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, II - A MUSICA NO PROCESSODE ENSINO APRENDIZAGEM MÚSICA E HISTÓRIA 16 o ensino de história deve se construir através de espaços de reflexões sobre as relações que possibilitam o resgate das manifestações econômico- sociaise político-culturais de uma sociedade. Desse modo, considerando a músicacomo linguagemreveladora de ex- periências históricas determinadas e como metalinguagem, suaconsideração no processo de ensino-aprendizagem tem relevância estratégica, tanto para a recuperação acima mencionada, como paraa serisibilização do estudante. Na medida em que a linguagem normalmente nos remete ao ato da fala, é importante considerar a linguagem musical como linguagem verbal, uma vezque ela é essencialmente sonora,empreendendo uma sensibilidade auditiva, separada, portanto, daschamadas linguagens visuais,estas, àsve- zes,utilizando-se das sonoridade. As linguagens sonoras {verbale musical} permitem um estímulo à parte sensíveldo ser atravésdo sonho e da imaginação. Na medida em que a linguagem musical pressupõe toda uma articulaçãocom a da comunicação social, promovendo a inter-relaçãode seus membros com intençõese efei- tos comunicativos, a linguagem musical possibilita uma comunicaçãover- bal e também acional. Pelacomunicaçãoverbal, os sons musicaispromo- vem o desveridamento de sonoridades reveladoras das ações simbólicas de diferentes grupos sociaise permitem desvendar aquelas ações explicativas das comunicações sociais manifestadas num dado processo histórico. Pelaanálise musical pode-se desvendar relações que envolvemos vários grupos sociais e suas práticasculturais, sendoesteum nível de investigação necessário no processo histórico. Assim, podemos dizer que há um processo de criaçãomusical que tem um campo evolutivo marcadopelo aperfeiçoa- mento técnico e relacionado ao mundo urbano industrial, e um processo de repetiçãode sons e ritmos diferenciados que permitem a criaçãode novos

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,II - A MUSICA NO PROCESSO DE

ENSINO APRENDIZAGEM

MÚSICA E HISTÓRIA

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o ensino de história deve se construir através de espaços de reflexõessobre as relações que possibilitam o resgate das manifestações econômico-sociais e político-culturais de uma sociedade.

Desse modo, considerando a música como linguagem reveladora de ex-periências históricas determinadas e como metalinguagem, sua consideraçãono processo de ensino-aprendizagem tem relevância estratégica, tanto para arecuperação acima mencionada, como para a serisibilização do estudante.

Na medida em que a linguagem normalmente nos remete ao ato dafala, é importante considerar a linguagem musical como linguagem verbal,uma vez que ela é essencialmente sonora, empreendendo uma sensibilidadeauditiva, separada, portanto, das chamadas linguagens visuais, estas, às ve-zes, utilizando-se das sonoridade.

As linguagens sonoras {verbal e musical} permitem um estímulo à partesensível do ser através do sonho e da imaginação. Na medida em que alinguagem musical pressupõe toda uma articulação com a da comunicaçãosocial, promovendo a inter-relação de seus membros com intenções e efei-tos comunicativos, a linguagem musical possibilita uma comunicação ver-bal e também acional. Pela comunicação verbal, os sons musicais promo-vem o desveridamento de sonoridades reveladoras das ações simbólicas dediferentes grupos sociais e permitem desvendar aquelas ações explicativasdas comunicações sociais manifestadas num dado processo histórico.

Pela análise musical pode-se desvendar relações que envolvem os váriosgrupos sociais e suas práticas culturais, sendo este um nível de investigaçãonecessário no processo histórico. Assim, podemos dizer que há um processode criação musical que tem um campo evolutivo marcado pelo aperfeiçoa-mento técnico e relacionado ao mundo urbano industrial, e um processo derepetição de sons e ritmos diferenciados que permitem a criação de novos

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acórdons capazes de revolucionar uma estrutura sonora, cuja ação pode con-gregar, dos sons mais simples (arcaicos) aos sons mais complexos (modernos).

Ernest F. Schumann7 considera na recuperação da música como ele-mento central no resgate do vivido de uma dada sociedade, a existência dedois pressupostos:

1) a organização social do homem que exigiu a comunicação entre seus

membros;2) toda a comunicação social considerada como um produto da evoluçãodas relações mantidas entre os seres e o mundo que os circundam. Dessespressupostos, o autor analisa os vários modos de comunicação.

Assim, motivado pela antropologia cultural, o autor recorre a Morgan,Gordon, Childe, Marx e Engels para argumentar sobre um modo de comu-nicação plistocênico (sons sonoros e gestuais, parte integrante da comuni-cação acional do homem em estado primitivo), que evolui para um modode comunicação definido por relações sociais de produção, pela emissão etransmissão de mensagens8. Esses sinais são combinações de níveis anterio-res e permitiram a criação da forma de linguagem verbal. Para Schumann,numerosas articulações sonoras continuaram sendo produzidas sem o usoespecificamente lingüístico, vindo a construir um campo de atuação e mani-festações classificáveis como musicais. Daí ter sido, para o autor, o modo decomunicação plistocênico, o gerador de um tronco comum, no campo sono-ro, destacando-se dois ramos distintos: a linguagem verbal e a musical.

Os etnomusicologistas perceberam que a música primitiva desempe-nhou sobretudo as funções religiosa e mágica. Esta última, articulava-se,também, às representações pictóricas da arte rupestre, podendo servir parao questionamento da hipótese que a comunicação plistocênica não visavaao estabelecimento de relações comunicativas, mas sim, tornar o homempossuidor do poder sobre os outros seres vivos, tão comum nas ações demagia realizadas pelo homem primitivo.

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CULTURA POPULAR E MUSICAlIDADE

A música esteve sempre presente entre as manifestações humanas liga-das ao prazer, ao poder e aos seus vários ritos. A burguesia se apropriou das

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expressões musicais da nobreza e sentiu a crise desta manifestação com maiorintensidade do que as camadas populares. As manifestações musicais (reli-giosas, do trabalho ou do contar histórias) desse grupo social, às vezes, seaproximam do animismo. Sua produção vincula-se mais aos instrumentosmusicais existentes e, desse modo, o sistema tonal incompleto tenderia adesaparecer, como ocorre com a prática dos repentistas do nordeste do Bra-sil, onde os cantadores, obedecendo a uma estrutura melódica constante einvariável criam improvisações poéticas em um único acorde9.

Essa forma musical, própria do mundo rural, permanece como repre-sentação simbólica do universo camponês e como valor de uso.

No âmbito das manifestações culturais populares há também uma apli-cação simplificada do sistema tonal como a modinha, o lundu, o maxixe, otango brasileiro e o choro. Embora sua aplicação seja distinta daquelas ma-nifestações do meio rural, a música popularesca foi sendo rapidamente absor-vida pelo mercado capitalista, tornando-se uma mercadoria e qualificando-se como valor de troca, perdendo o sentido de obra, entrando no circuitoda reprodução. Desse modo, ela adquiriu estatuto de cultura de massa,criando em torno de si um aparato industrial, um rendoso mercado e umsistema de mídia para sua veiculação'o.

Essa indústria cultural concentra-se sobre o urbano e expande-se emseguida sobre o espaço musical rural, apropriando-se de elementos cada vezmais interiorizados da população que também se modifica com o avanço daurbanização, da industrialização e com o processo migratório que se intensi-fica ainda mais a partir dos anos 50, do século XX, no Brasil.

É preciso destacar ainda que não se pode compartimentar as relaçõessociais e as sonoridades musicais, em segmentos estanques. Do mesmo modoque as relações e os conflitos de classes explicam a hegemonia social, a cul-tura popular e erudita conflituam-se mutuamente, especialmente porque:

a) os sons primitivos e os atuais estão em constante processo de aproxima-ção e afastamento;b) os valores estéticos, os gostos, as modas podem ser recuperadas pela no-ção de época, de século ou seja, a longa duração Histórica.

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OS GÊNEROS E SUA HISTÓRIA

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A modinha considerada como o primeiro gênero de canção popular noBrasil, substituiu de certo modo o canto coral ou se manifesta em sua opo-sição, destacando-se como canção-solo. Ao que tudo indica, por relatos decronistas, ela se desenvolveu pela irreverência popular contra os cânticosreligiosos sendo apontado por Nuno Marques Pereira 11 A exclamação: "Oh!

Diabo!!" no final de cada frase se opunha à toada e ao compasso harmônico"e aparecia como breque, soando como uma heresia não apenas pelo texto,mas também pela inovação musical"12.

A oposição à canção-solo não se restringiu apenas ao conteúdo moral,

(crítica religiosa, canções amorosas, suspiros, desejos) mas também, ao atoirreverente da população de crítica política contra as elites dominantes. Essaseparação entretanto, não impediu um movimento de apropriação de ex-pressões musicais de uma classe social para outra, fato que nos impede dedefinir como níveis desarticulados Cultura Popular e Cultura Erudita.

Nas primeiras décadas do século XX, por exemplo, pode-se citar Catuloda Paixão Cearense por representar um caso exemplar na história da modinha.Maranhense de classe média, formou-se no Ceará e seguiu para o Rio deJaneiro, destacando-se por criar letras de exacerbado romantismo e colocá-Ias em músicas de maestros como Vila Lobos ou Anacleto de Medeiros.Apaixonado pela filha de um senador, participou de serestas e reuniões so-ciais tendo sido destacado letrista de modinhas amorosas que passaram arepresentar valor cultural das reuniões e saraus das elites.

Na década de 1930/40, Manuel Bandeira promoveu a retomada dascaracterísticas originais da modinha e na década de 1950, Vinícius de Mo-rais e Juca Chaves retomaram, quase duzentos anos depois, o estilo de Cal-das Barbosa, como renovadores do gênero. Já nos anos 70, Chico Buarquede Holanda retoma o tema, produzindo além das modinhas líricas, outrasafinadas às críticas sociais e políticas sem o tom do humor de Chaves. Paraesse trabalho, destacaremos através desse estilo musical, de forma singular aproblemática da industrialização, da urbanização e das migrações tanto nopaís quanto nas relações internacionais decorrentes do desenvolvimentismo.

Outra manifestação importante, o "lundu", nome que define tambémuma dança afro, derivada das rodas de batuque, pode ser encontrado como

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lundu - canção na coletânea de versos musicados de Caldas Barbosa, em

dois volumes (1789 e 1826), e naquele período, apareceu sempre com oconteúdo dos versos destacando o moleque negro ou mulato que se apaixo-na por uma iaiá, ou ainda satirizando afavelmente com ela.

Tomás Antônio Gonzaga nas Cartas Chilenas, cita uma dança acompa-nhada por viola de arame que se caracteriza pela umbigada ritmada pelobatuque de roda. O lundu - dança - passou a ser cultivado por negros e

mestiços e o lundu - canção - passou a interessar os compositores cultos e

a desfigurar-se, a ponto de ser confundido no século XVIII com a modinhaerudita. O lundu interessou ainda aos músicos de teatro que o utilizavamcomo casamento de um texto engraçado com a dança maliciosa (considera-da boa atração para o público, branco, amante de emoções eróticas). Inici-almente como entremez (intervalo do espetáculo teatral de qualquer quefosse o gênero) e depois, como um espetáculo propriamente dito, o lundudeixava a rua para ser exibido nos teatros das cidades.

Já na Segunda metade do século XIX, o lundu tornou-se uma estruturade dança saltitante, de compasso binário realizada por par enlaçado e con-fundiu-se com a polca, perdendo a espontaneidade da umbigada maliciosa.

Daí deriva-se o lundu-polca e dele o maxixe-Iundu, cantado em circosde todo o Brasil. O maxixe foi uma contribuição típica das camadas popu-lares no Rio de Janeiro, resultado do esforço dos músicos de choro emadaptar o ritmo da música aos volteios e requebros de corpo criados pornegros e mulatos na elaboração dos passos de danças de salãol3.

Executados nos clubes carnavalescos e nos teatros de revista, o maxixefoi incorporado às danças da Cidade Nova, bairro criado pelo aterro domangue por volta de 1860. Foi nesse espaço, confluência de populaçãourbana de baixa renda e núcleo de absorção da mestiçagem, que a popula-ção criou, partindo do ritmo de batuques, dos lundus dançados comumbigadas, que adaptou-se o miudinho dos sapateados das danças de rodaaos três passos básicos da polca. As mulheres acentuavam o tremor dosquadris e em seguida se desarmava da provocação fêmea para um movi-mento de requebradol4. Esse processo de adaptação e criação fez do maxixeuma manifestação musical onde o enlace colado de dois corpos gerassevolteios musicais que procuravam capturar na sonoridade melódica os vôose emoções do corpo.

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Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga foram os primeiros a estilizar

os ritmos do maxixe, utilizando-se mais do virtuosismo pianístico, o que

impediu esses compositores de serem representantes verdadeiros do maxixe

popular. Foi esse exagero virtuoso que permitiu a criação do gênero tango.

Sinhô, Donga e Marcelo Tupinambá são típicos dessa manifestação urbana

da Cidade Nova.

No início do século, o tango brasileiro foi exportado para Paris e esteve

no Chez Ciro's executado e interpretado por Monsieur Duque que dançava

ao rítmico de Chiquinha Gonzaga. Em 1906, Maria Lino, atriz de teatro

de revista no Rio encontra-se com Duque em Paris e depois de interpretar

o maxixe "Vem cá Mulatà', formou com o francês uma dupla amada pelos

parisienses que atuou até 1914 em toda a Europa.

Na década de 1930, o maxixe dança estava sendo enterrado pelo

charleston e passou a ser apenas em gênero musical. Retomado na década de

1950 por Luís Peixoto e José Maria de Abreu Bailarico de Novais e, em

1968, por Chico Buarque de Holanda que conseguiu o segundo lugar na 10

Bienal do Samba da TV Record, quando todo o público cantava Bom 1em-

po, em ritmo de Maxixe.

Importante também lembrar as inúmeras melodias que animaram as

festas religiosas em várias regiões do país e em especial em São Paulo. Assim

portanto, o samba paulistano só se tornou possível pela manutenção nos

bairros, dos espaços de brincadeiras e cantorias, espaços ainda fechados para

a realização dos pequenos espaços para carnaval. Outro importante núcleo

foi o da Festa do Bom Jesus de Pirapora que reunia os negros e seus batu-

ques que produziam um conjunto de peças musicais difundidas pelos vá-

rios segmentos sociais e popularizadas nos pequenos carnavais. Ao final do

século XIX, muitas famílias elegantes levavam para dentro de suas casas

estas brincadeiras que acabaram por produzir uma apropriação dos elemen-

tos centrais da cultura negra aos carnavalescos. Recolhido aos salões o car-

naval foi perdendo a espontaneidade e a radicalidade e tornando-se, ao

longo do tempo, uma brincadeira civilizada de confetes, serpentinas e lan-

ça-perfumes nos hotéis da cidade, que se abriam para estas festas. Muitos

visitantes e mesmo ricos moradores da cidade alugavam as sacadas dos edi-

fícios e dos hotéis para acompanhar o carnaval que foi retomando às ruasnn in(rin ~p~rp ~prll]n

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Neste período dois corsos são os mais importantes: o da Lapa, bairro

operário de italianos, sem muita importância e o do Brás, centro de cultura

italiana que se ocupava na maior base urbana de concentração operária. O

corso das elites percorria a Avenida Paulista. As camadas populares já viven-

ciavam seu carnaval como decorrência das festividades religiosas e das pro-

cissões desde o século XVIII. As congadas e os caiapós, danças respectiva-

mente de negros e de índios, são a gênese desse processo. Deste modo, os

bairros operários passaram a ser polo de desenvolvimento de tradição do

samba paulistano que teve em Adoniran Barbosa o seu expoente máximo.

Samba do Arnesto, Trem das Onze, Saudosa JoJa/oca são os mais conhecidos,

mas não os mais representativos dessa tradição. Assim também, as favelas e

cortiços de São Paulo deram guarida a inúmeros movimentos de samba

plenos da tristeza e do batuque sincopado que aproximava negros e índios

desde o século XVIII. Importante trabalho que remonta esse elo inicial é a

produção de Pato N'água e de Geraldo Filme. De fato, as presenças negras e

dos vários grupos indígenas e imigrantes compuseram um modo específico de

poética e musicalidade as referências culturais do mosaico populacional que

compuseram a tríade urbanização, industrialização e migrações em São Paulo.

No final da década de 1950, mesmo como resultado da internacionali-

zação da economia e da cultura do pós-guerra, alguns elementos das velhas

tradições persistem. Tal como o choro, a bossa nova não constituiu um

gênero de música, mas uma maneira de tocar. Representou uma reação

culta, partida de jovens da classe média branca, contra a percussão de 2/4

do ritmo tradicional dos negros. Afastando o samba de suas origens popu-

lares, representava a incorporação de um esquema rígido de multiplicação

das sincopas, acompanhados pela descontinuidade entre o acento rítmico

da melodia e do acompanhamento, produzindo uma mimesis, uma birritmia

apelidada de violão gago.

A Bossa-Nova representou, inicialmente, um momento de alienação

das elites brasileiras e ilusão do rápido processo de desenvolvimento, basea-

do no pagamento à tecnol~gia estrangeira. Essa geração zona sul do Rio de

Janeiro, motivada pelo rompante nacionalista de Juscelino Kubitschek, criou,

através do que Benedecto Anderson considera uma comunidade imagina-

dal5, um tipo de samba utilizando-se da música clássica e do jazz e de

vocalizações de cantores como EUa Fitzgerald.

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o poeta Vinícius de Moraes foi central nesse novo grupo que atuavanos bares e boates cariocas, os cafés society, produzindo uma dança cujorítmico misturava jazz e samba. Deste primeiro grupo, faziam parte RobertoMenescal e Ronaldo Bôscoli, Luís Carlos Vinhas, os irmãos Castro Neves,entre outros. A presença central foi, entretanto, do baiano de Juazeiro, JoãoGilberto, que logo impôs ao grupo uma maneira de tocar. Esse primeiroperíodo marcou bem a separação de classes entre os sambistas de morro, deslo-cados para a Zona Norte da cidade e os jovens universitários da Zona Sul.

Em 1957/8, Carlos Lira começou a demonstrar inquietação frente àinfluência externa que a Bossa Nova estava recebendo. Sua composiçãoCriticando foi respondida por ele mesmo no samba Influência do Jazz, quedenunciava o mimetismo e a forma reprodutiva da Bossa Nova.

No início da década de 1960, o esgotamento do desenvolvimentismo,a impossibilidade de absorção no quadro econômico das massas popularese as primeiras gerações de profissionais universitários, promoveu a consti-tuição de um processo de denúncia que nasceu dos grupos de cultura daUnião Nacional dos Estudantes, os CPCs, que além de objetivar as discus-sões políticas, queria também difundir a cultura (teatro, filmes, discos) aoconjunto da população para a obtenção de um debate crítico capaz de cor-rigir os desvios desenvolvimentistas.

Reaproximam-se os grupos do morro e a intelectualidade carioca. Car-tola, Nelson Cavaquinho e Zé Keti, encontram-se com Nelson Lins e Bar-ros e Carlos Lira. Esse encontro mostrou que duas linguagens musicaisdistintas poderiam se reunir. Em 1962, depois de grande esforço, e porquenão tocava violão, Zé Keti compôs em parceria com Carlos Lira o Samba daLegalidade e Tom Jobim e Vinícius de Morais, O morro não tem vez. Essarelação de ternura paternalista entre o povo e os setores intelectualizadosdas classes médias, manifestou-se ta;mbém na peça de Oduvaldo ViannaFilho A mais valia vai acabar; seu Edigar musicada por Carlos Lira, e comGimba de Carlos Lira e Gianfracesco Guarnieri, cantada no filme Cincovezes na favela.

Começava a surgir o samba participante, com Edu Lobo, Sidnei Muller,Carlos Lira que montaram o show Opinião, em dezembro de 1964. Reu-nindo João do Vale, autor de Carcará, Zé Keti e Nara Leão, o espetáculocriticava de forma velada o golpe militar de 1964. Entre 1966, com o pri-~

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meiro e o segundo festival de Música Popular Brasileira realizados no Guarujáe em São Paulo respectivamente, realizou-se a articulação entre o samba departicipação e a canção de protesto, com destaque para Edu Lobo e Geral-do Vandré. Participavam também Capinam, Gilberto Gil, Rui Guerra eCaetano Veloso. Mesmo tendo sido considerado por Walnice Galvão "comomovimento de evasão e consolação para pessoas sofisticadasl6, o movimen-to representou uma maneira das elites intelectuais de esquerda se aproxima-rem dos valores e problemas populares.

O movimento de protesto cutucou os militares com vara curta e a res-posta foi o endurecimento com o fechamellto político de 1968 através daedição do Ato lnstitucional n° 5 de 13 de dezembro. A censura atuou demodo intenso, sobre toda a produção cultural, e de certo modo produziuum fenômeno de resistência, tanto pelas manobras necessárias para esqui-var as obras da tesoura afiada da censura, como pela constituição deheterônimos que acobertassem o verdadeiro autor, ele sim perseguido, enão as idéias, uma vez que a ignorância dos responsáveis pelo obscurantis-mo, os impedia de exercer com coerência o combate ideológico a que esta-vam responsabilizados.

Ruptura ideológica e estética é preciso também recuperar no períododa censura, a Tropicália, que de fato promoveu um amplo processo libertáriono modo de produzir e de ouvir música. Em muitos autores esse período éentendido com responsável pelo imperialismo, ou seja pela invasão estran-geira pela importação de tecnologia imediatamente transferidas para a mú-sica. Produziu-se uma idéia de confronto entre os entreguistas e os defenso-res de um nacionalismo abstrato que sequer lidava com o sentido amplodos elementos constitutivos da chamada cultura popular.

Evidentemente, hoje a Tropicália faz parte de uma genealogia queproduziu um novo modo de conceber a temática, a poética e a métrica,similar ao processo vivido por Chiquinha Gonzaga e Emesto Nazaré nofinal do século XIX.

A libertação dos esquemas pré-determinados anteriormente pode serobservado no movimento de constituição das bandas e grupos de rock.Oriundos dos espaços constituídos pelos baianos pode-se destacar a impor-tância do Blitz, incursão pela pop music com forte apelo comercial e o Barão

Vermelho, que opta pelo rock de protesto, colocando os temas da repressão e~

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da alienação como centrais em suas composições. Importantes contribuiçõesao entendimento da tropicalia como momento de ruptura pode ser recupera-do tanto em Roberto Schwarz, como em Heloisa Buarque de Hollandal7.

Desse movimento, devemos destacar o papel do Paralamas do Sucesso,que buscou eliminar a separação abissal entre a MPB e o rock brasileiro. Defato, a incorporação desse movimento permitiu que Jorge Bem Jor e Gil-berto Gil pudessem ser reconhecidos como membros desse amplo proces-so. Evidentemente essa aproximação não é reconhecida de modo homogê-neo. Há grande oposição numa vinculação mecânica entre o Legião Urba-na e o U2; Paralamas do Sucesso e The Police, apesar do reconhecimento deuma certa imitação no início de formação dos grupos e bandas. Assim,também, o rap foi inicialmente um movimento de assimilação dos jovensdas periferias urbanas e não propriamente da classe operária como nos Es-tados Unidos. Pouco a pouco, o movimento acabou se tornando expressãoe protesto de jovens desempregados, subempregados, excluídos - basica-mente da população negra - retratando a violência, o submundo urbano e

a discriminação racial. Nos conjuntos habitacionais onde o Estado se mani-festa pela repressão policial, ele se constituiu como um mecanismo deconscientização e auto-proteção: combate o Estado, a violência, ao usoindiscriminado de armas e ao poder do narcotráfico. Destes, destacamos osRacionais Mc's e o Pavilhão 9 como centrais. Também nas periferias desta-ca-se o renascimento dos grupos de pagode, desvinculados da tradição dosmorros cariocas de Martinho da Vila ou de Zeca Pagodinho. Estes pagodeirosreinauguram os temas das relações afetivas e de um romantismo individua-lista da juventude que perdeu seus elos coletivos da luta política. Exaltasamba,Só prá contrariar e Negritude Junior são os que ganharam maior visibilidade.

Pode-se ainda indicar que fruto da indústria cultural o movimento daapropriação dos elementos originais da cultura caipira, foi reinauguradopela música sertaneja, que perdeu sua espontaneidade e o rigor da criaçãode Milionário e Zé Rico, cujas raízes estavam tanto nas guarânias paraguaiasincorporadas ao grande repertório de Cascatinha e Inhãna e regionalizadaspor Inezita Barroso, hoje ainda presente no cancioneiro popular. A novamúsica sertaneja reproduziu as duplas caipiras dos anos de 1950/60 mani-festando-se num movimento milionário, estilo country, que se apoia emrodeios e vasto conjunto de mercadorias para um grupo social de elite.

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Destas duplas, destaca-se Xitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo, Zezéde Camargo e Luciano, entre outros, apoiados por forte esquema da mídiaeletrônica e consumido amplamente por variados grupos sociais.

Finalmente, ainda oriundos do movimento dos novos baianos, destaca-se como retorno aos batuques de ritmo africano Olodum, Araqueto, IlêAyê, cuja representação está centrada numa visão primitiva da Africa e quese coloca como forma agregadora da ofensiva afirmativa nas lutas contra oracismo e a exclusão social. Carlinhos Brown, rompe com a estética e atristeza dos ritos e se manifesta numa volúpia rebelde cujo movimento su-põe uma nova síntese entre passado e futulo.

Entretanto, ao reivindicar mama Africa afasta-se do político e reflui-senuma atitude de não pertencimento ao país, deixando como nos váriosoutros momento dessa longa trajetória, de pensar o presente e a históriacomo centro presentificado, por onde se tecem os combates rumo ao devir.A música, portanto, é como outros níveis da produção humana um campofértil para o entendimento do vivido e do pertencimento.

o USO DA LINGUAGEM MUSICAL NO ENSINO DE HISTÓRIA26

Na perspectiva de recuperar o cotidiano na Hist6ria brasileira, o uso dalinguagem musical nos permite encontrar os valores sociais expressos nasvárias formas de manifestações que envolvem a música, e deste modo cap-turar os elementos explicativos da realidade social que se manifesta nas for-mas poéticas, nos protestos, nas danças, nas cerimônias religiosas e mesmonas manifestações públicas.

Através da linguagem musical procuraremos desvendar os processos dereordenamento urbano, resultantes do novo modelo econômico adotadopelas elites tecnocráticas que se estruturaram no país, e pelos ditames docapital monopolista; a problemática do regionalismo e do internacionalismoque se articulam em busca de mão-de-obra, matérias-primas e incentivosfiscais, parte da política de atração ao capital internacional ligado direta-mente ao processo produtivo, e finalmente a auto descoberta das relaçõesarcaico/moderno no processo de enfrentamento das desigualdades sociais eculturais, e da busca de uma nova síntese político revolucionária que seexpressou no p6s 1968.

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Pela linguagem musical, podemos perceber os conflitos e os controlessociais em curso, as apropriações ideológicas da classe dominante e os ape-los aos amortecimentos sociais. Deste modo, as referências ao tema da se-gurança nacional e da censura estão registrados na trajetória de Dom eRavel e "Brasil, ame-o ou deixe-o!". Enquanto a mídia apelava para o senti-mento nacionalista das massas e o Brasil vencia a copa do mundo, as baseseconômicas do país do futuro estavam abaladas. A vitória do projeto desen-volvimentista dos militares se fez através de mecanismos de manipulaçãodos índices de crescimento econômico e de ampla política de endividamentodas classes médias, base de apoio político dos militares. O resultado desteprocesso foi o acirramento dos conflitos de classe e finalmente o desenvol-vimento dos movimentos sociais que cresceram de modo acelerado ao lon-go dos anos 1980. O seu setor mais significativo centrava-se na base operá-ria metalúrgica, que através de lutas cotidianas explicitava com clareza afarsa do crescimento do bolo, desvendando a fragilidade do modelo econô-

. .mlco em vigor.

Aumentava na região do ABCO, no centro dinâmico do processo pro-dutivo, os confrontos pela ampliação dos salários, a apropriação de parcelassignificativas do fundo público e as demandas das bases populares no pro-cesso de disputa por renda ampliada. Era necessário derrotar a classe operá-ria para ajustar o país aos ditames do FMI, do capital financeiro e ao domí-nio do neo-liberalismo. O movimento da indústria cultural descrito anterior-mente e os polos de crítica e protesto recuperados nos movimentos da con-tra cultura e da cultura popular permitem esta recuperação histórica tantopela análise da poética como das estruturas melódicas, métricas e rítmicasda história da música brasileira.

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