar a sua pretenso em alcanar os contedos mesmos presentes nos fenmenos. A relao mimtica que esse tipo de discurso filosfico guardaria para com seus objetos constitui o elemento utpico presente no argumento adorniano.

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    Adorno resgatar, tambm, esse momento retrico do interior das formas estticas. A categoria da expresso prpria ao discurso esttico se v, dessa forma, incorporada junto teoria do conhecimento. Adorno apostar no equilbrio entre o momento lgico-formal e o momento trans-cendental prprio experincia esttica, como ponto central para a cons-tituio do seu anti-sistema. Assim como na msica radical, reivindicada por Adorno ao longo de quase toda a sua vida, o elemento expressivo era entendido como o ncleo a partir do qual se articularia a concepo for-mal; na filosofia pretendida pela Dialtica negativa, torna-se igualmente central essa relao de no-identidade entre os momentos expressivos e formais. Apesar de no-idnticos os momentos expressivos e formais sero entendidos por Adorno como mutuamente determinados.

    A liberdade da filosofia no nada mais que a capacidade para con-tribuir a dar voz a sua falta de liberdade. Se o momento expressivo aspira a mais, degenera em concepo de mundo; quando renuncia ao momento expressivo e ao dever de exposio, se assimila cincia. Ex-presso e rigor no so para ela possibilidades dicotmicas. Necessi-tam-se mutuamente, nenhuma sem a outra (ADORNO, 2005, p. 28)

    A mesma idia de uma passagem do momento conceitual da iden-tidade prprio ao sujeito em direo ao momento material no-idntico prprio ao objeto tambm pode ser encontrada descrita de maneira mais concreta na Filosofia da nova msica, justamente em relao noo de variao em desenvolvimento. Nesse contexto, ao sujeito do compositor facultado vislumbrar uma possibilidade de ultrapassar a relao reificada com seu objeto, o tempo, atravs de uma auto-reflexo da dimenso tem-poral imanente obra via o procedimento da variao enquanto forma de desenvolvimento.

    A variao se dinamiza, mesmo quando conserva no obstante idnti-co o material que lhe serve de ponto de partida, o que Schnberg cha-ma modelo. Tudo sempre o mesmo. Mas o sentido desta identi-dade se reflete como no-identidade. O material que serve como ponto de partida est feito de tal maneira que conserv-lo significa ao mesmo tempo modific-lo. Esse material no em si, mas somente em rela-o com as possibilidades do todo. A fidelidade s exigncias impos-tas pelo tema significa que tambm este se modifica profundamente a todo momento. Em virtude desta no-identidade da identidade, a msica readquire uma relao absolutamente nova com o tempo em que se desenvolve cada vez. O tempo j no lhe indiferente, porque

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    na msica no se repete segundo o seu capricho, mas se transforma continuamente. E, por outro lado, j no escrava do tempo entendido como mera entidade, porque nestas modificaes se mantm idntica (ADORNO, 1974, p. 51)

    Se Adorno ouvia na msica de Beethoven um smile muito forte da dialtica hegeliana, no tipo de relao com o material herdado da tra-dio musical prpria a Schnberg que o filsofo vai ouvir o seu prprio modelo de dialtica. No que diz respeito aos procedimentos composicio-nais e aos caracteres expressivos caractersticos da msica burguesa do passado, Schnberg manteria a mesma postura que Adorno pretende man-ter em relao ao material conceitual e significativo herdado do idealismo alemo. As figuras da totalidade e do absoluto, to importantes tanto para a msica de Beethoven quanto para a filosofia de Hegel so substitudas, em Schnberg e em Adorno, pelas figuras do fragmento e do contingente. Para Adorno, a relao ambivalente que a msica de Schnberg mantinha em relao ao sistema tonal, entendido em sua segunda natureza como uma espcie de linguagem, ser a mesma que o filsofo manter para com a linguagem filosfica reificada advinda dos sistemas idealistas. Enquanto Schnberg se utilizava do procedimento da variao em desenvolvimento para colocar em movimento os gestos petrificados da tradio, Adorno, em sua concepo da dialtica ir efetuar o mesmo via sua construo sinttica por constelaes. A noo de uma filosofia composta surge nesse momento do argumento de Adorno de maneira explcita.

    Mas com as composies em questo poderia suceder algo parecido ao que sucede com seu anlogo, as musicais. Subjetivamente produzi-das, estas s so alcanadas ali aonde a produo subjetiva desaparece nelas. O contexto que esta cria precisamente a constelao se faz legvel como signo da objetividade: do contedo espiritual. O seme-lhante escritura de tais constelaes a converso em objetividade, graas linguagem, do subjetivamente pensado e juntado. (ADORNO, 2005, p. 159)

    Adorno fala com conhecimento de causa, j que se dedicou seria-mente composio musical no perodo entre 1925 e o final da dcada de quarenta. Justamente o perodo aonde o filsofo-compositor se dedica a pr em prtica, em seus ensaios filosficos, o procedimento de construo de constelaes. assim que Buck-Morss (1979) pode afirmar:

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    Adorno no escrevia ensaios, ele os compunha, e ele era um virtuoso no instrumento dialtico. Suas composies verbais expressam uma idia atravs de uma seqncia de reverses e inverses dialticas. As frases desenvolvem-se como temas musicais: eles quebram-se, se-parando-se e dobram-se de volta para si em um espiral de variaes contnuas. (p. 101)

    Outro conceito schnberguiano que Adorno pode ter levado em conta para suas reflexes sobre a dialtica o de Musikalische Gedanke (idia musical). Nos escritos de Schnberg, esse conceito aparece designan-do noes diferentes, acabando por tomar um carter obscuro em alguns momentos. Mas o que se pode depreender com segurana, dessa que sem dvida a principal noo terica no mbito da composio musical para Schnberg, justamente a no-identidade que tal idia musical guardava para com a composio musical nela baseada. Mais do que a totalidade da aparncia da obra terminada, esse conceito possui ao longo dos escritos tericos de Schnberg um papel transcendental inegvel (COVACH, 1992, p. 103-118). De qualquer forma, isso importante aqui, na medida em que a idia de cada ensaio de Adorno tambm possui um carter transcen-dental que concebido por Adorno sob o signo de uma totalidade perdida, e que no apreendida enquanto aparncia de totalidade no prprio ensaio filosfico que visa dar conta dela. Para que a verdade dessa idia eminen-temente fragmentria possa emergir, torna-se necessria uma reconstruo mimtica da mesma, atravs das construes conceituais e, principalmen-te, de uma posterior decifrao dessas constelaes via uma re-construo ativa por parte do sujeito. A possibilidade de se captar a essncia daquela realidade a partir de um suporte discursivo mostra-se aqui como aquela transcendncia na imanncia tematizada acima. Tal transcendncia, como no podia deixar de ser, guarda muitas semelhanas com o tipo de trans-cendncia esttica discutida por Adorno em seus escritos sobre arte e prin-cipalmente na Teoria esttica.

    As obras musicais do perodo expressionista de Schnberg, Berg e Webern eram interpretadas por Adorno como constitudas a partir de uma mediao mimtica destas para com a lgica prpria aos movimentos ob-jetivos da realidade emprica. Isso possibilitava a essas obras introjetarem e transcenderem as contradies reais em sua forma de modo a estabele-cerem em seu interior um contedo de verdade. A mesma possibilidade

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    vislumbrada por Adorno em relao filosofia. Salvar a aparncia do real no interior do discurso filosfico passa a se constituir na necessidade maior para um pensamento que se pretende materialista em sentido estrito. J que o carter positivo e meramente afirmativo da realidade est vetado ao discurso filosfico, resta a esse estabelecer como seu destino provis-rio um movimento de constituio e dissoluo conceitual que guarda um parentesco muito ntimo com a forma de composio daquelas msicas idealizadas de acordo com o princpio da variao em desenvolvimento e brevemente discutidas ao longo deste texto. Nessas obras, o que estava em jogo para Adorno era justamente a dialtica entre o sentido da forma e o sentido da expresso. Na filosofia, essa dialtica entre forma e expresso que possibilitar a Adorno argumentar em torno da juno materialismo-metafsica. A seguinte passagem do ltimo captulo da Dialtica negativa ilustra o sentido hbrido caracterstico do projeto meta-crtico que Adorno tem em mente como nica possibilidade para que uma filosofia respons-vel continue a existir.

    Nem sequer levada ao extremo a negao da negao uma positivida-de. Kant chamou dialtica transcendental uma lgica da aparncia: a doutrina das contradies em que forosamente se enreda todo tra-tamento do transcendental como algo positivamente cognoscvel. No torna obsoleto seu veredicto o esforo de Hegel em vindicar a lgica da aparncia como a da verdade. Mas a reflexo no se interrompe com o veredicto sobre a aparncia. Consciente de si mesma, esta deixa de ser a antiga. O que a essncia finita diz sobre a transcendncia a aparn-cia desta, ainda que, como bem se preveniu Kant, uma aparncia ne-cessria. Da a incomparvel relevncia metafsica que tem a salvao da aparncia, objeto da esttica. (ADORNO, 2005, p. 360)

    A irredutibilidade do momento negativo, isto , a no subsuno da negao da negao em uma positividade se transforma na marca maior do modelo dialtico adorniano. Os signos referentes coisa e ao algo so tomados por Adorno enquanto signos do real, a possibilidade de se salvar a aparncia de um momento histrico marcado pelo horror do holocaus-to. Em meio barbrie, a transcendncia almeja salvao da aparncia; no como mera tarefa filosfica, mas sim como responsabilidade humana contra o esquecimento. Valorizar o objeto junto experincia cognitiva significa para Adorno estabelecer uma nova possibilidade de sentido para as figuras da negatividade e do real. Essas apenas podero ser entendidas

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    propriamente, se tomadas enquanto momentos que almejam uma dimen-so tica diversa do formalismo prprio ao imperativo categrico kantiano. assim que Adorno pode afirmar no ltimo captulo da Dialtica negativa: Hitler imps aos homens em estado de no-liberdade um novo imperativo categrico: orientar seu pensamento e sua ao de tal modo que Auschwitz no se repita, que no ocorra nada parecido (ADORNO, 2005, p. 334).

    Referncias:

    ADORNO, Theodor Wiesengrund. Beethoven: the philosophy of music. Trad. Ed-mund Jephcott. Stanford: Stanford University, 1998.

    _______. Dialctica negativa La jerga de la autenticidad. Trad. Alfredo Brotons Muoz. Madrid: Akal, 2005.

    _______. El compositor dialctico. In: _______. Improptus: serie de artculos musicales impressos de nuevo. Trad. Andrs Snchez Pascual. Barcelona: Laia, 1985.

    _______. Filosofia da nova msica. Trad. Magda Frana. So Paulo: Perspectiva, 1974.

    _______. On the contemporary relationship of philosophy and music. In: LEPPERT, Richard. (Org.). Essays on music. Trad. Susan H. Gillespie. Berkeley: University of California, 2002.

    BUCK-MORSS, Susan. The origin of negative dialectics: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin, and the Frankfurt institute. New York: The Free, 1979.

    COVACH, John. Schnberg and the occult. Theory and practice: Journal of the music theory society of New York state, New York, n. 17, p. 103-118, 1992.

    LUKCS, Georg. Histria e conscincia de classe. Trad. Telma Costa. Porto: Escor-pio, 1974.

    Igor Baggio Bacharel em piano pela UFRGS e mestrando em musicologia na UNESP sob a orien-tao da Profa. Dra. Lia Toms, onde desenvolve sua pesquisa que est centrada nos escritos sobre msica de Theodor Adorno e nas composies deste autor para canto e piano (Lieder).