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MUSICA COLECAO Alma Mía Leny Andrade REGINA RIBAS

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Alma MíaLeny Andrade Regina Ribas

Regina Ribas é jornalista. Dedica-se à comunicação corporativa, com foco em planejamento estratégico e publicações institu-cionais. Trabalhou em empresas de grande porte, agências de Relações Públicas e de publicidade. Fundou e dirige a Oficina de Texto e participa como parceira do Instituto de Mídias Digi-tais (IMD) – PUC-Rio, do Projeto Portal Rio Digital, de acesso das comunidades à internet,

Graduada pela Universidade Federal da Bahia, tem pós gra-duação em Comunicação de Massa, Assessoria de Imprensa, Promoção de Vendas e Merchandising. Ao longo dos anos, participou de cursos, seminários, workshops e oficinas, atualizando-se em Assessoria a Executivos na Comunicação com a Mídia, Comunicação com Públicos Estratégicos, Webwriting e Novas Mídias.

Foi laureada em várias edições do Prêmio Aberje nas cate-gorias Relacionamento com o público interno, Jornal Mural, Comunicação Interna e Revista Impressa.

De olho no futuro, estuda Astrologia ouvindo jazz. Com Urano na cabeça, o inesperado fez-lhe uma surpresa e a encomenda da biografia de Leny Andrade da Coleção Aplauso chegou até ela pela amiga-irmã, Eliana Pace.

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Regina Ribas

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Alma MíaLeny Andrade Regina Ribas

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Alma MíaLeny Andrade Regina Ribas

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Aos amigos que sempre insistiram para que eu escrevesse um livro.

Para Carlos Gustavo Migliora in memoriam, que deu concretude ao meu amor pelo jazz.

E para Gustavo, meu filho, que, com sensibilidade, disciplina e profissionalismo, fez a transcrição das entrevistas.

Um agradecimento especial à minha amiga Mariflor Rocha, revisora.

Regina Ribas

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Sumário

Introdução 09 Histórias da Infância 16 Precocidade e Independência 30

A Bossa Nova 35 Estreia Internacional 55

A Conquista do México 61 Muitos Contratos e um Casamento 72

Na Terra do Jazz 82 Lições de Música 88

Entre o Prestígio e a Fama 94 Encontro da Leny com a Leny 108 Epílogo 122 Discografia 124

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Introdução

Nas primeiras vezes em que falei com Leny Andrade – uma, no camarim do Bar do Tom, uma casa de shows carioca, e outra, ao telefone –, quanta intensidade.

Antes mesmo de começarmos a trabalhar, ela já veio dizendo o quanto a música lhe era importante, presente em sua vida desde quando se encon-trava na barriga da mãe. Isso porque Dona Ruth dava aulas de piano para crianças enquanto estava grávida. Desse modo, o primeiro contato de Leny com a música se deu no mais aconchegante dos berços.

Rapidamente sua memória voltou àquele dia em que, ainda criança, ousou abrir o bom piano de armário que ocupava a sala da casa no Méier, bairro carioca de classe média, para batucar nas teclas. Mamãe suspendeu a minha mãozinha pelo pulso e me deu a primeira lição de musicalidade: Aqui não se batuca, menina. É preciso antes sentir e, depois, começar a aprender o que fazer com essas teclas. A partir daquele dia, Leny saberia o que fazer com as teclas do piano, que ainda toca, e com as cordas de sua voz que vem encantando as mais diferentes plateias em todos os lugares do mundo, com extrema sensibilidade.

Mas tem-se que pagar o preço e eu pago esse preço, como um pedágio – ela repetiu várias vezes, no nosso primeiro encontro e nos depoimentos. Muito trabalho, muita disciplina, nada de álcool, licença só para o cigarro, e assim tem sido a vida de Leny Andrade seja lá onde for, no Brasil, México, Estados Unidos, Europa, Japão, ou sentada em uma mesa do restaurante La Fiorentina – o seu escritório no Rio de Janeiro, onde me contou a maior parte de suas histórias.

AS 1.001 NOITES DE LENY ANDRADE

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Histórias essas que quase não foram contadas, pois Leny ficou zangada quando prometi telefonar às 9 da manhã de uma terça-feira para marcar a primeira entrevista, e só o fiz duas horas depois. De forma gentil, embora firme, ela demonstrou desapontamento e profissionalismo, e ameaçou adiar o projeto – quem sabe para sempre.

Eu, que já tinha sido fisgada pelo seu carisma, fiquei triste. Senti-me como aquele sultão e a sua Sherazade. Preferiria que a madrugada não tivesse chegado tão de repente, pois já antevia narrativas de uma vida muito rica, plena de experiências únicas, boas de ouvir e de passar adiante. Esperava um mundo de revelações, muitas surpresas que seriam narradas do jeito dela, com sua voz inconfundível. Seria a primeira entre os que se deliciariam, orgulhosa por ser a porta-voz daquela que é uma grande intérprete do que nós temos de melhor – a nossa música. Inconformada, agi rápido. Escolhi cuidadosamente uma linda dúzia de rosas e mandei para ela com um pedido de desculpas, em que dizia não querer ficar como o sultão, esperando que uma nova noite chegasse para que ela resolvesse me presentear com as 1.001 noites de Leny Andrade.

E aqui estou, feliz por ser a representante dessa maravilhosa pessoa que é Leny, a grande intérprete que muitas vezes esquecemos que é tão nossa. Aliás, devíamos ter vergonha de não estarmos sempre juntando os nossos aos merecidos aplausos que nunca lhe são negados nos quatro cantos do mundo por onde ela se apresenta.

Interessante foi o evoluir deste livro. Logo no início, Leny e eu tivemos alguma dificuldade em encontrar o fio da meada para as narrativas. Ela, talvez preocupada em filtrar o que iria tornar público, ou mesmo em buscar a cronologia dos fatos perdidos no tempo. De minha parte, há muito deixara para trás as entrevistas tipo-caderno-B, para me dedicar aos textos do mundo corporativo. Mas fomos descobrindo coisas em comum, se não por razões superiores ao nosso entendimento, porque somos da mesma gera-ção: um grande amor pelo jazz, o interesse pela Astrologia (coisa que não lhe revelei), pelo esotérico (revelei pouco), e o gostar de ouvir e de contar

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histórias (escancaramos). Aos poucos, relaxamos. Ela foi abrindo o jogo devagarzinho e depois já pontuava os depoimentos com um nossa, há muito tempo não toco nesse assunto, ou eu faço questão de contar como foi que isso aconteceu exatamente.

Contrariando o catecismo, às vezes retribuía tanta generosidade com algumas histórias pessoais, sempre pontuadas pela música, nas noites da Bahia, Rio, São Paulo ou Nova York. Por exemplo, quando recordou sua estreia no João Sebastião Bar e eu disse que muitas vezes tinha ouvido música naquele lugar, na Rua Major Sertório. Acho que duvidou. Momento tocante foi quando recordou seu encontro com Piazzolla na boate La Noche, em Buenos Aires. Fiquei emocionada, ela percebeu e registrou. Por fim, acredito que o fato de Alcivandro Luz, Romero Lubamba, Ron Carter, Paquito D’Rivera, Bill Evans e Piazzolla ocuparem lugares especiais em nossos corações confirmou que habitávamos o mesmo quadrante neste universo cósmico.

Leny foi tomando gosto pelas entrevistas, se entusiasmando pelo fato de estar organizando pela primeira vez a trajetória de sua vida em capítulos, tal qual uma Sherazade moderna. Mais ainda quando percebeu que este livro poderia salvá-la dos sultões da mídia e da ignorância das novas gerações, colocando-a no lugar onde verdadeiramente merece estar na história da nossa música. A cada encontro ela se organizava mais. Começou a chegar com um caderninho contendo poucas, porém, criteriosas anotações. Fazia comentários e sugestões inteligentes, discutia o projeto, colocando-se inteira naquelas duas, três, quatro horas que ficávamos conversando. Sem falsa modéstia e com muito orgulho. A história fluía sem tropeços graças à sua extraordinária memória: do jeito que ela contava, parecia que tinha acontecido ontem. Tudo era narrado com muito colorido. Leny reviveu: riu, sorriu, sentiu raiva, indignação, saudade, se emocionou e até amou de novo. No final, quando o passado já se encostava no presente, contava-me amigavelmente sobre o seu dia a dia no Brasil, ou sobre as curtas e constantes viagens que realizou neste último ano, deixava recados na secretária eletrô-nica e enviava e-mails, já que estava aprendendo a lidar com o computador.

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Comecei a me sentir cada vez mais comprometida com esta biografia, com a obrigação de retratar os fatos com isenção, fiel às memórias da Leny. Não queria decepcioná-la. Também me encantou ser porta-voz de depoimentos muito verdadeiros sobre a noite de um Rio de Janeiro que já não existe e que foi “bárbara” (Leny tem vontade de resgatá-la), da história da Bossa Nova do ponto de vista muito pessoal de um de seus artesões, sem pesquisas sociológicas, antropológicas ou antropofágicas profundas, apenas com o compromisso de revelar os sentimentos da sensível mulher e intérprete que é Leny Andrade. Tudo isso tornou maior o desejo de fazer um registro que fosse verdadeiro e, ao mesmo tempo, desse prazer aos leitores, passasse informação, principalmente aos mais jovens – estou sempre preocupada com eles –, e a deixasse feliz.

Paralelamente à confecção deste livro, Leny produziu vários shows e gravou Alma Mía – CD com 14 boleros magistralmente interpretados em perfeito espanhol. Cada vez que nos encontrávamos ela trazia notícias sobre o disco, ora contente com o andar da carruagem, ora impaciente, e, no final, já muito irritada com os tropeços da produção. Aconteceu de tudo. Ela dizia o tempo todo que precisava fazer um disco em língua espanhola, devia esta homena-gem aos fãs que habitam os países da América Latina e que a chamam de Deusa. Dois fatos foram mais marcantes, pelo menos para mim: no dia em

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que ela ia fazer a primeira gravação com os músicos, num estúdio localizado no Recreio dos Bandeirantes – um lugar muito longe até para quem mora na Barra da Tijuca –, caiu uma chuva no Rio de Janeiro como não acontecia há 40 anos, arruinando a cidade. Mas Leny conseguiu chegar lá. Sua vontade e sua disciplina são impressionantes. A segunda foi quando prensaram a capa do disco sem que ela tivesse aprovado o layout e ainda por cima escolheram a pior foto entre as 400 tiradas numa longa e exaustiva sessão a que se submetera. Nesse dia vi uma Leny muito indignada. Ultrajada no rigor do seu profissionalismo e muito triste por ter sido ferida na sua imensa sensibi-lidade. Mesmo assim trouxe-me um exemplar. Com toda delicadeza e carinho colocou o disco no meu CD player e com a sua voz inconfundível cantou com ela mesma El día que me quieras. De arrepiar!

Posso afirmar que tudo na vida da Leny é assim: impregnado de uma quali-dade própria, despretensiosa e verdadeira, revestido de uma disciplina e de um profissionalismo raros. Aonde Leny vai, vai inteira. De corpo e alma. Fiquei feliz por ter escrito este livro. Leny disse que está feliz. Vou ficar torcendo para que os nossos 1.001 leitores fiquem também.

Regina RibasRio de Janeiro, 2010

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Leny Andrade é vida, amor, paixão, uma bomba sempre prestes a explodir. No palco é a entrega total àquela que chama de Espiritual – a Música. Em casa, uma mãe, uma amiga, uma avó, uma tia, uma madrinha, sempre falando ao telefone sentada em sua poltrona predileta, ligando para os amigos, preocupando-se com o dia a dia de cada um, e dando as maiores duras mesmo quando não são necessárias.

Conheci a Leny em um show onde eu era sócio e gerente, e mais tarde acabei estabelecendo um vínculo profissional, através do seu agente, que me pediu que a acompanhasse em alguns espetáculos. Ao Luiz Otávio devo agradecer por ter me dado este presente, por ter colocado a Leny em minha vida, essa que se tornou como uma mãe, irmã, amiga, uma pessoa com que sempre posso contar.

Nos últimos 14 anos tenho convivido com ela que é, não somente para mim, mas para muitos, a grande voz deste país. Mas falar sobre a cantora seria redundância. Prefiro narrar um pouquinho sobre o ser humano que é Leny de Andrade Lima, a filha da Dona Ruth. Um ser humano impecável, explo-sivo no dia a dia, sem regras ou papas na língua, que não manda recados, diz o que pensa e o que quer, mas quando sente que extrapolou, tem a humildade de pedir desculpas. Uma pessoa com um coração enorme e generosidade maior ainda.

Poucos são os artistas que como ela têm o coração e a capacidade de ajudar, sem precisar de uma fundação ou de propagar o que faz. Faz sim-plesmente porque sabe que alguém precisa. Como é vidrada nas emissoras de rádio AM, onde tem sempre um programa de apelo popular pedindo uma ou outra coisa para os ouvintes, a todo momento está atendendo a quem necessita. Certa vez me ligou no início de uma tarde, para que a acompa-nhasse até uma fábrica de cadeiras de roda em Jacarepaguá, bairro na Zona Oeste do Rio de Janeiro, pois uma criança precisava de ajuda, conforme ela ouvira em uma dessas emissoras. Ao chegarmos ao local, a mãe e a avó da criança estavam lá. Para minha surpresa, a mãe era funcionária de uma empresa de plano de saúde e a cadeira que a criança precisava era bem

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sofisticado, com comandos eletrônicos, com custo bem acima dos modelos convencionais. Leny não discutiu e disse: É dessa que ela precisa; essa ela terá. Pagou o valor passado pelo fabricante que, também cadeirante, se comoveu com o gesto e até concedeu um bom desconto.

Em outra ocasião, um técnico de som do teatro estava com a fisionomia preocupada e Leny perguntou-lhe o que se passava. O rapaz contou que se não depositasse determinado valor em juízo no dia seguinte seria preso, pois estava devendo a pensão alimentícia. Leny não quis nem saber qual era o montante da dívida. Mandou resolver o problema do técnico e acabou com aquela tristeza.

Os músicos têm na cantora uma defensora e uma protetora acima da expectativa, sempre preocupada com cada um deles. Ela não admite, sob hipótese alguma, que o músico deixe de receber e, quando há atraso por parte dos contratantes, antecipa o pagamento tirando de suas reservas para que eles não fiquem na mão.

Para falar desta pessoa que muito admiro e amo de paixão, uma página é pouco. Ficaria aqui contando muitos episódios e outras histórias vividas por nós, que corremos o mundo como se fôssemos uma família. E somos. Escreveria outro livro...

Djalma Marques

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H i s t ó r i a s d a I n f â n c i a

Dona Ruth, Dr. Gustavo e um consultório

Nasci no Rio de Janeiro e fui levada para Minas com os móveis e utensílios de nossa casa dentro de um caminhão, quando Dona Ruth Couto de Andrade, minha mãe, uma libriana muito elegante, porém decidida, descobriu que meu pai estava namorando sua prima. Imediatamente ela se separou, mas não se desquitou. Naquela época, essas coisas levavam tempo. O impor-tante naquele momento era deixar o vexame para trás. Não dava para ficar parada, e ela partiu para a solução mais rápida: fomos morar na casa da tia Levi, num sítio próximo a Belo Horizonte. Tive irmãos por parte de pai, porque Luiz de Oliveira Lima, meu pai biológico, se casou com outra mulher, não mais aquela prima, pivô da separação, que acabou falecendo. Então, eu tenho três irmãs que nasceram depois e com quem fui ter contato muito mais tarde.

O Dr. Gustavo Paulo da Silva foi o meu verdadeiro pai. Meu grande educador. E também o maior fã que tive em toda a vida. Era clínico geral e – como gostava demais de crianças – pediatra também. Fui parar no consultório dele por causa de uma manchinha nas costas. Quando mamãe comentou com tia Levi sobre a manchinha, ela recomendou: leva no Dr. Gustavo. Na época, ele estava tratando da vista do meu tio, mas em sua clínica havia sempre crianças, todas muito à vontade. Mamãe esperou mais uma semana, me encapuzou e me levou lá. Olhei para a cara dele e comecei a rir, toda simpá-tica, sabe? Ele gostava de contar esta história: Primeiro, me apaixonei por você; quem primeiro me agarrou foi você. Depois, fiquei apaixonado pela Ruth, pelo jeito dela muito educado, ela sempre muito arrumada. Mamãe tinha mesmo um jeito arrumado e elegante, muito característico do signo dela.

No consultório, eles ficavam conversando enquanto me davam banhos de luz nas costas. Cada consulta levava meia hora. Então, ele nos despachava e pedia que voltássemos dali a dois dias. Remédio mesmo era só uma dose

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de arnica. Sim, porque Gustavo era médico alopata, homeopata e bruxo. Esse meu pai postiço tinha uma grande sabedoria, era muito espiritualizado. Era um crânio. Escorpião do dia 28 de outubro.

É muito interessante isso, porque mais tarde outros dois escorpianos, nascidos nesse mesmo dia, vieram a ser pessoas muito importantes em minha vida: Ronaldo Bôscoli, por quem eu tinha verdadeira paixão, e Lúcio Nascimento, morto no início de 2009, que tocou contrabaixo no meu trio por 15 anos. Sou uma aquariana muito ligada nos escorpianos. Quem cuida da minha carreira atualmente é o Djalma Marques, nascido no dia 7 de novembro. Meu secretário, um grandalhão que está sempre por perto, também é do signo de Escorpião. Comigo eles deixam a agressividade de lado.

Mas, voltando à infância, alguns anos depois nos mudamos para São Paulo e ficamos na casa do primo José Andrade. Fomos para a casa dele porque era uma propriedade enorme, com todas as condições de nos acolher. O lado da família Andrade é muito grande: tem José, Neneti, Nanci, Ivone, Paulo César, que é meu afilhado. Uma família muito direita, todos formados.

Mamãe se preocupava em ficar protegida, porque no fundo tinha receio de que sua ligação com o Gustavo pudesse fazer com que ela perdesse a minha guarda. Ela só teve a mim e para tanto quase morreu. Sofreu muito, teve uma porção de complicações e decidiu fechar a fábrica. Complicações à parte, ela não queria era ter mais filhos porque embora, àquela altura, o Luiz, meu pai biológico, ainda não tivesse tido outros filhos, o Gustavo, quando saiu do Rio de Janeiro, já deixara três – uma mulher e dois homens: Odila, Augusto Carlos – o Dudu, e o Sussuca, que mora no Norte há anos.

A filhinha do papai Gustavo

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Leny com 5 anos no carnaval

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Os tamanquinhos milagrosos

Na infância, sofri todas as doenças que se possa imaginar. Tive uma bron-quite que quando atacava me deixava roxinha, roxinha, e me levava para o hospital. Até o dia em que papai decidiu passar a trabalhar em casa para poder me acudir quando eu entrasse em crise.

O lado bom dessa história foi que eu não era mais obrigada a frequentar a escola diariamente. Só não foi melhor porque quando eu passava mal era um terror. Teve uma vez – Gustavo ainda viajava – que, de repente, tive um febrão, muita dor de garganta, e o médico falava que poderia ser crupe, mesmo eu sendo tão nova. Papai voltou correndo porque achou que alguma coisa no tratamento estava errada. Quando chegou, viu que minhas juntas estavam muito inchadas e mandou suspender toda a medicação dizendo: Ela sofre de excesso. O médico exagerou na sulfa, por isso ela está com as juntas desse jeito. Vamos suspender tudo isso imediatamente e fazer uma desintoxicação. Para com tudo. Se eu não chego rápido, lá se ia a Lenizinha. Lembro-me disso tudo como se fosse hoje. Tive que reaprender a andar, a reconhecer as pessoas, a falar direito. Foi um febrão danado. Uma espécie de escarlatina, uma coisa pesada. Esqueci de tudo, esqueci da vida, do meu pai, da minha mãe, eu só balbuciava hã, hã...

Os tamancos portugueses estavam entrando na moda. Um belo dia, Gustavo chegou em casa com uma caixa embrulhada para presente: Trouxe uma coisa para você, acho que vai gostar. Quando abri a caixa e vi os tamancos, fiquei enlouquecida. Papai advertiu: Eles são do tamanho do seu pé, você não vai escorregar, mas terá que ter força suficiente na sua perna para calçá-los e se equilibrar. Recomecei a andar por causa deles, dos tamancos que o Dr. Gustavo trouxe para mim. Eu tinha uns 5 anos. Aqueles tamanquinhos me botaram para andar de novo. Meu pai tinha coisas assim, era uma graça. Quando morreu, me faltou o chão. Entrei numa depressão profunda. Eu já era casada e meu marido não conseguia entender aquilo. Foi muito difícil...

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A mãe professora de piano

Mamãe não dependia das aulas de piano para o seu sustento. Além de um dinheirinho extra, elas lhe davam o prazer de se relacionar, de estar com as alunas que a adoravam. Ela ia à casa delas toda arrumada, maquiada, brincos nas orelhas, olhos pintados, o cabelo no lugar, vestido elegante. As meninas olhavam e pensavam: O que é isso? Nossa Senhora! Minha professora parece uma boneca. Não me lembro de mamãe dando aula de piano em Minas e em São Paulo. Acho que ela começou a pegar pesado nas aulas quando moramos no Rio de Janeiro. Mas, com certeza, minha iniciação musical se deu antes mesmo de eu nascer.

As aulas formais começaram muito cedo. Depois da primeira lição de musicalidade, quando mamãe me disse que era preciso antes sentir para depois começar a aprender o que fazer com essas teclas, ela comprou um caderninho, um lápis e uma borracha para que eu começasse direito. Você está vendo essas figurinhas aqui? São que nem as letras do alfabeto que você aprende na escola, só que cada uma delas tem um som, tem uma duração. Essa pretinha com um rabinho tem uma duração diferente desta outra, que é uma bolota. Não são iguais: vem primeiro a semibreve, depois a mínima, a semínima, depois vem a colcheia, a semicolcheia, a fusa e a semifusa. Tá entendendo?

A vida da mamãe foi sempre ligada à música. Quando já idosa, ia para o baile do Maestro Tabajara assistir ao Dudu tocar levando um grupo de amigas, conhecidas da Igreja da Imaculada da Conceição, onde tocava órgão. Toda viúva que chegava na igreja chorava uma vez só, porque depois tinha que ir para o baile dançar. A igreja fica na Praia de Botafogo e o coral tem o seu nome: Ruth Andrade. No ano em que mamãe morreu (1999) faleceram mais cinco da mesma família. Naquele ano, Plutão pegou pesado. Só no prédio em que morávamos foram três. Mas o que vale é a lembrança que fica. Baile de carnaval, mamãe não perdia nenhum. Ela dançou muito na vida...

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Leny e Dona Ruth, sua mãe

Praticando no piano de casa

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A turma da Profa. Maria Amélia de Oliveira na escadaria da ABIl

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Um caráter bem formado

Saímos de Minas levando uma babá chamada Tereza, que foi minha madrinha, me batizou e tomou conta de mim enquanto pôde.

Eu adorava a Tereza. Ela era encarregada de cuidar de mim e cumprir um monte de obrigações organizadas pelo Gustavo como não chegar à escola atrasada, comer no horário, brincar somente após os deveres feitos, etc. Mas, em compensação, ninguém podia me dar uma palmada, ninguém podia falar alto comigo.

Lá em casa era tudo muito organizado: todos sentados à mesa, não tinha essa de comer com o prato na mão. Mamãe era a rainha da mesa para o café, almoço, jantar, fosse com convidados ou não. Ela tinha prazer nisso e contava com a ajuda da Tereza para manter o ritual. Até hoje tenho este hábito e adoro uma mesa bem posta.

Gustavo era rigoroso. Às 8h30 da noite eu me despedia de qualquer visita, porque ele achava que criança precisava de limites e que o casal perdia a intimidade quando a criança dominava, pois ela sempre quer ocupar o espaço. Estava coberto de razão. Se eu tivesse tido filhos, educaria como o Gustavo me educou. Em casa não havia discussão. Convivi com aquele casal anos e anos e nunca os vi brigar. Nunca. O exemplo do Gustavo e as primeiras lembranças de nossa vida em família ficaram para sempre, porque isso é o tipo de coisa que as crianças guardam bem. Guardam essas impressões a sete chaves. É por isso que as moças deveriam pensar dez vezes antes de ter filhos. Casar é uma coisa, ter filhos é outra. Ter filhos, para mim, é a coisa mais séria na vida de uma mulher. É realmente a coisa mais séria deste mundo, principalmente no mundo em que vivemos. Você tem que ter preparo para colocar um ser humano no mundo. Decidi não ter filhos no dia em que optei pela música, fiz dela um sacerdócio e percebi que queria ter vida de artista com tudo o que ela acarreta. Jamais poderia cuidar de meus filhos como meus pais cuidaram de mim. E mais: meus filhos jamais iriam cuidar de mim como eu cuidei dos meus pais até o fim.

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Leny, a caloura

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A criança é um macaco de imitação. Você deve ensinar direito e dar o exemplo, porque senão a conversa será: como é que o papai e a mamãe querem que eu faça isso, se ele não faz, se eles fazem assim e assado? Os maiores críticos que uma pessoa tem na vida são os filhos. Eles são juízes implacáveis morando dentro de sua casa. Com três, quatro anos eles já julgam você, sua vida, seu comportamento. Tomam conta de tudo: pra onde você vai, com quem vai, como você chega em casa, se chega trocando as pernas... seu filho tá vendo tudo. Sou implacável com essas moças que andam por aí e, num momento de prazer, saem e arrumam filhos, o primeiro de um homem, o segundo de outro, e ainda outro de outro. Isso sem ter a menor condição de criar um sequer. Gente, filho não pode ser assim. Senão, onde vamos parar?

Minha madrinha de crisma, a Marlene, até bem pouco tempo, morava no mesmo edifício que eu, na Praia de Botafogo, com sua irmã, Elza Novaes. Marlene foi entregue à mamãe, bem novinha, com 16 anos mais ou menos. Seu pai, Henrique Novaes, tinha um problema circulatório que já causava preocupação e por causa disso preferiu deixar a Marlene, que já gostava de cantar, aos cuidados da mamãe. Ele sabia que a filha receberia uma educa-ção refinada, tornando-se uma moça chique. Porém, a Elza já começara a ter filhos – foram vários, um atrás do outro – e a Marlene foi ficar com ela para ajudar a tomar conta dos sobrinhos até que papai morreu. Decidiu, então, voltar para a nossa casa, alegando carinhosamente que sem o Dr. Gustavo Dona Ruth ficaria muito sozinha. Marlene está com 77 anos e Elza, 84. Moram atualmente no Retiro dos Artistas, num lindo recanto em Jacarepaguá. Ambas foram cantoras clássicas, e das boas, inscritas na Ordem dos Músicos, por isso escolheram ir viver naquela casa, que é um lugar maravilhoso, e estão muito felizes na nova moradia. Continuam muito ativas e saem bastante. A Marlene assistiu ao lançamento do Alma Mía, no Canecão. Elza preferiu não ir, receosa por causa de uma fratura recente. Elas são independentes, mas somos muito próximas, nos falamos quase que diariamente, nos consultamos para tudo, nos apoiamos mutuamente. São as minhas consentidas, os meus quindins. Foi com elas, cantando em casa, que dei meus primeiros agudinhos no chiribiribim...

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Laços de família

Durante algum tempo, cada um vivia num canto. Mas um dia, a nossa família ficou toda junta. Anos depois de estar vivendo com Gustavo, mamãe soube que Dona Conceição, sua primeira mulher, estava sofrendo muito, com diabe-tes, e decidiu visitá-la em casa da Odila, sua filha. Gustavo ficou muito assustado com aquela história, mas mamãe simplesmente disse que aquele era um momento muito difícil para Odila, tomou um táxi e foi cumprir o anunciado, ordenando docemente que ninguém a impedisse.

A partir desse acontecimento, aquela espécie de raiva, ou aquela ideia errada de que mamãe deveria estar às voltas com o Gustavo enquanto ele estava casado, foi tirada a limpo e a família acabou virando uma só. Dona Ruth, com toda diplomacia, desfez um mal-entendido de anos, aquela inimizade sem razão. Aliás, ela sempre dizia que um dia iria acabar com aquele tere-tetê porque tinha certeza de que os filhos do Gustavo sentiam vontade de estar próximos daquele pai tão especial. E assim foi: eles passaram a entrar lá em casa na hora que quisessem, e Odila passou a chamar a mamãe de mãe, como já faziam Dudu e Sussuca.

Já minha aproximação com o meu pai biológico não foi nada fácil. O Gustavo, a quem eu sempre chamei de pai, teve um trabalho enorme para promover meu encontro com o Luiz. Confesso que resisti um bocado. Não porque eu tivesse sido envenenada pelos lá de casa, mas porque, objetivamente, eu só conhecera o Gustavo como pai. Só vim saber o que acontecera com a minha mãe quando já era adolescente, pois ela não era de ficar falando à toa. Muito menos de brigar. Nunca a vi batendo boca. Era o que você chama de uma lady. Uma libriana pra lá de especial, nascida no dia 13 de outubro, numa sexta-feira de um ano bissexto.

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Gustavo, Ruth e Leny

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Mamãe era apaixonada pelo meu avô, Mathias Couto de Andrade, um baiano que morreu na guerra e deixou para a família um contracheque maravilhoso que permitiu que nunca tivéssemos problemas materiais. A gente vivia sem luxo, mas com conforto, eu estava sempre muito bem vestida, muito bem arrumada e frequentava escolas maravilhosas. Quando saímos de São Paulo para o Rio de Janeiro, fomos morar num apartamento que o meu padrinho, Ademar, tinha determinado que fosse meu. Ele era alto funcionário do Banco do Brasil e o apartamento ficava num conjunto do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários (IAPC). Mamãe foi lá, viu, gostou e nos mudamos. Vida nova, colégio novo, bons vizinhos, um bom lugar para as aulas de piano da mamãe e ruas tranquilas para eu andar de bicicleta, a minha paixão...

A debutante

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P r e c o c i d a d e e I n d e p e n d ê n c i a

Sempre fui dona do meu repertório

Risque Ary Barroso

Risque Meu nome do seu caderno Pois não suporto o inferno Do nosso amor fracassado

(...)

Mas, se algum dia, talvez, a saudade apertar Não se perturbe, afogue a saudade Nos copos de um bar

Foi passeando de bicicleta nas ruas internas do conjunto do IAPC que vi uma faixa anunciando um concurso de canto que iria marcar o meu destino. Tinha cerca de oito anos. Li os dizeres daquela faixa e, independente e impulsiva, não pensei duas vezes: entrei no local – era uma espécie de associação de bairro – e me inscrevi. Só depois falei da minha ousadia ao papai, que ficou com a incumbência não só de comunicá-la à mamãe, como de convencê-la de que seria uma boa eu participar do concurso. Depois de muita argumentação do tipo, se ainda fosse uma audição de piano, cantar música popular, isso é lá coisa pra criança?, ela cedeu. Fui, cantei e venci. Cantei Risque, de Ari Barroso. Dali em diante perdi a conta de quantas vezes participei dos concursos do IAPC e de quantos prêmios ganhei. Mas lembro-me bem que um deles foi um pinguim de geladeira, outro um corte de tecido, e ainda outro um porta-retratos, que conservo até hoje. Não me esqueço também que foi no IAPC que conheci Sidney da Conceição, um biscuit negro, a coisa mais lindinha de se ver, que tocou uns acordes modernos – os primeiros que ouvi na minha vida. Em seguida, já em minha casa, passou inversões de acordes de violão para o piano – uma abertura definitiva para a minha cabeça.

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Não fui criança prodígio, até porque acho que elas são umas chatas. Mas precoce sempre fui. E independente. Desde cedo descobri que queria ser cantora e fui trabalhando para marcar a minha posição dentro de casa desde pequena, já que tinha pais tão rigorosos. Contava com o apoio do Dr. Gustavo, até porque ele tinha um filho músico, o Dudu. Já mamãe, depois de ter a resistência vencida, permitindo que eu participasse do concurso do conjunto residencial do IAPC, acabou por deixar as coisas correrem frouxas, porque, afinal, papai estava no comando. Estava lançada a minha carreira de cantora. Fui participar das matinês do Clube do Guri. Paralelamente, estudava piano a sério como bolsista do Conservatório com tudo o que isso significa: Czerny, Cortot, Bach e ensaios para as audições anuais. As festas de fim de ano eram um terror. Na terceira audição de piano, que era realizada no auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a professora Maria Amélia de Oliveira resolveu juntar o grupo de meninas e propôs que terminássemos o concerto cantando Adeus Guacira, em lugar de tocar uma música. Uma por uma das alunas foi sendo testada até que chegou a minha vez e fui a esco-lhida para solar o maior trecho da música. Fiquei tão orgulhosa com os aplausos da plateia, tão vaidosa, que nunca mais deixaria de cantar...

Cheguei com o meu pai ao Clube do Guri – o maior programa de rádio do País na época – recomendada por um Sr. Loureiro, que tinha ido perguntar a ele se eu não gostaria de participar do programa do Samuel Rosenberg. O programa era gravado no estúdio da Rádio Tupi. Eu tinha 10 anos, já tocava um pianinho regular e adorava cantar Risque que, decididamente, não é música para ser interpretada por crianças. O apresentador do Clube do Guri, Ari Rego, e o pianista Lucas acataram a escolha sob pressão, com restrições e sem alternativas. O final daquela minha primeira apresentação foi surpre-endente, porque fiz um arremate. Até hoje arremato tudo o que canto, pois afinal de contas, quando a gente canta, não está recolhendo lixo – a música é composta de melodia, letra, ritmo e muito mais, não acaba enquanto não se faz o final. Os finais que o Tony Bennett dá às músicas que canta literal-mente me matam. São todos muito bem pensados.

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O Clube do Guri foi levado para a TV Tupi em 1955, ainda em preto e branco, mas nasceu no rádio, em Porto Alegre, onde revelou Elis Regina. Durante 21 anos reuniu crianças prodígio ou não, mães ansiosas e corujas. No Rio de Janeiro, o programa era realizado num maravilhoso auditório que ficava na Rua Venezuela. Meu Deus, por que acabaram com ele? Durante dois anos, todos os domingos, das 10 às 12 horas, Sônia Delfino, Thelma Elita, eu e muitas outras crianças fomos lá com nossos belos vestidos rodados, sapatos baixos, meias de seda curtinhas e laços nos cabelos, cantar músicas do repertório de Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Dircinha Batista, Linda Batista, Nora Ney, Dóris Monteiro, Cauby Peixoto e Nélson Gonçalves – com o maestro Rui Silva ao piano, Victor Abauza e o japonês Antoninho Maciel –, músicas como Risque, Vingança e Se eu Morresse Amanhã de Manhã, entre outras.

A partir do Clube do Guri não parei mais. Fui seguindo um caminho natural, querendo me transformar em cantora profissional. Então, veio o convite para me apresentar no programa do César de Alencar, na Rádio Nacional, locali-zada na Praça Mauá. Acompanhada pela grande orquestra do Maestro Chiquinho, cantei Se eu Morresse Amanhã de Manhã usando o arranjo de Dircinha Batista. O auditório veio abaixo e o César de Alencar disse: Eis aqui uma pequeninha cantando melhor do que muita gente grande. Eu trajava um vestido branco de seda e calçava lindos sapatos de verniz que papai me dera de presente, muito confortáveis. Engraçado como esses detalhes ficam em nossas lembranças para sempre. Naquela tarde, perdi dois anéis de ouro esquecidos na pia do banheiro. Mas em compensação no corredor da rádio vi pela primeira vez Dalva, Cauby, Ângela Maria, todos esperando a sua hora de cantar. E as macacas de auditório desses ídolos invadiram o palco após a minha apresentação e me carregaram no colo como se eu fosse uma pluma.

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Dudu, o irmão, empresário e arranjador

Com o empreendedorismo do meu irmão Augusto Carlos Paulo da Silva, o Dudu, e a cumplicidade de papai, assinei um contrato com o Clube de Engenharia. Começava a me profissionalizar. Cantava nos fins de tarde e os ouvintes eram pessoas que trabalhavam nos escritórios localizados no centro da cidade. Não se chamava happy hour, mas era isso. Cantava no clube de segunda a sexta e aos domingos participava das domingueiras, bailes realizados nos diversos bairros da cidade e arredores. Começava a ganhar o meu dinheirinho, já não cantava mais de graça. Os músicos que me acompanhavam eram escolhidos por Dudu, que também tocava saxo-fone e flauta. Ele arregimentava os profissionais no Ponto dos Músicos, localizado na Praça Tiradentes, em frente ao Teatro Carlos Gomes. Assim, Dudu foi meu descobridor e primeiro empresário. Naquele período de minha vida, participei de inúmeros outros programas de rádio – na Mayrink Veiga e na Rádio Mauá – apresentei-me em clubes, festas dançantes e bailes.

Foi graças ao Dudu que conheci o Permínio Gonçalves, uma das pessoas mais importantes em minha vida. Sua orquestra, grande, maravilhosa, era uma das mais, senão a mais, requisitadas para os bailes nas décadas de 1950 e 1960, na Associação dos Empregados do Comércio, na Avenida Rio Branco. São inúmeros os músicos instrumentais que iniciaram suas carreiras lá e ficaram famosos, como o Wilson das Neves e o Bituca. Como está registrado em todas as referências biográficas, foi na orquestra de Permínio Goncalves que estreei profissionalmente como crooner – a pessoa que canta para o público dançar.

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Cantando no Clube do Guri com a famosa faixa

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A B o ss a N o v a

O que vi e vivi no Beco das Garrafas

Ainda fazia as domingueiras quando lá em Caxias apareceu, chamado por Dudu, um vibrafonista chamado Chuca-Chuca. Era sócio do Gigi, no Bacará – boate que ainda existe no Beco das Garrafas, à Rua Duvivier, 36 – marco importantíssimo em minha vida. Depois de me ouvir cantar e tocar piano no meio do baile, no Clube dos 500 – Lions, a missão do Chuca-Chuca passou a ser a de convencer o Gustavo de que não seria nenhum bicho de sete cabeças eu me apresentar no Beco, que sua boate poderia perfeitamente ser frequentada por uma moça de família.

Para quem não é de minha geração, ou carioca, vou contar um pouco da história do Beco das Garrafas, berço da Bossa Nova, este movimento único que internacionalizou a nossa música para sempre. Afinal de contas, não posso imaginar histórias da Leny Andrade sem o Beco e sem a Bossa Nova...

Sem essa de dizer que o Beco era barra pesada, um antro de boêmios que só sabiam beber e consumir drogas. Nada disso. O lugar foi batizado com este nome obviamente porque se tratava de uma rua sem saída e os moradores dali, irritados com o barulho que rolava altas horas da noite, jogavam garrafas lá de cima nos alegres transeuntes. É vero ma non o mais importante.

A história que importa é que, no início dos anos 1960, três boates bombavam no Beco: Little Club, Bacará (que permanecem até hoje) e o Bottle’s (reaberta em fevereiro de 2010). No Beco das Garrafas se fazia a melhor música que o Brasil podia ouvir na época, com toda certeza. Os irmãos Giovanni e Alberico Campana (o da Plataforma), proprietários de três das quatro casas, abriam as portas para os jovens músicos e todos os que apareciam por lá eram jovens e talentosíssimos. Desse modo, as casas estavam sempre cheias de gente talentosa e de quem ia atrás dela apreciar suas artes. Gente como Lennie Dale, Tom Jobim, Johnny Alf, Baden Powell, Durval Ferreira, Paulo

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Moura, Carlos Lyra, Sergio Mendes, Luiz Eça, Luís Carlos Vinhas, Dom Salvador, Tenório Jr., Raul de Souza, J.T. Meireles, o maestro Cipó, Edu Lobo, Chico Feitosa (Fim de Noite), Roberto Menescal, Miele, Maurício Einhorn, Rildo Hora, Tião Neto, Manuel Gusmão, Bebeto Castilho, Dom Um Romão, Edison Machado, Airto Moreira, Wilson das Neves, Chico Batera, Vítor Manga, Hélcio Milito, Sylvinha Telles, Dolores Duran, Nara Leão, Marly Tavares, Betty Faria, Vanda Sá, Marisa Gata Mansa, Dóris Monteiro, Claudette Soares, Alaíde Costa, Elis Regina e Maysa Matarazzo, que resol-veu deixar a tradicional família em São Paulo e vir para o Rio de Janeiro cantar. Ela saía a pé do tradicionalíssimo Hotel Copacabana Palace, descalça, e ia andando até o Beco para encontrar-se no Bottle’s Bar com Ronaldo Bôscoli, Miele e Menescal, e todos os que estão em seu primeiro grande disco, onde ela lançou O Barquinho. Juro que o ambiente não era pesado. Tinha uma casa de mulheres no início da rua, também dos irmãos Campana, mas que nunca influenciou o ambiente do Beco, nem se percebia a existên-cia dela. Cantei durante muito tempo no Beco sem saber que havia naquela rua mulheres que cobravam para sair com os homens. Pra falar a verdade, nem sabia exatamente o que era isso – hoje sei que era uma casa de viração, como se dizia na época, e que se chamava Ma Griffe. Quem entrava no Beco desavisado não percebia nada e ninguém nunca passou por algum tipo de constrangimento ou dissabor por causa de sua existência. Nada!

Toda a alta sociedade frequentava o Beco das Garrafas, acreditem. A chegada da Bossa Nova foi o desabrochar de um grande movimento no Rio de Janeiro. As casas noturnas à época só tocavam músicas modernas, super pra frente, e a fama do Beco das Garrafas deve-se ao fato de que as boates de lá abriram espaço para a vanguarda, fizeram uma música diferente de tudo o que existia, bem mais avançada. Quando o movimento terminava no Beco, quase todo mundo ia para a Fiorentina jantar. No restaurante do Leme ainda não havia o toldo branco de hoje, era tudo aberto com as pilastras se impondo. Era uma movimentação bárbara, um entra e sai de pessoas jovens e bonitas. O restaurante ficava aberto até muito tarde porque os artistas costumavam chegar quando encerravam o trabalho e os fãs iam atrás. Como acontece até hoje.

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Mais jantar dançante, piano nos intervalos

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Leny nas domingueiras

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Jantar dançante no Lions Club

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O fantástico caminho da Bossa Nova

Eu tinha 17 anos, era praticamente uma criança, a mais jovem entre os artistas, e sentia uma alegria enorme em conviver com o povo já adulto. Era uma festa. Muitos encontros marcantes, muita troca de informação. Uma riqueza cultural absolutamente fantástica: Luis Carlos Vinhas, Luiz Eça, todos formando trios que estouravam. Teve a chegada do Lennie Dale ao Rio de Janeiro, que foi por si só um espetáculo porque significou a chegada da dança ao Beco das Garrafas. Lennie fez grandes shows lá: formou o Sambalanço Trio com o César Camargo Mariano, piano; Humberto Claiber, baixo; e Airto Moreira, bateria. Eles se apresentavam no Rio e em São Paulo e um belo dia gravaram ao vivo o Lennie Dale & Sambalanço Trio no Zum Zum. O Lennie foi uma vanguarda totalmente diferente. Eu me sentia amada e mimada por ele, que tinha altas conversas comigo, se metia nos meus arranjos, melhorava minhas coisas, dava ideias mirabolantes, inclusive essa desdobrada fantástica, que até hoje faz tanto sucesso quando eu canto Estamos Aí, do Durval Ferreira e do Maurício Einhorn, e também da Regina Werneck, uma vez que foi ela quem colocou letra nessa música. Tudo era muito rico e ainda está muito vivo em minha memória.

Estou achando uma boa ideia escrever um livro sobre a minha vida porque acredito que não tivemos e nem vamos ter no Brasil outra cantora que tenha andado por esse caminho e permanecido em cena até os dias de hoje. Houve mais de um motivo para que isso acontecesse comigo, mas, o principal, foi que Papai do Céu assim determinou. Houve uma época em que a minha carreira e a da Eliana Pittman correram paralelas e eu gostaria muito que tivesse continuado assim. Além de bonita, Eliana era enteada de um grande músico de Nova Orleans, Booker Pittman, uma pessoa com raízes no jazz. Até hoje não entendi por que Eliana mudou o rumo de sua carreira. Era para ter vindo por esse mesmo caminho.

Outro motivo de eu ter sido a única a seguir a trilha onde a Bossa Nova e o jazz tiveram um encontro tão expressivo, em minha opinião, foi que somente

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No auditório da Rádio Tupi

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alguém com conhecimento profundo de música poderia ter sacado o novo movimento musical. Aquela intensidade melódica, aquela harmonia, um jeito de construir as frases musicais totalmente diferente – isso foi a Bossa Nova. Uma linguagem, uma maneira diferente de se dizer: Dia de luz, festa de sol e o barquinho a deslizar no macio azul do mar... Era uma coisa totalmente nova, nunca dita, porque antes se dizia Adeus, adeus, adeus, cinco letras que choram..., assim, nesse compasso. E vinham todos os sucessos da Dalva. Ou... Não, eu não posso lembrar que te amei... Aí vinha a corrente do Ari Barroso: Brasil, meu Brasil brasileiro... e vinha... Risque, meu nome do seu caderno...; Eu gostei tanto, tanto quando me contaram..., que era Linda Batista. Era outra maneira de compassar. De repente chegou a Dóris Monteiro muito moderna, cantando Eu sou feliz, tendo você sempre ao meu lado... e mais Meu bem, esse seu corpo parece, do jeito que ele me aquece, um amendoim torradinho... e Você é dó, é ré mi fá, é sol, lá, sí... Coisas da vida da Dóris, do caminho da Dóris.

O conhecimento profundo da música permitiu que eu caminhasse melhor por esse fraseado. Sacasse melhor as coisas que a Dolores estava come-çando, coisas importantes como Eu desconfio que o nosso caso está na hora de acabar... há um adeus em cada gesto, em cada olhar...

Leny, profissão: músico

Como aos 17 anos eu não tinha vivência emocional para alcançar o que estava acontecendo, outros conhecimentos de teoria musical, harmonia, etc., valeram e muito. Eles foram adquiridos através do estudo do instru-mento poderoso e completo que é o piano. Eu possuía uma base musical fincada no chão para sacar as coisas, compreender as riquezas do que estava começando a ser dito musicalmente de uma forma inusitada.

Sobre essa base adicionei riquezas, pois vivi rodeada de músicos maravilho-sos, fui agraciada com a direção de grandes maestros, acalentada por muito afeto musical. Colecionei elogios do maestro Cipó, do maestro Nelsinho do Trombone, que fez todos os arranjos do meu primeiro disco, do Manoel Gusmão, contrabaixo, e do Edison Machado, bateria, músicos extraordinários que tocaram muitas vezes comigo no Beco. Fui encontrando os mestres pela vida por essa vivência do som nosso de cada dia. Eram pessoas maravi-

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lhosas com quem trocava ideias, que sentiam prazer em dividir comigo, fazer solos enquanto eu cantava nos shows. Essa gente me rodeava e a troca se dava mais com os homens. Das mulheres era apenas uma amigui-nha, sem muita intimidade. Já os homens comentavam minha atuação, aconselhavam, sugeriam repertório, davam mil dicas: pede para o Carlinhos te mostrar uma música dele com o Ronaldo Bôscoli, que diz Brinca no ar um resto de canção, um rosto tão sereno, tão quieto de paixão... você tem que cantar isso, e ia por aí...

Meu primeiro dinheiro na noite foi ganho na boate Bacará. Eu revezava no palco com o Altemar Dutra, que já conhecia algumas coisas da Bossa Nova, desse corte moderno que estou tentando descrever com palavras. Ele misturava novas composições com alguns boleros do seu repertório. Precoce, eu já tinha naquela época consciência de que a minha voz fazia parte do conjunto dos músicos – era um instrumento. Acho que por isso sempre fui considerada como um músico. O meu número na Ordem dos Músicos é 722. Isso é impressionante. Acho que a minha mãe era 723, a Marlene, minha madrinha, era 721. Praticamente inauguramos a Ordem. Coisas da Dona Ruth. Porque quando a Ordem dos Músicos foi constituída, mamãe me obrigou a me inscrever. Era a maneira de aceitar o meu destino do seu jeito – já que não haveria volta, precisaria ser com seriedade. Tive que seguir o Conservatório de Música até receber o diploma de pianista, depois me sindicalizar, em seguida me emancipar, manter os papéis em ordem, atualizados – exigências que continuo cumprindo. Mamãe realmente me profissionalizou.

Mas, nas andanças na noite, foi meu pai quem me acompanhou. Vivia a tiracolo e havia alguns rituais familiares a seguir. Após os shows, a gente saía para comer, geralmente fora do bar. Aconteceram lances engraçados. De vez em quando, a polícia chegava dando batidas nas boates e eu ia parar no banheiro. Era bom estar com meu pai, embora eu não tivesse medo de nada. Como boa aquariana, sempre fui destemida.

Esta festa durou muitas e muitas noites. Saí do Bacará quando fui contratada pelo Alberico para tocar na casa do lado – no Bottle’s – com o Sergio Mendes, no final dos anos 1950. Foi o maior acontecimento da época. A fila ia da porta do Bottle’s até a Avenida Nossa Senhora de Copacabana. A casa era pequena, bastavam 150 pessoas para lotar. Todos fumando, menos eu, que só fui fumar com 21 anos. Só que onde eu andava tinha tanta fumaça que, aqui pra nós, não fazia diferença. Ai pensei: é guerra? Vou fumar também.

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Easy rider com Dick Farney

Quando estava no auge do sucesso, na crista da onda, muito elogiada pela imprensa, curtindo cantar como convidada especial do Jorginho Guinle em seu clube particular de jazz no Copacabana Palace (parêntese para o Jorginho: era um verdadeiro gentleman, meu superfã, não esqueço do dia em que beijou a minha mão), apareceu em minha vida outro homem cheio de charme e beleza, talvez o mais belo e elegante que conheci: Dick Farney.

Ele fez um assédio geral à família. Chegou sem avisar, bateu à nossa porta, que mamãe abriu depois que vislumbrou aqueles olhos azuis pela portinhola, e com uma conversa mole e muito bem-educada, encostou meus pais na parede. Disse que me queria para crooner da sua orquestra itinerante, mas antes teria que convencê-los pessoalmente de que aquela era a melhor das ideias. Papai caiu na lábia do Dick, mas mamãe atacou de interrogatório: que orquestra era aquela, de onde era e para onde ia, quantos músicos tinha, etc. A cada resposta do Dick, contrapunha um impedimento. Disse-lhe que – mesmo que eu desejasse participar daquela aventura – seria impossível, porque eu tinha que concluir meus estudos, tinha planos de fazer História da Música e aquela vida de cantora tomava proporções muito grandes, estava ficando muito complicada, eu já gravara um disco, oito prêmios como cantora revelação, não seria possível continuar naquele ritmo.

Dick usou então um argumento engraçado e lisonjeiro ao mesmo tempo: explicou que o maestro Erlon Chaves tinha mandado me buscar não porque em São Paulo não houvesse excelentes cantoras, mas porque ele precisava de alguém com meus princípios, pois, do contrário, ia ser um deus nos acuda: a moça que entrasse no grupo dez dias depois estaria namorando o primeiro trompete, depois iria trocá-lo pelo segundo sax, eventualmente poderia vir a querer o pianista e assim por diante..., até passar pelos 25 músicos dentro do ônibus... Aí foi a vez de papai corroborar com a posição da mamãe: definitivamente, a Lenizinha não iria.

Dick Farney não desistiu. Prometeu mundos e fundos: não haveria limite de cachê, eles pagariam o que fosse necessário para me ter na orquestra. Fariam o que meus pais pedissem. Então, mamãe tomou a decisão: eu iria se um deles fosse junto, era uma condição sine qua non. Dick aquiesceu, garantindo que eu seria a estrela maior da orquestra, trabalharia em lugares onde haveria muito dinheiro circulando, com shows dia sim, dia não, tudo de primeira. E assim foi.

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Era um ônibus grande, confortável, que nem aqueles que a gente vê nos filmes americanos, com o nome da orquestra pintado nas laterais. Dentro, eu era a única mulher. Não me lembro se o nome do grupo era Orquestra Dick Farney, em português ou em inglês. Mas me lembro perfeitamente do Dick metido em um smoking elegantérrimo. Os 25 músicos não eram nada perto dele, de tão lindo que era. E ali é que estava o perigo, eu nem olhava muito para o lado dele, com medo de desmaiar. Durante um ano e meio tudo correu maravilhosamente bem, Nossa Senhora! Até hoje, quando faço shows em lugares por onde passei com a orquestra, as pessoas querem me contratar. Nós nos divertimos muito, podem acreditar...

Dick Farney

Pagina anterior: Cartaz Dick Farney e sua orquestra

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Com Dick Farney, uma elegância e tanto

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O Tamba Trio e a traição de Hélcio Milito

Eu estava cantando no Manhattan Club, que ficava na Rua Vieira de Carvalho, em frente ao Kilt Club. O lugar era conhecido como Beco do Joga a Chave, Meu Amor. O trio que me acompanhava – Tenório Jr., piano; José Alves (Zé Bicão), baixo; Milton Banana, bateria – ia ao Chile participar de um festival de jazz. Por isso, resolvi convidar Octávio Bailly Jr., baixo acústico; Hélcio Milito, bateria; e Luiz Eça, piano, para tocar comigo. Tínhamos apenas uma semana para criar alguma coisa e estrear. Mesmo assim, eles pediram tempo para pensar. O lugar, de propriedade de meu amigo Saraiva, era pequeno, porém jeitoso, e o ambiente, muito nobre. Foi, portanto, em 1962 que surgiu o Tamba Trio em sua primeira formação, porque antes não tinha nem tamba nem trio. Aquele pessoal ia pra noite era para namorar as fabulosas dançarinas trazidas por Carlos Machado do Teatro Maipú de Buenos Aires. Então, pensei: por que não vir tocar comigo no Manhattan Club?

Hélcio chegou com ¼ de bateria – que era a tamba. Logo de saída avisei disse que não queria que o conjunto se chamasse Leny Andrade e o Tamba Trio. Poderia até ter sido Tamba Quatro, é verdade. Mas por essas coisas do destino, ficou sendo Tamba Trio e pronto. O estouro foi imediato, com muitos flashes pipocando em nossa cara e manchetes nos jornais. Com todo aquele talento junto, arranjos vocais e instrumentais de Luiz Eça, foi fácil botar fogo no Rio de Janeiro.

Quando estávamos no auge, auge total, o Hélcio recebeu umas três ou quatro propostas e foi atrás delas arrastando os demais músicos. Despediu-se de mim pelo telefone. Faço questão de contar esta história. Aqui ou em qualquer outro lugar onde falem sobre mim ou sobre a minha carreira. Hélcio Milito me despediu pelo telefone quando eu fazia a primeira voz do Tamba Trio e o conjunto era o maior sucesso. Chegamos a gravar um disco compacto duplo para a RCA Victor.

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Durante apresentação

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O efeito daquela atitude caiu sobre a minha família como a bomba atômica em Hiroshima. Tínhamos nos mudado do Méier para ficar mais perto da noite – fomos morar no edifício Maragato, em Copacabana, para facilitar os inúmeros ensaios do Tamba Trio. Eram muitos dias sem dormir, horas e horas de trabalho, muita dedicação e cansaço. Nem gosto de recordar a minha reação. O choque foi tão grande que papai precisou mandar enfiarem meus pés num balde de água quente porque a pressão foi pro beleléu. Ele chegou a pensar, num primeiro momento, que alguém muito querido houvesse morrido. Contei-lhe que o Hélcio tinha dito ao telefone que o Tamba Trio seguiria sem mim, comecei a soluçar e passei dois dias chorando. Passei 48 horas chorando. Não podia imaginar que pudesse existir um ser humano capaz de fazer uma coisa daquelas, daquele jeito. Caramba! Quero deixar bem claro uma coisa: nunca quis ser dona de nenhum conjunto, de nenhum músico, só sou dona da minha carreira. Mas, quem convidou os três músicos para criar o que se chamou Tamba Trio fui eu: Leny de Andrade Lima. Eu merecia pelo menos respeito!

Hoje, passados tantos anos, até consigo rir. Perdoei, embora jamais tenha esquecido. Aquariano perdoa, mas não esquece. Mas naquela época, que dor, meu Deus! Mesmo porque não havia nenhuma necessidade de ter sido daquela maneira. Nenhuma! Eu não era a dona do Tamba Trio e não me comportava como tal, pelo contrário, sentia muito prazer de ter grandes músicos ao meu lado. O show era um escândalo, parava qualquer um em qualquer lugar do mundo. Isso na primeira formação, ainda sem o Bebeto Castilho, que veio depois de tudo isso, com a saída do Octávio.

Meu pai me consolou com sua grande sabedoria: Sabe, minha filha, se você não fosse quem já é, se ainda tivesse começando, eu ia dar um jeito para esse cara nunca mais tocar bateria. No máximo ele iria ficar só olhando. Mas a vida vai lhe dar muita porrada, deixe estar. Porque isso foi pesado. Fique calma, porque você ainda terá muitas oportunidades e viverá grandes momentos com a sua música. No meu íntimo, contudo, eu sempre soube que decepção como aquela não haveria outra igual. Fiquei muito mal mesmo!

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Nada como um dia após o outro

Após o bilhete azul do Tamba, segui para São Paulo. E foi uma maravilha, porque comecei a namorar o Milton de Paula, uma das pessoas mais bonitas que conheci. Ele era de uma família bem de vida do interior de São Paulo. Apaixonado por música, tinha se mudado para a capital a fim de tocar piano profissionalmente. A gente se conheceu no João Sebastião Bar, que era reduto da Bossa Nova em São Paulo. Ele tocava à tarde e achei legal chamá-lo para me acompanhar à noite. Era um verdadeiro profissional, já tinha feito alguns outros bares. Depois de um mês trabalhando juntos, começamos a namorar.

Milton tornou-se parceiro do Geraldo Cunha e acabei fazendo um LP duplo com quatro músicas deles, depois de ter gravado A Arte Maior de Leny Andrade. A Philips queria mais um disco, então aproveitei a oportunidade. O Geraldo era um excelente violonista e o trabalho foi muito agradável, tudo ficou exatamente dentro da minha proposta. Na realidade, nunca gravei para estourar. Desde cedo tive a consciência exata do que fazia, o repertório era selecionado com muito bom gosto, as melodias bem executadas, os arran-jos e as harmonias mais ainda, e as letras que escolhia para cantar tinham que ter um por quê – o caminho sempre foi o mais difícil. Por isso, eu nunca seria popular.

Era tempo dos festivais. Eu revezava com a Claudette Soares nas apresenta-ções no João Sebastião Bar, e o que eu fazia lá era o top de linha em termos de música e cultura. O dono da casa, Paulo Cotrim, fazia questão de manter tudo em altíssimo nível: ambiente, frequência, intérpretes, repertório... Fiquei ali um tempo, muito feliz, quando apareceu um argentino que era apaixonado por meu trabalho e quis me levar para Buenos Aires. Falou sobre o Piazzolla, que havia revolucionado o tango, e de como era efervescente a noite portenha. Insistiu, insistiu, insistiu, minha mãe quase melou a viagem tamanha era a insistência dele, mas acabou cedendo e até foi junto. Lá tudo correu às mil maravilhas. Após o show íamos para o Boca e ficávamos até tarde: minha mãe, Milton e eu...

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Milton de Paula, um lindo piano e pura poesia

Milton de Paula e eu vivemos um romance fadado ao insucesso por vários motivos. Seus familiares jamais aceitariam que ele se casasse comigo, pois pensavam que cantoras eram putas. Isso é bom registrar, porque era exata-mente assim que as coisas aconteciam naquela época. A Claudette, por exemplo, andava com a mãe a tiracolo para não ficar malfalada. Por outro lado, Milton era um tanto possessivo. Não me largava um minuto, no palco e na vida. Deixei-o então ao sabor da família. Ele continuou em Ribeirão Preto, concluiu a faculdade de Administração e casou-se com uma das moças mais ricas da cidade, cuja família era dona de usinas de açúcar. Ele com o café e ela com o açúcar, foi uma combinação e tanto. Assim se passaram os anos. Ele ficou lá casado e eu aqui me casei com o Carmelo Senna, um madrilenho lindíssimo e riquíssimo, cuja história conto adiante.

Certa noite, eu estava fazendo uma temporada no Chico’s Bar, anexo ao Castelo da Lagoa, um dos restaurantes do Chico Recarey, quando o maître chegou dizendo que um cliente do restaurante queria falar comigo. Fui ver quem era e dei de cara com o Milton de Paula, que pediu licença aos amigos e me levou lá fora para uma conversa. Demos uma volta inteira no quarteirão de mãos dadas, absolutamente mudos, num silêncio sepulcral. O nosso reencontro se resumiu nisso. Ele nada disse além do que já tinha falado à mesa. Nem sequer houve um gesto, uma tentativa de beijo, nada. Porém, foi o encontro mais emocionante que tive na minha vida. Um presente. Foi como se ele dissesse que ainda continuava comigo desde os tempos do João Sebastião Bar e de Buenos Aires, e que me amaria para sempre. Que tudo o que nós possuíamos dispensava palavras ou explicações.

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Quando soube que ele havia morrido, tudo ruiu ao meu redor. Senti-me só. Porque uma coisa é você estar separada da pessoa e os demais em sua volta saberem daquele amor ou daquele sentimento que existiu e respeitarem. Outra é saber que aquela pessoa não existe mais. Recordando aquele encontro, lembro-me também de uma música que ele fez para mim, letra e melodia me vêm à cabeça, é incrível como me lembro palavra por palavra, cada vírgula, cada pausa, e a emoção que me assoma é a mesma que sentia lá caminhando naquele quarteirão da Lagoa Rodrigo de Freitas. E me lembro da beleza que ele escreveu para mim: Quero hoje molhar você de pranto e saudade... como se eu fosse a chuva e você a terra virgem. Que sol do amor brilhe em dia eterno. Não venha a noite do talvez. Que a flor viva se conserve sem tempo de cair nem hora de morrer.

Depois de sua morte, apresentei-me em Ribeirão Preto. Numa mesa reser-vada, encontrava-se a viúva de Milton de Paula, os quatro filhos e mais um casal amigo da família. No fim do show fui até lá, sentei-me por alguns instantes, conversei e dei autógrafo. Foram todos delicados e carinhosos. A viúva contou que – apesar dos compromissos que o Milton assumira com os negócios das fazendas – conservara o piano de cauda e não passava três dias sem tocar. Todos na família sabiam, de que maneira exatamente não sei, que Leny Andrade e Milton de Paula viveram uma história de amor eterno. Uma linda história de amor, que não poderia ficar de fora dessas minhas 1.001 noites. Necessito dizer que esse amor, esse afeto, foi como diz o mestre ascensionário Saint Germain: O amor verdadeiro existe, da cintura para cima.

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Estreia internacional em Buenos Aires

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E s t r e i a I n t e r n a c i o n a l

La Noche de Astor PiazzollaInaugurei minha carreira internacional em mi Buenos Aires querida, numa temporada de 20 dias. Estava bombando em São Paulo quando um empre-sário argentino me ouviu e me levou para me apresentar no programa Cassino Philips, o mais importante programa de TV da Argentina, no Teatro Maipú, onde as vedetes rivalizavam em beleza com as parisienses, e, por último, no La Noche, na Calle de Ayuntamiento. Três locais e um único e grande sucesso. Trabalhei muito, mas encontrei um tempinho para conhecer o Boca e comprar um monte de perfumes. Eu sou louca por perfumes e pela Argentina.

Fui com a minha mãe, é claro. E lá estava em Buenos Aires, cantando no La Noche, acompanhada do Milton de Paula, um baixista e um baterista argentinos, cujos nomes já não me lembro, músicos fantásticos. Fizemos um baita show. Quando faltavam umas três músicas para o fim da apresen-tação, chegou ele, o dono da boate: Astor Piazzolla. Ele se apaixonou ao me ouvir cantar. Não por mim, mas pela Bossa Nova, aquele improviso, tudo muito relax e cantado em português. Consigo impactar com o meu comporta-mento em cena, porque quando canto estou inteira no palco. É como se o teatro, o bar fosse meu, como se estivesse na sala da minha casa. Não tenho nenhum problema com o stage, porque as audições de piano me deram esse background – e a outra parte que faltava aprendi fazendo bailes dançantes. Então, falo com a plateia como se estivesse me comunicando com você. Faço graça, comentários, fico solta, muito à vontade. A única vez que decorei textos foi no Gemini V. Eram scripts do Ronaldo Bôscoli e do Miele. De resto, sempre falei de improviso.

O que o Piazzolla fez naquela noite foi inesquecível. No fim do seu show, disse para os presentes: Comprei um pacote confiando no meu agente e amigo. Ele trouxe essa jovem revolução musical brasileira para se apresentar em três lugares em Buenos Aires, sendo a última esta aqui, por 50 minutos.

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Porém, ninguém a deixa ir embora. Eu quero agradecer à sua mãe, ao excelente pianista que a acompanha e a ela própria, Leny Andrade, por este presente. Prestem atenção nesta baixinha, porque vocês ainda vão ouvir falar muito dessa menina.

Depois de me apresentar, acomodei-me em uma das mesas com minha mãe e Milton e ficamos ouvindo o sexteto do Piazzolla durante uma hora e vinte. Achei que não fosse aguentar uma hora de tango. Era muito, pensei, até que ele atacou com o seu bandoneón, um dos pés em cima de um banquinho. Era outro tango, algo nunca dantes ouvido, misturado com jazz, com clássicos como Chopin e Tchaikovsky. Um poder incrível que aquele homem tinha de terminar cada música como ela tem que ser terminada. Aquele segredo que sei desde criança: as músicas têm que ter final, o público tem que ser arrebatado ao final. Às vezes os intérpretes não se preocupam com isso e o final fica sem impacto, assim como faz o Caetano, mas isso é detalhe, pois Caetano é um caso à parte, pode fazer o que quiser. A verdade é que os boleros são temperamentais, os tangos também, e ambos precisam de um grand finale.

Eu já tinha bastante conhecimento de música e fiquei boquiaberta ouvindo Piazzolla. Comentei com minha mãe: Como é mesmo isso aí, mãe? Que homem é esse? Ele era um espetáculo! Escandalizando as pessoas, cho-cando. Como um cara ousava chegar numa coisa tão tradicional como era o tango e fazer aquela modificação tão incrível? Piazzolla colocou o jazz no tango. Assim como os brasileiros fizeram com a Bossa Nova. Como músico que sou, afirmo que é difícil encontrar uma evolução melódica, uma harmonia, que se junta e modifica uma música como aconteceu com o jazz no tango argentino e com o jazz na nossa Bossa Nova. Encontrei-me com Piazzolla algumas outras vezes em São Paulo. Sua atitude comigo sempre foi a de um fã.

Estreia internacional em Buenos Aires

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Do Tabuleiro da Baiana para o Porão 73

Uma semana depois, me ligou o Mario Castro Neves, irmão do Oscar. Ele disse que tinham derrubado o Tabuleiro da Baiana, no Largo da Carioca, e a prefeitura estava limpando o terreno para erguer uma tenda gigantesca no local, um teatro de arena. De imediato disse que topava cantar ali. Depois, pensei: um teatro de arena, no centro da cidade, eu acostumada com coisas pequenas, gente mais engomada, ia ser complicado. Mas encarei o desafio e montamos o Rio, Bossa e Balanço: Mario Castro Neves, piano; Fernando Maxnuk, vibrafone; Edson Lobo, contrabaixo; e Antonio Carlos Leite, bateria. Um som incrível. Três bailarinos dançavam quatro coreografias de Joás Lopes. E o texto do espetáculo era da minha grande amiga Regina Werneck. Ficamos quase um ano em cartaz quando apareceu uma proposta fantástica de levar o show para a Bahia. Fui e fui e voltei da cor de uma Malzbier. Minha mãe nem me reconheceu. Na Bahia conheci um músico chamado Alcivando Luz e mais um monte de pessoas maravilhosas. Fiquei enlouque-cida com aquela terra. Foi uma festa e meia. Depois de três meses a gente não queria sair mais de lá. Fizemos muito sucesso. Eu não lembro o nome onde nos apresentávamos, mas era um lugar espaçoso, necessário por causa das coreografias. Eu me apaixonei pelo Alcivando Luz e ele nunca soube.

Ao chegar de Salvador, soube que Miele e Ronaldo Bôscoli tinham passado lá em casa para apanhar a foto que seria colocada na porta do Porão 73, onde eu deveria estrear um show. Já havia um ensaio marcado para as 10 da noite do dia em que cheguei, com o Ronie Mesquita, bateria; Octávio Bailly Jr., baixo; e Luiz Carlos Vinhas, piano. Pery Ribeiro e Leny Andrade vozes. Direção e produção de Miele & Bôscoli. Tive que atacar com as tonalidades do Pery. Saí do ensaio às 8 da manhã do dia seguinte e, às 22 horas, nasceu o Gemini V. Tive poucas horas de ensaio, pouquíssimo tempo para pensar nas músicas para eu cantar sozinha – porque o restante já estava feito e não havia como mudar. Foi mesmo assim: 5, 4, 3, 2, 1 e a cápsula subiu...

Programa Rio, Bossa e Balanço

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A C o n q u i s t a d o M é x i c o

Um deslumbramento e tanto

Fui para o México com o Gemini V a convite do Rogelio Villarreal Vellarde e lá fiquei por quase seis anos. Rogelio era um empresário da noite que tinha vindo ao Brasil em busca de atrações para o seu novo espaço situado no bairro Zona Rosa – o El Señorial. Ficava na Calle de Hamburgo, um verda-deiro maracanãzinho situado no coração da capital mexicana. O complexo reunia o Leopardos, discoteca que tocava músicas estrangeiras com dois grupos de Londres; o Perla Negra, bar pequeno, que comportava cem pessoas no máximo; e o Elefante Rosa, com capacidade para 350 pessoas, onde nos apresentávamos. Que delícia!

O incrível é que, quando o Rogelio nos convidou, nenhum de nós acreditou. Achamos que fosse conversa fiada, mesmo ele se apresentando como gerente-geral da cadeia internacional Western. Vocês vão morar no melhor e mais chique lugar do México, que é a Zona Rosa, prometeu, seguindo para São Paulo de onde voltaria três dias depois com o contrato na mão para a gente assinar. E sabem o que ele tinha ido fazer em São Paulo? Assistir ao espetáculo de Elis, Jair Rodrigues e Zimbo Trio. Acho que fez uma grande diferença ele ter visto o nosso show no Teatro Princesa Isabel, completo, com mais de uma hora de duração, muito bem cuidado, luz e som impecáveis.

O México fervia. Tinha uma vida noturna agitada. Estava cheio de franceses, italianos, espanhóis. Homens poderosos desfilavam pela cidade em seus carrões. Cacifes muito altos, terno e gravata e belas amantes. Vivi na alta-roda e tive amigos importantes. Com uma semana lá, comecei a falar espanhol porque tive que me virar para comer, falar com a camareira do hotel, pedir para lavar a roupa enquanto não me mudasse para um aparta-mento. Os demais do grupo já moravam em apartamentos maravilhosos com suas mulheres, cercados do maior conforto. Fizeram tudo o que sonha-ram, o que não poderiam ter feito no Brasil, pois o que imperava por aqui era o iê-iê-iê, um tipo de música que não era a nossa praia. Meu irmão Dudu, que sempre se comunicava comigo, nem se referia à Jovem Guarda quando falava sobre o movimento musical que rolava na época: era iê-iê-iê. E me aconselhava a ficar no México, onde eu estava bem, segura, recebendo em dólar, tinha carro importado e vivia com todo o conforto. Até Jacuzzi tinha no meu apartamento. Eu tomava banhos na minha Jacuzzi na alta madrugada. Era a própria Rainha de Sabá!

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Era 1º de agosto de 1966 quando estreamos. Sem o Pery, que havia ficado no Rio de Janeiro por causa de um filme que fizera com o Jerry Adriani, que por sinal fez muito sucesso. Ao montar o repertório com o radinho de pilha sintonizado numa emissora local, percebi que no México não se tocava quase nada de música brasileira. Combinei com o trio: vamos fazer uma rodada bem graciosa, só de Bossa Nova, para tocar muito gostoso, como sempre e, aos poucos, introduziremos outras coisas. Quando o Pery chegou, o show ficou completo. A estreia foi um verdadeiro espetáculo. O Rubem Fuentes, presidente da RCA Victor à época, que morava numa sofisticada residência em San Angellin, nos convidou para uma festa onde nos apresentou a todo o meio artístico da cidade e muito mais: atrizes e galãs, políticos, gente da sociedade. Ele colocou dois carros aguardando para nos conduzir até a festa após o show. Só troquei os sapatos e fui, de vestido comprido. Era uma linda casa de dois andares, com piscinas. Lá estavam a nata artística, uns dez licenciados do governo, o filho do presi-dente, o filho de não sei quem e embaixadores de vários países. Muitos conjuntos de músicos tocando e, para fechar com chave de ouro, os Mariachis Vargas, os melhores do México, chegariam às três da madrugada. Eu andava de namorico com um cantor chamado Pepe Soza, tinha-o avisado para ir ao show preparado, pois desconfiava que haveria recepção na casa do Rubem Fuentes. Contudo, Octávio, Ronie e Luiz Carlos condenaram o fato de ter convidado o Pepe. Disseram que eu não devia levá-lo. Sabem por quê? Porque o Pepe era uma criança linda. Um menino de família, maravi-lhoso, superbem-vestido com o seu smoking preto (acho que estava com a camisa aberta e um colar). Não dei bola e fui logo dizendo: não se metam na minha vida, porque não vai dar certo. Avisei só por consideração, já que iria em outro carro, com o Pepe.

Os Mariachis Vargas chegaram muito mais tarde, alguns convidados já tinham ido embora, outros estavam bêbados. Depois das desculpas pelo atraso, eles começaram a tocar, nós todos sentados em volta da piscina. Bem trajados, com seus chapéus típicos, o suprassumo, os melhores do país. De repente, o primeiro trompetista vira-se para o garoto que estava comigo e o convida a cantar. Ele hesitou, mas depois de o Rubem convencê-

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lo, deu o tom, abriu a santa boca e cantou como um deus. O Rubem ficou maravilhado e imediatamente deu um cartão ao Pepe, dizendo que era da RCA, onde ele teria um encontro marcado para as 16 horas da quarta-feira seguinte. Adorou saber que ele tocava violão e baixo, e ele passou a se apre-sentar lá no mesmo complexo onde eu cantava com o Gemini V. O moço subiu como um foguete, um buscapé. Seu nome é Jose Jose. Nos 15 dias subsequentes, a gravadora trabalhava agitada, fazendo os trajes para capa e contracapa do disco que estava sendo feito e levando o jovem para cortar os cabelos. Jose Jose ficou conhecido como o Roberto Carlos do México. Na última vez que o encontrei, fui levada por um motorista especial a uma convenção da Petroleo Mexicano (Pemex) e lá tinha até barricada, porque o povo avançava e agarrava ele. Eram oito seguranças, tinha proteção para entrar e sair do camarim. Esse era o meu namorado. Uma criança maravi-lhosa! Uma criança que vou acreditar no que ele me disse: que fui sua primeira mulher. Esta história do Pepe não significa que eu goste de garotos, mas eles se atraem muito por mim. Às vezes até me sinto mal. Eles vão se chegando e eu percebo que, se eu quiser, posso terminar o show e levá-los para casa. Se eu quiser...

Isso foi muito interessante, porque na mesma época de nosso contrato, a Rosana Tapajós, que foi uma das modelos mais bem pagas do Brasil, também estava no México. E cantava um pouquinho. Morava no mesmo prédio que nós onde havia um apartamento para o Ronie e o Octávio, um para o Pery e o Luiz Carlos, um para mim e outro para ela. O prédio era nosso, em plena Zona Rosa. Rogelio se apaixonou por aquela mulher semi-louca que era a Rosana. Teve uma noite em que ela jogou uma cadeira de seu apartamento, fazendo um showzinho dos seus para o Rogelio. Esse era o seu jeito, tenho muitas saudades dela, adoraria vê-la. Nós nos encontra-mos em algumas temporadas em Acapulco e pintamos o 7, o 14 e o 21. A gente tomou conta do país. Enquanto eu cantava a Rosana desfilava e dizia assim: Caramba, você canta tudo isso, e eu só faço charme e o povo adora, que gente linda, que gente maravilhosa. Que momento que estamos vivendo. O México é apaixonado por tudo o que é do Brasil, até no futebol os mexicanos não se importam de perder, se for para time brasileiro.

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Chico Morán Quartet e Leny

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Gemini V – sucesso estrondoso no México

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O desmanche do Gemini VO Gemini V era nós cinco juntos: o Bossa 3, Pery Ribeiro e eu. A temporada no México durou 14 meses. Um belo dia, ou num mau dia, Pery Ribeiro decidiu ir cantar sozinho no Perla Negra – que ficava ao lado, exatamente ao lado do Elefante Rosa. E acabou com o nosso conjunto.

Ele e o Vinhas foram os responsáveis por acabar com aquela joia que era o Gemini V. Seus egos inflaram demais, eles não aguentaram a pressão do sucesso. Nenhum dos dois soube privilegiar o grupo. Eram diferentes de mim que não consigo ficar sozinha. Acho bobagem fazer de conta que se é feliz sozinha. O sucesso quando compartilhado é uma das melhores coisas da vida. O desmanche do Gemini V foi uma insanidade. Inexplicável. Só tínhamos conhecido o sucesso. Vivemos momentos maravilhosos, tanto no Rio de Janeiro, no Porão 73 e no Teatro Princesa Isabel, quanto na Cidade do México.

Lembro-me que, aqui no Brasil, a duração do espetáculo foi aumentada para uma hora e pediram ao dono da casa para prorrogar o contrato por mais um ano. Gravamos inclusive um LP de 1 hora e 20 minutos ao vivo, com um público enlouquecido dentro do estúdio. O Leny Andrade, Pery Ribeiro & Bossa Três é um disco de carreira, sucesso até hoje, nunca deixou de vender. No México, não foi diferente. O sucesso foi avassalador. O Rogelio teve que construir um jardim de inverno para abrigar de uma forma chique as pessoas que ficavam à espera para nos ouvir cantar. As noites eram de casa lotada, as pessoas tinham que aguardar a entrada confortavelmente. Foi montado um verdadeiro complexo para nos atender. Meu camarim era cor-de-rosa, com tapete de dois centímetros de altura, muito conforto, muita mordomia. O dinheiro jorrava. Com um mês de trabalho todo mundo já tinha carro importado. Se tivéssemos continuado, hoje estaríamos rodando o mundo exatamente com a mesma formação: piano, baixo, bateria e dois cantores. O Gemini V tinha o nível de um Black Eyed Peas. Era uma máquina de fazer dinheiro, semelhante a um Rolling Stones, um Sergio Mendes, que continua com o Brasil Six to Six pelo mundo. Mas brasileiro fora do País acha que faz cocô de ouro e xixi de prata. Aí a casa cai e não sobra nada.

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A notícia de que o Gemini V tinha acabado causou perplexidade, mas a vida continuou. Não desejo falar mais do que o necessário sobre o que achei e continuo achando da atitude do Pery Ribeiro em consideração à memória de sua mãe. Tenho a Dalva de Oliveira na conta de a maior cantora nascida em território brasileiro. O sentimento e a afinação dela eram únicos, sou louca por ela. Trago a história à tona porque ela é verdadeira e a minha versão precisa ser contada para que as pessoas saibam que não foram somente flores que carreguei. Também tomei choques, fiquei perplexa, vi a pobreza espiritual das pessoas, vivi coisas que me machucaram muito! Claro que as pessoas não são todas iguais e boazinhas. Mas posso esperar um mínimo de ética profissional daquelas que convivem comigo. Qual teria sido o problema que não pôde ser conversado entre nós na época? Jamais saberei. A mim nada disseram e eu vi o meu companheiro de cena ir cantar em uma casinha para 80 pessoas, com um conjunto mexicano chamado Luiz Ocades Trio. Eu fiquei cantando na casa ao lado para 350 pessoas por noite, em cada entrada.

Acredito que Pery Ribeiro e Luiz Carlos Vinhas não tinham consciência do que estavam fazendo. Desconheciam o poder daquela abertura montada por ele mesmo, mais Luiz Carlos, Octávio e Ronie, que executávamos todas as noites deixando o público sem ar. Era um poder incrível de um trio incrível, com duas vozes incríveis na frente. Dizem que a minha voz e a do Pery juntas continuam imbatíveis. Então, para se ter desfeito uma coisa dessas, era preciso não ter noção de nada, nada mesmo. Perguntam até hoje sobre o Gemini V. Até hoje. Se não vou mais fazer alguma coisa com eles. Não sinto vontade de repetir nada dessa história. Quem viu, viu; viu até oito vezes porque teve muita gente que saiu do teatro e entrou na fila para comprar outro ingresso. Para quem não viu, pena!

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Mais traições no México

Quinze dias após o Pery Ribeiro implodir o Gemini V, Silvinha, a mulher do Luiz Carlos Vinhas, aterrissou no México com o filho e aquele nariz para cima. Ela sempre sofreu de apoteose mental, que nada mais é do que complexo de inferioridade. Foi fazer a cabeça do marido, induzi-lo a montar um grupo com outros músicos, na expectativa de ganhar muito mais dinheiro. Pensava que, sendo ele uma estrela, iria estourar. Bobagem. Nós já tínhamos estourado. Já éramos o maior sucesso local. O presidente da Capitol mexicana gravara um disco com o Bossa 3. Eu mesma gravei um disco solo, não tínhamos mais para onde ir. O México de então não era lugar que se entrasse com esquema armado a não ser que se fosse uma Maria Felix, que, aliás, sempre estava lá nos assistindo – assim como os maiores artistas do país e do estrangeiro. As esperanças da Silvinha ruíram. Os segredos da saída do casal do México ficam comigo. Sou uma pessoa misericordiosa.

Seguindo a sugestão dos demais músicos, Ronie e Octávio, falamos com Rogelio e importamos o Osmar Milito, irmão do Hélcio, e montamos um som espetacular com ele. Sem cantor, só eu com o trio. Sequer pensamos em dar um novo nome, apenas criamos um repertório divino e seguimos em frente. Numa noite, durante um intervalo, estávamos sentados perto do jardim de inverno da casa e o Octávio Bailly Jr. veio falar comigo. Disse que nós íamos para Las Vegas. Exclamei: Que maravilha, que grande notícia. Um de meus maiores sonhos é cantar em Las Vegas! Aí, ele explicou que nós eram apenas eles, não me incluía. O trio iria tocar num lounge de um grande cassino a convite de um cara e já estavam todos prontos para zarpar. Ouvi aquela conversa toda e até hoje não sei explicar por que não perguntei na hora a razão de eu ter ficado de fora. Acho que foi por educação mesmo. Apenas desejei boa sorte para todos e fui para o camarim. Diante do espelho,

disse para mim mesma: Viu, Leny? Você não quis ir com o Carlos, agora vai ficar aqui sozinha, na mão. Carlos era o empresário de Nat King Cole e grande acionista da Capitol americana, que me assistira no Gemini V e me convidara para ir aos Estados Unidos. Disse-lhe que só iria levando o conjunto todo. Ele pensou dois dias e voltou insistindo que o convite era só para mim e mostrando a oportunidade que eu estava deixando passar. Mas não mudei de ideia.

Diante daquela nova traição, também chorei. Porém menos. Decidi que não voltaria ao Brasil. Estava muito bem, tinha acabado de renovar meu visto e não precisava deles. Fui falar com o Rogelio, em seu escritório manifestando meu desejo de cantar em outro lugar que ele fosse proprietário – Rogelio era o gerente-geral da cadeia Western no México, integrada por bares, hotéis e aviões. Ele não titubeou e reagiu com um simpático Fato consumado. Fui cantar no bar do Hotel Alameda onde se apresentava o Breno Sauer Quartet, formado por músicos gaúchos que fizeram muito sucesso no México. O líder do conjunto era Breno Sauer, acordeonista e vibrafonista, um instrumentista muito criativo. Ele introduziu o vibrafone na música brasileira, com a influência jazzística do Art Van Dame. Os demais músicos eram Adão Pinheiro, piano; Ernoe Eger, baixo; e Portinho, bateria. No Brasil eles fizeram uma bela carreira, tocando músicas do repertório internacional em bailes. Gravei um LP de Bossa Nova com eles, Leny Andrade e Breno Sauer Quarteto, com o selo do Rogelio, o RVV. Nós nos apresentamos no Alameda durante quase dois anos e fomos muito felizes.

Cinco anos depois de eu estar no México, me aparece o Roberto Nascimento, compositor e violonista. Eu já havia gravado uma música dele e só. Ele baixou de oportunista, ficou morando um mês no meu apartamento sem ser convidado e, no final, ainda me roubou o quarteto na mão grande, como bom espaçoso que era. Dei-lhe guarida, abri-lhe várias portas, ele se deu muito bem nas empresas de jingle do país. E um belo dia veio me dizendo que tinha um contrato muito bom para o quarteto. Lá se foi o quarteto do Breno, atrás das novidades em dólar do Roberto Nascimento: um contrato de seis meses se acabou em apenas duas semanas. Então, depois de ficar de cara inchada de chorar mais uma vez, eu disse: chega de traição. Parei por aqui! Larguei todos para trás e fui cantar no melhor jazz club da Cidade do México: o Riguz. Ali fiz o meu PhD em jazz.

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O despertar de uma deusa

Durante um bom tempo meu nome brilhou no enorme letreiro luminoso da mais importante casa de música da Cidade do México. Engraçado é que fui lá uma noite para ouvir um som e curar um pouco a dor do meu coração, não para pedir emprego. Todos me rodearam, adorando a visita. E quando contei que tinha parado de tocar no outro bar, perguntaram o que eu achava de tocar com aquele sexteto. Foram dois anos e três meses e eu me espa-lhei. Era um grupo e tanto. Se eles tocassem aqui hoje, todo mundo ficaria de queixo caído. Eram músicos em dia com o verdadeiro e bom jazz, de quem sabe tocar, de quem escreve música, de quem faz arranjo. Eu cantava músicas brasileiras que todos adoravam – músicos e plateia. Viramos a grande sensação da casa. Certa vez, convidamos uns jornalistas, uma turma mais gostosa e interessada em música. Fizemos um bom relacionamento com eles, chamávamos para festejar aniversários no bar, aquelas ações de relações públicas. Tudo era feito pela Helena Julian, proprietária da casa, com o Chilo Moran, o melhor pistonista do México. Acabei indo morar com a Helena, que era também a namorada do Chilo. Ela cantou jazz durante muitos anos num trio com duas irmãs só de vocal. O convite para morarmos juntas foi muito simpático. O apartamento era enorme, com quartos separados por um banheiro muito grande. No Riguz, Helena não cantava. Cuidava da recepção e da divulgação.

Quando olhei o calendário, já tinham se passado quase seis anos. Estava com saudades da minha família. E assim, no dia 10 de outubro de 1972, com a cara inchada de chorar de saudades antecipadas do México, vim para o Brasil, às vésperas do aniversário da minha mãe. Do México, guardo as melhores lembranças. Muitos grandes amigos e uma afilhada, Maria Guadalupe, filha do Portinho e da Haydée. O México foi o ponto de partida de onde saí para cantar em todos os países da América Latina e onde, descobri agradecida, me chamam de Deusa.

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M u i t o s C o n t r a t o s e u m C a s a m e n t o

Efervescência na noite carioca

De volta ao Brasil minha vida de crooner seguiu como um barquinho em mar azul e vento de popa. Além das muitas viagens pelos festivais de jazz, aqui e pelo mundo.

Logo que cheguei do México, uma surpresa: a volta do Pery Ribeiro era aguar-dada para a semana seguinte. Aliás, os músicos que zarparam do México rumo a Las Vegas não se deram tão bem quanto esperavam. Acabaram em Los Angeles acompanhando Gracinha Leporace, mulher do Sergio Mendes. Do ponto de vista artístico, tudo bem. Mas a festa durou pouco por causa dos egos. Muito sucesso na música, mas eram tantas as discordâncias na hora de tratar dos negócios que advogado algum conseguia conciliar.

No Rio de Janeiro Miele e Bôscoli conversavam comigo sobre a possibili-dade de, com a volta do Pery, montarmos um show que se chamaria Gemini 5 Anos Depois. Assim foi feito. Repertório novo, músicas de Tom Jobim, Milton Nascimento, Marcos Vale, Ivan Lins e outros. Estreamos no Teatro Santa Rosa. Gravamos o show pela Odeon, um trabalho primoroso, com capa de Juarez Machado. Novamente estouramos. Tudo corria às mil maravi-lhas quando a tristeza foi tomando conta de nós todos: Dalva de Oliveira, mãe amantíssima do Pery e nossa muito querida amiga, desenganada, se despedia da vida. Saíamos do teatro para o hospital e do hospital para o show. Com sua morte terminamos a temporada antes do tempo previsto.

Era grande a vitalidade da noite carioca à época e não me faltou trabalho. Ronaldo e Miele, por sua vez, faziam de tudo para eu não voltar para o México. Bons tempos o do Mons. Pujol, onde eles eram responsáveis pela

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direção artística. Muita gente importante passou por lá: o maravilhoso Lennie Dale e seus Dzi Croquettes, Johnny Alf, vindo de São Paulo, o trio de Pedrinho Mattar e eu, e muitos outros. Flávio Cavalcanti, no auge de seus bem-sucedidos programas de TV, jantava todas as noites no Pujol com seus famosos jurados. Foi lá que apresentei Vera Fischer a Perry Salles. Certa noite, ela visivelmente abatida porque surpreendera o seu amor (o maestro Erlon Chaves) jantando em companhia de outra no andar de cima da boate, desceu a escada em prantos e correu para o banheiro. Penalizada, fui atrás dela e, com a intenção de ajudá-la, falei: Tenho um grande amigo aqui que é um gentleman. Vou pedir a ele que fique com você até eu terminar de cantar. Pedi ao Perry Salles que tomasse conta dela, e ele assim o fez pelo resto de sua vida.

As noites no People eram gloriosas. Certa feita, inventei uma temporada anticarnaval com meu amigo Zé Galinha, que além de bonito, com aqueles olhos verdes, era de uma delicadeza sem igual, sempre disposto a concor-dar com o que eu quisesse fazer em sua casa – e eu queria nada mais nada menos do que a casa inteira durante os três dias de carnaval. Três entradas por noite. Tinha gente saindo pelo ladrão. Numa daquelas noites, estava de olho fechado cantando Wave, quando na segunda parte da música escutei uma linda voz cantando em inglês ao meu lado. Abro os olhos e vejo o Tony Bennett. Terminamos a música dançando! Coutinho, seu íntimo amigo, lhe dissera onde ele me encontraria cantando naquele carnaval.

Em outra ocasião, também durante o carnaval, apareceu um moreno claro de cabelo encaracolado falando um português atravessado, que disse quando passei por ele: Leny, eu vou lhe levar para a Holanda. Mais uma vez, não acreditei. Ele se chamava Jean Tupang. Era proprietário da maior loja de CD situada em uma cidade próxima a Amsterdã. Amigo íntimo dos donos da famosa Timeless, gravadora de jazz. Foi assim que cheguei na Holanda. Ele levou a mim e ao Trio B3 – João Carlos Coutinho, piano; Lúcio Nascimento, baixo; e Adriano de Oliveira, bateria. Laís Pires, a quem chamo de filha e ela a mim de mãe, tornou-se nossa produtora/guia/advogada. Este grupo, durante 16 anos, participou dos maiores festivais de jazz do mundo inteiro. Temos vários discos, inclusive um só com standards americanos, gravado na Holanda pela Timeless (Embraceable You) e no Brasil pela Som Livre. Participei de projetos interessantes no País, com destaque para o Pixinguinha – promovido pela Funarte. Fiz várias capitais brasileiras com o Emílio Santiago e a Elza Soares.

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Toots Stileman e Leny, na Holanda, com João Carlos Coutinho, Adriano de

Oliveira e Laércio Nascimento

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Carmelo Senna da Cunha, meu marido

Casei-me uma única vez na vida, com Carmelo Senna da Cunha. Conheci meu marido ao final de um Projeto Pixinguinha. Chegando de uma dessas viagens, fui dar um jeito no cabelo e, na vinda do cabeleireiro, com a cabeça envolta em um lenço, encontrei o Theo, meu secretário, e o Carmelo conver-sando com a minha família. Olhei para meu pai com espanto, porque ele não parava de falar castelhano. Então, ele me apresentou ao Carmelo, explicando que era madrilenho. Conversamos fiado, disse-lhe que gostaria de conhecer melhor Madrid porque passara por lá muito rapidamente durante um festival. De cara gostei do jeito do bicho. Combinamos nos encontrar no dia seguinte, no Teatro Rival, onde Pedrinho Martins, estilista famoso, me concederia um prêmio. No dia seguinte à entrega do prêmio, tive novo encontro com o Theo e Carmelo estava lá outra vez. Foi o suficiente. Não nos largamos mais.

Carmelo não tinha a menor ideia de quem era a cantora Leny Andrade. E isso foi o que me pegou, teve um significado todo especial, guardado até hoje com muito carinho: meu marido, o único homem com quem me casei, apaixonou-se pela mulher Leny de Andrade Lima, sete anos mais velha do que ele, e não pela cantora famosa. A adoração dele por mim e pela minha família – mamãe, meu pai, minha madrinha, meu irmão Dudu – me cativou. E a família dele tem adoração por mim até hoje. Posso mandar um telegrama e dizer que estou chegando na casa deles, em Madrid, e ir tranquilamente, só com a roupa do corpo, que serei bem recebida.

A vida para Carmelo era sempre festa. Ariano do dia 9 de abril, filho de uma mãe riquíssima, era um jovem impulsivo e impossível de ser controlado. Casei-me com ele em 25 dias porque seu visto ia vencer. Antes da cerimô-nia, porém, entramos no primeiro motel da subida da serra para Petrópolis e só saímos de lá três dias depois. Minha mãe ficou louca com o meu sumiço. Pelo telefone, eu ia tranquilizando Dona Ruth, sem dizer onde estava exata-mente, só explicava que logo chegaria a Petrópolis. Com Carmelo. Ela achou tudo aquilo um absurdo. Na volta da aventura do motel, tratei de correr atrás de um monte de coisas relacionadas com o meu trabalho, porque tinha largado tudo. Chegara de viagem e tinha sumido de casa. O telefone tocou. Era Carmelo dizendo que precisava me ver, estava mal porque o cachorrinho

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Dona Ruth, Carmelo e Leny, Gustavo e Matilda, a mãe do noivo

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Leny e Carmelo com os familiares na sacristia da Igreja da Imaculada Conceição, no seu casamento

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que ele trouxera de Madri fora atropelado e teria que ser sacrificado, pedia que eu o encontrasse em seu ateliê em Laranjeiras. Carmelo era um artista, esculpia cristal. No ateliê, falou: Gordita, não puedo mais viver sem você. O que vamos hacer? O meu visto vence em um mês e dez dias. Terei que voltar e não quero. Quero ficar aqui no Brasil. Ele admitia ser um bon vivant, de família rica, solteiro e andarilho, mas até aquele momento não tinha tido nenhuma razão para mudar, pois ainda não me conhecera. E pediu-me em casamento. Achei que queria casar-se por causa do visto, mas ele garantiu que não, que era a sério, que seria no civil e no religioso. Aí, eu disse sim!

Minha família não estava preparada para aquela bomba, até porque eu sempre afirmara que não me casaria, iria somente cantar na vida, onde quer que fosse, sem nada que me limitasse. Eu seria do mundo, não poderia ficar tomada de amores por ninguém. E se o cara fosse ciumento? Mas Carmelo não tinha ciúmes de nada. Nem dos fãs nem dos amigos que me agarravam e me davam beijos efusivos. Nada! Ele só queria era uma liberdade exage-rada para ele, que eu logo percebi que não era para agir no terreno das mulheres. Tinha tranquilidade, sabia que poderia ir a qualquer lugar com aquele homem bonito que não corria perigo. Fui muito feliz por cinco anos. Foi muito bom.

Atribuo o fim de meu casamento à minha própria falta de vivência. Porque se eu fosse um pouco mais evoluída, se tivesse vivido com ele por uns dois meses na Europa, talvez me acostumasse melhor com algumas histórias. Não era desconfiança de traição, mas sim o temor das drogas. Esse era meu medo e meu grande problema. Porque eu era do meio, cantava no Chico’s Bar com uma porção de malucos junto e o que poderia ser normal para muita gente, para mim não era. Então, esse meu amor foi ficando triste, se desiludindo, perdendo o viço. Fui desapaixonando só de pensar que pelo resto da minha vida eu ia ter esse tipo de preocupação: onde será que ele está? O que estará fazendo? E não era por ciúmes, a questão não era essa, porque vi o Carmelo dar o fora em mulheres importantes, que não quero citar o nome, o vi pedindo a elas que me respeitassem, dizendo que era casado e que me amava.

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Fui feliz dentro do que pude suportar, mas chegou um ponto, um limite, em que eu não conseguiria mais manter o meu amor no 30º andar. Ele já tinha caído para o 25º, para o 10º, para o 5º, e quando se espatifasse no chão, não ia sobrar nada. Não desejava passar a vida toda desconfiando de algo escon-dido em nossa casa. Porque tinha também a minha mãe e a minha madri-nha, Marlene, que viviam do nosso lado e não tinham criado problema algum com relação ao casamento, mas não sabiam do mundo em que eu vivia, com um marido que tinha esse tipo de liberdade, uma cabeça de playboy europeu, que cresceu assim e não tinha como mudar.

Meus argumentos eram muito fracos diante de sua prepotência. Carmelo se achava o máximo, nada aconteceria com ele. Era o Tarzan e o Hulk ao mesmo tempo. Abria a boca para dizer que poderia me comer todos os dias e jamais iria ficar broxa. Que não vivia sem o meu cheiro. Então eu lhe dizia para cheirar a mim e não ao resto. Porque se alguma coisa acontecesse com ele não seria com o Carmelo e sim com o marido da Leny Andrade. Todos iriam relacionar a história à minha pessoa. E havia um problema mais sério: minha mãe dirigia o coral da Igreja Imaculada Conceição e tinha muitas funções dentro daquela igreja. Era uma referência social que ele jamais compreendeu. Nunca entendeu o que seria para a Dona Ruth, mãe de uma pessoa pública, um escândalo desse tipo. Se uma história como essa saísse no jornal, ela morreria. Era uma libriana e eu sei que, se isso acontecesse, seria o fim para ela. Então, todos os sonhos que eu tive na vida não seriam tão fortes para convencer Carmelo de que ou era verde ou amarelo. E eu precisava que fosse verde, mas ele queria todas as cores. Não dava!

Quando a maluquice chegou ao auge, conversei com meus parentes da polícia, com meu advogado, com minha sogra, e ela mandou prender o filho. Sim, ela mandou prendê-lo por duas semanas, mas me pediu para que não me desesperasse, porque tudo o que o filho dela havia tido de bom naque-les últimos cinco anos fora por minha causa. É interessante dizer isso hoje, tantos anos depois, porque já acabou. Como diria Paulinho da Viola: Foi um rio que passou em minha vida. Nada existe mais. Carmelo hoje não é nem sombra do cara que conheci, com quem vivi durante cinco anos, cheio de

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amigos, frequentando diversas festas, só ou acompanhado. Agora é outra pessoa. Convertido totalmente para a família, virou metodista, seguiu outro caminho. Quem me dera ele tivesse agarrado o meu caminho, o do esote-rismo, que foi o que me segurou e deu forças durante esse tempo todo...

Casei-me com a intenção de acabar os dias de minha vida casada. Primeiro no civil e, no dia seguinte, no religioso, na Igreja Imaculada Conceição. A cerimônia foi de parar o baile. Eu trajava um vestido cor de caramelo e tinha na cabeça um arranjo feito com rosas cor de champanhe. Fui penteada pelo Pedrinho, um must da época. Apesar do fracasso do meu grande sonho de mulher, sinto-me feliz por ter sido esse o final do relacionamento com Carmelo. Porque não sei aonde me levariam a convivência e a conivência. Conheço algumas mulheres que sofreram muito com esses homens e viraram um lixo na tentativa de cuidar deles e das preocupações que o problema traz. Isso não é vida e, se você entra nela, pode até tornar mais fácil a convivência, mas o perigo é muito maior.

Carmelo foi um dos maiores artistas plásticos que já conheci. Um mestre na arte de esculpir o cristal. Em sua casa tinha um forno enorme que recebeu da mãe, diretamente da Espanha. Trabalhava com o cristal muito grosso nesse forno de alta tensão: queimava-o e desenhava por dentro dele sem deixar nenhuma lasca ou marca. Um tipo de arte que deixava as pessoas pasmas. Eram peças decorativas e às vezes esculturas enormes, pesando 20, 50, 60 kg. Uma vez, ele fez uma cascata que jorrava água para cima e que ficava no meio da sala da cobertura de um árabe, que morava na Avenida Atlântica. Ganhou muito com aquele trabalho. Fez outra escultura, acho que para a casa do Prioli, dono do Canecão, outra para o Chico Recarey, que era muito seu amigo, porque os dois achavam que os espanhóis eram os machos do planeta. Ele preparou a casa do Chico na Gávea com muitos cristais. Também fornecia peças para uma loja chamada Cristalo, no Shopping da Gávea. Carmelo tinha um poder fora do comum com o cristal, uma imaginação muito fértil...

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N a Te r r a d o J a z z

Merecimento e proteção divina

Costumava dizer que só iria a Nova York quando fosse convidada. As pessoas não acreditavam em minha sinceridade e ficavam me instigando, dizendo que eu devia cavar a oportunidade. Eu argumentava: quem se arriscou a ir desse jeito, foi e não achou.

Eis que um dia chegou no Chico’s Bar meu velho amigo José Luiz de Oliveira, que há um ano e meio editava uma revista em Nova York. O Zé tinha sido diretor artístico da RCA Victor e quando Sarah Vaughan gravou seu primeiro disco no Brasil, com a participação do Milton Nascimento, Edson Frederico e vários outros grandes músicos, ele estava presente. É uma pessoa de múltiplos talentos, tão incrível que foi o primeiro a montar um teclado. Foi consagrado como o melhor iluminador de shows instrumentais. Eu o conheço desde o tempo do Gemini V, pois foi ele quem fez a luz para o conjunto na temporada no Teatro Princesa Isabel. Jantamos no Castelo da Lagoa naquela noite e ainda me lembro que recomendei que comesse a cavaquinha à moda da casa, prato que o Tom Jobim adorava. Ele ficou me provocando, perguntou se eu nunca iria para Nova York, porque não tinha aproveitado para pular a cerca quando estava no México etc. e tal. Respondi-lhe que não era profissional de bater em porta pedindo para fazer teste. Nunca tinha feito isso no Brasil, por que faria em outro país? Estava muito feliz, eu e meus músicos, com dois shows de 50 minutos na noite carioca

Ele começou a falar sério, disse que era amigo dos donos do Blue Note, a casa de maior prestígio da noite nova-iorquina, e que gostaria de me apre-sentar a eles. Aconselhou-me a recolher material para divulgação, dois ou três discos, recortes da crítica e fotos, que ele levaria de volta. Insistiu em exaltar o prestígio do Blue Note. Seus donos tinham o mundo aos seus pés, garantiu-me. Todos os cantores sonhavam em se apresentar lá. Confesso que eu também. Para cantar nos Estados Unidos, só me interessava o Blue Note, o templo do jazz, que já recebera nomes consagrados como Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Anita O’Day, além de outros que não conhecia pessoalmente, mas admirava muito e faziam parte do meu cotidiano musical. Não iria me trazer dinheiro, mas seria importante que eu abrisse a boca no Blue Note para as pessoas me descobrirem.

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Wynton Marsalis e Leny

Leny, Billy Strich, Liza Minelli e Laís Pires

Leny e Patrícia Barber

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O Zé voltou para Nova York com dois discos, um deles, Estamos Aí, que fiz com o Eumir Deodato. Um mês depois, estava no meio de um set quando ele ligou com a notícia que eu estrearia no Blue Note dia 27 de setembro de 1983. E vaticinou: Se você estiver bem e o cara do New York Times a escutar, está feita.

E assim aconteceu. Estreei no Blue Note numa curta temporada de terça a sábado, com um grupo formado por Portinho na bateria; Cláudio Roditi no trompete; Aluizio Milanês no piano; Lincoln Goynes no baixo, com quem ensaiei apenas uma semana. A apresentação foi boa e o crítico do New York Times, John S. Wilson, estava presente. Ele olhou para três convites para três eventos que sua secretária tinha colocado sobre a sua mesa de trabalho e escolheu o meu. Proteção divina. O convite dizia que eu cantava tudo de música brasileira mesclado com jazz e que era muito considerada em vários países, etc. Como ele só considerava duas cantoras brasileiras até então – Tânia Maria e Flora Purin – decidiu conferir. Ele mesmo me contou essa história quando retornei àquela casa no ano seguinte. Em sua crítica, escre-veu aos leitores que o havia emocionado embora cantasse somente em português. Que bastava ouvir o som da minha voz e observar o movimento de minhas mãos, para entender o que a letra da música queria dizer. Essa crítica – um presente em minha vida – está reproduzida no interior da capa de um dos meus discos. Ou seja: não basta contar, tem-se que provar e com o original, xerox não serve. Se eu contasse, não acreditariam. Eumir Deodato estava na estreia, com George Shearing. É impressionante como a música de repente o coloca frente a pessoas com as quais você sonha encontrar um dia.

Na segunda temporada no Blue Note, já tinham ido me assistir o Mark Murphy, John Patitucci, Paquito D’Rivera e sua mulher, Brenda Feliciano, que se tornaram meus amigos para sempre. Paquito não queria que eu voltasse ao Brasil, dizia que deveria engatar outros trabalhos. Mas eu queria ser sempre correta, queria passear por lá e conhecer gente boa. E, claro, no outro ano, me convidaram de novo. E em 1984, 1985 e 1986, também. Tenho a honra de possuir minha assinatura em uma das mesas daquele templo com uma caneta especial que escreve no bronze, junto da assinatura do Paquito. Tornamo-nos inseparáveis. Parece que somos irmãos, um nascido em Havana, outro no Brasil. Recentemente, ele fez um show em São Paulo com a Jazz Sinfônica e fui assisti-lo. Assim que me viu começou a fazer um desafio de improvisação comigo, ele do palco e eu na plateia. O teatro veio abaixo. Uma graça o Paquito D’Rivera.

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É bom estar passando a vida a limpo neste livro, aqui sentada com calma nesta manhã de domingo, tomando um cafezinho, até porque sem café eu não sou nada – abrirei até um parêntese para dedicar um capítulo a ele, o cafezinho, e aos pretos velhos também. Porque na minha casa não sai um café sem um copinho de água do lado, para os pretos velhos. Herdei boas proteções em minha vida através dos meus familiares de sangue e de coração como a tia Maria Conga de minha mãe verdadeira, a Ruth; o vovô Bertoldo, que trabalhava com meu pai, e muitas outras, até a mais recente, vovó Cipriana, que trabalha com a mãe do Altay Veloso – esta a maior rezadeira que já conheci. Então, é com grande respeito que me dirijo a essas entidades protetoras. Nos shows, também não entro sem café. Se não tiver água, tudo bem, mas sem um gole de café, não entro. Atrasei um festival na Espanha enquanto no camarim esperava pelo café. Depois me desculpei: não bebo vodca, uísque, conhaque, nada. Mas preciso de um café. Sem café não tem espetáculo.

A partir de então, fui fazendo outros lugares nos Estados Unidos. Até que, em 1994, comuniquei à família que estava indo morar lá, onde fiquei direto até 2002. De lá para cá, comecei a vir ao Brasil com maior frequência, porque me pediram muitos shows e minha mãe começou a ficar doente. Foi quando eu conheci o Djalma Marques, que passou a cuidar de minha agenda.

Com Djalma Marques, produtor e amigo

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L i ç õ e s d e M ú s i c a

A voz que assina o canto

Sem sono, faço anotações para este livro. São 5 horas de uma quarta-feira, o ano é 2010. Há pouco estava com o meu radinho companheiro no ouvido sintonizado na MEC AM, que depois das 3 horas adentra a madrugada tocando músicas de fora do circuito comercial, quando escutei uma cantora da nova geração. Muito bem-intencionada, mas sem aquela coisa que Deus me deu, que foi o poder de assinar com a minha própria voz cada música que canto, como se faz com o próprio nome ao se terminar de escrever um texto.

Então, um enorme sentimento de gratidão tomou conta de mim. Tirei o radinho do ouvido e lá mesmo, na cama, agradeci ao Criador. Conversando com Ele, disse-lhe o quanto estou feliz por ter sido agraciada com tanto vigor nas cordas vocais, e que muitas vezes me assusto quando ouço o som limpo e claro que sai de minha garganta. Dizer obrigada, meu Deus, é tudo o que me cabe fazer, reconhecendo que existe algo muito maior que deter-mina que eu possua este instrumento mágico, seguro e infalível que é a minha voz. Isto pode soar como um convencimento, uma vaidade, um aplauso exagerado a mim mesma, mas ao mesmo tempo sei que tenho pago um preço muito alto que me torna merecedora dessa bênção.

Meu grande orgulho como intérprete é esse: eu pego as músicas e autoro. Faço diferente e todo mundo chora. Até os homens saem em prantos dos shows. Derrubo todo mundo. Tem músicas que são verdadeiras obras-primas e alguns intérpretes cantam sem expressar o que suas letras realmente dizem. No entanto é preciso se inteirar de cada nota, de cada sílaba, de cada palavra e construir, ir ao fundo para depois subir ao topo. É preciso estar consciente também de que na plateia tem gente de todos os lugares e tipos. Durante anos vim me preparando na noite para fazer tudo isso em meus shows. Fui elaborando essas coisas ao longo do tempo. Hoje sei que o público é muito variado e se eu não chegar na geral não irei a lugar algum.

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Rituais de humildade e gratidão

Tenho tido oportunidade de refazer a contabilidade do pedágio pago, ao reunir passagens de minha vida para colocar neste relato. Para abrir a minha boca e cantar como hoje, aos 67 anos, e com o prestígio que tenho, aqui e acolá, paguei realmente um pedágio e tanto. A começar pela postura que sempre tive diante da família, dos colegas, dos amigos, dos músicos e de mim mesma. Não beber, que talvez seja a mais cara das moedas. As cordas vocais se queimam se você bebe e os cantores não entendem isso, então, na maior parte das vezes chegam aos camarins sempre repletos de álcool. É difícil resistir diante de tantas ofertas. E tem ainda as circunstâncias de cada um: os nervos, a expectativa, a insegurança: será que vou agradar? Vou me entender com o público? Tudo isso passa pela cabeça do artista quando no camarim, ou já na coxia, ele para por instantes antes de subir ao palco. A sensação é semelhante à do toureiro que ao entrar na arena sabe que deverá controlar o touro. E não se enganem: quando se está atrás das cortinas, nunca se sabe o que vai rolar lá na frente. A cada apresentação, fazemos um teste. E temos que ter humildade.

Nos últimos 15 anos, cumpro religiosamente um ritual nos minutos que antecedem o anúncio de meu nome em qualquer lugar do mundo, indepen-dente do que estiver acontecendo. Baixinho, evoco a proteção dos deuses, oferecendo a eles o meu canto: A vós, Palas Athena, minha amorosa amiga, ofereço o meu cântico dando-vos as boas-vindas. Preenchei todo o meu mundo com vossa verdade cristalina. Sua chama verde diviso, com olhar extasiado. A verdade me é muito cara. Em nome de Deus – Eu Sou. Com a força cósmica da vitória reivindico a verdade. Aí, entro muito calma e começo a cantar.

Nem sempre foi assim. Durante 30 anos de minha carreira fiz shows com listas. Numerava as músicas que ia cantar. Número 1: Um Cantinho, um Violão;

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Leny durante apresentações

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número 2: Avião. E lá ia eu, número 3, 4, 5, 20, 25 até 30, uma atrás da outra, sem dirigir uma palavra sequer ao público. Num belo dia me dei conta de que as pessoas se esqueciam de mim logo ao sair da boate. Hoje, faço graça, todo mundo ri, até os músicos (meus filhos) se divertem. Me comporto sempre de uma forma simpática e o grupo se delicia. Fica tudo mais íntimo e pessoal. Afinal, somos simples mortais, iguais a todos os que estão na plateia. Temos que estabelecer contato. As pessoas mais simples que fazem música são as que mais emocionam. Mesmo quando é um megashow, o público tem de saber que você não faz cocô de ouro e xixi de prata.

Às vezes, o público está frio, a gente percebe que as pessoas levaram os problemas de casa para o espetáculo. Devemos ter sensibilidade para perceber, desfazer aquele clima. Hoje, faço isso. Em meia hora, mudo tudo. Se você faz parte da minha plateia, é minha obrigação fazê-lo sair de lá divertido, prazeroso. Quando encontro um público que já bebeu, já comeu, já comentou tudo que ocorreu na semana e quer apenas assistir ao show para cumprir um compromisso social e se retirar, tento uma abordagem diferente, mudo a estratégia, crio um atalho para me fazer notar. Quando consigo, é mágico e apaixonante. Assistindo a algum colega, após as duas primeiras músicas já sei se aquele show dará certo ou se será mais um espetáculo chocho, pela maneira como ele entra no palco. Não existe público ruim, frio ou desinteressado. A forma de chegar do artista, o modo de conduzir, de entregar o repertório farão o milagre de estabelecer o contato, a comunhão com o público, resultando em desfrute de prazer, de choros e de risos.

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A harmoniosa roupagem do jazz

Muitos já me ouviram cantando um pot-pourri de antigas músicas de carnaval, com arranjo do Fernando Merlino (José Fernando Appolonio Merlino). Ali, todo o tradicional foi posto abaixo. A modalidade jazzística apuradíssima do Fernando fez com que aquelas três músicas se transformassem numa única em rara harmonia. Aquilo é impressionante. Esse é o meu pianista. Além de tocar muito bem, quando mexe nas harmonias dá outra roupagem à música sem alterar o original. O público sabe o que eu estou cantando, sai cantando junto, mas a vestimenta ali é o jazz.

A evolução de músicos, cantores e dos compositores se expande quando eles colocam o jazz e o clássico para a música popular. Porque Chopin, Beethoven, Wagner são maravilhosos. Você pega o Villa-Lobos, por exemplo. Ele bebeu nessa fonte, assim como o Cartola, e nenhum dos dois se preo-cupou em esconder esse fato. Vejam o Piazzolla: aquele argentino genial fez com o tango o que a nossa turma aqui fez com a MPB. Tom, Carlos Lyra, Maurício Einhorn, Luiz Eça, Gilson Peranzzetta, o próprio Sergio Mendes, que era o maior pianista de jazz do País quando a Bossa Nova chegou.

Aliás, o Sergio e eu tivemos um grande problema, quando nos preparávamos para as apresentações no Bottle’s Bar. Ele dizia que não tocava samba e eu que não cantava jazz. Ele não acreditava, realmente, que eu não cantasse este estilo, até porque já havia visto eu improvisar, e quem improvisa canta jazz. Aí, o Alberico o aconselhou a sentar-se e conversar comigo, lembrou--lhe que eu era apenas uma menina, alertando-o, contudo, que eu já fazia muito sucesso. O fato é que o Alberico dobrou o que eu ganhava no Bacará diante do sucesso que eu estava fazendo. Todo o público do Beco das Garrafas estava indo para lá, logo depois da morte da Dolores Duran, pela novidade que eu era. Enquanto isso, o Bottle’s Bar ficava vazio, embora lá estivesse o Sergio Mendes Trio recém-premiado no Chile. Depois de muita discussão, decidimos ceder. Eu aprenderia jazz e o Sergio tocaria samba. E deu no que deu. Se o Sergio nunca tivesse tocado samba, jamais empla-caria nos Estados Unidos com o Mais que Nada de Jorge Benjor. Foi bom para ele, foi bom para mim. Ele costuma dizer que metade do dinheiro que ele tem é meu. Já o xinguei de ordinário várias vezes carinhosamente. Temos uma linda amizade!

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Leny com Gilson Peranzzetta

Um show após outro

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E n t r e o P r e s t í g i o e a F a m a

Nada de mágoa, apenas um desabafo

De 1983 a 1994, fiz bastante coisa em Nova York, mas a principal delas foi sugar o entendimento do jazz. Ver e ouvir esses sons durante as 24 horas do dia. Escutei a WBGO (83,5 FM) dia e noite. Tenho o maior orgulho de ser sócia dessa rádio e, além disso, ser a intérprete mais executada entre todas as brasileiras que transitam naquele universo de excelente música. Quando não estava ouvindo rádio, cantava na noite nova-iorquina, ou viajava pelo mundo.

Quando me refiro aos Estados Unidos com orgulho e gratidão, e digo que foi preciso ir lá para ser reconhecida no Brasil, nem sei se esta é a colocação correta. Talvez fosse melhor começar por estabelecer bem direitinho a diferença entre fama e prestígio, entre ser conhecida do grande ou do pequeno público, ser sucesso nacional, estadual ou municipal, estourar ou não, enfim... é por aí.

Do que me ressinto hoje, por exemplo, é de um pouco mais de interesse por parte da mídia para eu não precisar contratar um assessor de impressa que plante fotos e notícias nos veículos cada vez que chego ao Brasil. Acho que a mídia brasileira tem mais do que a obrigação de saber quem é Leny Andrade e a responsabilidade de divulgá-la. Estou falando de 53 anos de carreira. Não comecei ontem. Então não vou contratar um assessor de imprensa para contar minha história aos jornalistas. Sabem por quê? Se pegarem o roteiro que tracei nesses 53 anos de carreira, verão que por onde passo para fazer um show, sempre volto. Ah, se volto... E acredito que isso se deva à emoção que coloco no que faço. Só se deve fazer música com emoção. Se você não a tem, então não faça. Se tem medo de se acabar por dentro cantando algo, fique em casa, por favor.

A Bossa Nova é hoje o movimento musical mais chique. Não é superior, só mais chique, mais amado, respeitado e elogiado no mundo inteiro. Não há nada mais importante no exterior, hoje, do que a Bossa Nova. Não adianta, tem-se que parar de ser hipócrita e admitir. Uma coisa que me preocupa é

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verificar que diminuíram, pelo menos no eixo São Paulo – Rio, os lugares para se ouvir música de qualidade. As boates e casas de música das déca-das de 1970 e 1980 do Rio e de São Paulo acabaram – Mons. Pujol, Flag, Number One, People, Chico’s Bar, Jazzmania, Mistura Fina, João Sebastião Bar, Jogral... Mas é preciso que surjam outras. Hoje no Rio tem o Bar do Tom, tem o Vinícius, tem o Lapinha, que para mim é único em qualidade de som, programação, cozinha – tudo lá é bom. E em São Paulo tem o Club A, o Tom Jazz, o Ao Vivo, pequeno e nobre. Em breve teremos no Distrito Federal o Brasília Rio, que vai chegar primando em qualidade. É preciso torcer para que essas iniciativas deem certo e proliferem.

Se eu tiver sorte, quero terminar como dona de bar. Mas um que abra às 21 horas e só feche às 9 da manhã seguinte, com café da manhã e som. Os músicos querem tocar. Será que ninguém nunca vai entender isso? Eu acho um desrespeito no Rio de Janeiro não existir um lugar para ouvir um som às 3 horas da manhã. E isso é por causa da violência. Ninguém mais quer ter um dissabor depois de uma diversão. Todo dia eu agradeço por não ter sofrido nada, é que sou muito protegida espiritualmente.

Voltando à minha carreira e sobre o nível que ela se situa aqui e lá fora, coisa que a toda hora querem saber, tentarei explicar de uma vez neste livro: o Carmelo, meu marido, um dia comentou na presença de meus parentes, causando espanto e estranheza: Leny, você nunca vai ser sucesso neste país. Sabe por quê? Porque você não tem um escândalo em sua vida. Está faltando um escândalo. Todos os que estão ganhando dez vezes mais do que você e que entraram na mídia tiveram um escândalo ligado a sexo, drogas, brigas, quebra-quebra, porres... você não teve nada disso... sua caminhada vai ser muito difícil. Mas eu acho que ninguém canta como você neste país. Ninguém entendeu nada. Os anos foram passando, passando, e eu fui chegando à conclusão que ele tinha uns 80% de razão. Mas isso só aqui, no Brasil.

Do ponto de vista financeiro, durante 25 anos sempre tive grana, mas nossa vida de artista é como estar num elevador. Uma hora você está no 30º andar, outra, no sótão. Você não sabe como será o amanhã. Porque você trabalha com supérfluos e ninguém precisa de Leny Andrade para sobreviver. É exatamente aí que entra o fator prestígio, porque eu ouço colegas, amigos e gente do métier dizendo que tudo está muito difícil, que a vida está complicada, que o mundo está em crise. Mesmo assim, lá vou eu, sigo fazendo shows pelo mundo: Brasil, América Latina, Estados Unidos, Europa, alguns países da Ásia, agenda cheia o ano inteiro. É prestígio. É uma bênção, outro dia luminoso que nasce...

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O árduo e compensador garimpo do prestígio

Parto do princípio que o meu trabalho foi sempre garimpado com a intenção de colher prestígio. Tanto no Brasil quanto no exterior. Prestígio que o público manifesta em forma de confiança, com sua presença debaixo de chuva, na Semana Santa, no Natal ou no Réveillon, com a certeza de que vale a pena pagar para ir me assistir porque algo novo e bom vai acontecer naquela noite. São plateias enormes, culturas muito diferentes em todos os lugares do mundo: Estados Unidos, México, Chile, Argentina, Alemanha, Holanda, Itália, França, Espanha, Lituânia, Iugoslávia, Rússia, Dinamarca, Suécia, Noruega, Japão, Austrália, ufa!... Eu can-tando em português, porque só canto Bossa Nova em português, e eles aplaudindo de pé e chorando, embora sem entender o que as palavras dizem. Eles sentem e se emocionam com o que a minha voz diz. Se contar um por um, creio que participei de mais de 300 festivais de jazz em toda a carreira.

Na minha estante afetiva, prêmios, troféus, críticas, reconhecimento de colegas, elogios de amigos e o aplauso do anônimo estão lado a lado. Quando

recebi o Grammy Latino em sua oitava edição, não me encon-trava na plateia do teatro em Las Vegas aguardando a chamada. Assistia pela televisão aqui no Brasil. A apresentadora lia a premiação dos latinos, visivelmente com dificuldade de pro-nunciar os nomes por desconhecimento.

Cartazes apresentando Leny na Rússia e no Japão

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Leny em momento de premiação

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Dois momentos:Com César Camargo Mariano no GrammyCom Tony Bennett, fã e amigo

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Aí ouvi o meu nome e o do Cesar Camargo Mariano, meu parceiro no premiado disco Ao Vivo. No mesmo minuto ele me ligou exultante para dar a notícia. Eu dava cambalhotas tal qual uma criança, e festejei com ele do outro lado da linha. Alguém escreveu num blog que, como diva, não me deslumbraria com aquele prêmio. É verdade. Não me deslumbrei embora tenha adorado recebê-lo. Ficarei feliz se outros Grammy vierem e penso, inclusive, que Alma Mía, pela qualidade do repertório, dos arranjos e da interpretação, tem muita chance. Vou enviar o CD para o próximo Grammy.

Mas a emoção de ter recebido o Troféu Raça Negra em 2009, da ONG Afobras, talvez supere a do Grammy. Será? Um reconhecimento pela contribuição do negro para o desenvolvimento do nosso país, para a constru-ção de uma sociedade melhor. Um legado para as próximas gerações. E contribuí com o meu canto e na condição de negra, porque se tenho a pele clara, mamãe era uma mulata que lembrava a Elizeth, então esta-mos conversados: tenho o pé na África e muito me orgulho disso.

Quando estou num restaurante, na Fiorentina, por exemplo, e alguém entra e me cumprimenta, quer dar um dedinho de prosa, fala de algum assunto de modo íntimo, como se fosse da família, isso é prestígio, não? É uma forma de reconhecimento. Ou ainda quando passo pelos países da América de língua espanhola – da Argentina ao México – e sou chamada de Deusa, o que é isso? Recebo com humildade essa homenagem e agora agradeço do meu jeito, cantando 13 boleros e um tango no Alma Mía. Ver o Tony Bennett na plateia de Nova York fazendo a minha caricatura enquanto canto (já tenho cinco caricaturas assinadas por ele) é outra forma de reconhecimento que chega e aquece. Também os bilhetes, elogios e até declarações escritas em

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Os registros no traço de Tony Bennett

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guardanapos de papel que recebo após as apresentações são lidos e guardados com carinho, pois me comovem. Tenho algumas que pela caligrafia percebo que são de alguém que me segue...

A crítica internacional sempre foi generosa: Extraordinária, disse o New York Times; a Sarah Vaughan do Brasil, reforçou o New York Post, Uma das maiores capacidades de improvisação. Maravilhosa completou o The Globe. Esses títulos traduzem prestígio. Também não posso deixar de enumerar alguns registros feitos no Brasil, que vão pela mesma linha: Aqui também colecionei prêmios, títulos, troféus e críticas favoráveis, não posso negar, embora em menor escala. Já fui a Melhor Cantora de Jazz Brasileira e Cantora Musicista, pela habilidade de improvisação. Agora, quando a equipe inteira de uma revista japonesa chamada Latina vem ao Brasil para fazer uma edição exclusivamente com a cantora Leny Andrade, que coisa é essa, minha gente?

Mais do que um ato de reconhecimento ou prestígio, considero uma bênção ter sido convidada pelo cônsul do Brasil em Nova York para cantar na missa de sétimo dia de Tom Jobim. A pequena igreja de São Michael, localizada na esquina da Rua 34 com a 11, quase encostando no rio, estava completa-mente cheia de pessoas encasacadas. Fazia muito frio, num dos dias mais frios daquele inverno de muita neve. O padre Luiz me anunciou e me dirigi ao local onde cantaria. Seriam precisos apenas 12 passos do banco até lá, mas pareceu que a distância foi maior, porque eu andei tão lenta e pesada-mente enquanto o Aloísio Aguiar se dirigia ao piano. Achei que a única música cabível naquela hora era Por Causa de Você – Ah, você está vendo só, Do jeito que eu fiquei, E que tudo ficou, Uma tristeza tão grande, Nas coisas mais simples, Que você tocou... música do maestro com letra de Dolores. Letra que ela fizera sofrendo de amor, quase morta de amor, escrevera sobre um guardanapo com o lápis de sobrancelhas, a alma dilacerada porque o seu amado a deixara para sempre. Naquele momento, na igreja, os versos soaram de forma extraordinária. Com os olhos erguidos para o alto cantei e não me lembro de ter ouvido o piano me acompanhar. No fim, nenhum aplauso, é claro – primeiro um grande silêncio e depois um soluço só das 700 pessoas que estavam na missa do Tom. Nossa, que emoção!

Encheria páginas relacionando os prêmios e reconhecimentos em forma de gestos feitos por notáveis e anônimos. Contudo, é melhor ficarmos mais na emoção, no sentimento que marcou a trajetória desta minha vida de artista.

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Leny e Menescal no Japão

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Neste ano de 2010, minha atividade no Brasil tem sido muito intensa, prestigiosa e prestigiada. Tenho participado de shows muito especiais. Recentemente, houve no Teatro Carlos Gomes um espetáculo que a Prefeitura do Rio montou para receber convidados estrangeiros. Tinha gente da França, Holanda, Estados Unidos, Chile, México e Argentina. Antes da minha entrada teve apresentação de um balé bem brasileiro, mesclado com pontos de macumba, inclusive, e após 20 minutos para troca de palco, a própria secretária de Cultura da cidade do Rio de Janeiro, Jandira Feghali, me apresentou ao público. Cantei duas músicas e dei as boas-vindas falando um pouco em inglês e em espanhol. Um sucesso! No fim, tive que voltar com bis e tudo. São surpresas que acontecem. Às vezes você não leva fé num programa e a coisa acaba dando um excelente caldo.

Logo no dia seguinte, com a ajuda do despertador, do chuveiro e de um cafezinho, consegui estar no aeroporto às 8h30. Djalma e meus músicos estavam no aeroporto e fomos todos ao misto quente antes de voarmos

No Hollywood Bowl

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para São Paulo. Apenas com uma malinha de mão, pois sabia que a estada seria curtíssima, mas que iria desfrutar daquela suíte de sonho que a Rádio Eldorado e o Estadão sempre reservam para mim todas as vezes que faço o projeto Meus Melhores Momentos – um especial passado na hora, ao vivo na Rádio Eldorado. Dou uma entrevista sobre música brasileira, conto sobre os meus passos no exterior, sobre minhas vivências com astros da música de lá, os festivais de jazz, a trajetória do meu nome que segue crescendo lá fora... É tudo muito benfeito. Um entrevistador vem ao palco e faz as per-guntas intercalando com as músicas; do lado de fora, um caminhão de gravação de DVD registra tudo e envia som e imagem para a rádio.

Adormeço sempre muito tarde, com minha metade de Frontal porque sempre luto com a insônia. Fico remoendo ideias, pensando na vida, a noite é boa para isso mesmo, amar, cantar e contar histórias. Sou notívaga por natureza, de noite tudo é mais fácil, ao contrário do dia, onde tudo é mais difícil, arrastado, trabalhoso. Antonio Maria, aquele louco gordo e lindo escreveu, e Dolores Duran até gravou: Sou da noite do Rio, da noite macia do Rio, dou graças a Deus se tem lua, pois fico mais tempo na rua... Linda essa letra, vou cantá-la logo, logo. Dolores Duran, minha maior influência na música brasileira, foi quase aprisionada por Antonio Maria. Ele teve uma paixão por ela, daquelas lindas e perigosas que se tem nessa vida de meu Deus. Coisa que um aquariano não suportaria. Mesmo ele sendo Antonio Maria...

Longe de mim ser ingrata aqueles que me prestigiam. Há muitos a quem agradecer. Meus 40 anos de carreira foram festejados no Canecão, numa

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superfesta organizada pelo Luiz Otávio, produtor e herói. Pois não é que ele conseguiu realizar a fantástica façanha de festejar a data exatamente como eu sonhava: cercada de músicos? Até o Romero Lubambo estava no Brasil e compareceu. Dei canja tocando quatro músicas. Muita gente famosa na plateia, no palco e nos camarins. Então, muito obrigada, Luiz Otávio, pela festa e pelos anos que passamos trabalhando juntos.

Dez anos depois, nos 50 anos de carreira, a festa foi no Colégio Notre Dame, na Rua Barão da Torre, 308, em Ipanema. No dia 14 de julho de 2008, não esqueço. O salão do colégio foi alugado por Carlos Alberto Afonso, um louco apaixonado por música, proprietário da Toca do Vinícius. Organizou a festa com direito a convidados como Haroldo Costa, que protagonizou o Orfeu do Carnaval, o cônsul dos Estados Unidos para assuntos de Educação e Cultura, que veio ao palco fazendo questão do abraço. Foi uma festa linda, inesquecível, com 700 poltronas literalmente ocupadas. Estavam lá o presi-dente dos Diários Associados, Maurício Dinepe, e o diretor da minha amada Rádio Tupi, que ainda hoje me traz todas as informações que eu ouço pelo meu radinho preso à camisola. Bem, o Alfredo Raymundo e o Alfredo Raymundo Filho, vice-presidente, estavam lá, bem como todos os que trabalham nesse maravilhoso complexo e junto ao Jornal do Commércio, na TVA FM/Tupi AM, Tupi FM. Eu realmente adoro o rádio.

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Lais Pires, produtora e amiga, no Úmbria Jazz Festival

Maucha Adnet, Nana Caymmi, Leny e Flora Purin, em festival na Itália

Com Zico, no Japão

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E n c o n t r o d a L e n y c o m a L e n y

Sobre perdão, inveja e merecimento

Gosto de ler as previsões dos astros. Hoje um horóscopo dizia: Você pode começar o período desconfiado, mas observando bem os fatos, você vai relaxando e seu humor vai mudando e de uma coisa terá certeza: você estava fazendo tempestade em copo de água. Outro arrematava: ... facili-dade de diálogo. Quem brigou terá sua chance de reconciliação. Não se apegue às mágoas. Pense com generosidade.

Venho trabalhando muito a minha evolução espiritual e questões como perdão, ressentimento e inveja estão permanentemente em pauta. Minha amiga Regina Werneck está traduzindo um artigo sobre o câncer da minha afilhada que mora em Cancún me enviou, onde diz que o ressentimento é a porta de entrada para essa doença. Ruminar coisas que ficam entaladas no pescoço é ruim. Não fico assim, pois aquariano perdoa, embora não esqueça. Nosso problema não é com o perdão, é com a memória. Fica tudo escrito no caderninho. Mas o exemplo de mamãe me ajudou a suavizar esse traço. Por causa do seu signo, ela era amor 24 horas por dia, perdoando a todos, relevando tudo, arranjando desculpas para o indesculpável, dizendo que mágoas não levavam a nada. Assimilei um pouco do seu jeito único de ser. Passei anos sem ouvir falar do Hélcio Milito. Recentemente, Alaíde Costa, eu e mais quatro músicos fizemos um show para o Johnny Alf no Ginástico Português e o Hélcio veio me cumprimentar cheio de simpatia. Ele sentiu que eu não estava tão quente quanto poderia. Aliás, já o tinha visto uma vez depois do Tamba Trio, na Modern Sound, e o cumprimento não passou de um oi.

Quanto ao Pery Ribeiro, falo com ele, até voltamos a cantar juntos depois do México, mais de uma vez. Certa ocasião, fui encontrar com ele, eu e o meu contrabaixista, na Polônia. Pery sabe perfeitamente da repercussão que o desmanche do Gemini V teve na minha vida, porque eu tive a franqueza de demonstrar isso em todas as oportunidades. O coração tem razão que a própria razão desconhece. Faz promessas e juras e depois esquece – Marino Pinto.

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Não tenho inveja de ninguém e esta é uma de minhas maiores riquezas, graças a Deus. Ainda mais no meio onde eu transito. Isto é, sem modéstia alguma, uma das coisas mais positivas que alguém pode ter. Até porque, como fui aprendendo com o decorrer dos anos, tudo o que a gente obtém é por merecimento, ou por uma força maior que vem daquela convicção do tipo: vou fazer e ninguém vai me impedir. Foi assim que funcionou quando fui para os Estados Unidos...

Fazer este livro resultou em mais um encontro comigo mesma e algumas conclusões, ainda que não definitivas: como cantora e como intérprete, estou bem, obrigada. Como pessoa, estou melhor ainda. Não me sinto mais como há 20 anos, quando fui passada para trás e fiquei esquecida, sem importância, repelida. Durante muito tempo fantasmas enfearam e impediam a minha felicidade plena, porque eu vivia preocupada com o futuro de minha carreira, achava que continuaria dura pela vida afora. Só quando parei com isso e revi meus conceitos espirituais, desamarrei os nós de outras vidas, trazidos de outras passagens, tudo mudou. Isso através do esoterismo, do deixa tudo para lá, do senta e medita. A felicidade só chegou para mim depois que encontrei o meu caminho espiritual. E me considero apenas um aprendiz, porque esse lance não tem fim. Mas só de dizer Eu Sou, você já estabelece uma ponte fantástica com o poderoso Deus Supremo, o Criador. Eu Sou Deus, porque fui criada por Ele. Então, não há medo, não há receio. É tudo às claras, resolvido olho no olho. A franqueza é muito difícil de ser entendida. Geralmente ela não é. As pessoas só fazem questão de ser elogiadas. Elas precisam disso. E eu sinto muito, mas tenho que ser franca, porque sem franqueza, para mim, não há verdade. Jamais saberei dizer mentiras para agradar.

Venho reconstruindo minha autoestima e a cada dia fico mais próxima de ser uma pessoa que tem cuidado com o outro, até porque quando você maltrata, sofre. Aqui mesmo. Você bate e na mesma hora recebe o troco. Tomo cuidado com as atitudes para não ser grosseira. São vários os caminhos e todos levam ao Pai. Sua casa tem vários cômodos: o do candomblé, da umbanda, do catolicismo, do islamismo. Então, procuro respeitar a linha que cada um segue e me dar bem com o outro.

Houve um tempo em que não falava com ninguém enquanto o show não acabasse. Nem com a minha mãe. Não queria ver ninguém. Algumas pessoas

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não entendiam. Ainda fico meio perturbada quando tem muita gente ao meu redor, quando estou em lugares que o acesso é fácil antes de entrar em cena. Mas estou melhorando. Percebo que à medida que Leny Andrade foi encon-trando Leny de Andrade Lima, fui tendo outra compreensão da vida. Observar quando uma pessoa está mal e ficar ao seu lado até ela abrir a caixa de Pandora e revelar o motivo da sua tristeza, ouvir o necessitado, correr para acudir, é a coisa mais linda que se pode fazer na vida. São oportunidades que o Deus supremo nos dá para que aliviemos a dor do outro. Tenho feito horas e horas de ouvido de mercador... o outro falando e eu escutando. Às vezes sou fria e dura. Mas tenho que ser. Olho no olho e falar a verdade ajudam. Torno-me cada vez mais próxima do outro, ouvindo e me revelando.

Ela sabe ouvir...

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Obrigada aos músicos, companheiros e amigos

O carinho que tenho pelos meus músicos sempre existiu, mas hoje eu o escancaro, em público inclusive. Até porque no tipo de trabalho que faço, não existe a possibilidade de ser só você. Tem um todo envolvido que nos une. Então, para eu cantar aquele show da forma como canto e passar as coisas boas para a plateia, é preciso que atrás de mim estejam todos honrados, sintonizados, pagos, bem cuidados e ensaiados. É preciso que estejam bem, porque o músico tem uma sensibilidade muito intensa. E o público precisa perceber, previamente, que nós estamos bem. Sinto que existe uma admiração deles por mim. São vários músicos, em muitos lugares. Tenho receio de esquecer algum nome.

Recordo-me do guitarrista Beto Yaniccelli, que liderava um quarteto no Boteco-Teco, situado no bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Durante sete meses nos apresentamos lá com muito sucesso, depois fomos à Espanha com a Lais Pires, e mais César Camargo Mariano, Helio Delmiro e Paulo Moura. Foi inclusive no final de uma das apresentações com esse grupo que o Cesar subiu ao palco e fizemos de improviso o Da Cor do Pecado, composição do saudoso Bororó. Chegando ao Brasil, a ideia do duo – piano e voz – evoluiu para a produção do CD Nós, que ganhou o Grammy. Sou muito grata ao Cesar. Além de tudo o mais que ele colocou na minha vida, seu piano incon-fundível, a primorosa luz e o palco como só ele sabe fazer. E ainda agradeço ao João Donato e o Emílio Santiago por tantos espetáculos que dividimos pelo Brasil afora, ao Gilson Peranzzetta pelos dois álbuns Cartola – 80 Anos e Nelson Cavaquinho, e ao João Carlos Coutinho pelos arranjos, as viagens pela Europa inteira, seu piano que fala com minha voz como se estivéssemos conversando, e mais uma vez ao Fernando Merlino que, com seu quinteto, fizeram do Alma Mía uma joia. Na trilha dos agradecimentos, sou muito grata por fim a todos os compositores dessa nossa música brasileira que me levaram para mais de 40 países longe dessa terra aonde eu nasci.

Nelsinho Careca, Emilio Santiago, Laércio de Freitas, Leny, Luizão e Ari Piassarolo no MAM, Rio)

Leny, Simonal, Miele e amigos

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Adriano de Oliveira (falecido), Lúcio Nascimento (falecido), João Carlos Coutinho e Leny. Juntos por mais de 22 anos

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Para não me alongar mais ainda com os muito obrigada, muito obrigada, muito obrigada, mas ainda falando dos músicos, quero registrar que hoje, nos Estados Unidos, o Hélio Schiavo, além de ser meu baterista, faz o meu imposto de renda lá. (Sim, porque já renovei o Green Card duas vezes, tenho residência lá e cá, pago dois impostos, tudo dentro da legalidade.)

Também canto com um trio formado por João Carlos Coutinho, piano; Rômulo Gomes, baixo; e Lúcio Vieira, bateria. Tem o Baião de 5, quinteto formado por Fernando Merlindo, piano; Jamil Joanes, baixo; Erivelton Silva, bateria; Arimateia Oliveira, flugel e trompete; e Julio Merlino, saxes e flau-tas. E ainda o Sambop, formado por Amiletto Stamatto, piano; Ney Conceição, baixo; Erivelton Silva, bateria; Paulinho Trompete, flugel e trom-pete; e Vidor Santiago, barítono e flautas. Nos Estados Unidos tem um trio formado por Klauss Muller, piano; Sérgio Brandão, contrabaixo; e Helio Schiavo, bateria. E mais o Dario Eskenazzi, piano, e o ótimo pianista Cliff Kormann e o baixista Keep Reed que vão tocar com um novo trio. Também não posso deixar de citar os parceiros como Gilson Peranzzetta, que entrou na minha vida e ficou para sempre, Maurício Einhorn, Roberto Menescal, os amados Cesar Camargo Mariano e Romero Lubambo, e mais o várias vezes citado neste livro Paquito D’Rivera, e os saudosos Paulinho Albuquerque e Durval Ferreira. Como não posso deixar de me referir aos meus representan-tes nos Estados Unidos, Put Philips e Ettore Stratta. Nossa, tenho realmente receio de causar ciúmes, é outra lista interminável, afinal são 53 anos de estrada.

A sintonia e o respeito do artista aos seus músicos são importantíssimos. Percebo que isso existe nos shows do Tony Bennett, da Lisa Minelli, do Mark Murphy e da Madonna. Cuidado, honra e respeito resultam na atmosfera espetacular que aparece nos palcos. Já li matérias sobre o assunto com a minha ídala nº 1 do rock – Madonna. A mulher do Dario Eskinazi que trabalha na empresa dela me contou que são 150 empregados, todos com carteira assinada. Enquanto Madonna está fazendo tour pelo mundo, sua máquina funciona com perfeito azeitamento: bailarinos, coreógrafos, estilistas, figurinistas e maquiadores preparam os futuros shows. O respeito dela por essa gente toda é uma coisa fora do comum. Tenho uma máquina seme-lhante, muito menor, mas que funciona da mesma forma. É isso que faz progredir e leva ao sucesso.

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Leny e Miele no show Um Brasileiro Chamado Jobim, em Fortaleza Cluve

Leny e Dori Caymmi

Zélia Duncan, Ângela Leal e Leny

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Com Romero Lubambo, um parceiro querido

Silvinha Góis, Paquito D`Rivera e Leny

Wanda de Sá, Leny e Almir Chediak

Adriano de Oliveira, Leny, Silvio Góis e Arismar do Espírito Santo no Úmbria Jazz Festival

Leny, Fernanda Quinderé e Michel Legrand

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Leny e Menescal no Rival

Com Altay Veloso

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Atualmente, conto experiências pessoais nos shows. O público passou tanto tempo sem me conhecer, que agora sinto necessidade de me mostrar, revelar o grande amor que tenho pela vida e o amor dobrado pela música, que é tudo para mim. Percebo inclusive que minha ligação com a música é tal que consigo expressar outros valores importantes através dela.

A música tem me mostrado a cada dia como a história de uma vida é tecida por seu próprio autor. Esse é um dos propósitos deste livro. Mostrar exata-mente quem sou, revelar minha alma. Quando for embora, não serei apenas saudade. Ninguém vai escrever o que achava que eu fosse. Aqui está a minha vida, contada por mim, num livro. Isso é fantástico!

Leny e dois representantes da família Caymmi: Nana e Dori

Leny, Toninho Horta e Fafá de Belém

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Alma Mía Alberto Cortez

Alma mía... cómo pesan en tus alas las ausencias, cada día van sumando soledades indefensas; lejanías, avaricias, ansiedades y desvelos y una umbría sensación de irrealidad y desconsuelo.

Alma mía... siempre en guardia vigilando mis entornos, día a día, mitigando los abusos y sobornos. Candilejas que me acosan sin clemencia con su brillo y que dejan una extraña sensación en mis sentidos.

Alma mía... qué daría por volver a verte libre... sin estrías, dolorosas de misiones imposibles. Como antes... por delante de mis sueños y quimeras... Anhelante... de entregarte como fuera y donde fuera.

Alma mía... cualquier día te irás yendo despacito; ya no mía... tu energía liberada al infinito.... con tus velas... portadoras de la luz a todas horas... sin estelas... que te duelan, como duelen las de ahora.

Alma mía... son tan frías las urgencias cotidianas... ¡qué manía... de invertir cada presente en el mañana...! ¡qué locura...la premura de vivir en cautiverio...! ataduras... por pavura irracional a los misterios.

Alma mía... cuántas veces te he dejado abandonada en la vía de los trenes que van sólo de pasada. Cicatrices... sacudidas que la vida me ha causado, infelices... horas grises que los años no han borrado.

Alma mía... menos mal que no te entregas derrotada; yo diría... que es a causa de seguir enamorada. ¡Sensiblera... soñadora... perdedora o tempestiva...! ¡Compañera... a pesar de los pesares, sigues viva!.

Sequência no show do lançamento do Alma Mia, fotos do blog do Mauro Ferreira

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E p í l o g o

Um dique de emoções

Ao finalizar este trabalho, mostrei à Leny a crítica que Mauro Ferreira publi-cou no dia seguinte ao lançamento do CD Alma Mía, no Canecão, sugerindo sua inclusão no livro. Visivelmente emocionada com o texto, ela entrou em contato com o Mauro, para pedir-lhe autorização.

Uma graça a conversa virtual desses dois amantes da música. Disse a Leny, em seu e-mail: Mauro, sou eu, Leny Andrade, quem lhe escreve. Obrigada. Meu disco e meu show no Canecão, dia 18 de junho de 2010, não precisam de mais nada, só o que você escreveu basta. Sempre você me chamou a atenção pela forma de ver e ouvir a música. A música não é uma arte nor-mal. Quem escrever sobre ela tem que realmente estar com ela dentro de si. É dentro ou nada. Estou nos finalmentes do meu livro Alma Mía, a Regina Ribas, que o está escrevendo (e se exaurindo comigo ao descrever esses 53 anos da minha VIDA não só profissional, UFA, JÁ IMAGINOU?), esta adorá-vel senhora, sugeriu colocar sua crítica no meu livro. Quero lhe dizer que espero que você goste dessa notícia, que irá acompanhada do meu HUMILDE ELOGIO à sua escrita sempre perfeita. Estou voando dia 26 para estrear 31 e ficar até 4 de setembro no Birdland, em Nova York, na 44th St., pela quarta vez. Todo ano, nessa época, canto lá, só em português. Faço dois sets de MÚSICA BRASILEIRA. O Birdland é chamado de A Esquina do Jazz. Espero que este e-mail chegue às suas mãos e obrigada por tratar a música como ela merece.

A resposta do Mauro veio rápida, com a autorização acompanhada de algumas palavras que revelavam sua felicidade pela distinção. Que bom! Senti mesmo que ele esteve em fina sintonia com Leny Andrade quando a assistiu interpretando pela primeira vez os boleros que foram gravados no Alma Mía. Sua crítica transborda sentimento. Um fecho perfeito para o relato de uma vida tecida de pura emoção. Nada melhor para ser o epílogo desta história. Obrigada, Mauro.

Regina Ribas

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Bolero é bolero. Pop é pop..., diferenciou Leny Andrade no palco do Canecão (RJ), antes de cantar Nosotros (Pedro Junco), um dos boleros que a cantora depura em cena com sua técnica majestosa. Em sua estreia nacional, na noite de 18 de junho de 2010, o show Alma Mía reeditou o êxito do disco homônimo lançado em maio pela gravadora carioca Fina Flor. Leny sabe cantar um bolero no tom exato, sem cair no pantanoso terreno sentimental em que se jogam várias cantoras que encaram esse ritmo cubano que se popularizou no México. Leny canta boleros com bom gosto. Sem maracas, sem bongô e sem congas, como a própria intérprete ressaltou em cena. Em contrapartida, em sua única apresentação no Canecão, Leny contou com orquestra de cordas – formada por 12 violinos – e naipe de sopros. Tudo sob a chique direção musical do pianista Fernando Merlino, produtor e arranjador do ótimo CD.

Como o disco que o inspirou, o show Alma Mía tem beleza por vezes linear. O tom e as tiradas pretensamente bem-humoradas de Leny sobre as letras – cujos conteúdos folhetinescos são descritos pela intérprete em bom e malicioso português – se repetem ao longo de boleros como Llévatela (Armando Manzanero) e Un Poco Más (Álvaro Carrillo). A entrada da orques-tra de cordas, a partir de Lluvia en la Tarde (Arturo Castro), altera a pulsação dos arranjos sem desviar o show do trilho básico. Lluvia en la Tarde, a propósito, é bolero que deságua no Rio da Bossa Nova, em arranjo inspi-rado. Após Entonces (Arturo Castro), número em que sobressai o piano de Fernando Merlino, Leny acerta ao inserir um set de músicas brasileiras. Porque poucas cantoras interpretam um samba como Alvoroço (João de Aquino e Ivor Lancellotti) com tanta segurança e com tanto suingue. Se Sou Eu (Luana) impressiona pelo laço afro que reforça as afinidades entre o maestro Moacir Santos (1926 – 2006) e o letrista do tema, Nei Lopes, Batida Diferente (Maurício Einhorn e Durval Ferreira) mostra – para quem ainda não sabe – que Leny sabe cair com bossa no samba-jazz. Número de longa duração, Batida Diferente é pretexto para scats e solos da afiada banda. O bloco nacional esquenta o show a ponto de, na volta aos boleros, Leny seduzir de imediato a plateia ao realçar toda a beleza de Alma Mía (Maria Grever) e de Vete de Mi, o bolero de Virgílio Expósito e Homero Expósito que Caetano Veloso gravou e propagou no álbum Fina Estampa (1994). No fim, uma esplendorosa interpretação de El Dia que me Quieras – a canção de Carlos Gardel e Alfredo Le Pera que se transmutou em bolero, mesmo tendo sido criada no universo argentino do tango – ratifica a maestria do canto de Leny Andrade, intérprete que sabe que bolero é bolero e que pop é pop.

Mauro Ferreira

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D I S C O G R A F I A

2010 – Meus Melhores Momentos (Eldorado)2010 – Alma Mía (Fina Flor)2008 – Momentos da Bossa ao Vivo (Albatroz CD)2001 – E Quero que a Canção Seja Você (Albatroz CD) 2000 – Leny Andrade Canta Altay Veloso (Paradox Music CD)1998 – Bossas Novas (Albatroz CD)1997 – Letra & Música / Leny Andrade e Cristóvão Bastos (Lumiar)1995 – Antonio Carlos Jobim, Letra e Música (Lumiar Discos CD)1995 – Embraceable You (Som Livre & Timeless)1995 – Luz Negra – Leny Andrade Canta Nelson Cavaquinho (Velas)1995 – Coisa Fina – Leny e Romero Lubambo (Perfil)1994 – Maiden Voyage – Fred Hersch (Chesky)1994 – Nós – Leny Andrade e César Camargo (Velas)1992 – Eu Quero Ver (Eldorado)1992 – Leny Andrade Canta Cartola (Velas & JVC)1991 – Luz Néon (Eldorado & JVC)1984 – Leny Andrade Live (Pointer)1980 – Registro com João Donato (SBS/Sony)1974 – Leny e César Camargo Mariano Quinteto (Odeon)1974 – Alvoroço (Odeon)1972 – Gemini V Anos Depois – Volume 1 (Odeon)1965 – Leny Andrade, Pery Ribeiro & Bossa 3 (EMI)1965 – Estamos Aí, com Eumir Deodato (Odeon LP)1962 – A Arte Maior de Leny Andrade (Polydor LP)1960 – Batida Diferente com Trio Tamba (RCA)1960 – A Sensação Leny Andrade (RCA LP)1955 – Toada sem Você (Palermo)

Créditos fotográficosMárcia Moreira capa

Demais fotografias pertencem ao acervo de Leny Andrade

A Editora agradece quaisquer informações sobre os detentores dos direitos das imagens não creditadas neste livro, bem como de pessoas não identificadas nas fotografias, apesar dos esforços envidados para obtê-las.

Coleção Aplauso Série Música

Coordenador geralRubens Ewald Filho

Projeto gráficoVia Impressa Design Gráfico

Direção de arteClayton Policarpo Paulo Otavio

Editoração Douglas Germano Emerson Brito

Tratamento de imagensJosé Carlos da Silva

Revisão Wilson Ryoji Imoto

CTP, impressão e acabamentoImprensa Oficial do Estado de São Paulo

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Ribas, Regina

Leny Andrade: alma mía/ Regina Ribas – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012.

132p. : il. – (Coleção aplauso. Série música / Coordenador geral Rubens Ewald Filho)

ISBN: 978-85-401-0026-8

1. Música popular – Brasil – História e crítica 2. Bossa nova – Brasil 3. Cantoras – Brasil 4. Andrade, Leny, 1943 I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série.

CDD 780. 92

Índice para catálogo sistemático:

1. Brasil : Cantoras : Biografia 780.92

Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

Proibida a reprodução total ou parcial sem a autorização prévia do organizador e dos editores

Direitos reservados e protegidos(lei no 9.610, de 19.02.1998)

Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (lei no 10.994, de 14.12.2004)

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009

Impresso no Brasil 2012

Imprensa Oficial do Estado de Sao Paulo Rua da Mooca, 1.921 Mooca 03103-902 Sao Paulo SP Brasil sac 0800 01234 01 [email protected] [email protected] www.imprensaoficial.com.br

© Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012

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GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

GovernadorGeraldo Alckmin

Secretário Chefe da Casa CivilSidney Beraldo

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

Diretor-presidenteMarcos Antonio Monteiro

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Formato 21 x 26cmTipologia Chalet Comprime e UniversPapel capa triplex 250g/m2

Papel miolo offset 120g/m2

Número de páginas 132

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Alma MíaLeny Andrade Regina Ribas

Regina Ribas é jornalista. Dedica-se à comunicação corporativa, com foco em planejamento estratégico e publicações institu-cionais. Trabalhou em empresas de grande porte, agências de Relações Públicas e de publicidade. Fundou e dirige a Oficina de Texto e participa como parceira do Instituto de Mídias Digi-tais (IMD) – PUC-Rio, do Projeto Portal Rio Digital, de acesso das comunidades à internet,

Graduada pela Universidade Federal da Bahia, tem pós gra-duação em Comunicação de Massa, Assessoria de Imprensa, Promoção de Vendas e Merchandising. Ao longo dos anos, participou de cursos, seminários, workshops e oficinas, atualizando-se em Assessoria a Executivos na Comunicação com a Mídia, Comunicação com Públicos Estratégicos, Webwriting e Novas Mídias.

Foi laureada em várias edições do Prêmio Aberje nas cate-gorias Relacionamento com o público interno, Jornal Mural, Comunicação Interna e Revista Impressa.

De olho no futuro, estuda Astrologia ouvindo jazz. Com Urano na cabeça, o inesperado fez-lhe uma surpresa e a encomenda da biografia de Leny Andrade da Coleção Aplauso chegou até ela pela amiga-irmã, Eliana Pace.

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