Musica popularem urn Conservatorio de...

10
revista cia abem numero 6 setembro de 2001 Musica popular em urn Conservatorio de Musica 1 Margarete Arroyo Resumo: 0 presente texto concentra-se na exposi9ao de dados e reflexoes finais de uma pesquisa, especificamente no tocante a presen9a da Musica Popular em um Conservat6rio de Musica. Esse recorte explicita a complexidade desse cenario, as varias vias de sociabilidade que passam por ele e as varias representa90es sobre musica compartilhadas e disputadas ali. Nesse sentido, sao focalizados 0 papel da musica popularcomo indicativo de mudan9as s6cio-educacionais na institui9ao, as contradi90es advindas tanto da centralidade da nota9ao musical como competencia valorizada nessa escola quanta da hegemonia de praticas musicais vinculadas a cultura musical erudita europeia e representa90es das musicas popular e erudita sustentando as praticas musicais e pedag6gico-musicais no Conservat6rio. As considera90es finais abordam a necessaria amplia9ao conceitual e pratica da educa9ao musical escolar e academica e a necessaria transforma9ao do olhar por parte dos educadores musicais sobre seus espa90s de atua9ao profissional. "Longe de ser uma atividade unificante concernente a todos os meios e a todas as classes, a musica e 0 lugar por excelencia da diferencia9ao pelo desconhecimento mutuo; os gostos e os estilos frequentemente ignoram-se, julgam-se e copiam-se (... )" (Bozon, p.251)2. (16/12/1998 . TV Paranafba - Rede Bandeirantes, Uberlandia, MG) 0 tema da reportagem e a 'fila' e 0 primeiro dia de matrfcula no ConseNat6rio, reportagem que foi ao ar em imagem direta as 8h30 da manha. A primeira cena mostra longa fila, de mulheres na sua maioria, abrigadas sob guarda-chuvas em uma rara manha cinzenta de garoa. Ap6s comentarios da rep6rter sobre as filas constantes na vida nacional, alguns depoimentos sao colhidos: - (mulher loura, nos seus vinte e poucos anos): Vim pegar a senha. Estou aqui desde as 6h30 da manha; - (mulher negra, cerca de 35 anos): To querendo vaga pro meu menino no Conservat6rio; - (rapaz, vinte e poucos anos, fardado com uniforme da polfcia militar): Vale a pena ficar na fila, se eu conseguir a senha. Quero aprender violao; - (menino magro e alto, cerca de 13 anos): Cheguei as cinco da manha. (Com ar de vitorioso, disse): Consegui a senha. Vou fazer musica/iza9ao, mas tenho que vo/tar mais uma vez pra fazer a matrfcu/a 3 (Apesar do ar de vit6ria que 0 menino mostrava, ao referir-se a musicalizayao, seu tom 1 Uma primeira versao deste texto foi submetida e aprovada para 0 GT- Musicas Populares e Educaci6n en America Latina y el Caribe do III Congreso LatinoAmericano de la Asociacion International de Estudios de Musica Popular (IASPM), Bogota, Colombia, 23 a 27 de agosto de 2000. 2 Michel Bozan e soci610go frances. 3 Reportagem veiculada no programa "Tudo na TV", televisao Paranaiba, Uberlandia. 59

Transcript of Musica popularem urn Conservatorio de...

Page 1: Musica popularem urn Conservatorio de Musicaabemeducacaomusical.com.br/revista_abem/ed6/artigo_6.pdf · mas tenho que vo/tar mais uma vez pra fazer a ... que se apresentam no bares,

revista cia

abemnumero 6

setembro de 2001

Musica popular em urnConservatorio de Musica1

Margarete Arroyo

Resumo: 0 presente texto concentra-se na exposi9ao de dados e reflexoes finais deuma pesquisa, especificamente no tocante a presen9a da Musica Popular em umConservat6rio de Musica. Esse recorte explicita a complexidade desse cenario, as variasvias de sociabilidade que passam por ele e as varias representa90es sobre musicacompartilhadas e disputadas ali. Nesse sentido, sao focalizados 0 papel da musicapopularcomo indicativo de mudan9as s6cio-educacionais na institui9ao, as contradi90esadvindas tanto da centralidade da nota9ao musical como competencia valorizada nessaescola quanta da hegemonia de praticas musicais vinculadas acultura musical eruditaeuropeia e representa90es das musicas popular e erudita sustentando as praticasmusicais e pedag6gico-musicais no Conservat6rio. As considera90es finais abordam anecessaria amplia9ao conceitual e pratica da educa9ao musical escolar e academica ea necessaria transforma9ao do olhar por parte dos educadores musicais sobre seusespa90s de atua9ao profissional.

"Longe de ser uma atividade unificante concernente a todos os meios e a todas asclasses, a musica e 0 lugar por excelencia da diferencia9ao pelo desconhecimentomutuo; os gostos e os estilos frequentemente ignoram-se, julgam-se e copiam-se (... )"(Bozon, p.251)2.

(16/12/1998 . TV Paranafba - RedeBandeirantes, Uberlandia, MG) 0 tema dareportagem e a 'fila' e 0 primeiro dia de matrfculano ConseNat6rio, reportagem que foi ao ar emimagem direta as 8h30 da manha. A primeira cenamostra longa fila, de mulheres na sua maioria,abrigadas sob guarda-chuvas em uma rara manhacinzenta de garoa. Ap6s comentarios da rep6rtersobre as filas constantes na vida nacional, algunsdepoimentos sao colhidos:

- (mulher loura, nos seus vinte e poucosanos): Vim pegar a senha. Estou aqui desde as6h30 da manha;

- (mulher negra, cerca de 35 anos): Toquerendo vaga pro meu menino no Conservat6rio;

- (rapaz, vinte e poucos anos, fardado comuniforme da polfcia militar): Vale a pena ficar nafila, se eu conseguir a senha. Quero aprenderviolao;

- (menino magro e alto, cerca de 13 anos):Cheguei as cinco da manha. (Com ar de vitorioso,disse): Consegui a senha. Vou fazer musica/iza9ao,mas tenho que vo/tar mais uma vez pra fazer amatrfcu/a3 • (Apesar do ar de vit6ria que 0 meninomostrava, ao referir-se a musicalizayao, seu tom

1 Uma primeira versao deste texto foi submetida e aprovada para 0 GT- Musicas Populares e Educaci6n en America Latina y el Caribedo III Congreso LatinoAmericano de la Asociacion International de Estudios de Musica Popular (IASPM), Bogota, Colombia, 23 a 27 deagosto de 2000.

2 Michel Bozan e soci610go frances.

3 Reportagem veiculada no programa "Tudo na TV", televisao Paranaiba, Uberlandia.

59

Page 2: Musica popularem urn Conservatorio de Musicaabemeducacaomusical.com.br/revista_abem/ed6/artigo_6.pdf · mas tenho que vo/tar mais uma vez pra fazer a ... que se apresentam no bares,

numero 6setembro de 2001

foi de incerteza, talvez sobre 0 que musicaliza980significava. Mais tarde, na reportagem, a diretoraexplicou que nao havia vaga para instrumentos.Disse que os candidatos poderiam matricular-separa a parte te6rica, a musicaliza980, e ficar na filade espera por uma vaga no instrumentor.

Os Conservatorios de Musica sao alvo deuma serie de preconceitos, frutos de represen­tayoes que foram construfdas ao longo do seculoXX. Sao, em geral, tomados por estaticos, ultrapas­sados, mas um olhar instrumentalizado sociologica­mente e antropologicamente permite desvelar umadinamica que vem se contrapor a essas represen­tayoes.

A cena descrita acima traz informayoes sobreum Conservatorio Estadual de Musica, localizadona cidade de Uberlandia, Minas Gerais. Esse"mundo musical"s, marcado pelas diferenciayoescitadas por Bozon na epfgrafe, e publico e atendeuno ana de 2000 cerca de quatro mil alunos, algunsdeles, possivelmente, presentes naquela fila de1998. Essas filas, que chegam a varar a noite, saorotina a cada ano, quando pessoas de idades eclasses sociais diversas procuram a escola cheiasde um imaginario variado sobre fazer e aprendermusica. Suas expectativas sobre 0 que encontraraono Conservatorio sao diversas, 0 que ja indica acomplexidade de uma instituiyao como essa.

Este artigo propoe apresentar parte de umapesquisa empreendida entre 1995 e 1999 em doiscontextos de ensino e aprendizagem de musicasituados na cidade de Uberlandia, MG.: um ritualafro-catolico - Congado - e uma escola de musica- Conservatorio Estadual (Arroyo, 1999)6. 0presente texto concentra-se na exposiyao de dadose reflexoes finais relativos ao Conservatorio,especificamente no tocante a presenya da MusicaPopular nessa escola. Esse recorte explicitara acomplexidade desse cenario, as varias vias de

. sociabilidade que passam por ele e as variasrepresentayoes sobre musica compartilhadas edisputadas ali. Nesse sentido, sao focalizados 0

papel da musica popular como indicativo demudanyas socio-educacionais na instituiyao, ascontradiyoes advindas tanto da centralidade danotayao musical como competencia valorizada

revista ciaabem

nessa escola quanta da hegemonia de praticasmusicais vinculadas a cultura musical eruditaeuropeia, e representayoes das musicas popular eerudita sustentando as praticas musicais noConservatorio.

Apesar das particularidades, essa escola demusica enfrenta os mesmos desafios com queoutras instituiyoes escolares e academicasnacionais e estrangeiras tem se deparado nocontexto dos faze res musicais na sociedadecontemporanea. Por exemplo, Bruno Nettl (1995)relata sobre departamentos de musica emuniversidades americanas e Elizabeth Travassos(1999) sobre os cursos de musica na UNI-RIO.Focalizar 0 Conservatorio em questao significadesvelar a complexidade e os embates que essasinstituiyoes enfrentam - no caso de Minas Gerais,sao doze escolas estaduais de musica que atendemmilhares de estudantes7

As reflexoes finais centram-se na necessariaampliayao conceitual e pratica da educayao musicalescolar e academica e na necessaria transformayaodo olhar por parte dos educadores musicais sobreseus espayos de atuayao profissional.

Com 0 intuito de evitar confusoes de sentido,seguem algumas observayoes sobre os termos'musica popular' e 'musica erudita'.

Os termos 'musica popular' e 'musica erudita'sao alvo de polemica. Essas "classificayoes denfveis de cultura elaborada por intelectuais"(Travassos, 1999, p.123) - acrescenta-se, as duascitadas, 0 termo musica folcl6rica -, acabaramresultando em discursos de valor que demarcampraticas musicais. Esses discursos afloraram noConservatorio focalizado neste estudo, onde umolhar instrumentalizado pede desvelar asinterayoes e conflitos entre as falas sobre musicae as ayoes musicais.

A titulo de contextualizayao, vale observarque 0 termo musica popular, segundo ElizabethTravassos (1999), "remete, habitualmente, a umalista de produtos e seus respectivos produtores"(p.123). No Conservatorio, musica popularsignificatudo 0 que nao e erudito.

4 As palavras ern italico referem-se a termos e express6es utilizados pelos atores no contexto do Conservat6rio.

5 Ver Ruth Finnegan (1989).

6 Pesquisa realizada no Programa de Doutorado do Curso de P6s-Gradualfao em Musica da UFRGS, sob a orientalfao da professoraOra. Maria Elizabeth Lucas. Agradelfo a oportunidade concedida pelos congadeiros e pela direlfao, professores e estudantes doConservat6rio na realizalfao deste estudo. A pesquisa contou com 0 apoio da CAPES.

7 as outros Conservat6rios Estaduais de Musica estao sediados nas cidades de Montes Claros, Sao Joao del Rei, Uberaba, Oiamantina,Visconde do Rio Branco, Juiz de Fora, Pouso Alegre, Leopoldina: Ituiutaba, Araguari e Varginha (Gonlfalves, 1993, p.38).

60

Page 3: Musica popularem urn Conservatorio de Musicaabemeducacaomusical.com.br/revista_abem/ed6/artigo_6.pdf · mas tenho que vo/tar mais uma vez pra fazer a ... que se apresentam no bares,

revista cia

abem

Breve descri'rao da pesquisa

Com 0 objetivo de situar 0 presente texto noconjunto da investigac;:ao em que 0 Conservat6riofoi um dos contextos de incursao, recorro a umabreve descric;:ao da pesquisa.

A delimitac;:ao nos dois cenarios citados estaatrelada a necessidade metodol6gica advinda dopreceito antropol6gico de viver 0 estranho eestranhar 0 familiar. A princfpio, 0 estranho paramim era 0 contexte do Congado, que presencieipela primeira vez em 1993, quando me mudei deSao Paulo para Uberlandia. Ja 0 Conservat6rio era,entao, considerado familiar, pois desde crianc;:aconvivi com instituic;:6es desse tipo: escolas demusica de tradic;:ao europeia.

Buscando conhecer de modo mais dense arelac;:ao entre musica e aprendizagem foi queconstruf 0 objeto de pesquisa, cuja questao centralfoi 0 desvelamento das representac;:6es sociaissobre faze res musicais em cenarios social eculturalmente diferenciados de ensino e aprendiza­gem de musica. Os objetivos foram desvelar essasrepresentac;:6es em cada contexto, reconstituf-Ias(Magnani, 1986) e interpreta-Ias no ambito de suaspraticas de ensino e aprendizagem musical e,final mente, refletir sobre a relac;:ao entre educac;:aomusical e cultura.

o metoda de pesquisa foi 0 etnogratico.Passei, em trabalho de campo, dez meses,distribufdos ao longo de tres anos, fazendo uso dediferentes tecnicas de pesquisa - observac;:aoparticipante, entrevistas abertas, diarios de campo,gravac;:6es em cassete e vfdeo, fotos e analise dedocumentos.

o referencial te6rico e antropol6gico­interpretativo-reflexivo, sendo que tres conceitos estaona base da captac;:ao, analise e interpretac;:ao dos dadoscoletados: 0 conceito s6cio-atropol6gico derepresentac;:ao social, 0 conceito de cultura e 0 de fazermusical. Representac;:ao social e entendida como umaforma de saber conceitual e pratico construfdo ecompartilhado coletivamente e compreendido no sensocomum como uma forma naturalizada de significado(Durkheim, 1994; Moscovici, 1988). Defini cultura deacordo com Geertz, ou seja, como uma teia designificados construfdos nas interac;:6es sociais (Geertz,1989) e 0 fazer musical como "uma ac;:ao social", segundoBlacking (1995, p. 223) "resultado da interac;:aointerpessoal com ao menos tres conjuntos de variaveis:sons ordenados simbolicamente, instituic;:6es sociais euma selec;:ao de capacidades cognitivas e sens6rio­motoras do corpo humano" (Blacking, 1992, p. 305).

numero 6setembro de 2001

Este estudo caracteriza-se, assim, pelolanc;:amento de um olhar antropol6gico sobrecenarios onde ensino e aprendizagem de musicaacontecem. Descrever antropologicamente essescenarios significa focalizar os processos interativosde seus atores e as formas simb61icas por elescompartilhadas e disputadas. Nesse sentido,pontua Juarez Dayrell, .

Analisar a escola como espalfo socio-cultural significacompreendiHa na otica da cultura, sob um olhar maisdenso, que leva em conta a dimensao do dinamismo, dofazer-se cotidiano, levado a efeito por (...) seres humanosconcretos, sujeitos sociais e hist6ricos, presentes nahistoria, atores na historia. Falar da escola como espalfosocio-cultural implica, assim, resgatar 0 papel dos sujeitosna trama social que a constitui, enquanto instituilfao(Dayrell, 1996, p.137).

o Conservat6rio de Musica

Uberlandia, localizada no sudoeste de MinasGerais, quase na regiao central do Brasil, e 0

contexto sociocultural de inserc;:ao do Conservat6riode Musica, sendo este um espac;:o de reproduc;:aode representac;:6es que marcam a cidade.

A cidade, nos seus pouco mais de 100 anose cerca de 500.000 habitantes, e caracterizada porum 'ethos' de modernidade (Alem, 1991), articuladocom seu papel polftico, economico e cultural decapital regional. Agroprodutora e possuidora de umparque industrial, Uberlandia atrai migrantes dediversas partes do estado, de estados vizinhos, donorte e nordeste do pafs.

o olhar aguc;:ado etnomusicologicamentedesvela uma intensa atividade musical na cidade,constitufda por 'mundos musicais' variados:musicos populares - de pagode, sertanejo, mpb,jazz e rock - que se apresentam no bares, bandamunicipal, orquestra da Universidade, corais,escolas, grupos de cultura popular - Congado, Foliade Reis, Carnaval e terreiros de Umbanda, entreoutros. Trata-se de uma evidencia concreta dopapel da musica para alem de "uma atividadeunificante", como ressalta Bozon; esses 'mundosmusicais' competem, integram-se e copiam-se.

o Conservat6rio de Musica em foco foifundado em 1957 por particulares e encampadopelo estado em 1978. Eum dos 'mundos musicais'com grande visibilidade na cidade dada suainserc;:ao em diferentes espac;:os extra-escolares,quando das apresentac;:6es musicais, e seu numeroexpressive de alunos oriundos dos diversos bairrose de varios contextos socioculturais.

Como mencionei anteriormente, a princfpioo Conservat6rio de Musica era um mundo familiar

61

Page 4: Musica popularem urn Conservatorio de Musicaabemeducacaomusical.com.br/revista_abem/ed6/artigo_6.pdf · mas tenho que vo/tar mais uma vez pra fazer a ... que se apresentam no bares,

numero 6setembro de 2001

para mim, porem estava consciente de que 0 olharantropologico colocava-me 0 desafio de estranharo familiar. Nesse exercfcio fui percebendo aspectosque 0 olhar habitual nao nos permite perceber.Tratou-se, de fato, de uma "opera9ao intelectualtransformadora" (Lucas, 1998, p.6) que exigiu umaarticula9ao entre 0 observado e 0 vivido no campoe um referencial teo rico capaz de possibilitar 0 olhardiferenciado para um mundo tomado derepresenta90es largamente partilhadas referentesa salas de aula, aulas de instrumento e teoriamusical, professores e alunos.

Dois pontos de estranhamento marcaramminha interpreta9ao do Conservatorio. 0 primeirofoi a densidade desse cenario, que contrastava comminha visao rasa e linear de institui90es desse tipo,somada a representa9ao largamente difundida nomeio academico musical dos Conservatorios comocontextos estagnados. 0 segundo foi a presen9ainsistente da ideia de mudan9a nessa escola, ideiamanifestada atraves de a90es e de falas dosdiversos atores e reiterada em diferentes ocasioes.

Antes de focalizar a presen9a das musicaspopulares, articuladas principalmente a ideia demudanr;a, categoria emica (referente as falas ea90es dos atores sociais) que guiou a interpreta9aodo cenario, procedo a uma breve descri9ao doConservatorio, seguida do modele teorico­metodologico que fundamentou 0 levantamento, aanalise e a interpreta9ao do material etnografico.

o Conservatorio de Uberlandia atendemil hares de estudantes dos 7 anos a terceira idade,oriundos de diferentes classes sociais e gruposetnicos, religiosos e profissionais. Evangelicos dediferentes igrejas, militares, alunos e ex-alunos dauniversidade publica local, alguns congadeiros,crian9as, jovens, adultos, incluindo uma porcen­tagem express iva de idosos, compoem essadiversidade sociocultural que traz implfcitasdiferentes representa90es sociais sobre musica.Assim, se, tradicionalmente, essa escola erafreqCJentada pelos filhos da elite da cidade, deorigem europeia, nos ultimos anos seus estudantesprocedem de diferentes classes sociais, incluindouma significativa parcela de afro-brasileiros. 0numero de professores passa dos cem. A forma9aodesses e muito variada: formados no proprioConservatorio, portando com nfvel tecnico,formados em cursos de gradua9ao em musica ­bacharelado e licenciatura, musicos populares quenao passaram por processos academicos deforma9ao musical.

62

revista ciaabem

Alem das aulas, 0 Conservatorio mantemvarios grupos instrumentais, como uma orquestra,uma banda de sopros, grupos de musica popular(seresta, rock, axe music), conjuntos de camara ecorais.

o fazer musical praticado no Conservatoriode Musica guarda vfnculos estreitos com a culturamusical erudita europeia, tanto pela origem dessamodalidade de institui9ao de ensino no seculo XVIIIna Europa, quanta pela representa9ao desuperioridade daquela cultura musical sabre outrasde acordo com 0 eurocentrismo. Mas 0 Conserva­torio de Musica em cena neste relato esta vinculadotambem a uma historicidade relacionada aoprocesso colonialista - a instala9ao de Conserva­torios de Musica no Brasil, a partir do seculo XIX ­e, de modo mais especffico, ao processo de cria9aoda rede de Conservatorios Estaduais de Musicaem Minas Gerais, a partir de 1950, atrelado demodo relevante a questoes "polftico-pessoais"(Gon9alves, 1993, p.155). Durante os anos 70, amusica popular come90u a ser admitida noConservat6rio de Uberlandia, sendo que, nodecorrer do trabalho de campo desta pesquisa ­1995 a 1997 -, essa modalidade pareceu ganharespa90 cada vez maior. Nesses anos, tambemacentuaram-se as polfticas neoliberais para aeduca9ao, tanto no sistema federal, quantaestadual, cujos discursos e a90es estavampresentes na escola em foco, revelando aarticula9ao dos terrenos culturais com suacontemporaneidade.

Interpretei 0 Conservatorio de Musica comouma institui9ao escolar, conceituando institui9aosegundo Mary Douglas (1998). Essa antropologaargumenta que as institui90es estao baseadas emanalogias naturalizantes que Ihes conferemlegitimidade. Considerando que a institui9aoconservatorio esta fundada em analogiasconstitutivas da cultura ocidental, analogiaslegitimadas em oposi90es tais como espiritualversus material; esquerdo versus direito; corpoversus mente, empreendi a analise do contexto apartir de tres eixos interpretativos da ideia emicade mUdanr;a: mudanr;a no ambito das analogiasnaturalizantes, em que e representada em oposi9aoa permanencia e alinhada a modernidade; mudanr;aem contraposi9ao a representa9ao largamentedifundida dos Conservatorios como institui90esestaticas; articula9ao entre mudanr;a erepresenta90es sociais sabre 0 fazer musical nocontexte do Conservatorio.

Page 5: Musica popularem urn Conservatorio de Musicaabemeducacaomusical.com.br/revista_abem/ed6/artigo_6.pdf · mas tenho que vo/tar mais uma vez pra fazer a ... que se apresentam no bares,

revista cia

abemnumero 6

selembro de 2001

Luzia, poueo mais de 30 anos, foi aluna do Departamentode Musica da Universidade local e dava au/as noConseNat6rio he'! uns 20 anos:

Daniel, 10 anos, filho unico de uma familia que veio demUdant;:a de Sao Paulo. 0 pai era pedreiro e a mae,empregada domestica. Daniel estava matriculado emvio/ao e em Musicaliza9aO e Criatividade:

Musica Popular no Conservatorio

A experiencia musical de Daniel vinha doradio, do cantar e do danyar. Essa experiencia, aopyao pelo teclado e depois pelo violao trazemimplfcita a expectativa de que encontraria noConservatorio a mtJsica popular. 0 que ocorria,entretanto, era um conflito entre expectativas comoas de Daniel e 0 modelo de educayao musical aoqual 0 Conservatorio estava atrelado. Esse conflitoresultava na desistencia dos alunos, que seevadiam da escola. Ao cruzar dados relativos asexpectativas dos alunos, como as de Daniel, apreocupayao dos professores e da direyao com aexpressiva evasao dos estudantes e a uma inseryaocrescente da mtJsica popular nessa escola nosultimos anos, levantei a hipotese de que aintroduyao da mtJsica popular no Conservat6rio foiresultado, mesmo que parcial, da pressao dealunos. Encontrei respaldo para essa suposiyao nasfalas de alguns professores:

(09/09/96) Eu vim aqui pro ConseNat6rio pra aprendermusica, porque desde quando eu era pequeno minhamae ligava a radio e eu fica va dan9ando e cantando come/a. A gente morava em Sao Paulo e af e/a fa/au: 'Aquieu nao vou te por em esco/a de musica porque aqui emuito vio/ento'. N6s tava p/anejando mudar pra ca.Quando chegou aqui e/a fa/au pra mim, quando eucomp/etasse 10 anos e/a ia me c%car. Eu queria mesmoera aprender tee/ado, mas como s6 tinha na 5~. serie, tofazendo vio/ao.

A interpretayao do papel da mtJsica popularnesse Conservatorio esta atrelada a historicidadedessa instituiyao relacionada as praticas da culturamusical erudita e articulada a ideia emica demudanr;a e as representayoes sociais sobre 0 fazermusical dos diversos atores8 :

vividas e observadas durante 0 trabalho de campo:os discursos sobre musica e as ayoes musicais dosdiferentes atores nos seus diversos papeis eidentidades sociais (alunos, professores, diretoras,idade, genera, c1asse social, etnia), discursos eayoes manifestados desde 0 ensino e aaprendizagem, praticados em situayoes de sala deaula ou fora dela, ate ensaios, apresentar;oes eoutros eventos como 0 Concurso Interno Erudito ea Feira de Artes Musicais.

[esquerdo]"passividadepermanenciaantigOidade

[direito]atividademudanyamodernidade"

(Douglas, 1998, p.71)

guarda um sentido de avanyo continuo e linear, noqual a propria ideia de mudanr;a se encontra. 0sentido de mudanr;a no Conservatorio emerge emcontraposiyao a ideia de permanencia.

Esse sentido de mudanr;a, que indicareproduyao do 'ethos' de modernidade que marcaUberlandia, mais 0 desvelamento da densidadesocioculturar presente nessa escola, prablematizaa representayao difundida dos conservatorios demusica como instituiyoes estaticas.

A interpretayao do material etnograficodesvelou que 0 fazer musical no Conservatorio deUberlandia 13 marcado por uma tensao entrepermanencia e mudanr;a. De um lado, apermanencia de praticas musicais eruditaseuropeias; de outro lado, a mudanr;a, com ainseryao cada vez maior da mtJsica popular noespayo da escola.

Segui como linha interpretativa sobre essefazer musical a interface entre 0 musical e 0

sociocultural estudada na Etnomusicologia. Asideias do fazer musical como ayao social, segundoJohn Blacking (1995, p.223), ou como "criayao devida social", segundo Anthony Seeger (1988, p.83),foram a base da interpretayao. Assim, a enfase daanalise esteve no processo e nao no produtomusical.

o jogo entre 0 familiar e 0 estranho foiestendido tambem a descriyao do fazer musical nocenario. Apesar de maior familiaridade com essemundo musical do que com 0 mundo musical doCongado, busquei aqui um olhar de estranhamento,ao considerar 0 Conservatorio como tambemprodutor musical local, baseada na ideia darecriayao dos produtos culturais. A atenyao estevevoltada para os atores do Conservatorio querecriam concepyoes e praticas musicais comuns amuitos cenarios das sociedades urbanascontemporaneas, tornando seu fazer musicalparticularizado.

Minha compreensao desse cenario musicalfoi acontecendo durante as diferentes situayoes

A identificayao das praticas desse cenariocom as analogias naturalizantes do lado direito naoposiyao esquerda / direita, isto 13,

8 0 nomes dos atores sao fietieios.

63

Page 6: Musica popularem urn Conservatorio de Musicaabemeducacaomusical.com.br/revista_abem/ed6/artigo_6.pdf · mas tenho que vo/tar mais uma vez pra fazer a ... que se apresentam no bares,

numero 6setembro de 2001

(12/08/97). Aqui no Conservat6rio trabalho com 0 2Q•

Grau, dando aulas de piano e na disciplina"Acompanhamento, transposir,:ao e leitura a primeiravista". Foi nesta disciplina que comecei a introduzirmusica popular. A gente ve que os alunos tem uma sedemuito grande de musica popular. Somente uns poucosnao gostam de tocar popular.

o professor e musico popular Dado era quem estavaencarregado da disciplina pratica de conjunto e foi eleoutra pessoa que entrevistei para entender 0 lugar e papelda musica popular no Conservat6rio:

(02109/97) Eu posso fazer uma sfntese rapida da musicapopularno Conservat6rio. A introdur,:ao se deu em 1980com minha entrada aqui, ensinando guitarra ecavaquinho. Antes da introdur,:ao da musica popular, 0

Conservat6rio tinha somente uns 600 alunos. Hoje eleesta com 3.000 [sic]. Vinha gente de 6nibus ter aulasaqui. Gente de Araguari, /tuiutaba [cidades vizinhas aUberlandia].

Eu leciono guitarra, meu instrumento principal, violao,baixo, cavaquinho e pratica de conjunto. Alias, a praticade conjunt0 9 esta provocando uma revoluyao noConservat6rio. Ela comeyou ha 4 meses e porque osalunos de piano nao dao conta de tocar musica popular,vamos introduzir a discipi ina piano popular.

As falas de Luiza e Dado revelam que aintroduyao da musica popularno Conservat6riovemresponder a uma negociayao com os alunos e seupapel pode ser interpretado como sendo colocadana contramao para estancar a evasao. Essasmudantyas podem ser articuladas com asrepresentayoes sobre 0 fazer musical, nesse caso,um alargamento do que se considerava fazermusical apropriado a uma instituigao escolar.Tradicionalmente, instituigoes tais quais osConservat6rios de Musica mantiveram-se comoespago prioritariamente voltado para 0 ensino damusica erudita europeia. Eram tambemreprodutoras de representagoes academico­musicais atreladas aquela musica, como:"concepgao de 'musica 'absoluta', existente por sis6, independente da vida social mundana"(KingsbUry, 1988, p.6); presenga imprescindivel de"talento" para produzi-Ia (Ibid., p.59) e "superiori­dade" justificada por sua "complexidade estruturale sofisticayao" (Nettl, 1995, pAD). Mas a musicapopular, presente atraves da pratica de conjunto,promoveu, segundo Dado, uma revolutyao noConservat6rio. De acordo com a fala do professor,essa revolw;ao relaciona musica popular a umaumento significativo de alunos.

No ambito desse recorte, a musica popularapareceu representada de varias maneiras. Paraparte dos alunos, ela estava vinculada as suasexpectativas de insergao no Conservat6rio, que,

revista ciaabem

quando nao atendidas, eram expressas numa formade resistencia: a evasao. Para parte dosprofessores, ela significou mUdam;a comoclassificayao ocidental relacionada a inovayaocomo aparece nas analogias a partir do eixocomplementar mao esquerda/mao direita ja citado.

Nesse quadro, a centralidade da musicaerudita na educagao musical com ega a serrelativizada, mas seu poder hegem6nico aindatransparece em falas e ayoes como a enfase nodominio dos c6digos escritos sinaliza.

A relayao oralidade e escrita

Ler musica emergiu como uma dascompetencias musicais mais valorizadas noConservat6rio, sobremaneira pela diregao eprofessores e, no processo de escolarizagao, pelosalunos. Um depoimento de Julio, musico popularque lecionava nessa escola, expressa a rede designificados vinculados a relagao musica populare escrita musical:

Fui 0 primeiro professor de violao popular, isto em 1973.Ate entao 0 trabalho aqui era s6 c1assico. Eu tocava numgrupo de samba e a gente tocava nos diret6rios dasfaculdades de medicina e de engenharia da Universidade.Nao tinha outro lugar pra tocar. Entao, entrei noConservat6rio para substituir uma professora que pegouIicenya por estar gravida. Nessa epoca, eu nao tinhaexperiencia com musica, s6 tinha experiencia com musicapopular.

Essa ultima frase de Julio chamou minhaatengao. Relacionei-a com outras afirmayoes doprofessor e com discursos e agoes em diferentescontextos contemporaneos sobre a relagao entreescrita musical, desenvolvida no ambito da culturamusical erudita europeia, eo que e valorizado comocompetencia musical, no meio escolar e academicomusical (Nettl, 1983, p.65; Vulliamy e Shepherd,1984). Esse tema tambem era recorrente noConservat6rio. Tendo tais referencias como base,procurei reconstituir algumas representagoespresentes na fala de Julio.

Na relagao entre escrita musical ecompetencia musical, uma interpretagao possivelda fala de Julio vincula-se a questao do dominio,ou nao, da escrita musical da cultura eruditaeuropeia e uma representagao de musica comosendo essa escrita. 0 emprego da palavra musica,no caso, pode ser interpretado como remetendo aduas representayoes: na primeira ocorrencia - eunao tinha experiencia com musica - ele pareciaquerer dizer que nao dominava a notagao musical;

9 A pratica de conjunto era voltada para 0 repert6rio de musica populare a musica de camara, para 0 repert6rio erudito.

64

Page 7: Musica popularem urn Conservatorio de Musicaabemeducacaomusical.com.br/revista_abem/ed6/artigo_6.pdf · mas tenho que vo/tar mais uma vez pra fazer a ... que se apresentam no bares,

revista da

abem

nesse caso, a palavra mtJsica significando notac;;aomusical; na segunda ocorrencia - s6 [tinhaexperiencia] com mtJsica popular - passava amensagem de que, pelo fato de nao dominar aleitura e escrita musical, nao sabia musica. Tambeme possivel inferir ter-se referido ele a duas maneirasdiferenciadas de conhecer musica: umconhecimento relativo a cultura da mtJsica eruditae outro, relativo a cultura da mtJsica popular.

E relevante observar que, em outrassitua<;:oes da pratica musical e de discurso sobremusica no Conservat6rio, articula<;:oes entre mtJsicapopular e mtJsica erudita e leitura musical, comocompetencia musical valorizada emicamentepuderam ser observadas:

Livia, cerca de 30 anos e cujo objetivo de estar noConservat6rio era terapeutico, falou sobre sua relar;:aocom as materias te6ricas:

(30/09/97) A aula de teoria e uma aula voltada para 0

quadro e caderno. Falta mais pratica. Do jeito que tanao emuito bom.

LIvia comentou sobre a filha, 10 anos:

lasmim veio pela convivencia. Ela ia comigo ao coral daUniversidade, assistia as aulas. Eu a pus na flauta, masela nao gostou. Teoria ela nao gostava, chorava (... )

A constru<;:ao do conhecimento musicalrelativo a cultura musical erudita europeia incorporadiversos procedimentos, incluindo a oralidade.Porem, a "cultura musical ocidental academica",conforme se refere Nettl (1983, p.65), conferecentralidade ao dominio da escrita musical. Poroutro lado, a constru<;:ao do conhecimento relativoas praticas das musicas populares e marcadamenteoral. 0 papel do domfnio dos c6digos escritos eaceitavel mas nao determinante nessa pratica. Aquestao da oralidade/escrita relativa aos faze resmusicais das musicas populares e eruditas podeser melhor compreendida a partir do modelo deanalise proposto por Trimillos (1988), relacionandoaspectos comuns a diferentes culturas musicaiscom seus papeis "crftico", "desejavel" ou "causal"nessas culturas. Assim, e possfvel considerar quea nota<;:ao musical ocidental e um aspecto crfticona cultura musical erudita europeia, por serindispensavel a sua produ<;:ao e aprendizagem.Para a cultura da musica popular, a nota<;:ao seriadesejavel e ate mesmo casual, por nao serdeterminante na sua produ<;:ao e aprendizagem.Aqui 0 crftico e a oralidade, que, por sua vez, namusica erudita e desejavel.

A partir dessas considera<;:oes, a presenc;;ada mtJsica popular no Conservat6rio e acentralidade da escrita/leitura musical nessa escola

numero 6setembro de 2001

apontariam para uma contradic;;ao?

Parece que aqui se encontra um grandedesafio a inserc;;ao das musicas populares nossistemas escolares centrados nos c6digos escritos.A esse respeito, e importante observar com RichardMiddleton (1990, p.105) que

a treino nesta centralidade da notar;ao induz a formasparticulares de escuta, e estas tendem a ser aplicadas atodo tipo de musica (. ..) [Outro} aspecto da centralidadeda notar;ao esua tendencia em estimulara reificar;ao: apartitura passa a ser vista como 'a musica' (. ..) (italicono original).

As representa~oes das musicas popular eerudita

A presenc;;a concomitante das denominadasmtJsica populare mtJsica erudita no Conservat6riodemonstra estar em processo de elaborac;;ao. Porum lado, a tradicional presenc;;a da mtJsica eruditanessas instituic;;oes de ensino, tradic;;ao muitoincorporada nas representac;;oes sobre 0 fazermusical de grande parte de seus atores,principalmente professores e adultos de classemedia, entrava em conflito com a inser<;:ao damtJsica popular.

A historicidade do Conservat6rio Iigada acultura musical erudita europeia, maisespecificamente a "cultura musical ocidentalacademica" (Nett!,1983, p.65), a presen<;:acrescente da mtJsica popular e as tensoes,contradic;;oes e elaborac;;oes resultantes da interfaceentre esses dois mundos musicais resultam emtemas a partir dos quais busquei reconstituir 0 fazermusical nesse cenario.

Essa constituic;;ao encontrou na noc;;ao dearticulaC;;ao elaborada por Lawrence Grossberg(1992) uma base interessante para interpretar asrepresentac;;oes da mtJsica populare mtJsica eruditanesse cenario:

Articular;:ao e a construr;:ao de um conjunto de relar;:oessobre outro conjunto de relar;:oes; ela envolve 0

desligamento e as desarticular;:oes de conexoes a favorde outras Iigar;:oes e rearticular;:oes. Articular;:ao e umalula continua pela reposir;:ao de praticas denlro de umcampo mulante de relar;:oes - 0 contexto - no interior doqual uma pralica e localizada (p.54).

Se parte da literatura musicol6gica dos anos70 e 80 tratava mtJsica popular e mtJsica eruditacomo mundos musicais antag6nicos (Shepherd etaI., 1977), nos anos noventa, esse tratamentocomec;;ou a ser questionado. Tambemfundamentada na noc;;ao de articulac;;ao deGrossberg, a etnomusic61oga Jocelyne Guilbaultdefende:

65

Page 8: Musica popularem urn Conservatorio de Musicaabemeducacaomusical.com.br/revista_abem/ed6/artigo_6.pdf · mas tenho que vo/tar mais uma vez pra fazer a ... que se apresentam no bares,

numero 6setembro de 2001

revista ciaabem

Adensando a reflexao sobre os dadosdescritos, as considerayoes de Simon Frith sobreo valor em musica sao relevantes. Para Frith (1990,p.96), "argumentos sobre musica, [por exemplo,

o que e necessario (... ) e um novo foco que ao inves detentar identificar e documentar culturas ja formadas eestabilizadas, examine os processos pelos quais asculturas sao constituidas e continuamente reformuladase realinhadas. Estes novos focos deverao ser aquelesque tem sido chamados de pontos de articular;:ao erearticular;:ao (Guilbault, 1997, p.34 - italico no original).

Por outro lado, a musica popular aparecesubmetida a praticas consagradas da musicaerudita e a praticas escolares. As representayoessociais da cultura musical academica ainda mantemuma aura de superioridade da musica erudita. Vistaa partir de outro eixo que produz analogias ­'espiritual/material', a superioridade da musicaerudita e mantida e a musica popular e desveladacomo inferior:

o que foi posslvel perceber no tocante asmusicas popular e erudita no Conservatorio e queelas criam uma rede de representayoesconflituosas. A inseryao da musica popular nessecenario sinaliza fortemente para mudanyas, decerta maneira ate mesmo para sua sobrevivenciacomo instituiyao. A ideia de mudan9a vinculada amusica popular pode ser relacionada aquele eixo'esquerdo/direto' que produz analogias na culturaocidental, ja citado, e no qual a musica eruditaaparece atrelada a permanencia:

Becker sugere que, para se compreender objetos de artee a resposta das pessoas a eles, temos que compreenderos processos institucionais e discursivos ('the art world')nos quais eles sao construidos como objetos de arte,como obras cujos tipos particulares de resposta esteticatorna-se socialmente apropriada. Pierre Bourdieu usa 0

conceito de capital cultural para relacionar valores culturaisa variaveis sociais (idade, classe, genero, etnia, etc) (...)As razoes por que diferentes pessoas estao engajadascom diferentes 'art worlds' relaciona-se Ii quantidade (etipo) de capital cultural que elas possuem (Ibid., p.97).

os discursos musicais burgues, folcl6rico e comercial naoexistem autonomamente; eles se desenvolveramrelacionando-se - por oposiifao - um ao outro; cada umrepresenta uma resposta a um problema do fazer musicalna sociedade capitalista (... ). Em termos de pesquisa,isto significa que devemos parar de tratar os mundos damusica erudita, folcl6rica e popular como se eles fossemobjetos distintos de estudo, mas examina-Ioscomparativamente, traifando suas soluifoes contrastantesaos mesmos problemas. Como a musica e ensinada eaprendida nos diferentes mundos? Como a habilidade edefinida? ( ) Como os diferentes mundos veem asinovaifoes? ( ) Esta sociologia comparativa pode revelarmuito menos distinifoes entre estes mundos do que seusvalores discursivos apontam (Frith, 1990, p.1 01).

Articulando "os processos institucionais ediscursivos" com "0 capital cultural", Frith analisa 0

que ele considera serem os tres tipos de "praticadiscursiva" sobre os quais a musica e avaliada: (1)o mundo da musica burguesa - mundo da musicaerudita europeia - "(ou a cultura dominante,segundo Bourdieu)"; (2) "0 mundo da musicafolclorica (grosseiramente proximo do que Bourdieuquer dizer por cultura popular)"; (3) "0 mundo damusica comercial" (musica popular). 0 queconsidero interessante na analise de Frith e queela aponta para a necessidade de uma visao queestabeleya relayoes entre esses mundos musicais.Eles nao existem autonomamente, mas simrelacionam-se:

sobre 0 que e boa musical sao menos sobre asqualidades da musica em si e mais sobre comositua-Ia (...), [pois], somente podemos escutarmusica como tendo valor Coo) quando sabemos 0

que ouvir e como ouvir" (grifo nosso). Ele continua:"nossa recepyao da musica, nossas expectativassobre ela nao sao inerentes a musica em si", masaos discursos construfdos sobre ela. Simon Frithsustenta sua tese nos conceitos de 'art worlds' ede 'capital cultural' propostos respectivamente porHoward Becker e por Pierre Bourdieu:

Essas considerayoes parecem-me apropria­das para adensar uma interpretayao das represen­tayoes sociais sobre 0 fazer musical no cenario doConservatorio. A presenya das praticas discursivasque separam musica erudita e populare que tiveramsua origem no cenario academico estao fortementepresentes no Conservatorio. Estar consciente

[direito]atividademudanyamodernidade"

(Douglas, 1998, p.71).musica popular

MaterialMundanoMusica popular

musica erudita

EspiritualDivinoMusica erudita

esquerdo]"passividadepermanenciaantiguidade

Conclusao

o Conservatorio de Musica focalizado neste. estudo e marcado por particularidades, mas

mantem aspectos comuns com outros contextosescolares/academicos contemporaneos (Nettl,1995; Travassos, 1999). As diferentes experienciasmusicais dos estudantes que procuram essasinstituiyoes, experiencias marcadas pelas "trans­formayoes da sensibilidade musical contem­poranea" (Carvalho, 1999, p.53), entram em conflitocom as concepyoes que ainda regem 0 que sevaloriza como musica e 0 que deve ser ensinado eaprendido nesses contextos.

66

Page 9: Musica popularem urn Conservatorio de Musicaabemeducacaomusical.com.br/revista_abem/ed6/artigo_6.pdf · mas tenho que vo/tar mais uma vez pra fazer a ... que se apresentam no bares,

revista cia

abem

dessa questao pode significar avanQar na propostade Frith.

Tenho defendido que lanQar um olharantropol6gico sobre praticas de ensino eaprendizagem musical - escolares ou naoescolares, "formais" ou "informais" - podeproporcionar a Pedagogia Musical uma ampliaQaoconceitual e pratica necessaria para lidar com essequadro conflituoso (Arroyo, 2000). Entendo queessa ampliaQao contribuira para se abordar asmusicas populares nos sistemas escolares/academicos livres das amarras da cultura musicalerudita que, afinal, tem sido a 16gica hegem6nicanesses sistemas.

Referencias Bibliograficas

numero 6setembro de 2001

Essa ampliaQao deve passar principalmentepela relativizaQao do olhar sobre praticas musicaise pela conseqOente transformaQao dos olhares deeducadores musicais - seja nas escolas de ensinobasico, nas escolas especializadas ou nos cursossuperiores. Nesse processo, rever e transformarrepresentaQoes sobre 0 fazer musical, entretanto,deve acontecer com a consciencia de que oscontextos escolares/academicos recriarao aspraticas musicais dentro dos aspectos queparticularizam essas instituiQoes como espaQosculturais.

ALEM, Joao Marcos. Representac;:6es coletivas e historia politica em Uberlandia. Historia e Perspectivas, n.4, p. 79- 102, jan/jun. 1991.

ARROYO, Margarete. Um olhar antropol6gico sobre praticas de ensino e aprendizagem musical. Revista da ABEM, n. 5, p.13-20, 2000.

ARROYO, Margarete. Representa90es sociais sobre praticas de ensino e aprendizagem musicat. um estudo etnografico entre congadeiros,professores e estudantes de musica.(Tese de Doutorado) CPG-Musica, UFRGS, 1999.

BLACKING, John. The biology of music-making. In: MYERS, Helen (ed.). Ethnomusicology: an introduction. Nova York: MacmillanPress, p.301-314, 1992.

BLACKING, John. Music, culture and experience: selected papers of John Blacking. Chicago: University of Chicago Press, 1995.

BOZON, Michel. Pratiques musicales et classes sociales: structure d'un champ local. Ethnologie Fran9aise, v.14, n.3, p.251-264, 1984.

CARVALHO, Jose Jorge. Transformac;:6es da sensibilidade musical contemporanea. Horizontes Antropol6gicos - Musica e Sociedade,v.5, n.11, pp.53-92, 1999.

DAYRELL, Juarez. A escola como espac;:o socio-cultural. In: Dayrell, J. (Org.) Multiplos olhares sobre educa9ao e cultura. Belo Horizonte:UFMG, p.136-161, 1996.

DOUGLAS, Mary. Como as institui90es pensam. Sao Paulo: EDUSP, 1998.

DURKHEIM, Emile. Representar;:6es individuais e representac;:6es sociais. In: Durkheim, E. Sociologia e Filosofia. Sao Paulo: leone,1994.

FINNEGAN, Ruth. The hidden musicians: making-music in an English town. Cambridge: Cambridge University, 1989.

FRITH, Simon. What is good music? Canadian University Music Review, v.1 0, n.2, pp.92-1 02, 1990.

GEERTZ, Clifford A interpreta9ao das culturas. Rio de Janeiro: GuanabaraiKoogan, 1989.

GONQALVES, Lilia N. Educar pela musica: um estudo sobre a cria9ao e as conceP90es pedag6gico-musicais dos conservatoriosestaduais mineiros na decada de 50. (Dissertac;:ao de Mestrado). Curso de Pos-Graduac;:ao em Musica, UFRGS, 1993.

GROSSBERG, Lawrence. We gotta get out of this place: popular conservatism and postmodern culture. London: Routledge, 1992.

GUILBAULT, Jocelyne. Interpreting world music: a challenge in theory and practice. Popular Music. v.16, n.1, p.31-44, jan.1997.

KINGSBURY, Henry. Music, talent, and performance: a conservatory cultural system. Philadelphia: Temple, 1988.

LUCAS, Maria Elizabeth. Pontos para uma escritura etnografica. Porto Alegre: Seminario de Dissertac;:ao - CPG - Musica, UFRGS,1998. (Mimeo)

MAGNANI, Jose G. C. Discurso e representac;:ao, ou de como os baloma de Kiriwina podem reencarnar-se nas atuais pesquisas. In:Cardoso, Ruth (org.) A aventura antropologica. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p.127- 140,1986.

MI DDLETON, Richard. Studying popular music. Milton Keynes: Open University Press, 1990.

MOSCOVICI, Sergei. Notes towards a description of social representation. European Journal of Social Psychology, v.18, p. 211-250,1988.

NETIL, Bruno. Heartland excursions: ethnomusicological reflections on schools ofmusic. Chicago: University of Illinois, 1995.

NETIL, Bruno. The study of Ethnomusicology: twenty-nine issues and concepts. Urbana: University of Illinois, 1983.

SEEGER, Anthony. Why Suya sing: a musical anthropology ofan Amazonian people. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

TRAVASSOS, Elizabeth. Redesenhando as fronteiras do gosto musical: estudantes de musica e diversidade musical. HorizontesAntropologicos - Musica e Sociedade, v.5, n.11, pp.119-144, 1999.

TRIMILLOS, Ricardo; HALAU, Hochschule, Maystro, and Ryu: cultural approches to music learning and teaching. International MusicEducation, ISME, yearbook, n.15, pp.10-23, 1988.

VULLIAMY, Graham; SHEPHERD, John. The application of a critical sociology to Music Education. British Journal of Music Education,v.1, n.3, p.247-66, 1984.

67

Page 10: Musica popularem urn Conservatorio de Musicaabemeducacaomusical.com.br/revista_abem/ed6/artigo_6.pdf · mas tenho que vo/tar mais uma vez pra fazer a ... que se apresentam no bares,