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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MUSEU NACIONAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL LUCIANA BARROSO COSTA FRANÇA CONTROLE E CANIBALISMO: IMAGENS DA SOCIALIDADE NA GUIANA Rio de Janeiro 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

LUCIANA BARROSO COSTA FRANÇA

CONTROLE E CANIBALISMO:

IMAGENS DA SOCIALIDADE NA GUIANA

Rio de Janeiro

2006

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Luciana Barroso Costa França

CONTROLE E CANIBALISMO: IMAGENS DA SOCIALIDADE NA GUIANA

FOLHA DE APROVAÇÃO

Luciana Barroso Costa França

CONTROLE E CANIBALISMO: imagens da socialidade na Guiana

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos pré-

requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.

Aprovada por:

_________________________________

Prof. Eduardo Batalha Viveiros de Castro (PPGAS – MN/UFRJ – orientador)

________________________________

Profa. Aparecida Vilaça (PPGAS – MN/UFRJ)

________________________________

Profa. Tânia Stolze Lima (UFF)

Rio de Janeiro, 2006

Para Leandro, meu irmão.

Agradecimentos

À CAPES, que me concedeu por dois anos uma bolsa de estudos.

Aos professores e funcionários do PPGAS-Museu Nacional.

A Tânia Stolze Lima e Aparecida Vilaça, por examinarem esta dissertação.

Aos colegas do mestrado, do Núcleo de Transformações Indígenas (NuTI) e da

Rede Abaeté de Antropologia Simétrica.

A Andrea Lacombe, pela amizade fiel. A Ingrid Weber, pelas acolhidas e pela força.

A Paula Siqueira, pelo cuidado. A Anne-Marie Colpron, Marina Vieira, Flávio Gordon,

Salvador Schavelzon e Paulo Maia, por terem lido e comentado esboços deste trabalho. A

Anne-Marie, também pela boemia. A Flávio e Salvador, também pela música e pelos

incentivos essenciais. A Julia Sauma, pela tradução. Também, a Alice Soares, André

Pessoa, Antonia Walford, Arthur Leal, Caroline Ausserer, Dirce França, Gustavo Vilela,

Marina Vanzolini, Michele Markowitz, Esther e Oswaldinho.

Aos amigos que, mesmo à distância, estiveram presentes, sobretudo, Clara, Carol,

Chris, Larissa e Vlad. A Felipe, pela cumplicidade sem igual.

A Renata Otto e Paulo Maia, por terem sido os melhores companheiros nessa

jornada. Pelo que temos partilhado, de antropologia e de tudo mais.

A Ruben Caixeta, pelo exemplo que sempre me deu e por ter, desde a graduação,

me ensinado as coisas mais importantes.

A meu orientador, Eduardo Viveiros de Castro, por tudo o que me inspiram suas

idéias, seus textos e suas aulas. E, também, pelo apoio fundamental para que eu pudesse

chegar ao fim deste percurso.

A Leandro, pelos sábios conselhos e pelo carinho.

A meus pais, Jadir e Geralda, por tudo e por algo mais.

Resumo

Esta dissertação tem como objetivo inter-relacionar duas imagens da socialidade tomadas a

partir de diferentes materiais bibliográficos referentes aos povos indígenas que habitam a

região norte da Améria do Sul, a área da Guiana. Ela apresenta, por um lado, a síntese

etnográfica produzida por Peter Rivière em Individual and Society in Guiana tentando

identificar alguns de seus pressupostos básicos relacionados à caracaterização das relações

sociais pela idéia de “controle”. Por outro lado, procura-se aqui fazer uma análise de um

conjunto de mitos provenientes da mesma região – à luz dos trabalhos de Lévi-Strauss e

dos recentes desenvolvimentos da etnologia americanista, sobretudo daquela vertente que

foi chamada de economia simbólica da alteridade – através da qual tenta-se oferecer uma

descrição alternativa das relações sociais pautada, sobretudo, na idéia do “canibalismo”. O

trabalho confronta essas duas ‘imagens’ procurando determinar os diferentes tipos de

problemas aos quais elas respondem.

Abstract

This dissertation has as its objective the inter-relation of two images of sociality taken from

different bibliographical sources that refer to the indigenous peoples who inhabit the

northernmost region of South America, in the area of Guyana. On the one hand, it presents

the ethnographic synthesis produced by Peter Rivière in Individual and Society in Guiana

in an attempt to identify some of the basic assumptions related to the characterisation of

social relations through the idea of “control”. On the other hand, this work aims to analyse

a combination of myths from the same region – in light of Lévi-Strauss’ writings and recent

developments in Americanist ethnology and above all the line called symbolic economy of

alterity – through which an alternative description of the said social relations is offered,

especially in relation to the idea of “cannibalism”. This work confronts these two ‘images’

in order to determine the different problems to which they respond.

Sumário

1. Introdução___________________________________________________________ 01

I. O mito e seu contexto sociológico: possíveis aproximações _____________________ 06

II. O parentesco e seu contexto teórico: possíveis alterações _______________________11

III. Um panorama da Guiana _______________________________________________15

IV. Plano do trabalho______________________________________________________24

2. O modelo etnográfico da Guiana_________________________________________ 26

I. O grupo local e o padrão de assentamento____________________________________29

II. A composição da aldeia: parentesco, casamento e residência____________________ 35

III. Aspectos das relações de afinidade________________________________________ 45

IV. A economia política do controle__________________________________________ 51

V. Algumas imagens da socialidade__________________________________________ 57

3. O modelo mítico da socialidade__________________________________________ 61

I. Um mito pemon: a visita ao céu___________________________________________ 68

II. A terra redonda da mitologia_____________________________________________ 74

III. Predação versus produção_______________________________________________ 86

IV. O sogro-canibal: variações______________________________________________ 95

V. Outras margens da socialidade___________________________________________ 101

4. Conclusão___________________________________________________________ 103

5. Referências Bibliográficas _____________________________________________ 110

Si vous voulez apprendre de l’Indien, pourquoi les vautours

jouent toujours un rôle si remarquable et pourquoi toujours il

les font monter, il vous rèpond d’un ton naïf: “Là-haut se

trouve toute la science du vautour”.

P. C. van Coll

1

Introdução

A presente dissertação pretende ser um experimento entre antropologias. Uma

tentativa de inter-relacionar duas formas pelas quais certos temas da sociologia dos povos

indígenas da floresta amazônica – em particular, da área da Guiana – foram (ou podem ser)

tratados. Mais precisamente, o propósito fundamental é o de procurar extrair de um

conjunto de mitos provenientes da região uma imagem do nexo social e confrontá-la com o

modelo sociológico que configurou o “padrão guianês”, estabelecido principalmente a

partir da síntese bibliográfica regional feita por Peter Rivière (1984). Em outras palavras,

através da análise de um grupo de mitos, gostaria de tentar sugerir uma outra imagem para

as sociedades guianesas que não aquela caracterizada, segundo Rivière, do ponto de vista

dos “invariantes da estrutura social”. Não se trata, todavia, de propor que uma imagem seja

substituída pela outra ou de procurar encontrar uma semelhança de fundo entre elas, mas de

“pôr em ressonância interna dois pontos de vista completamente heterogêneos” (Viveiros

de Castro 2001), o que envolve uma dimensão essencial de ficção.

Tomo essa idéia de realizar um “exercício de ficção antropológica” de Viveiros de

Castro (2001). Para este autor, a noção de “experiência de pensamento” implicada nessa

ficção não tem o sentido usual de “entrada imaginária na experiência pelo (próprio)

pensamento, mas o de entrada no (outro) pensamento pela experiência real” (Ibid: 32). Ou

seja, trata-se, para ele, de experimentar uma imaginação de forma controlada, seja pela

experiência do etnógrafo, do leitor da bibliografia etnológica ou de ambos. No caso deste

ensaio, trata-se de procurar experimentar contrastivamente duas imaginações – a do

antropólogo e a de seus nativos – a partir da leitura de certos materiais bibliográficos que,

em geral, são tratados separadamente. Em última instância, a intenção é menos fazer uma

“análise” ou um “exame” destes materiais do que tentar estabelecer entre eles uma

“relação”.

O caráter ficcional também decorre de uma dupla decisão, tomada algo

arbitrariamente, de horizontalização dos dois discursos. No mínimo como um procedimento

heurístico, a intenção é recusar a suposta diferença epistemológica entre discurso nativo e

discurso antropológico e, mais ainda, entre mito e ciência. Estou ciente de que toda uma

antropologia se constituiu a partir destas diferenças e que muitas delas podem ser

consideradas como perfeitamente plausíveis. Não me parece ser o caso tentar demonstrar

que o que se passa, na verdade, pode ser outra coisa. Mais modestamente, apenas gostaria

de poder passar por cima de certos pressupostos comuns à disciplina e tentar imaginar o

que aconteceria caso pudéssemos deles prescindir. Se pudéssemos, por exemplo, ver nos

mitos uma sociologia propriamente indígena, um modo pelo qual os povos indígenas da

floresta amazônica compreendem e expressam aquilo que vem a ser o domínio de suas

relações sociais.

As duas imagens aqui consideradas descrevem o mundo utilizando-se de materiais

simbólicos muito diferentes. Os mitos falam de sangue, mel, tabaco, podridão, casamentos

interespecíficos, canibalismo, metamorfoses, e coisas do gênero. Falam de qualidades

sensíveis nas quais estão embutidos certos princípios cosmológicos; de uma economia

simbólica da alteridade inscrita no corpo e nos fluxos materiais; de um fundo de

socialidade virtual (cf. Viveiros de Castro 2002) e de um tempo “em que os homens e os

animais ainda não eram diferentes” (Lévi-Strauss e Eribon 1990: 178). O modelo de

Rivière, por sua vez, fala de “reprodução social”, “manipulação de recursos humanos”,

“regra positiva de casamento”, “endogamia prescritiva”, entre outras expressões típicas do

vocabulário antropológico. Fala de uma economia política do controle que se traduz em um

modo pelo qual, em algumas sociedades, a produção e a distribuição de riquezas é

ordenada1. Estas duas imagens pressupõem certos solos pré-conceituais e projetam certos

mundos possíveis (cf. Viveiros de Castro 2001). Meu intuito é justapor estas imagens para

assim tentar tornar explícitos e melhor avaliar os pressupostos subjacentes aos modos de

socialidade nelas implicados, bem como às antropologias que informam as maneiras pelas

quais estas imagens são desenhadas2.

Uma relação de parentesco em particular fará as vezes de termo comparativo

provisório entre estes dois conjuntos, a saber, a relação entre sogro e genro. A

provisoriedade do termo decorre justamente do fato de que esta “mesma” relação, num

1 As expressões “economia simbólica da alteridade” e “economia política do controle” foram cunhadas por Viveiros de Castro (2002: 333-336) e dizem respeito a dois estilos analíticos nos estudos contemporâneos das sociedades amazônicas. Como diz o autor, esta classificação corresponde a ênfases teóricas dentro de um campo temático comum. A primeira delas é representada, entre outros e em causa própria, pelo próprio autor que faz coincidir a ênfase dada por sua análise com a própria ênfase dada pelos povos indígenas sul-americanos em seus modos de conceberem e se relacionarem com o mundo. A segunda tem como um de seus principais representantes Peter Rivière que, diga-se de passagem, não parece recusar essa descrição para a sua própria abordagem (cf. Rivière 2001a).

2 Nesse modo de formular a questão, tinha em mente a análise realizada por David Schneider, no seu A critique of the study of kinship (1984). Pensava, particularmente, no seu objetivo de pensar como duas descrições radicalmente diferentes podem ser desenhadas a partir do que parece ser o mesmo corpo de materiais factuais. Para Schneider, isso é possível porque as próprias teorias, pressuposições e os propósitos que informam cada descrição diferem. Sua primeira descrição das ilhas Yap apresenta o material concreto em termos do conhecimento convencional dos estudos de parentesco. A segunda descrição tem uma proposta de trazer os mesmos dados e reapresentá-los, na medida do possível, sem as pressuposições de parentesco da primeira descrição. Isso me fez pensar que o modo como o “parentesco” é expresso nos mitos pode diferir radicalmente do modo ele é tratado nas descrições antropológicas convencionais. Fez-me querer pensar nas possíveis relações que esses dois “modos de descrição” (ou antropologias) podem ter entre si. Uma relação que pode fazer ressaltar as diferenças, a despeito das eventuais semelhanças. Tratar-se-ia, portanto, de colocar em ressonância duas “formas de antropologia” completamente heterogêneas.

sistema e noutro, pode significar coisas bastante diferentes. O aspecto genealógico que a

define será tomado apenas como um ponto de partida. O que aqui importa saber é sobre o

quê pode ser essa relação nos dois sistemas simbólicos considerados (cf. Schneider 1972).

As diferenças existentes parecem-me estar implicadas nas analogias nas quais esse vínculo

de parentesco está, em cada caso, diversamente concernido.

Os mitos dos quais iremos tratar põem em cena casamentos interespecíficos que

envolvem genros humanos e sogros animais. Do ponto de vista das relações de parentesco,

a esposa de um é a filha de outro ou, melhor dizendo, o que um vê como um afim o outro

vê como um consangüíneo. Essa diferença é reforçada pelo problema perspectivista3

implicado na interespecificidade das relações sociais, pois aquilo que um vê, por exemplo,

como vermes é visto pelo outro como peixe assado. No mundo dos mitos, estes dois modos

de comparar relações são combinados em uma só analogia (cf. Viveiros de Castro 2002:

385). Já o modelo de Rivière apresenta sogros e genros não apenas como humanos, mas

como cognatos, de acordo com o ideal endogâmico que, segundo o autor, é comum na

região. Ou seja, ambos vêem a mulher que os une como um consangüíneo. A relação,

tomada a partir de seu aspecto genealógico, é comparada com certos aspectos da liderança

política – a disputa pelo controle sobre os mesmos recursos escassos, no caso em questão,

as capacidades produtivas e reprodutivas das mulheres.

3 O conceito de “perspectivismo ameríndio” foi elaborado por Viveiros de Castro (2002) e vem sendo desenvolvido em diversos estudos americanistas recentes. Ele traduz a concepção, bastante comum entre os povos do continente, segundo a qual “o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos” (Ibid.: 347). A idéia básica do conceito é resumida pelo autor da seguinte maneira: “toda posição de realidade especifica um ponto de vista, e [...] todo ponto de vista especifica um sujeito — nessa ordem” (Idem.2001: 8).

Nesse sentido ao menos, o que o antropólogo faz não difere muito do que faz o

nativo. Ambos tecem analogias entre diferentes domínios de seus mundos, embora estes

mundos possam, precisamente, não ser os mesmos. Essas comparações, elas próprias,

podem ser comparadas. Mas, como sugere Viveiros de Castro (2004), essa

comparatibilidade direta pode não significar uma tradutibilidade imediata. Diante disso, diz

ele, resta saber o que acontece com nossas comparações quando nós as comparamos com as

comparações indígenas. Ou, transpondo diretamente para o contexto deste trabalho, o que

acontece com a analogia implícita no modo pelo qual Rivière compreende a relação entre

sogro e genro entre os povos indígenas da Guiana se comparada com o modo pelo qual os

próprios nativos da região descrevem comparativamente esta mesma relação em seus

mitos?

A escolha de tomar essa relação de parentesco específica como ponto de partida

para a comparação é, em parte, arbitrária – pois outros termos poderiam ser considerados e

talvez apontassem para diferenças semelhantes –, mas, em parte, é estratégica na medida

em que, por um lado, essa relação ocupa um lugar central no modelo descrito por Rivière e,

por outro, é um tema pregnante em um conjunto de mitos provenientes da região da

Guiana. No contexto descrito por Rivière, ela está associada a um controle uxorilocal dos

homens mais velhos sobre os mais jovens através das mulheres. Nos mitos ela aparece em

uma situação arquetípica em que um humano se casa com uma mulher-animal e tem que

realizar uma série de tarefas difíceis ou perigosas impostas por seu sogro que o ameaça

devorar em caso de fracasso, mas de quem obtém os bens culturais. Num caso, controle;

noutro, canibalismo.

I. O mito e seu contexto sociológico: possíveis aproximações

O que pretendemos fazer, portanto, é inter-relacionar dois “textos” e não o discurso

mítico e a realidade etnográfica de onde ele provém, já que, de fato, não dispomos dela (se

é que seria possível dela dispor). Mas, de diferentes maneiras, este foi o caminho que vários

autores se propuseram a seguir no sentido de tentar compreender o que dizem os mitos. Em

sua monumental análise da mitologia ameríndia, Lévi-Strauss demonstra que “o mito é uma

metalinguagem, da qual a realidade etnográfica, dada como objeto, guarda a chave” (Lima

1995: 10). Mas, ao menos no caso deste autor, a relação entre o texto do mito e seu

contexto, não é simples ou mecânica. Para ele, o mito não reflete esta “realidade

etnográfica” e pode mesmo contradizê-la (podendo esta distorção, no entanto, fazer parte de

sua estrutura). Na análise lévi-straussiana, a relação entre estes dois planos é complexa. O

mito atualizaria, de uma só vez, algumas das infinitas possibilidades dadas tanto pelo

contexto empírico de sua enunciação (a infra-estrutura geográfica, ecológica ou

tecnológica; a sociedade; os eventos históricos; etc.), quanto pelas transformações de outros

mitos (mesmo que provenientes de outras sociedades, mesmo que as mais longínquas). Não

haveria, portanto, um referente último ou um código privilegiado capaz de decifrar-lhe a

significação, pois, em última instância, a unidade do mito seria projetada num foco virtual

(Lévi-Strauss 1964: 37).

Outros autores, contudo, encararam a relação entre mito e realidade etnográfica de

maneira bem mais direta. Terence Turner, por exemplo, critica Lévi-Strauss porque a

concepção de estrutura e o método analítico deste teriam sido concebidos “comme des

moyens de contourner l’écheveau des associations contextuelles des éléments d’un récit

mythologique, dans le but de permettre l’elaboration d’um modèle de la structure du mythe

dans son ensemble qui serait basé sur l´intégration d’éléments de contextes différents et

largement séparés” (1980: 85). Para Turner, Lévi-Strauss estaria interessado em descobrir

uma “estrutura coerente” que só poderia emergir a despeito das relações contextuais

concretas de onde a narrativa mítica teria sido constituída4. Contrapondo-se a este tipo de

abordagem, Turner sugere que

(…) dans le mythe, comme en poésie et dans d’autres formes complexes de discours,

l’association et la co-variation contextuelles sont les moyens principaux qu’il faut

exploiter pour lier l’interdépendance systématique (c’est-à-dire la “structure”) au

niveau de la signification. Autrement dit, la “structure” du mythe est transmisse à

travers les relations contextuelles entre les éléments symboliques du mythe.

L’“histoire” que raconte le mythe est, dans ces conditions, comprise comme une série

de “contextes”, c’est-à-dire de groupes juxtaposés de relations qui encoden eux-mêmes

la structure (1980: 86).

Para demonstrar a sua maneira de abordar os mitos, Turner reconta o mito

kayapó do desaninhador de pássaros e tenta articulá-lo com alguns elementos da

composição social desta sociedade. Ele sugere que o tema fundamental do mito é a

passagem brusca da residência na casa dos homens à residência no grupo doméstico da

mulher, situação essa que, segundo a descrição do próprio Turner, seria vivenciada

concretamente na sociedade kayapó. Tudo se passa como se por trás do mito estivessem o

que, para o autor, são “as concepções profundas sobre a natureza fundamental de toda

sociedade humana”, a saber, “a capacidade de reprodução das relações sociais de produção”

(1980: 109). Para Turner, os mitos se apresentam como formas reguladoras dos processos

4 Literalmente, diz Turner, referindo-se à análise lévi-straussiana: “une structure cohérente, si l’on pouvait en découvrir une, devait par conséquent émerger pour ainsi dire en dépit des relations contextuelles dont le récit est concrètement constitué – et codifié sous un angle différent du text – plutôt qu’à travers elle” (1980: 85-6).

de ação, e é essa função reguladora que exige que eles assumam as estruturas das categorias

próprias aos processos de ação dos quais participam.

A crítica feita por Turner a Lévi-Strauss parece-me algo exagerada. A análise

estrutural deste último acerca dos mitos jamais concebeu que se pudesse atingir qualquer

nível de significação sem que se levasse em conta elementos do contexto etnográfico. Diga-

se de passagem, Lévi-Strauss em diversos momentos insiste em dissipar quaisquer

confusões que reduzam o estruturalismo a um mero formalismo, o que parece ser o fundo

da crítica de Turner. Mas, de fato, o modo pelo qual os dois autores articulam o mito e a

situação empírica diverge bastante. Diferentemente de Turner, os “mitos lévi-straussianos”

não representam a realidade, embora mantenham com ela uma relação intrínseca5. Como

diz Lévi-Strauss:

Seria (...) ingênuo de nossa parte imaginar que existe sempre e por toda parte uma

correlação simples entre representações míticas e estruturas sociais, expressa por meio

das mesmas oposições; por exemplo, que mitos dioscúricos são o acompanhamento

normal de organizações dualistas, ou que, nas sociedades patrilineares, o céu deve ser

masculino e a terra feminina, ao passo que a relação inversa prevaleceria

automaticamente nas sociedades matrilineares (Lévi-Strauss 1964: 376).

Peter Rivière também interpreta um mito trio de uma maneira que, num certo

sentido, muito se assemelha à abordagem de Turner. Neste mito, o herói cultural recebe do

5 No que diz respeito a Turner, é preciso matizar essa colocação. O autor afirma explicitamente que “la pensée

mestre do mundo aquático subterrâneo uma esposa e uma vasta gama de conhecimentos e

objetos culturais, sem nada dar em troca. Para o autor, a relação não parece ser predatória –

“todos os bens são oferecidos e não simplesmente tomados” (2001a: 43) – embora pareça-

lhe unidirecional. Rivière é cauteloso ao fazer explorações quanto à natureza da economia

simbólica dos povos da Guiana, mas ele sugere que esse mito corroboraria a sua hipótese de

que, entre estes povos, as trocas são marcadas mais pela reciprocidade do que pela

predação, ao mesmo tempo em que se poderia reconhecer “uma ligeira indisposição em

cumprir sua parte da troca” (2001b: 17). Rivière, como Turner, acaba tomando o enredo do

mito como se nele se expressasse o modo pelo qual, empiricamente, se relacionam (ou

deveriam se relacionar) os atores e seus projetos de ação.

David Thomas, em sua etnografia sobre os Pemon, faz uma análise de três mitos,

onde pretende “to examine the tales as symbolic statements about the form and content of

social relations” (1982: 188). Ele conclui que estes mitos exprimem as noções nativas de

“hierarquia”, de “reciprocidade balanceada” e de “demandas individuais disruptivas”

(1982: 5). A análise dele, ainda que tomando o enredo dos mitos de maneira mais

paradigmática que Rivière e Turner, também parece fazer com que os mitos sejam uma

tradução algo imediata do contexto sociológico. Thomas segue a crítica de Burridge (1967)

a Lévi-Strauss, segundo a qual seria preciso enfatizar o conteúdo dos mitos, o que,

supostamente, não teria sido feito por este último.6

6 O artigo de Burridge citado por Thomas, “Lévi-Strauss and Myth”, parece-me repousar sobre uma série de mal-entendidos acerca dos princípios da análise estrutural. O problema fundamental, penso, poderia ser resumido no modo pelo qual o autor do referido artigo compreende que Lévi-Strauss teria oposto conteúdo e forma. Este último, entretanto, sempre procurou evitar tal oposição. Num artigo escrito para responder particularmente às acusações de formalismo, ele dizia: “Ao inverso do formalismo, o estruturalismo recusa opor o concreto ao abstrato, e não reconhece no segundo um valor privilegiado. A forma se define por oposição a uma matéria que lhe é estranha, mas a estrutura não tem conteúdo distinto: ela é o próprio

II. O parentesco e seu contexto teórico: possíveis alterações

As críticas de Schneider (cf. 1972, 1984) aos estudos de parentesco abriram o

campo para que este domínio canônico da antropologia fosse reconsiderado de uma

maneira muito diferente do que havia sido até então. Um dos principais problemas

destacados pelo autor é que a maioria dos antropólogos, apesar de todas as suas estratégias,

não teria sido capaz de abandonar a grade genealógica para definir o parentesco. Desde

Morgan – e em autores tão diferentes como Durkheim, Lévi-Strauss, Leach e Needham,

entre outros –, a concepção dos laços biológicos como um domínio dado a priori teria

permitido a comparação entre os diferentes sistemas de parentesco e a própria consolidação

destes estudos. Segundo Schneider,

the assumption that Blood Is Thicker than Water says that whatever variable elements may

be grafted onto kinship relations, all kinship relations are essentially the same and share

universal features. Hence the genealogical grid can be used as an etic grid: comparable

things are being compared and analyzed by first establishing their identity and universality

and holding constant the components that make them comparable (1984: 174).

Mas o ponto de Schneider é que a segregação arbitrária de uma rubrica como

“parentesco”, tomado fora do contexto da cultura como um todo, não seria um bom

caminho para entender como uma cultura é estruturada. Para ele, o problema não poderia

ser colocado no modo pelo qual cada cultura formula respostas particulares a uma questão

universal (quem é o parente?), mas em conceber quais seriam as próprias perguntas

relevantes em cada sistema cultural (o que é um parente?). Em outras palavras, para

Schneider, o “parentesco” deveria ser esvaziado de quaisquer significados transcendentais

(as premissas bio-genéticas da grade genealógica) e tomado como um sistema de símbolos

e significados, que poderiam ser encontrados em domínios muito diferentes que aqueles

diretamente relacionados com os problemas da reprodução humana. Diz ele:

One must take the native’s own categories, the native’s units, the native’s organization, and

articulation of those categories and follow their definitions, their symbolic and meaningful

divisions wherever they may lead. When they lead across the lines of ‘kinship’ into politics,

economics, education, ritual, and religion, one must follow them there and include those

areas within the domains which the particular culture has laid out. One does not stop at the

anthropologist’s arbitrarily defined domains of ‘kinship’, ‘religion’, ‘ritual’, and ‘age-sets’,

etc., but instead draws a picture of the structure of a culture by means of the categories and

congeries of units which the culture defines as its parts; one interrelates these in terms

which, in that particular culture are symbolically defined as identical, drawing distinctions

among parts which that culture itself defines as different by their different symbolic

definition and designation (1972: 51).

A crítica schneideriana foi, direta ou indiretamente, absorvida pela nova safra de

trabalhos americanistas no domínio do parentesco que passou a procurar, não mais

comparar sistemas a partir de conexões biológicas, mas questionar o valor e o significado

destas conexões. Neste sentido, os estudos realizados nas terras baixas sul-americanas, a

partir da segunda metade dos anos 70, tenderam a reimergir “o parentesco em sistemas

mais amplos de classificação social e em concepções cosmológicas globais” (Viveiros de

Castro 2002: 106). Por um lado, as relações sociais internas ao grupo local passaram a ser

consideradas em seu caráter processual. As práticas cotidianas – como a “fabricação” dos

corpos, a comensalidade ou as restrições impostas pela couvade – capazes de fazer com

que, progressivamente, estranhos se tornassem parentes e, ao mesmo tempo, de evitar que

parentes se tornassem estranhos começaram a ser enfatizadas em contraponto com as

conexões supostamente dadas pelo nascimento (cf. p. ex. Vilaça 2002). Por outro lado, o

exame das relações de parentesco se expandiu para fora do grupo local, para vários outros

circuitos de troca simbólica como a guerra, o comércio, os rituais, o xamanismo ou os

mitos. Esse exterior (povoado por seres de humanidade duvidosa) passou a ser considerado,

não mais como pura negação da socialidade, mas em sua positividade, como o ambiente

mesmo que daria o tom de todas as relações sociais (Viveiros de Castro 2002: 413-418). 7

Para dentro e para fora do grupo local, fez-se vibrar o nosso conceito de parentesco com

diversos domínios do socius indígena no sentido de tentar estabelecer aquilo que se poderia

chamar de “parentesco” no contexto amazônico.

Se os laços bio-genéticos não deveriam mais ser tomados como o dado a priori que

conecta as pessoas, o que, no caso ameríndio, o faria? Pois, seguindo a formulação de

Wagner (1981), em toda cultura, um dado, seja ele qual for, é sempre pressuposto. Algum

domínio simbólico é sempre construído como se fosse a manifestação do inato, enquanto

outro é concebido como inteiramente construído. A tese defendida por Viveiros de Castro é

que o parentesco amazônico daria à afinidade “a função de dado na matriz relacional

cósmica” (2002: 406). Nesse sentido genérico, ela é chamada pelo autor de “afinidade

potencial”, distinguindo-se da manifestação particuar do nexo de parentesco. O processo de

atualização deste princípio constituiria assim a área própria da fabricação, da intervenção

humana na ordem das coisas.

Um desenvolvimento particularmente rico destas críticas contra a aplicação

mecânica das ferramentas analíticas antropológicas (universais) a contextos etnográficos

(particulares) foi feito por Roy Wagner, em seu The Invention of Culture. Neste livro, o

autor descreve o processo pelo qual o pesquisador em campo, da sua inadequação aos

7 Toda essa reviravolta nos estudos do parentesco amazônico colocou em questão a própria idéia do que viria a ser o “interior” e o “exterior”, já que tudo indicava que um se constituía pelo outro.

novos contextos que experimenta, faz emergir o que vem a ser a “cultura” do povo

estudado8. Ou seja, para Wagner, o que chamamos de cultura é, antes de tudo, um efeito da

relação entre antropólogo e nativo. É a objetificação das diferenças entre os diferentes

mundos cujo elo é dado por aquele que se propõe a efetuar, entre eles, a passagem instável.

III. Um panorama da Guiana

A área referida como “região da Guiana” fica no nordeste das terras baixas sul-

americanas, entre o rio Amazonas, o Negro, o canal do Casiquiare, o Orinoco e o oceano

Atlântico10. Cercada de água por todos os lados, a região pode ser considerada como uma

enorme ilha marítimo-fluvial no norte da América do Sul. Politicamente, o território

abrange o leste e o sul da Venezuela, a Guiana, o Suriname e a Guiana Francesa e, do

Brasil, o Amapá, o norte do Pará, Roraima e parte do norte do estado do Amazonas.

potencializar essa capacidade de alteração do discurso convencional da antropologia pelos discursos dos outros.

10 A maior parte das informações que se seguem, acerca dos aspectos físicos e etnográficos gerais da região, estão baseadas na descrição de Gillin (1948) e Rivière (1984).

vai de setembro a março e outra, chuvosa, que vai de abril a agosto. Em alguns lugares,

uma breve estação chuvosa e outra seca permeiam as grandes estações.

De modo geral, o método agrícola consiste na derrubada e queima da mata [slash-

and-burn method].13 A limpeza das roças é usualmente feita por homens, trabalhando

sozinhos ou assistidos por seus parentes. A exaustão do solo requer que novas roças sejam

constantemente utilizadas. A principal planta cultivada e consumida é, por todos os lugares,

a mandioca-brava. Os principais produtos obtidos da mandioca são o pão e a bebida. Outras

plantas cultivadas são a mandioca-doce, a batata-doce, o inhame, o amendoin, o milho, a

banana, a cana-de-açúcar, o abacaxi e a pimenta. A caça geralmente é uma tarefa realizada

por um ou dois homens com seus cachorros e vários tipos de armas são utilizadas. A pesca

e a coleta de produtos da floresta também possuem um papel importante na economia

total.14 O consumo de tabaco, freqüentemente associado às práticas xamânicas, é bastante

generalizado.

As aldeias costumam ser pequenas, dispersas e impermanentes. Idealmente, uma

unidade social básica é formada por parentes. Ou seja, existe uma preferência pela

endogamia nas aldeias, mas seu pequeno porte raramente a permite. A regra de

descendência é cognática e a categoria prescrita de casamento inclui os primos cruzados

13 Algumas das técnicas utilizadas nas atividades de subsistência, certos padrões da cultura material e do aldeamento, por várias razões, têm se alterado entre alguns dos grupos da região ao longo das últimas décadas. As descrições destes aspectos nas quais me baseio dizem respeito a uma época específica e provavelmente não traduzem bem o que se pode encontrar hoje em todas as sociedades indígenas guianesas (embora, por outro lado, não haja maiores indícios de que tudo tenha se transformado completamente). Como a intenção aqui é apenas panorâmica, peço apenas que se tenha em mente essas ressalvas.

14 Segundo Rivière, não é óbvio para um observador qual destas atividades é mais importante, mas um Trio não teria dúvidas em dizer que poderia viver sem carne, mas que sem pão, morreria (1969: 42). Entre os Piaroa, a escala de valores parece corresponder à dos Trio (cf. Overing, 1975: 37).

bilaterais (entre outros indivíduos genealogicamente definidos – como, em alguns casos, a

filha da irmã (ZD) – ou mesmo sem laços genealógicos). Ao menos durante o período que

sucede imediatamente o casamento, o mais comum é que a residência seja uxorilocal. É

quando o genro, ao receber sua mulher, deve realizar uma série de serviços para seu futuro

sogro. Politicamente, cada aldeia costuma ter um chefe que, em muitos casos, possui uma

autoridade bastante fraca e uma posição débil, dependente da rede de relações com seus

parentes próximos.15

Alguns dos povos indígenas que habitam (ou habitaram) a região são conhecidos

pelos etnônimos de Aparai, Paravilhana, Wayana, Kalina, Trio, Akurio, Pianokoto, Waiwai,

Hiskariana, Karafawyana, Parukwoto, Tarumá, Mawayana, Xerew, Katuena, Tunayana,

Cikyana, Wapixana, Macuxi, Pemon, Kapon, Taurepang, Arekuna, Kamarakoto, Patamona,

Akawaio, Ingarikó, Yekuana, Marikitare, Maiongong, Guinau, Piaroa, Panare, Shiriana,

Yanomami, Waicá, Sanumá, Warao, Palikur, Karipuna, Waiãpi, Zo’é, Kaxuiana, Waimiri-

Atroari, Émerillon, Galibi16. Uma proporção significativa destes grupos fala línguas

predominantemente da família caribe, embora algumas pertençam a outras famílias

15 Esses traços serão mais bem desenvolvidos no segundo capítulo desta dissertação.

16 Estes são apenas alguns dos nomes de grupos indígenas que habitam a área da Guiana, mas a lista poderia se estender ainda mais. Outros grupos da região podem não estar representados por nenhum destes nomes. Acontece, por exemplo, que, em algumas línguas, existem sufixos que significam “habitantes de”. Vê-se então uma proliferação de termos, formados por nomes de lugares mais o sufixo, que são usados na designação de diversos grupos locais. Além disso, um mesmo etnônimo pode ser usado em referência a vários grupos, ou, reversamente, os mesmos grupos podem ser reconhecidos por vários nomes. De modo geral, a designação de etnônimos em todas a região da Guiana configura um quadro bastante complexo por várias razões (cf. Farage 2002, Thomas, 1982). Entre elas, está o fato de que as autodenominações raramente coincidem com os modos pelos quais cada grupo é denominado pelos outros, o que gera uma certa discordância entre os autores quanto ao uso que fazem destes nomes. Para outros nomes de grupos indígenas que habitam a região, ver Gillin (1948: 801-817).

lingüísticas. Gillin (1948) sugere que devem ter havido ao menos dez línguas indígenas, ao

longo da história, na região.17

Vários destes grupos foram descritos por diversos autores – entre missionários,

viajantes, cronistas, funcionários coloniais, historiadores, antropólogos – desde o fim do

século XVI. Mas, apesar disso, Gillin, no capítulo do Handbook of South American Indians

dedicado à área da Guiana, chamava a atenção para o fato de que “the ethnograpy of the

Guianas suffers from de lack of systematic modern studies of individual tribes” (1948:

818). Mesmo mais recentemente, no início da década de 70, Arvelo-Jimenez também

afirmava que “la selva tropical suramericana, y las Guayanas em particular, representan una

de las áreas etnográficas menos conocidas” (1971: 1-2). A autora diz que muito do que se

sabia sobre a região nesta época baseava-se em revisões da literatura escrita por

missionários, exploradores, viajantes e naturalistas e lamenta que “no se hayan sumado

posteriormente estudios intensivos sobre el sistema social y político de esas sociedades”

(Ibid.: 2). De fato, a quantidade e a qualidade das descrições disponíveis dos diferentes

povos e nos diferentes períodos históricos é bastante desigual. As imagens de sociedade

oriundas destas descrições também divergem consideravelmente. Os grupos formados por

assentamentos pequenos, dispersos, e endógamos, que correspondem a uma certa descrição

da região, contrastam com outras descrições em que se enfatiza assentamentos maiores,

densidades demográficas mais altas e níveis diferenciados de integração política. Os

significados dessas discrepâncias entre o que se apresenta nos materiais etnográficos

17 Essas famílias, segundo ele, são: “Arawakan, Auakéan, Cariban, Caliánan, Macúan, Muran, Salivan (or Macúan), Shirianán, Tupian e Warrauan (or Guaraunan)” (Gillin 1948: 800).

recentes e nas fontes antigas sobre a região do escudo da Guiana têm sido investigados por

alguns autores (cf. p. ex. Gallois 2005, Costa 2000).

A etnografia das Guianas teve uma grande influência sobre a antropologia feita nas

terras baixas da América do Sul. Segundo Rivière (1984), as pesquisas de campo

antropológicas na região, com caráter intensivo, remontam à década de 30, ao estudo de

Gillin sobre os caribes do rio Barama, seguindo-se a ele os trabalhos de Butt, Fock e Yde.

O próprio livro de Rivière (1969), sobre o casamento entre os Trio, é considerado como a

primeira descrição etnográfica rigorosa de um sistema de parentesco amazônico e estaria na

origem de várias outras monografias regionais (Viveiros de Castro, 2002: 101). Também

crucial foi o trabalho de Joana Overing (1975) na formulação de problemas que iriam guiar

a antropologia sul-americana nas décadas seguintes. Na mesma época, também foram

publicadas as monografias de autores como Arvello-Jimenez, Jean-Paul Dumont, Paul

Henley e Jean Lapointe. No final da década de 70, estes trabalhos, entre outros, deram um

novo fôlego aos estudos de parentesco na Amazônia que passaram a questionar o uso de

modelos alógenos para descrever a estrutura social das populações indígenas sul-

americanas.18 Na avaliação de Viveiros de Castro (2002), a Guiana acabou sendo palco

privilegiado de tais reformulações teóricas e o parentesco tornou-se o tema guianense por

excelência.

Apesar da área ter sido tratada por vários autores, desde o início do século, a partir

de um conjunto de problemáticas regionais, o “recorte guianense” consolidou-se de fato

18 Neste sentido, particularmente importante foi o simpósio do XLII Congresso de Americanistas (Overing Kaplan [org.] 1977).

acompanhar por descrições e análises dos idiomas simbólicos21. Cisão muito difícil de se

fazer, sobretudo no contexto amazônico onde, como diversos autores já argumentaram (p.

ex. Overing 1977, Seeger 1979), o plano da organização social não pode ser separado dos

modelos conceituais indígenas que definem o que é ser humano ou animal, vivo ou morto,

homem ou mulher, parente ou afim e que se expressam pelos processos de fabricação do

corpo, pelas instituições rituais, pela mitologia, etc22. Se de fato, como parece ser o caso, as

sociedades guianesas apresentam um alto grau de uniformidade sociológica, o que dizer da

cosmologia?

A (relativa) pouca atenção dispensada, por exemplo, à análise da mitologia local,

em contraponto às descrições sociológicas, é ainda mais notável se se considera que a

região possui um corpus mítico dos mais bem documentados do continente. Desde o final

do século XIX, viajantes e pesquisadores como Brett, Im Thurm, Coll, Roth e Koch-

Grünberg empenharam-se em registrar os mitos narrados nas diversas sociedades indígenas

por onde passaram. Outros autores, contemporâneos, como Armellada, Frikel, Fock,

21 Nessa época, não se pode dizer que a cosmologia, ou mesmo a “sociocosmologia”, tenha recebido na etnologia das Guianas a mesma atenção, por exemplo, que nos estudos de povos de língua Tukano (p. ex. Hugh-Jones 1979) ou Tupi (p. ex. Viveiros de Castro, 1986). Contudo, a marginalidade da cosmologia nas etnografias da região até o início dos anos 80 também não é absoluta. Existem algumas exceções, entre as quais os trabalhos de J-P. Dumont, Fock, Morton, Overing Kaplan, e Wilbert.

22 Recentemente, no Prefácio à edição brasileira de Individual and Society in Guiana, Rivière procurou responder às críticas feitas por alguns resenhistas a este trabalho. Ele admite que pode ter “dado a impressão” de efetuar um divórcio entre a sociedade e a cultura (ou a cosmologia), o que, diz ele, no contexto amazônico não acontece de modo algum. Segundo o autor, “existe um ajuste notável entre os ideais sociológicos caracterizados pela natureza consangüínea, endogâmica e autônoma das unidades residenciais e as idéias metafísicas e cosmológicas dominadas por um relacionamento conceitual entre o dentro e o fora, associado respectivamente à segurança e ao perigo, à similaridade e à diferença” (2001b: 11). Rivière diz que, se fosse reescrever o livro, combinaria a apresentação das idéias sociais, cosmológicas e metafísicas recorrendo ao conceito de “casa” formulado por Lévi-Strauss. Seja como for, nos últimos anos, o autor escreveu alguns trabalhos mais voltados para tais combinações (cf. p. ex. Rivière 2001a, Koelewijn 1987).

que veio a ser chamado de metafísica da predação. A recorrência desses temas (em sua

gama de variações) entre as sociedades indígenas do continente sugere uma verdadeira

continuidade de um certo idioma simbólico que se expressa, entre outras instâncias, no

mito.

Se tomarmos as idéias desenvolvidas por esses autores, restaria saber como certos

aspectos da cosmologia ameríndia se apresentam nos mitos guianenses e como estes, por

sua vez, se relacionam com a sociologia local. De outro modo – tentando aplicar o modo de

articulação dos mitos à matéria deste ensaio –, como o tipo ideal que configurou o padrão

guianês também pode ser visto (se é que pode) como uma versão destes mitos? E, quais as

transformações implicadas nessa relação?

IV. Plano do trabalho

No segundo capítulo, apresentaremos a descrição geral das sociedades guianesas

feita por Peter Rivière em Individual and Society in Guiana, focalizando aquilo que o autor

identificou como os “invariantes da estrutura social”: o tamanho e a duração das aldeias, as

regras de casamento, os sistemas terminológicos e de atitudes e os padrões (ideais e

factuais) de residência. Esses invariantes, que constituem uma forma típica das sociedades

guianesas, serão apresentados sob o fundo do material etnográfico de três grupos indígenas

em particular: os Pemon, os Trio e os Piaroa. Tentaremos, enfim, explicitar algumas idéias

que nos parecem compor a imagem do vínculo social neste modelo etnográfico.

No terceiro capítulo, trataremos de um grupo de mitos guianenses que tem como

personagem uma figura típica da mitologia sul-americana, a saber, o sogro-canibal.

Procuraremos demonstrar como esses mitos formam, entre si e com diversos outros mitos

apresentados nas Mitológicas, um sistema de transformação. O propósito é tentar extrair

desses mitos os elementos que compõem um possível discurso sobre a natureza das

relações sociais.

Na conclusão, tentaremos sugerir algumas conexões entre os dois “discursos” e

pensar em como eles resultam de diferentes problemas, nos dois casos, antropológicos.

2

O modelo etnográfico da Guiana

O objetivo deste capítulo é apresentar o modelo que caracterizou as sociedades

indígenas guianesas a partir da análise feita por Peter Rivière em Individual and Society in

Guiana (1984)23. Através dele, procurarei explicitar aquilo que conforma uma certa

‘imagem da relação social’ vinculada à descrição de um laço de parentesco em particular, a

saber, entre sogros e genros. Por um lado, o foco nessa relação de parentesco deve-se à

centralidade do lugar que ela ocupa no modelo proposto, pois, nele, ela está

fundamentalmente associada a um componente essencial dos mecanismos de troca que

constituem estas sociedades: o controle. Por outro lado, o recorte sugerido se justifica pelo

artifício comparativo que este ensaio se propõe realizar: comparar as imagens da relação

social implicadas no modelo etnográfico, estabelecido pelo antropólogo a partir do que foi

considerado como o ‘plano da estrutura social’, e na mitologia destes povos. Estas últimas

serão apresentadas no próximo capítulo.

Trocando em miúdos, a relação entre sogros e genros nas sociedades indígenas

guianesas é, de modo geral, descrita por Rivière (1984) em termos de um controle exercido

pelos homens mais velhos sobre os mais jovens num contexto onde a residência tende a ser

uxorilocal. O cônjuge, muitas vezes, tem que praticar uma evitação quase total e submeter- 23 A expressão “modelo etnográfico da Guiana” tem um sentido fraco e deve ser entendida assim. Estou ciente de que Rivière diz, explicitamente, não pretender circunscrever um “tipo” guianês. Em suas próprias palavras: “(...) I am not trying to distill out a single type of Guiana social organization, but rather to reveal the distinctive features of it, both what is variable as well as invariable” (1984: 5). Mas, parece-me que, como sugere Viveiros de Castro (1987: 273), não há como não reconhecer que Rivière estabelece as sociedades da Guiana como um tipo estrutural.

se inteiramente às obrigações de prestar serviços ao sogro. A situação arquetípica do grupo

local é a de um líder que tem inúmeras filhas e genros que vieram de fora morar com ele.

Tudo se passa como se a relação deste líder-sogro com a rede social à sua volta

determinasse a própria existência da aldeia como unidade política autônoma. Como se a

“sociedade”, em sua forma mais estável, não passasse de um agregado de indivíduos

ligados por laços de parentesco em torno dessa figura central. Neste sentido, pode-se dizer

que o modelo de Rivière sugere uma continuidade entre os conceitos de aldeia como uma

unidade política autônoma e como uma rede de parentesco bilateral endogâmica e que

justamente o controle dos líderes-sogros sobre seus genros exerce, entre estes dois

conceitos, uma função mediadora. Tal controle, ao mesmo tempo em que não passa de um

mecanismo intrafamiliar, resultado de uma negociação individual, é o que assegura a

estabilidade (relativa) dos laços políticos que constituem a sociedade.

A imagem acima esboçada diz respeito a um “tipo ideal” e traduz, como pode, o que

me parecem ser os traços mais marcantes de um certo padrão de relação sociopolítica tal

como se depreende das descrições feitas sobre as sociedades indígenas da Guiana. Mas,

para realmente entendê-la, é preciso considerar uma série de outros aspectos pelos quais

foram, repetidas vezes, caracterizados os grupos da região. A típica aldeia guianesa é

pequena, instável, idealmente endogâmica, com uma tendência em subordinar o princípio

da consangüinidade à co-residência e com um sistema de parentesco que se distingue pela

filiação indiferenciada e pelas terminologias que representam variações do padrão

dravidiano. Todos esses traços configuram um sistema e um dos objetivos deste capítulo é

elucidar a maneira pela qual esses elementos se articulam entre si e como eles dão

significado a certos modos da relação social. Voltaremos a isso mais adiante.

Por hora, é preciso lembrar que o material bibliográfico de que aqui dispomos

encontra-se firmemente atrelado ao plano da ‘estrutura social’ e que esta, por sua vez, se

manifesta no campo dos fenômenos tradicionais do parentesco: terminologia, atitudes,

formas de casamento e residência. Portanto, a maneira pela qual as relações sociais são

descritas já está determinada por esse viés, o que, de alguma maneira, deve refletir as

concepções indígenas, mas, também, certos problemas antropológicos particulares. O jogo

aqui proposto pressupõe que os mitos, ao tratarem destas “mesmas” relações, colocam-se

problemas diversos e nossa questão está em determinar a equivocidade24 possível entre os

dois sentidos.

Vejamos, pois, como este modelo é descrito por Rivière. Por motivos de exposição,

seguirei, por alto, as divisões temáticas feitas pelo autor. Mas, embora a organização de

Individual and Society in Guiana seja por tópicos e não por grupos, em alguns momentos,

recorrerei diretamente a algumas das principais etnografias que lhe serviram de base.

Entendo que a perspectiva horizontalizante adotada pelo autor tem um propósito

comparativo e disso depende o estabelecimento de seu “tipo guianês”25. Contudo, tendo ele

dado este primeiro passo, pareceu-me que seria proveitoso se pudéssemos verticalizar um

pouco tal perspectiva. Por isso, em alguns momentos, optei por tratar em conjunto temas

que haviam sido apresentados separadamente. Sob o fundo dos invariantes traçados por

Rivière, a intenção é reconstituir mais globalmente as descrições das sociedades de onde

24 Falo em “equivocidade” no sentido sugerido por Viveiros de Castro (2004), isto é, como o contrário de “univocidade” e não, como se poderia imaginar, como o contrário de “erro” ou “engano”.

25 Como diz Rivière, “the ethnographers come from different countries, have been brought up in different schools of anthropological thought, and have conducted their research with different aims and expectations. This has led them to express themselves in various ways on what I have had to take to be the same point. To achieve some degree of coherence in my presentation, I have had to translate their ways of putting things in order to achieve a comparison.” (1984: 5).

estes traços foram extraídos. Como se cada uma delas pudesse ser tomada como uma

versão – em um sentido semelhante ao que Lévi-Strauss dá às versões míticas – do modelo

proposto pelo autor. Parece-me que, assim, o modo pelo qual Rivière “traduziu” os

diferentes materiais de pesquisa – sejam eles “dados” etnográficos ou problemas teóricos –

para o padrão composto pode se tornar mais claro26.

Uma descrição geral das sociedades guianesas será feita, sobretudo, na primeira e

segunda seção do capítulo. Peço desculpas ao leitor se os “dados” lhe parecerem muito

maçantes, mas julguei necessário apresentá-los para dar um certo corpo ao modelo proposto

por Rivière. Na terceira e quarta seção, procuraremos expor as sugestões analíticas feitas

pelo autor no que diz respeito, sobretudo, à natureza das relações de afinidade e sua relação

com a idéia dos grupos sociais enquanto unidades políticas autônomas27. Ao final,

retomarei os principais pontos apresentados tentando alinhavá-los ao vínculo de parentesco

que nos servirá de termo comparativo com os mitos que serão apresentados no próximo

capítulo.

I. O grupo local e o padrão de assentamento

A ausência de agrupamentos sociais formais foi exaltada por vários autores que

escreveram sobre as sociedades da Guiana. O próprio Rivière, em sua etnografia sobre os 26 Contudo, muitas vezes é difícil separar os componentes de um modelo geral das sociedades guianesas (os invariantes) dos casos particulares que constituem suas variações, pois é como se eles fossem faces de uma mesma moeda.

27 É evidente que as sugestões analíticas do autor fazem parte também da descrição que ele apresenta e vice-versa. Espero que isso fique claro ao longo do capítulo. Mas façamos como se, nas duas primeiras seções, os “fatos” estivessem em primeiro plano e, nas duas últimas, a “proposta analítica”.

Trio, admite que “in the absence of any formalized arrangements on one hand, and the

mobility of population and the temporary nature of villages on the other, it is hard to

describe what is in fact a very fluid situation without making it appear too rigid”

(1969:229). Thomas, por sua vez, diz que a sociedade Pemon “is but one example of a

whole range of societies which could concibably fall under this rubric, though it is more

amorphous than many such” (1982:1). Overing enfatiza que os Piaroa não possuem

instituições formais (tais como linhagens) e que se caracterizam por possuírem “the most

atomistic societal integration possible” (1975:2). Já Arvelo-Jimenez inicia sua definição do

grupo Ye’cuana dizendo que “no están constituidos en Estado y carecen de un sistema

político centralizado” (1971: 9).

Em Individual and society, Rivière reconhece a pertinência de tais descrições, mas

alerta para o risco de se assumir uma visão negativa dessa caracterização. Ele retoma a

crítica feita por Pierre Clastres (1974) segundo a qual o julgamento de que as sociedades

primitivas são sociedades sem Estado refletiria, na verdade, um juízo de valor que

pressupõe uma falta de algo que – tomando por base os nossos próprios padrões – lhes seria

necessário. Rivière admite que a suposta ausência de uma organização política ou de grupos

sociais formais na Guiana, da mesma forma, poderia ser apenas uma resultante de nossas

próprias expectativas. Mas, malgrado o fato das aldeias guianesas, de modo geral,

possuírem apenas uma presença transitória e sua composição estar sujeita a contínuas

mudanças, ele não vê outra escolha para lidar com os dados etnográficos de que dispõe que

não partir do conceito de grupo local. Segundo o autor,

ephemeral as settlements are, to focus on them is an approach that allows an initial glimpse of

fleeting stability in a fluid and relative worlds. It is in the formation, composition, and

dispersion of settlements, apparently so chaotic, that it is possible to observe the range of

choices that the social structure makes available to the individual, and beyond them to the

very principles by which the social structure itself is articulated (Rivière, 1984:15).

Para estabelecer seu modelo, Rivière assume a aldeia como o seu ponto de partida,

pois, segundo ele, seria ela o que mais se aproxima da identificação de um grupo social

com qualquer tipo de existência corporativa. Porém, é difícil dizer até que ponto, aquilo

que, a princípio, poderia ser visto apenas como uma solução heurística para uma

dificuldade de apresentação de dados empíricos também poderia responder por uma função

do entendimento antropológico daquilo que corresponde à prática das pessoas28. Diante dos

traços de atomismo e de fluidez pelos quais foram tantas vezes caracterizados os povos

indígenas da Guiana, tem-se a impressão que tudo se passa como se eles tivessem que ser

definidos como “sociedades” apenas para, logo em seguida, revelarem seus dispositivos

contra tal definição. Contudo, a questão de saber se, para explicar o modo pelo qual as

pessoas criam a socialidade, é preciso recorrer à noção de grupo passa ao largo da análise.

Mas feitas essas breves considerações, passemos à descrição de algumas variantes das

“sociedades” guianesas. Para estabelecer um certo padrão de assentamento dos grupos

locais, Rivière recorre a uma vasta gama de dados sobre os Waiyana, os Trio, os Waiwai,

os Ye’cuana, os Piaroa, os Akawaio, os Panare, os Pemon, os Macuxi e os Wapishana

28 Digo “também” porque não estou supondo, a priori, que a idéia de “grupo” não faça, absolutamente, parte do ideário nativo, ou seja, que as pessoas não reconheçam unidades locais, ainda que provisórias. Contudo, penso que Wagner (1974) está correto em dizer que a antropologia social baseia-se em alguns pressupostos sobre a importância da sociedade e o que quero sugerir é que conceitos como “sociedade”, “aldeia”, “grupos corporados”, etc. podem acabar determinando – ainda que, por vezes, em negativo – o próprio modelo antropológico que ora nos ocupa.

(1984: 16-24). Dentre estes, tomemos três exemplos particulares e os traços mais gerais aos

quais chega o autor a partir de seus dados29.

Rivière observa que as aldeias possuem formas diversas. Entre os Waiwai, os

Ye’cuana, os Piaroa e os Panare, por exemplo, as aldeias consistem habitualmente em uma

única casa comunitária (1984:15). Overing (1975) descreve três formas típicas dessas casas

que, entre os Piaroa, geralmente “pertencem” a um homem que carrega o título de Ruwang

Itso’de. Segundo ela, a casa, Itso’de, em seu estilo e em seu tamanho, é uma clara

expressão do status deste homem, líder político e religioso da aldeia. O termo Itso’de

guardaria ainda um outro sentido que é o de unidade residencial, centro – econômico,

político, cerimonial e de parentesco – no qual as atividades diárias são exercidas. Conjuntos

de seis ou sete Itso’de, separados uns dos outros por cerca de meio dia de caminhada,

formam os Itso’fha, a maior unidade política dos Piaroa com uma população que varia entre

100 e 350 pessoas. Os Piaroa – que se autodenominam Tuha (termo que, segundo Overing,

poderia ser traduzido por ‘gente’) – têm seu território dividido entre 12 e 15 Itso’fha30

(1975: 16-33).

Já os Trio e os Waiyana vivem em aldeias nucleares compostas por um determinado

número de casas (Rivière 1984:15). Segundo Rivière (1969), há evidências de que “Trio”

seja um termo genérico para um número de grupos que antigamente eram autônomos e

29 Rivière observa que, em sua análise, a maior ênfase dada a determinados povos em detrimento de outros se deve à variação da quantidade e qualidade das etnografias disponíveis. Dentre eles, os Pemon, os Piaroa e os Trio ocupam um lugar importante no “mosaico” (1984:7) traçado pelo autor. Coincidentemente, os mitos dos quais iremos tratar no próximo capítulo provêm, sobretudo, destes três povos. Por isso, também aqui, daremos maior atenção a eles.

30 O termo “Itso’fha” tem também uma conotação territorial, mas não denota uma terra definitivamente circunscrita (Overing, 1975: 57).

dispersos. Mas ele previne que, na época em que realizou sua pesquisa de campo, esta já

não era mais a situação. Frikel (apud Rivière 1969: 16-26), que esteve na região cerca de

duas décadas antes, descreveu os Trio como se constituídos por doze sub-grupos. Mas,

mesmo que outrora os Trio fossem compostos de grupos independentes, eles passaram a se

conceber como um único grupo com um nome, uma linguagem e uma cultura comum

(Rivière 1969: 27-8). Este grupo podia ser dividido em três grupos principais que Rivière

chama de “aglomerados”. Dentro dos aglomerados, as aldeias costumam estar separadas

por apenas algumas horas de caminhada enquanto que as aldeias mais próximas de

diferentes aglomerados estão normalmente afastadas por cerca de dois dias de distância

(Ibid.: 35-7).

Entre os Macuxi, Wapishana e Pemon, embora haja aldeias nucleares, o padrão mais

encontrado é o de casas dispersas (Rivière 1984: 15). Com efeito, de acordo com Thomas

(1982), os Pemon assemelham-se em muitos aspectos aos outros povos falantes de língua

caribe da região, mas se diferenciam pela vasta extensão que ocupam no território e pelo

grau de autonomia de suas unidades mínimas (os indivíduos, a família nuclear e o grupo de

irmãos). Essa autonomia, entretanto, é relativa e não significa que estas unidades

constituam sistemas sociais isolados. Ao contrário, segundo Thomas, os Pemon se

notabilizam por terem estabelecido extensas redes de relações sociais, principalmente no

que diz respeito ao comércio. Eles também são conhecidos na literatura como Arecuna,

Kamarakoto e Taurepan e podem ser, grosseiramente, divididos em três sub-grupos com

estes nomes, embora refiram-se a si mesmos como “Pemon” 31 – que significa gente, ou

gente que fala língua pemon (Thomas 1982: 14-9).

De maneira geral, Rivière caracteriza os assentamentos por dois padrões básicos:

um associado à floresta, outro, à savana. No primeiro, as aldeias possuem em média 30

habitantes, sendo que vários exemplos apresentados pelo autor apontam para uma variação

entre 15 e 50 pessoas por aldeia. A distância mínima entre as aldeias costuma ser de,

aproximadamente, um dia de caminhada, embora possa também ser de vários dias de

viagem. As aldeias, geralmente, não permanecem por muito tempo em um mesmo local,

sendo a duração média de 6 a 7 anos. Os habitantes da savana compartilham destes traços

embora as aldeias contenham, normalmente, menos moradores (Rivière 1984: 25).

Em todos os casos examinados por Rivière, vê-se que a movimentação de pessoas

entre aldeias e a formação de novas aldeias podem resultar de uma série de fatores, sejam

sociais, políticos, rituais ou econômicos. As pessoas podem se mudar por diversas razões:

por causa da morte de alguém (sobretudo do líder da aldeia), pela ineficácia da liderança, a

freqüência das doenças, a deterioração das construções, a escassez de recursos, a exaustão

do solo, as hostilidades, o desejo de ver um parente em outra aldeia, etc. Quando uma nova

aldeia é construída, em geral, isso ocorre nas imediações da aldeia abandonada. Até certo

ponto, o tamanho de uma aldeia é o índice da eficiência de seu líder. Mas, quanto maior a

aldeia, mais facilmente poderá ocorrer disputas que ele não conseguirá resolver devido à

densidade de laços políticos que são intrinsecamente frágeis (Ibid.: 26-29). Voltaremos a

isso quando formos tratar da natureza das relações de afinidade interiores ao grupo local.

31 Os Macuxi, vizinhos dos Pemon ao sul, também se referem a si próprios como Pemon, embora todos os grupos vizinhos se refiram a eles como Macuxi (Thomas, 1982: 18).

II. A composição da aldeia: parentesco, casamento e residência

Em Individual and society, Rivière reconhece que o problema de se saber, em

termos ideais e factuais, quem habita com quem e por quê envolve inúmeras esferas

convencionais da vida social (1984: 30). Mas, de fato, essa separação em “esferas” não

impede que os temas comuns a cada uma delas se fundam uns nos outros. Assim,

“parentesco”, “casamento” e “residência”, embora sejam habitualmente tratados por muitos

autores em separado, possuem claras implicações mútuas. A expectativa de como uma

aldeia deve se constituir socialmente (sua rede de parentesco) está intrinsecamente

relacionada com as expectativas de onde se deve encontrar um cônjuge e com quem se deve

habitar após o casamento. Por essa razão, procuraremos discutir estes aspectos

conjuntamente.

Um traço comum encontrado em diversas etnografias ameríndias, enfatizado por

Rivière, diz respeito à articulação das categorias sociais por um princípio de troca direta

prescritiva. No caso guianês, tal princípio associa-se a um ideal de endogamia na aldeia, à

concepção de que as aldeias deveriam ser constituídas por parentes próximos,

freqüentemente bilaterais, e, conseqüentemente, a um ideal de endogamia entre parentes.

Segundo o autor, tais preferências se traduzem, nas terminologias de parentesco, pelo

fracasso em se operar uma discriminação entre os fatores de consangüinidade e co-

residência o que, em alguns casos, responde pela quase inexistência de termos que

designem pessoas relacionadas exclusivamente por laços de afinidade. Entretanto, o que se

deduz dos dados apresentados por Rivière é que estes ideais não passam de uma “ficção”,

no sentido de que as terminologias são ajustadas de acordo com os acontecimentos a fim de

que eles se adéqüem à forma ideal. Quanto à residência pós-marital, geralmente não há

regras explícitas posto que o que se supõe é que esposo e esposa pertencerão à mesma

aldeia e que, portanto, não terão que se decidir se vão viver com a família dele ou dela.

Além disso, Rivière menciona uma antipatia geral às regras e uma aparente aleatoriedade

na decisão de onde morar. Mas, embora tais escolhas mostrem-se de fato algo

indeterminadas, Rivière nota, de maneira geral, uma tendência estatística à uxorilocalidade

(Rivière 1984: 40-1).

No que diz respeito à composição da aldeia – que, como vimos, é para onde se

dirige fundamentalmente o foco do argumento de Rivière em Individual and society –, o

parágrafo acima sintetiza os principais pontos que foram por ele destacados. Mas vejamos

como esses mesmos traços aparecem, particularmente transformados, nas etnografias de

Joanna Overing sobre os Piaroa, de David Thomas sobre os Pemon e do próprio Rivière

sobre os Trio.

O estudo de Overing (1975) sobre os Piaroa mostra que o Itso’de é um grupo local

estruturado em termos de parentesco e que, do ponto de vista indígena, ele é um grupo de

parentes próximos. O modelo da parentela [kindred] piaroa é articulado a partir do uso

polissêmico do conceito de chuwaruwang. Uma das traduções que dá a autora ao termo é

“consangüinidade”. Segundo Overing, os Piaroa concebem-se como se estivessem

consangüineamente relacionados pela descendência do primeiro homem e da primeira

mulher piaroa que foram criados pelo herói cultural Wahari. Mas chuwaruwang pode ter

ainda o sentido de “cognação” pois, no mito, os não-tuha que se casam com os piaroa são

convertidos em cognatos de todos os outros piaroa. Nas palavras da autora,

All Piaroa are cognates of one another through the intermarriages that occurred among the

first men and women. Here we are clearly introduced to the Piaroa notion that marriage and

consanguinity are not to be conceptually separated, that marriage leads to kinship. Indeed,

this Piaroa picture of Piaroa land is in macrocosm identical to the picture they have of their

local group, the Itso’de. Through intermarriages within it, the house becomes a unit

comprised of close cognates, and, as such reflects the idealized ordering of Piaroa land as a

whole. (Overing 1975: 70-1).

Chuwaruwang, também, é o conceito mais geral pelo qual os Piaroa discutem e

explicam as categorias de parentesco e as obrigações associadas a essas categorias. Ele

possui uma distinção crucial entre parentes ‘próximos’ (tuku) e ‘distantes’ (oto) (Overing

1975: 69). Os cônjuges ideais devem, do ponto de vista piaroa, ser encontrados na categoria

tuku chuwaruwang (a parentela imediata de cada indivíduo) e, ao mesmo tempo, dentro da

própria unidade residencial, o Itso’de. Deste modo, o ideal seria que a parentela próxima

por nascimento coincidisse com a parentela conjugal32. Entretanto, diz Overing, muitas

pessoas não se casam dentro do seu chuwaruwang imediato por contingências políticas e

demográficas que têm precedência sobre o ideal de casamento (Ibid.: 73-74).

No caso piaroa, esse ideal é expresso por uma regra de casamento que afirma que

um homem deve se casar com uma mulher a quem ele se dirige como ‘chirekwa’, categoria

que inclui, entre outras, as especificações de MBD e FZD. Se um homem não se casa

corretamente – ou seja, com alguém a quem ele não chame de chirekwa –, ele corrigirá o

uso de seus termos de parentesco de modo que sua esposa e os parentes dela passem a ser

chamados pelos termos apropriados (Overing 1975: 128). Esse tipo de operação é um

32 Sendo assim, a aliança de casamento jamais se daria entre dois grupos, o que reforça aquela imagem do suposto amorfismo típico das sociedades da Guiana.

aspecto fundamental dessa terminologia prescritiva que, como diz Rivière, “ensures, post

facto, that whatever happens is reinterpreted in terms of what should happen” (1984: 49).

A regra de casamento está implícita na terminologia de parentesco que, com

algumas variações, é um dos exemplos de uma terminologia dravidiana tal como

encontrada nas terras baixas sul-americanas. Ela também inclui, como princípios

ordenadores, o nível genealógico, o sexo, a idade e a distinção entre consangüíneos e afins.

Mas, embora os primos cruzados bilaterais estejam designados pela categoria prescrita de

casamento, terminologicamente, o mais apropriado seria dizer que a união correta é com

os(as) filhos(as) dos afins dos pais33. Ao expressar as coisas dessa forma, a ênfase recai

sobre o contraste entre consangüíneos e afins e não entre parentes paralelos e cruzados

(Overing 1975: 128-129). De acordo com Overing, essa distinção constitui uma

característica estrutural fundamental dos grupos locais, pois, idealmente, “in perpetuating

affinal ties made in the parental generation, the marriage exchange on this level also gives

the unit existence through time” (Ibid.: 197).

Segundo a descrição de Overing, tudo se passa como se os Piaroa levassem em

conta dois sistemas de categorização do parentesco e do casamento no modo de conceber a

composição do grupo local. Por um lado, ele é pensado como idealmente endogâmico,

centrado no uso do conceito de chuwaruwang, como se negasse a oposição entre ‘nós’ e

‘eles’. Por outro lado, o grupo local é concebido a partir da oposição entre consangüíneos e

afins, reconhecida pelos Piaroa. Em um certo nível, estes dois sistemas são contraditórios,

33 Assim, a MBD é a filha de um afim do pai, enquanto que a FZD é a filha de um afim da mãe.

mas através de um terceiro sistema, o sistema de tecnonímias34, os Piaroa tentariam assim

reconciliar os laços de consangüinidade com os laços de casamento. Como diz a autora,

one model stresses the unity of the group as a kinship unit; the second stresses the marriage

alliance, containing with it a certain dynamism which expresses the basis for fission and

fusion of groups; the third converts non-endogamous marriages into consanguineal ties

(Overing, 1975: 9).

Mas Overing sugere que nenhuma dessas três conceitualizações da unidade de

residência estaria mais perto da realidade do que outra. Elas seriam antes estratégias nativas

que, na ausência de regras de residência explícitas, poderiam ser usadas de acordo com as

circunstâncias. Circunstâncias essas muitas vezes políticas, localizadas no domínio do

Itso’fha, onde os Ruwang competem por poder e posição em um idioma de parentesco e

onde, neste sentido, a aliança de casamento é uma poderosa arma de estratégia política

(Ibid.: 10). Mas deixemos esse assunto para mais adiante e vejamos ainda como outros dois

grupos indígenas da Guiana concebem a composição de suas aldeias.

Como já se disse, o padrão de assentamento dos Pemon é de aldeias pequenas e, em

muitos casos, consiste em apenas uma única família. Rivière sugere que, talvez por essa

razão, não tenha sido necessário criar uma ficção em torno da relação entre parentesco e co-

residência, já que, neste caso, devia se tratar de uma realidade. Para ele, o material sobre os

Pemon, embora valioso, não permite dizer que a equação entre estes dois domínios exista,

34 A aplicação de tecnonímias entre os Piaroa faz com que a ênfase nos laços de afinidade, necessários para que haja alianças, dê lugar à ênfase nos laços de consangüinidade através do nascimento de uma criança. Assim, por exemplo, se um homem se casa e tem um filho, pode passar a chamar seu sogro de “avô do meu filho”. Uma posição apenas não pode ser expressa através deste sistema: a posição de cunhado (cf. Overing, 1975: 169-ss.).

ao menos não tão explicitamente como nos outros casos observados (Rivière 1984: 36)35.

Para Thomas (1982), o parentesco e o casamento entre os Pemon só podem ser

compreendidos levando-se em consideração o padrão de dispersão dos assentamentos. Nas

palavras deste autor,

the Pemon system of kinship and marriage can be thought of as forming the principal lines

which link households and settlements together. The distribution of kinsmen over the land,

seen from a number of individual vantage points, forms a crucial part of the understanding

of Pemon society. (…) if we think of a series of overlapping networks, spread out in time as

well as space, connecting the various households and settlements over the Pemon

landscape, we have an accurate metaphor for much of Pemon social life. (Thomas 1982:52).

Nesta rede de relações dispersas ao longo do território, Thomas reconhece uma

tendência que os irmãos procurem viver próximos em uma mesma vizinhança. Ou, melhor

dizendo, o grupo de irmãos tende, primeiro, a se espalhar (porque se casam fora de sua

própria casa) e, depois, a tentar novamente se agrupar, em um processo que vai se repetindo

através das gerações (Ibid: 71-2). Thomas chama a atenção para o fato de que a existência

de parentes próximos em outras regiões pode significar possíveis opções de realinhamentos

no caso de disputas dentro da aldeia e em suas vizinhanças (Ibid.: 74). Todavia, dentro do

“aldeamento”, há uma forte tendência de se viver com os afins de mesmo sexo e mesma

geração em vez de com os irmãos. Mas as relações entre os cunhados são frágeis e podem

se romper em favor do reestabelecimento dos laços entre os irmãos se não houver um sogro

a quem os genros devam obrigações. Isso se deve, diz Thomas, “to the asymmetrical 35 Note-se, entretanto, que a discussão sobre o conceito pemon de parentesco, uyomba, revela que ele possui vários níveis de significação. No seu sentido mais amplo, refere-se ao parentesco que relaciona todos os Pemon. Em um outro sentido, abrange o círculo de parentes definidos pela referência terminológica a partir dos pais de Ego, com base na proximidade espacial e na freqüência e qualidade da interação social. Em um terceiro sentido, o termo diz respeito a uma série genealogicamente definida de parentes (cf. Thomas 1982: 60-1). Ou seja, o conceito uyomba parece articular – tal como o chuwaruwang piaroa – co-residência e parentesco.

com o pai da esposa prospectiva36. Na verdade, Thomas sugere que, entre os Pemon, as

pessoas têm um alto grau de autonomia em suas escolhas matrimoniais e são relativamente

pouco constrangidas pelas regras ideais (que são sempre post facto). O que, segundo ele,

efetivamente parece importar é a qualidade das relações de afinidade que decorrem do

casamento. A forma de residência pós-marital também não possui uma regra muito rígida e

a única expressão de algo que poderia ser tomado como tal diz que um homem deve cuidar

de seu sogro (Thomas 1982: 101).

Do ponto de vista conceitual, há ainda um tipo de casamento – nem proibido, nem

completamente aprovado – que, pode nos fornecer algumas idéias acerca dos princípios

que, segundo a análise de Thomas, subjazem o comportamento matrimonial pemon. Trata-

se do casamento avuncular, com a ZD (real ou classificatória). Este tipo de união também

foi um tema importante para o estudo realizado por Rivière sobre os Trio. Mas, como os

dois autores enfatizaram aspectos significativamente diferentes, deixemos para discuti-lo

um pouco mais adiante, depois de apresentarmos uma caracterização geral deste outro

grupo.

Segundo Rivière (1969), os Trio organizam seu mundo social através três fatores

básicos: a conexão genealógica, a residência e a idade. Os dois primeiros fatores são

articulados pelo conceito imoiti que, nesse sentido, parece assemelhar-se ao conceito piaroa

chuwaruwang e ao conceito pemon uyomba. Essa inseparabilidade dos aspectos

genealógicos e residenciais possui implicações importantes também para o modo como é

36 Mas nenhuma vizinhança chega a formar uma unidade discreta capaz de tornar aplicável o termo “endogamia” (Thomas, 1982: 106). Sobre isso, diz Rivière: “this is true throughout Guiana, and there is no group in which marriage must take place within a given unit. Endogamy in the region is expressed as a preference, ideal or fiction” (1984: 111).

concebido e praticado o casamento entre os Trio. Como entre os Piaroa, ele também

articula uma prescrição categorial com uma preferência de encontrar entre os co-residentes

o cônjuge ideal. A regra convencional de casamento é que um homem trio deve se casar

com uma mulher que possa ser por ele classificada como emerimpa, termo que cobre, entre

outros, os primos cruzados bilaterais37. Mas, além disso, segundo Rivière, a maioria de seus

informantes declara uma preferência por se casar com alguém da própria aldeia38. De fato, a

análise dos dados apresentados pelo autor demonstra que a maioria dos casamentos, se

considerados do ponto de vista de seus participantes, acontece entre pessoas que pertencem

às categorias prescritas. Entretanto, do ponto de vista de um único indivíduo, os casamentos

parecem menos convencionalmente ordenados, o que sugere que certos ajustes

terminológicos acontecem. Neste processo, a esposa potencial é normalmente transferida

para uma categoria no primeiro nível genealógico ascendente ou descendente de modo que

ela possa ser reconhecida pela categoria prescrita. Tudo se passa como se, entre os Trio o

casamento convencional fosse um casamento entre indivíduos de diferentes níveis

genealógicos (ainda que encontrados na mesma geração) (Rivière 1969: 141-158).

Certas equações terminológicas associadas à prescrição de casamento com a

emeripa sugerem ao autor uma ‘terminologia dravidiana’ ou, como ele prefere chamar, uma

37 Tudo se passa como se essa categoria, de fato, ocorresse apenas em um nível ideal, mas não em um nível prático. Neste caso, a categoria emeripa aparece subsumida a outras categorias (emi e imama), que pertencem a outros níveis genealógicos, e a forma dos primos cruzados bilaterais que ela contém desaparece. Geralmente se descreve a categoria prescrita por referência à relação da pessoa com seus pais. Ou seja, um homem deve se casar com a filha de uma nosi (FM, MM, entre outras especificações) ou de um ti, (MB, FZS). Um homem pode se casar ainda com a filha de uma wei (Ez, MBW) ou de um tamu (FF, MF, entre ouros) (Rivière, 1969: 141).

38 Não há, entre os Trio, uma regra de residência pós-marital, mas Rivière nota que a maior proporção de irmãos separados e a menor proporção de irmãs separadas oferecem uma imagem de uma residência uxorilocal (1969: 110).

‘terminologia de duas seções’39. Mas, alguns traços da terminologia trio se distinguem do

modelo canônico dravidiano. Por exemplo, assim como a categoria para esposa potencial

acima descrita, certos termos apresentam especificações para mais de um nível

genealógico. Segundo Rivière, isso permite que haja uma considerável manipulação da

terminologia, “and this is futher enhanced by the absence of any formal groupings and by

the fact that relationships may be traced equally through men and women” (Rivière, 1984:

46)40. Especificamente, essa propriedade da terminologia que confere uma obliqüidade a

todas as formas de casamento reflete um tipo de casamento, parcialmente aceito, tanto entre

os Trio quanto entre os Pemon, que é a união com a filha da irmã (ZD)41.

Na verdade, a questão inicial de Rivière no seu estudo sobre os Trio era elucidar

esse tipo de casamento neste caso etnográfico específico e, a partir daí, propor uma

explicação potencialmente universal para tais uniões. Seu argumento, em suma, era que as

concepções trio do ‘dentro’ e do ‘fora’ – a simbolização das fronteiras da sociedade – se

expressavam através dessa forma de casamento42. Em suas próprias palavras, o autor sugere

39 Rivière prefere falar em um “sistema de duas linhas” (1984) ou “de duas seções” (1969) em vez de “dravidiano”. Como sugere Viveiros de Castro, o uso destes conceitos implicam uma série de problemas. Por um lado, falar em ‘linhas’ evoca a noção de descendência unilinear enquanto que falar em ‘seções’ evoca os sistemas australianos. Por outro, falar em ‘dravidiano’ “filia os fatos sul-americanos ao paradigma interpretativo da matriz indiana” (Viveiros de Castro 2002: 92).

40 Outra característica problemática da terminologia trio é a indistinção entre os filhos do irmão e os filhos da irmã no primeiro nível genealógico descendente, o que faz com que, terminologicamente, as “linhas” se fundam (Rivière 1984: 46).

41 Diferentemente dos Trio e dos Pemon, os Piaroa não tem um ideal ou preferência de casamento pela ZD. Ao contrário, os casamentos intergeracionais, que fundem numa mesma pessoa cunhado e sogro, cunhado e genro, incomodam os Piaroa (Overing, 1984)

42 Na verdade, “casamento com a filha da irmã” ao qual se refere Rivière diz respeito à união com uma mulher de uma categoria que inclui a ZD real, mas que abrange todos os casamentos oblíquos entre pessoas em uma categoria específica de relação. Segundo o autor, genealogicamente, a minoria dos casamentos é de fato com a filha da irmã. Mas a união é vista mais em termos de “categorias” do que de “genealogia”. Os

que “the presence of this marriage form will be directly related to the society’s belief that

not simply its boundaries but its existence is in jeopardy, whether the threat be from

extermination or pollution (1969: 282). Voltaremos a isso mais adiante, mas de maneira

geral, a descrição e análise de Rivière produzem uma imagem da sociedade trio como se ela

fosse constituída por uma série de aldeias isoladas e introvertidas.

III. Aspectos das relações de afinidade

É esta última a imagem do socius que parece prevalecer no modelo etnográfico

proposto por Rivière, em Individual and Society, para as sociedades guianesas de maneira

geral43. Embora, como vimos, diferentes grupos da região partilhem de muitos dos traços

comuns identificados pelo autor, as “imagens da sociedade” que se depreendem das

etnografias enfatizam aspectos significativamente diferentes. Para Thomas, por exemplo,

tudo se passa como se a “sociedade” Pemon existisse apenas para manter as pessoas a uma

distância razoável, espalhadas por um território cortado por redes de relações sociais que se

sobrepõem. Como se o problema durkheimiano da solidariedade como condição da ordem

e, conseqüentemente, do sistema social não se colocasse. Como se, os grupos locais, de tão

explicação. Já a ênfase dada por Overing em sua descrição da “sociedade” Piaroa recai

sobre a interação entre semelhança e diferença. Como se o interior do Itso’de se

constituísse por seu exterior. Para a autora, subjacente à estrutura social, estaria uma

filosofia da sociedade segundo a qual “the universe exists, life exists, society exists, only

insofar as there is contact and proper mixing among things that are different from one

another” (apud Rivière 1984: 102). Já o lugar conferido por Rivière, em sua etnografia

sobre os Trio, ao afim que vem de fora do grupo local configura uma outra imagem de

sociedade, uma imagem que, justamente, opõe interior e exterior.

O lugar que cada autor confere à afinidade parece ser a variável fundamental que

determina essas diferenças internas ao modelo guianês. Segundo Rivière, as etnografias da

região demonstram a existência de uma significativa variação no modo como se relacionam

cognatos e não-cognatos, parentes próximos e distantes. Uma clara expressão disso

encontra-se no fato de que, em cada sistema terminológico, existem ou inexistem certos

termos puramente afins, o que implica, não apenas o uso de um nome, mas, também, a

forma de certos conteúdos comportamentais44.

Rivière ressalta que, em um extremo destas variações, estariam as terminologias dos

Wayana, Macuxi, Akawaio e Pemon, que não possuem termos que conotam,

exclusivamente, a afinidade (1984: 47).45 No caso Pemon, isso coincide com uma relativa

44 A maioria das terminologias dravidianas amazônicas apresenta termos separados para afins reais, o que sugere que a passagem da virtualidade para a realidade possui um significado importante nestes contextos (cf. Viveiros de Castro 2002, Fausto 1995).

45 Na verdade, os Pemon possuem um único termo exclusivamente de afinidade (além dos termos para marido e esposa), que é payinu. Esse termo é livremente usado por pessoas da geração mais velha para se referirem ao genro, na sua presença ou não, mas não para se dirigirem a ele. Para Thomas, isso indica que o sentido de afinidade do termo não pode ser considerado como ameaçador, do ponto de vista da geração superior. Além disso, os ‘sogros’ podem livremente referir-se a seus genros como afins, enquanto estes não possuem termos

indiferenciação entre os afins efetivos e afins cognáticos. O sogro equipara-se ao irmão da

mãe, a sogra à irmã do pai, os primos cruzados do sexo masculino aos cunhados, o filho da

irmã ao genro e a filha da irmã à nora. 46 No outro extremo, estariam os Trio, que possuem

termos desprovidos de quaisquer especificações consangüíneas para os seguintes parentes

por afinidade: sogro, sogra, cunhados, genro e nora47. Entre eles, os afins efetivos e

cognáticos podem ou não ser distinguidos. Tudo depende do desejo de enfatizar laços

consangüíneos ou afins nas relações anteriores ao casamento, ou seja, se o cônjuge será

tomado por um estrangeiro ou não. Mas, de acordo com o ideal endogâmico da região e

considerando-se a possibilidade de manipulação das terminologias de parentesco, o cônjuge

tende a ser um parente próximo e, na prática, os termos para afins efetivos são pouco

usados, pois tudo se passa como se no interior do grupo local só houvesse consangüíneos.

Para melhor analisar a natureza da afinidade em diferentes contextos, Rivière, em

Individual and society, propõe que se decomponha o conceito em quatro: “casamento”,

“matrimonialidade”, “afinabilidade” e “afinidade”. No sentido proposto por ele, o

“casamento” especificaria a relação entre dois cônjuges efetivos. O termo “afinidade”, por

sua vez, ficaria reservado para a relação entre um indivíduo e os parentes de seu cônjuge. A

de afinidade para se referirem àqueles. A assimetria destes usos seria, assim, uma faceta da assimetria de obrigações entre um genro e seus sogros (Thomas, 1979: 65-66, 1982: 61).

46 Assim, por exemplo, os relacionamentos entre sogros, genros e noras não se caracterizam por evitações formais ou comportamentos de especial respeito (cf. Thomas apud Rivière, 1984: 59).

47 Entre estes dois extremos, estariam, por exemplo, os Ye’cuana e os Panare. Os Ye’cuana, assim como os Pemon, juntam na mesma classificação os irmãos do sexo oposto e os primos cruzados do sexo oposto, mas, ao contrário deles, sua terminologia possui termos separados que designam sogros, genros e noras, embora não exista um termo para cunhado. Associado a isto está o fato de que, entre os Ye’cuana, a afinidade efetiva, sobretudo na relação entre sogro e genro, implica uma restrição maior. Os Panare, por sua vez, possuem uma terminologia simétrica e inversa à dos Ye’cuana, do ponto de vista do lugar dos termos de afinidade. Entre eles, os afins só recebem termos específicos de afinidade se pertencerem ao mesmo nível genealógico que Ego e não, se forem de níveis adjacentes (Rivière, 1984)

“matrimonialidade” denotaria uma relação entre indivíduos do sexo oposto que,

pertencentes às categorias prescritas pela regra de casamento ou não aparentadas, poderiam

vir a tornar-se cônjuges e, enfim, a “afinabilidade” referir-se-ia ao potencial de tornar-se

um parente por afinidade (Rivière 1984: 56)48.

O que importa destacar é que, para o autor, essas diferentes qualidades pelas quais a

afinidade se apresenta – juntamente com os parâmetros de idade relativa, sexo e nível

genealógico49 – são determinantes no que diz respeito aos sistemas de atitudes

convencionais associados às terminologias de parentesco e as regras de casamento

apresentadas na última seção. Mas, além delas, Rivière acrescenta uma outra distinção,

entre afins aparentados e afins não-aparentados:

Related affines are those linked by consanguinity and/or co-residence prior to the marriage

that brought affinity into existence, whereas the latter are those unrelated prior to the union.

It is not implied that there are two classes of affines, but rather that there are fine gradations

between two extreme types, and that the forms of attitudes and behaviors vary depending

where on this continuum between related and unrelated any particular individual stands.

The unrelated in-marrying spouse, conventionally and usually a man, has to practice almost

total avoidance and submit to the full obligations of bride-service. On the other hand, the

related affine experiencies little change in attitudes to those prevailing before marriage, and

the requirements of bride-service represent little more than the expected forms of

cooperation between kin. The diference in the relationship between kin and that between

48 No prefácio à edição brasileira de Individual and Society in Guiana, Rivière faz um breve comentário quanto à distinção entre “afinidade” e “afinabilidade”. Diz ele: “confesso que hoje estou menos convencido do valor dessa distinção do que estive no passado, e considero a formulação de Viveiros de Castro, em termos de afinidade virtual, atual e potencial, como sendo analiticamente mais útil” (Rivière, 2001b: 13).

49 Em toda a região, por exemplo, a atitude convencional dos jovens para com os velhos e para com os níveis genealógicos mais avançados costuma ser de respeito. De maneira muito ampla, a relação entre indivíduos do mesmo sexo tende a ser mais igualitária enquanto que, entre indivíduos de sexo oposto tende a ser assimétrico (ocupando as mulheres a posição subordinada). Mas isso pode ser modificado pela diferença de idade. Os relacionamentos entre membros do sexo oposto tendem a ser marcados pela reserva e os relacionamentos entre os membros do mesmo sexo, pela intimidade (Rivière 1984: 54-56, 1969: 194).

unrelated affines may be summed up in the differences between cooperation and obligation

and between respect and avoidance (Rivière 1984: 57).

O parágrafo acima, ao identificar algumas diferenças entre os afins aparentados e os

afins não-aparentados, acaba por apresentar alguns aspectos importantes envolvidos no

conteúdo comportamental das relações sociais e, em particular, das relações de afinidade.

Os estrangeiros que se casam dentro da aldeia têm que se submeter aos parentes da esposa,

prestando serviços a eles e observando um padrão comportamental de evitação50. Aqueles

que se casam o mais proximamente possível mantêm quase inalteradas as formas de

cooperação e de atitudes pré-existentes ao casamento. Nestes casos, ao mesmo tempo em

que a convenção enfatiza o caráter de afinidade das trocas, na prática, elas também estão

marcadas pela relação entre cognatos.

É nesse sentido que, para Rivière, pode-se entender as vantagens do casamento com

a filha da irmã: os serviços, as dívidas, as obrigações continuam a fluir no mesmo sentido

que antes. A ênfase dada pelo autor para explicar este tipo de casamento recai sobre o

vínculo entre irmão e irmã, pois, neste tipo de união, a irmã assume o papel de mãe da

esposa e não há rompimento no padrão de interdependência que existia anteriormente ao

casamento.51

50 Segundo Rivière, entre os Trio, as razões dadas para a evitação entre afins relaciona-se com o conceito trio de kutuma. Falar com a sogra, por exemplo, é kutuma, por isso não se fala com ela. Este conceito tem muitos sentidos e, em certos contextos, quer dizer dor ou algo potencialmente doloroso. Um verbo formado por este termo, ikutuma, tem o sentido geral de “responder com raiva” e pode significar também “evitar resmungar quando uma pessoa fica enfurecida e se recusa a responder”. Ele pode ainda ser usado no caso em que uma pessoa faz a mediação entre duas outras que são a ela relacionadas, mas que se evitam pela relação de afinidade entre elas existente. É o que acontece, por exemplo, quando um homem pede algo a seu genro através de sua filha (1969: 198-200).

51 Segundo Rivière (1969), o casamento avuncular foi interpretado (entre outros, por Kirchhoff e Guillin) como um método de eliminar o serviço-da-noiva. Mas, para ele, o ponto é que, se isso é verdade, o casamento com a ZD, ao mesmo tempo, reafirma, e mesmo duplica, as obrigações com a irmã.

Thomas (1979, 1982) também examinou o problema do casamento com a filha da

irmã, mas para ele tratava-se antes de uma questão de gradação entre diferentes posições

de afinidade e não de uma ênfase nos laços de consangüinidade. Nas palavras do autor,

we can think of the three types of unions (genealogically unrelated spouses, cross-cousins,

and “ZD” spouses) as representing a continuum of affinal obligation. This continuum

ranges from a maximum of a affinal obligation in the cases where the groom is unrelated, to

a middle point in those cases where the groom and his WF are related as “brother-in-law”.

These “ZD” unions are thus seen to be the interior end of a continuum manifesting

progressive reduction in the amount of obligation due his affines by the groom. The desire

to marry “close” and thus minimize the potential strain in the DH/WF tie by means of

emphasizing prior genealogical linkage between DH and WF is consistent with the

tendencies toward suppression of the quality of being an affine (Thomas, 1982: 104).

Thomas (1979) chama toda essa explicação das razões do casamento com a filha da

irmã de “elimination of the father-in-law”. O que se passa, neste caso, é que o sogro passa a

ser tratado como cunhado, a quem o cônjuge deve uma carga relativamente menor de

obrigações de afinidade. Para o autor, essa solução matrimonial acompanharia uma

tendência da terminologia de suprimir as relações de afinidade, em geral, e as relações de

afinidade assimétrica, em particular, nas quais as obrigações implicadas não podem nunca

ser completamente pagas52 (Thomas 1979: 69).

Mas Rivière prefere enfatizar a consangüinidade e a co-residência, em vez da

supressão da afinidade, como um traço geral das sociedades guianesas53. Isso porque, diz

52 Thomas ressalta que não quer dizer com isso que a potencial redução das obrigações de afinidade seja necessariamente um elemento consciente das escolhas matrimoniais pemon (Thomas, 1979: 67).

53 Em suas próprias palavras: “I would like to rephrase Thomas’s proposition in different terms, and then consider whether the notion of affinity, as the term is generally understood, is applicable within the Guiana region” (Rivière 1984: 69).

ele, em uma aldeia ideal, a afinidade não existe. Ela só pode existir como o resultado do

casamento com um indivíduo que vem de fora. Segundo o autor, “throughout the region the

pervasive model of social space is based on a concentric dualism with us on the inside and

them on the outside” (Rivière, 1984: 70-1). Essa linha de demarcação, mesmo que relativa

e flexível, é o que guia os contornos da forma pela qual são descritas as relações de

afinidade na Guiana. Ou seja, dentro do grupo local, elas estão subsumidas ao ideal

endogâmico e, nesse sentido, tudo se passa como se a afinidade realmente não existisse,

como se as diferenças fossem expulsas para fora e os grupos se constituíssem como pura

interioridade.

IV. A economia política do controle

Rivière lembra que, em aldeias constituídas, em média, por 30 pessoas, a

organização política interna costuma ser um pouco mais que um reflexo do sistema de

parentesco. Novamente, mas em outra clave, o problema da unidade social é a chave mestra

para o exame da natureza das relações políticas no modelo analítico de Rivière.

A relação política fundamental que caracteriza o “tipo” guianense é aquela

existente entre o líder e a sua aldeia. Mas, mais uma vez, há importantes variações nos

modos como essa relação é vista. Entre os Pemon, por exemplo, Thomas (1982) identifica

uma tendência a que a liderança seja dissolvida em vários domínios para que se mantenham

os traços de igualitarismo e autonomia que caracterizam as relações sociais. Há líderes no

domínio secular – capitães e grandes comerciantes – e no domínio sagrado – xamãs, taren

esak (aquele que conhece muitas evocações mágicas), rezadoras e profetas (ligados ao

movimento religioso Hallelujah54) (Thomas 1982: 119-157). Neste caso, não é possível

definir precisamente a fronteira do grupo de seguidores ou os limites de influência de um

indivíduo em particular.

Overing (1975), por outro lado, enfatiza o fato de que os Piaroa vêem a residência

com um poderoso Ruwang como essencial para seu próprio bem-estar. Por várias razões:

ele é responsável por proteger os membros de sua comunidade dos perigos sobrenaturais,

por assegurar a fertilidade das plantas e animais de sua terra, por preconizar as categorias

morais que os Piaroa julgam corretas e por manter tranqüilas as relações entre os homens

(Overing, 1975: 53). O Ruwang piaroa é ao mesmo tempo líder político e religioso, ou, em

outras palavras, chefe e xamã, aquele que lida com o conhecido e com o desconhecido. De

acordo com Overing, o termo poderia ser traduzido, de acordo com o contexto, por “chefe”,

“xamã”, “feiticeiro”, “padre”, “ser especial”, “ser de conhecimento” ou “ser de

pensamentos” (1975: 45). Em síntese, no caso Piaroa, viver endogamicamente em um

Itso’de sob os cuidados de um determinado Ruwang é, antes de tudo, uma decisão política

que envolve o todo mais amplo [the wider whole].

Já o líder trio (itamu) é descrito na etnografia de Rivière como um representante da

aldeia que lida com outras aldeias, visitantes estrangeiros e o mundo físico de fora. Seu

papel é complementado pelo xamã (piai), representante do grupo que lida com o

desconhecido sobrenatural. Rivière ressalta, entretanto, que, entre os Trio, o xamanismo

possui um rendimento fraco e, por isso, a ênfase de seu argumento recai sobre o líder

54 Uma combinação sincrética de elementos caribe e os ensinamentos dos missionários anglicanos que chegaram na Guiana Britânica em meados do século XIX (Thomas, 1982: 23-4).

“leigo” da aldeia55. O autor localiza o poder político no controle que um homem pode

exercer sobre aquilo que, no contexto amazônico, considera como recurso escasso: pessoas

confiáveis que possam servir de “força de trabalho” para explorar os recursos naturais. Esse

dispositivo do controle – utilizado pelo líder do grupo local sobre suas filhas e, através

delas, sobre seus genros – é que seria capaz de garantir o tamanho e a estabilidade de uma

aldeia.

Como se pode entrever, essas três imagens das relações políticas afinam-se com

aquelas que foram esboçadas a partir de certos aspectos do parentesco, casamento e

residência destes povos, e diferem significativamente entre si, ao menos do ponto de vista

daquilo que cada uma quer enfatizar. A imagem do “controle”, que prevalece no “tipo”

guianês estabelecido por Rivière, agrega muitos dos traços identificados pelos outros

autores quanto à forma das relações políticas, mas está profundamente arraigada na

promoção de uma interioridade coesa. É para essa imagem, particularmente desenvolvida

em Individual and Society, que nos voltaremos agora.

Para Rivière, os laços de afinidade são responsáveis, ao mesmo tempo, pelo

tamanho e pela estabilidade do grupo. Tudo se passa como se a típica aldeia da Guiana

fosse tanto maior quanto mais pudesse assimilar afins, aqueles para os quais as mulheres do

grupo foram dadas e contra os quais, em função disso, abre-se um crédito de

contraprestações. Mas, por outro lado, quanto mais pessoas relacionadas por vínculos de

afinidade, que carregam consigo um inesgotável potencial de fissão, mais difícil manter a

55 Mas é difícil dizer até que ponto o rendimento do xamanismo trio identificado pelo autor é realmente fraco ou resulta do empirismo de sua abordagem. Ele pode responder por uma preferência em destacar o domínio macroscópico ou visível das relações sociais no grupo local.

coesão do grupo. Essa dificuldade ocorreria, sobretudo, enfatiza o autor, em sociedades

onde faltam quaisquer mecanismos formais para resolver conflitos que não aqueles capazes

de manter em harmonia a família extensa (Rivière, 1984: 74). Nestes casos, o único

dispositivo capaz de assegurar uma certa estabilidade do grupo resultaria de uma

negociação individual: o controle que os homens podem exercer sobre suas filhas e irmãs e,

através delas, sobre seus afins56.

Rivière então se pergunta sobre a natureza deste “controle”, próprio às relações de

afinidade, das quais dependeriam o tamanho e a estabilidade da aldeia57. Seu argumento,

em síntese, é que o controle faria parte de uma economia política da região e que esta

economia estaria preocupada com o gerenciamento dos recursos escassos58. De fato, a

economia política é descrita por Rivière em termos bastante convencionais: para ele, ela

poderia ser definida pelo modo que, em uma determinada sociedade, a produção e a

56 O argumento de Rivière baseia-se em uma contraposição ao modelo social jê, onde os grupos corporados fazem essa mediação e asseguram a estabilidade do grupo.

57 O controle é exercido por doadores de mulheres sobre os tomadores de mulheres, sejam eles do mesmo nível genealógico ou não. A assimetria entre eles está sempre aberta a favor dos primeiros. Mas parece que tudo se passa como se a relação entre sogros e genros fosse mais hierárquica do que frágil e a relação entre cunhados fosse mais frágil do que hierárquica. Overing e Thomas enfatizaram a debilidade das ligações entre cunhados no que diz respeito à manutenção da estabilidade da aldeia. Ao mesmo tempo, ambos contrastaram essas ligações com aquelas entre diferentes gerações: os relacionamentos políticos verticais, mais que os horizontais, seriam capazes de assegurar a coesão aldeã.

58 Rivière retoma a caracterização feita por Turner sobre os povos Jê e Bororo. Para este autor, a economia política estaria baseada na produção e na reprodução social, através da exploração das mulheres e dos homens jovens por parte dos homens mais velhos. Mas, no caso de Turner, um certo “marxismo” atravessa seu argumento de forma bem pronunciada. Segundo ele, os homens mais velhos formariam uma “classe dominante” em função do controle exercido sobre os meios fundamentais de produção, as unidades residenciais (apud Rivière 1984: 87).

considera o que poderia vir a ser uma pessoa nas sociedades indígenas da Guiana61. A

noção, não raro, parece confundir-se com o conceito de indivíduo (cf. Viveiros de Castro

1987: 280). Outra conclusão é que não existe sociedade fora da aldeia (Rivière, 1984: 98),

sua existência “dentro da aldeia”, entretanto, é um ponto pacífico do argumento: é o que

parecem dizer a linha demarcatória entre interior e exterior e o dispositivo de controle que

existe para mediar esta oposição.

V. Algumas imagens da socialidade

A imagem prevalecente das sociedades guianesas, tal como descritas por Rivière, é

a da mônada, efeito da vontade de ficar “entre si”, da minimização das formas de troca

matrimonial, da supressão (ou mascaramento) da afinidade, entre outras coisas. A

“xenofobia típica” (Rivière 1984: 61) dos povos da Guiana coincide assim com o foco na

comunidade local. Para além desta haveria apenas pura negatividade. As relações de

afinidade dentro do grupo seriam menos pensadas como pontes com outros mundos

possíveis, do que como se existissem para constituir um interior idêntico a si próprio.

Ao longo do capítulo, procuramos seguir os passos da descrição geral das

sociedades guianesas feitas por Peter Rivière em Individual and Society in Guiana que

conforma essa imagem. As sociedades da Guiana parecem, de fato, partilhar de uma série

de traços comuns quanto ao tamanho e duração dos assentamentos, a composição da aldeia,

61 Sigo aqui a crítica de Viveiros de Castro segundo a qual a noção de uma economia política de pessoas é interessante, mas “toma por dado (...) precisamente o que não poderia tomar: que se sabe de antemão quem são as pessoas, isto é, que todos os povos do planeta entretêm mais ou menos as mesmas idéias sobre quem se qualifica à condição de pessoa (e o que a qualifica)” (2002: 415).

os padrões de residência, as regras de casamento, as terminologias de parentesco e o

sistema de atitudes. É essa semelhança que faz com que o autor atribua à estrutura social o

lugar do invariante. Os exemplos Trio, Pemon e Piaroa, aqui examinados, de modo geral,

confirmam a uniformidade deste perfil sociológico. Mas, ao mesmo tempo, apresentam

variações significativas, no que diz respeito aos “fatos” e, até certo ponto, às interpretações

que lhes deram seus etnógrafos. A intenção foi tentar apresentar o modelo contra essas

variações para, assim, poder sugerir quais traços das etnografias teriam sido mais ou menos

enfatizados por Rivière em sua construção do “tipo guianês”.

Como vimos, as divergências parecem se concentrar no modo como as relações de

afinidade são concebidas. Rivière enfatiza o gradiente próximo/distante em detrimento do

contraste binário entre consangüíneos e afins. Quanto à importância deste gradiente para a

articulação das categorias sociais, Thomas e Overing, parecem estar de acordo. Dentro do

grupo local, os afins são assimilados aos cognatos co-residentes, o que deriva de uma

situação de “endogamia prescritiva”. Mas, para Rivière, a distinção entre estrangeiros e

cognatos vai mais longe: ela chegaria mesmo a fazer desaparecer a oposição entre afins e

consangüíneos. Dessa forma, em sua análise, tudo se passa como se, na Guiana, a afinidade

nada significasse.

Tal interpretação, entretanto, parece contrastar com o fato, pelo próprio autor

demonstrado, de que o casamento é um laço político crucial na dinâmica social guianense.

Se, por um lado, como propõe Rivière, os parentes por afinidade não se distinguem dos

parentes por consangüinidade (sendo todos considerados, antes, como cognatos), por outro

lado, o tamanho e a duração das aldeias dependem da relação que se estabelece

precisamente com aqueles. As potenciais linhas de fissão passam por lá e é lá que podem

surgir certas formas “hierárquicas”, como o controle exercido pelos sogros sobre seus

genros. A aldeia, enquanto unidade política autônoma, parece depender, precisamente, do

bem-sucedido deste exercício. As relações de afinidade (tipicamente, a relação entre o

líder-sogro e seu genro) efetuariam a mediação entre a ordem doméstica do parentesco e a

ordem política da sociedade global, entre indivíduo e sociedade.

No modelo de Rivière, o grupo local acaba se confundindo com um grupo total.

Mas, paradoxalmente, as estruturas de troca matrimonial guianesas não seriam suficientes

para formar grupos sociologicamente integrados. A ausência de regras de residência, a

possibilidade de manipulação da terminologia em face dos ideais endogâmicos, o tamanho

e a impermanência dos assentamentos, o desejo de autonomia, etc., tudo isso pareceria

apontar para uma dificuldade de se tratar os povos da Guiana de uma maneira demasiado

totalizante. É neste contexto que os laços de afinidade, em particular, entre sogros e genros,

são descritos como se carregassem algo que poderíamos chamar de um ‘dispositivo de

totalização do socius’, o controle. Para Rivière, esse controle é um instrumento utilizado em

negociações entre indivíduos para alocação de recursos escassos que – na ausência de

agrupamentos sociais formais – acaba desembocando em sua contraface: a sociedade.

A socialidade indígena guianense parece assim ser concebida essencialmente em

termos da noção de Sociedade (sensu Strathern), como um modo de ordenar a experiência

que imagina um todo composto por partes. No caso do modelo de Rivière, essas partes são

indivíduos: identidades naturalmente pré-existentes cujas relações sociais lhes são

extrínsecas. O intercâmbio matrimonial e as relações de afinidade, de maneira geral,

estariam subsumidas aos problemas de alocação de indivíduos, considerados como recursos

produtivos. Mas, podemos então nos perguntar se outros discursos estariam preocupados

com o mesmo tipo de ‘problema de sociedade’. Se eles pressupõem igualmente os

indivíduos, as relações ou a socialidade. Imaginamos que não, mas vejamos como isso

acontece nos mitos que a partir de agora vamos examinar.

3

O modelo mítico da socialidade

O objetivo deste capítulo é analisar um mito, entendido da maneira como o concebe

Lévi-Strauss, ou seja, como o conjunto de suas versões, e tentar daí extrair elementos que

possam configurar uma outra imagem da socialidade, diferente daquela que esboçamos no

capítulo anterior. A armadura sociológica fundamental deste mito é a de um homem que se

casa com uma mulher-animal e tem de realizar uma série de tarefas difíceis ou perigosas

impostas por seu sogro que o ameaça devorar em caso de fracasso, mas de quem obtém os

bens culturais. Os mitos sobre os quais basearemos a análise provêm principalmente dos

três grupos indígenas guianenses cujas descrições etnográficas foram exploradas no

capítulo anterior: Trio, Piaroa e Pemon. Entretanto, esses mitos não se restringem

particularmente a estes grupos e sequer à região da Guiana. Outras versões, transformadas

de modo mais ou menos evidente, podem ser encontradas entre diversos povos da América.

De maneira mais ampla, poder-se-ia dizer que esse mito é, em última análise, aquele “mito

único” analisado por Lévi-Strauss ao longo das Mitológicas, cujas versões provêm de

povos que habitam desde o Alasca à Terra do Fogo.

Para examinar aspectos dessa mitologia, convém explicitar alguns dos pressupostos

teóricos e dos problemas relativos aos procedimentos metodológicos adotados. O fundo

sobre o qual tentaremos nos mover é uma conjunção entre, por um lado, as questões

apresentadas por Lévi-Strauss nas Mitológicas e, por outro, certas idéias desenvolvidas em

estudos americanistas recentes, a saber, que a socialidade indígena se caracterizaria por

qualidades particulares, associadas aos conceitos de “perspectivismo cosmológico” e de

“afinidade potencial” (cf. Viveiros de Castro 2002), entre outros. Abramos, pois, um

parênteses para tornar mais claros certos traços deste arcabouço que nos servirá de base.

As Mitológicas de Lévi-Strauss são, para o próprio autor, um estudo das

representações míticas ameríndias da passagem da natureza à cultura62. Desse ponto de

vista, poder-se-ia imaginar que tudo se passa como se, para ele, os mitos expressassem uma

teoria indígena da origem da cultura e, portanto, do vínculo social. Mas, de fato, a

possibilidade de que os mitos constituam uma teoria indígena não parece ser uma posição

inequívoca no argumento do autor. Lévi-Strauss sempre se manteve profundamente

ambivalente quanto ao estatuto do discurso indígena perante o seu. Em alguns momentos,

ele parece reconhecer uma certa equivalência entre seu discurso sobre os mitos e os mitos

eles próprios, dizendo, por exemplo, que não seria equivocado considerar sua análise como

um mito, “de certo modo o mito da mitologia” (1964: 31). Mas, como na célebre passagem

de O totemismo hoje onde compara a fala de um índio Sioux com uma citação de Bergson,

é difícil saber se a intenção do autor é elevar o pensamento selvagem ao status do

pensamento domesticado (seja ele filosófico ou científico) ou reduzir ironicamente este

último à condição do primeiro. Em qualquer um dos casos, o que importa é que, na maioria

das vezes, as possíveis equivalências se constituem sobre uma assimetria de fundo que

parece ser, no pensamento de Lévi-Strauss, a chave desta relação.

62 As Mitológicas têm sua origem em um curso que começou a ser dado por Lévi-Strauss em 1961 no Collège de France intitulado “Representações míticas da passagem da natureza à cultura” (cf. Lévi-Strauss, 1984: 51).

Penso, entretanto, que uma corrente subterrânea no pensamento deste autor permite

supor que essa assimetria não está dada definitivamente, na medida em que, em alguns

casos e sob certos aspectos, a diferença entre os dois discursos pode tender a zero. Não

seria o caso de empreender aqui uma exegese da obra lévi-straussiana para tentar

demonstrar tal abertura. Estou ciente de que, se o fizéssemos, provavelmente

encontraríamos muitos argumentos que afirmariam o contrário. Afinal, entre outras coisas,

é Lévi-Strauss quem diz que “o relativismo cultural seria uma infantilidade se, para

reconhecer a riqueza das civilizações diferentes da nossa (...), ele se acreditasse obrigado a

tratar com condescendência, senão com desdém, o saber científico que, quaisquer que

sejam os males que acarretou e aqueles ainda mais graves que se anunciam, não deixa de

constituir um modo de conhecimento do qual não se poderia contestar a absoluta

superioridade” (1971: 569).

A citação acima é taxativa, mas, em outros momentos, é o mesmo autor quem diz

que “a lógica do pensamento mítico nos pareceu tão exigente quanto aquela na qual repousa

o pensamento positivo, e, no fundo, pouco diferente” (Lévi-Strauss 1955: 265). E a isso,

acrescenta: “pois a diferença se deve menos à qualidade das operações que à natureza das

coisas sobre as quais se dirigem essas operações” (Ibid.: 265). Em outra passagem,

referindo-se mais diretamente aos modelos de parentesco e casamento, Lévi-Strauss

também diz que “muitas culturas ditas primitivas elaboram modelos (...) melhores que os

dos etnólogos profissionais” (1955: 319). Mas, para Lévi-Strauss, esses modelos seriam

proximidade, embora faça deste discurso um objeto interessante para o antropólogo (pois

ele estaria estruturalmente ligado às categorias do pensamento indígena), pode colocar

dificuldades para que o próprio modelo nativo se constitua como um discurso antropológico

propriamente dito. Isso porque, para Lévi-Strauss, a capacidade reflexiva depende de um

encontro, da ação de um pensamento sobre o outro, e os discursos nativos talvez estivessem

muito próximos do contexto de onde emergem e ao qual se referem para que fossem

capazes de “contribuir para um melhor conhecimento do pensamento objetivado e de seus

mecanismos” (Lévi-Strauss 1964: 32). Mas, mesmo que os mitos não estejam exatamente

interessados em tal empresa, não seria precisamente a ação de um pensamento sobre o

outro o que eles não se cansam de efetuar? Ao menos quando se concebe que o mundo

indígena é habitado por diferentes espécies de pessoas, humanas e não-humanas, e que os

mitos, incessantemente, descrevem, especulam e teorizam sobre o jogo de perspectivas

entre sujeitos que estão sob um regime de constante metamorfose. Enfim, o que os mitos

relatam não seria justamente o pensamento humano (o Eu) se pensando em contraste com o

pensamento dos porcos-do-mato, dos jaguares, dos espíritos, dos inimigos, dos afins, de

todos os tipos de Outros possíveis e imagináveis? Uma especulação que, segundo o que

acabamos de dizer, considera que esses outros também pensam igualmente bem e que o

mundo deles é que varia?

Se pudermos ver as coisas assim, as análises míticas de Lévi-Strauss devem então

ser tratadas como uma espécie de meta-antropologia, um discurso sobre um discurso que já

é ele próprio antropológico. As “Mitológicas” de Lévi-Strauss seriam propriamente as

“Sociológicas” ameríndias, a expressão de uma sociologia dos índios (concebida por eles e

não apenas sobre eles). Entretanto, esta é uma sociologia que, aparentemente, não está

preocupada em produzir nenhum discurso sobre a sociedade, no sentido durkheimiano do

termo, mas, em vez disso, articula uma imagem do socius a partir de um discurso sobre os

corpos e os fluxos materiais (cf. Viveiros de Castro, 1999: 147).

Tendo em mente essas questões é que examinaremos os mitos aqui reunidos,

tentando explorar as condições para que uma ‘estrutura social’ engendre esse discurso

mítico (e não outro) sobre o problema da aliança ou da origem da cultura, sem com isso

imaginar que ele poderia apenas estar a refleti-los. De maneira geral, no caso ameríndio,

estamos supondo que essa ‘estrutura social’ implica um englobamento das idéias de

“cultura” e de “sociedade” por uma dimensão de virtualidade jamais totalizável, onde a

afinidade opera como um princípio dominante das relações sociais, dentro das quais as

pessoas existem.

O que estamos chamando de “modelo mítico da socialidade” não poderia ser, sem

dúvida, observado diretamente, como se estivesse na superfície dos mitos. Ele depende de

uma certa mediação interpretativa que aqui se inspira, sobretudo, na conjunção dos

programas acima mencionados. A intenção é poder assim ser fiel ao espírito, já que à letra

seria mesmo impossível, daquilo que está implicado nos mitos. Porém, em termos

metodológicos, algumas dificuldades de interpretação logo se impõem.

Por todas as demonstrações feitas por Lévi-Strauss, sabemos que, no mito, tudo é

motivado. Freqüentemente, a chave para se compreender a razão de um acontecimento

mítico pode se encontrar fora do domínio da linguagem, por exemplo, na etologia de um

animal, no uso que é feito de uma planta, nas regras de casamento ou residência adotadas

em um determinado grupo. Sob esse princípio, qualquer tentativa de análise mitológica

deveria, portanto, esforçar-se por determinar as propriedades concretas dos elementos que

constituem o mito. Não dispomos, entretanto, de conhecimento etnográfico suficiente

(menos ainda, zoológicos, botânicos, metereológicos, etc) para levar muito adiante esse

preceito, o que, por vezes, pode dar à análise ares demasiado formalistas. No entanto, como

diz Lévi-Strauss, as “análises formais são indispensáveis, pois somente elas permitem

expor a armação sociológica oculta sob narrativas de aparência esquisita e

incompreensível.” (1966: 146).

Portanto, se, verticalmente, o risco que corremos de não conseguir traçar certas

conexões pode ser o resultado de uma falta, horizontalmente, o problema pode ser o

excesso. Como demonstrou Lévi-Strauss ao longo das Mitológicas, duas cadeias

sintagmáticas ou fragmentos delas podem adquirir sentido pelo simples fato de se oporem.

A estrutura de um mito, freqüentemente, deriva de uma transformação de um outro mito

que, por sua vez, também responde a outro e assim por diante65. Portanto, se, por um lado, é

importante confrontar um mito com suas diferentes versões, por outro lado, tais associações

podem assim se desdobrar ao infinito. É preciso então saber conduzir a análise de modo a

não cair em algum tipo de associacionismo em que tudo está ligado a tudo, tentando manter

apenas um pequeno número de elementos dos mitos capazes de exprimir contrastes e

formar pares de oposição. Como diz Lévi-Strauss, “cada vez que se consegue reduzir uma

estrutura, não se perde sentido, como afirma com demasiada freqüência a crítica obtusa;

consegue-se um utensílio conceitual que, trabalhando sobre a matéria prima do mito,

65 Segundo Lévi-Strauss, “todo mito é por natureza uma tradução, tem sua origem em outro mito procedente de uma população vizinha mas estranha, ou em um mito anterior da mesma população, ou bem contemporâneo mas pertencente a outra subdivisão social – clã, subclã, linha, família, irmandade –, que um ouvinte procura demarcar traduzindo-o para a sua linguagem pessoal ou tribal, seja para se lhe apropriar, seja para desmenti-lo – deformando-o sempre pois.” (1971: 576).

permite extrair-lhe mais sentido do que previamente se havia imaginado” (1971: 242). Será

preciso, então, deslocar o foco de algumas associações que, entretanto, não deixarão de

existir, pois “a totalidade virtualmente ilimitada dos elementos permanece sempre

disponível” (Lévi-Strauss 1964: 386).

A princípio, o que temos em mãos são apenas alguns mitos que, superpostos,

parecem guardar entre si uma relação de transformação. Temos também a cartografia

mitológica empreendida por Lévi-Strauss que nos servirá de guia, apontando no mito os

detalhes que, talvez, de outra forma, passassem despercebidos. Procuraremos então

identificar, nestes mitos, os aspectos redundantes, tentando determinar, ao menos a título de

hipótese de trabalho, uma imagem da socialidade tal como concebida por esse discurso

antropológico nativo. Mas, sem nos alongarmos mais neste preâmbulo de capítulo,

tomemos logo a matéria que vamos aqui examinar.

I. Um mito pemon: a visita ao céu

Partiremos de um mito colhido por Theodor Koch-Grünberg durante uma de suas

expedições ao norte amazônico no início do século XX. Este mito faz parte de um grupo

que é geralmente conhecido como “a visita ao céu” e possui diversas versões provenientes

de diferentes grupos da área da Guiana. Essa versão, em particular, foi narrada ao autor por

um índio taulipang (pemon) durante uma expedição que ele fez à região compreendida

entre o monte Roraima e o médio Orinoco, entre 1911 e 1913.66

MI Taulipang: A visita ao céu

Antigamente houve uma guerra entre duas tribos. Uma aldeia foi incendiada e todos os homens morreram. Apenas um homem, chamado Maitxaúle, sobreviveu. Ele deitou-se ileso entre seus parentes mortos e untou o rosto e o corpo com sangue. Chegaram os urubus e brigaram por causa dos cadáveres.

Então veio a filha do urubu-rei e sentou-se no peito de Maitxaúle. Quando ela quis mordiscar o seu ventre com o bico, Maitxaúle a pegou. Os outros urubus fugiram. O herói levou-a para uma casa abandonada e cuidou dela como se fosse um pássaro domesticado. Maitxaúle saía para caçar e quando voltava encontrava tudo pronto – caxiri, milho, pão –, mas não sabia quem estava fazendo aquilo. Um dia, Maitxaúle escondeu-se e descobriu que era a filha do urubu-rei que se transformava em uma linda menina e fazia as tarefas de casa. Maitxaúle então pediu a ela que ficasse como sua mulher. Ela aceitou.

Depois de um tempo, ela decidiu ir ver sua família e dizer ao pai que agora ele tinha um genro. Deu alguns pulos, transformou-se em um urubu e voou para o céu. No dia seguinte, voltaram três urubus: a filha do urubu-rei e seus dois irmãos. Os cunhados ficaram mais dois dias, comeram carne cozida com Maitxaúle, deram a ele uma vestimenta de penas dos urubus-reis e depois foram embora.

A filha do urubu-rei mandou que o homem vestisse a roupa: ele obedeceu e transformou-se em um urubu. Maitxaúle, a mulher e os cunhados chegaram na entrada do céu e entraram. O sogro-urubu, Kasána-pódole67, recebeu Maitxaúle muito bem. A mulher disse ao índio que ele não precisava beber a bebida dos urubus, mas sim o caxiri de milho dos papagaios e dos periquitos

Um dia, o urubu-rei disse à filha que mandasse seu marido secar o lago Kapepiákupe dentro de dois dias! Era um lago muito grande. O urubu-rei queria matar Maitxaúle para comê-lo. Se não cumprisse com sucesso a ordem, ele o comeria. Maitxaúle não sabia o que fazer e contou a Pílumog, a libélula, que tinha sido submetido a uma prova e que o sogro o queria comer. Pílumog disse ao cunhado que o ajudaria a secar o lago. As libélulas tiraram muita água e o lago ficou seco. O velho ficou satisfeito e convidou todo mundo para apanhar peixes.

Kasána-pódole então deu ao genro uma cavadeira e mandou que ele construísse uma casa sobre o rochedo. Se ele fracassasse, o velho iria comê-lo. Mandou que ele fizesse isso com a intenção de matá-lo. Maitxaúle chegou ao rochedo, mas não conseguiu fazer buraco algum com a cavadeira. Veio então o verme Motó e ajudou-o a furar a pedra

66 Para tornar mais fluida a leitura, tentei resumir, na medida do possível, os mitos aqui apresentados. E, para evitar confusões, optei por especificá-los por algarismos romanos, já que Lévi-Strauss o faz por algarismos arábicos. ‘Nosso’ MI corresponde, nas Mitológicas, a M113, brevemente mencionado nas páginas 170, 219 e 370-ss de O cru e o cozido (1964).

67 Segundo Koch-Grünberg, “Kasanág é, em taulipang e arekuna, a denominação do urubu-rei: Vultur papa Lin, Sarcorhamphus papa Sw. Os Macuxi chamam-no Kasaná ou Ka’seni” (1916: 109).

para colocar os esteios. O pássaro Kasáu cobriu a casa. Maitxaúle disse ao sogro que a casa nova estava pronta.

O velho, então, disse ao genro que fizesse um banco de pedra com duas cabeças iguais às dele. Vieram Maidzape, as térmitas brancas e fizeram o banco em um instante. O banco tinha as duas cabeças, mas andava como um jabuti quando era ordenado.

Maitxaúle foi para a casa do sogro. Kasána-pódole deu-lhe para beber o Payuá dos urubus-reis, um caxiri feito de todos os animais apodrecidos do lago (peixes, jacarés, cobras), os quais estavam cheios de vermes. Ao invés de bebê-lo, ele deu tudo para a sua mulher. Ele bebeu caxiri de milho na casa dos periquitos, papagaios e araras. Maitxaúle escondeu um grão de milho na boca e o carregou consigo quando voltou à terra. Naqueles tempos a gente da terra ainda não tinha milho.

Maitxaúle colocou vespas no banco e disse ao sogro que ele estava pronto. Quando Kasána-pódole sentou-se no banco, as vespas o picaram. Maitxaúle ordenou e o banco correu, carregando o velho! Ele foi picado pelas vespas, bateu com a cabeça em uma árvore e caiu. O velho ficou com a cabeça transtornada e começou a rolar pelo chão: não podia andar.

Maitxaúle quis voltar de novo à Terra. Apareceu Murumurutá, o rouxinol, soprou uma planta mágica em Maitxaúle e deu-lhe suas vestes. Ele ficou bem leve e voou. O pássaro levou-o de volta para a casa dos seus parentes e Maitxaúle contou a eles o que havia se passado. Eles tinham uma nova plantação. Ele plantou o milho que trouxera do céu. Nasceu um pé de milho com duas espigas.

Os parentes queriam comer o milho, mas Maitxaúle queria usá-lo como semente para que nascesse mais. Abriram um novo roçado e lá plantaram o milho. Os outros parentes também souberam que ele tinha trazido o milho. Vieram e lhe pediram um pouco. Mas ele deu logo apenas um grão. Trocou-o por uma rede. Então o milho se espalhou. Todos plantaram muito milho e ele ficou também para nós. É o milho que temos hoje. (Koch-Grünberg 1916 [2002]:105-115).

O principal movimento produzido no mito vai do céu à terra, da terra ao céu.

Maitxaúle captura a filha do urubu-rei quando esta desce à terra e passa a viver como sua

mulher. Ela então resolve ver seus parentes e retorna ao céu deixando o herói na terra.

Novamente, ela desce, dessa vez acompanhada por dois irmãos, e ficam na terra alguns

dias. Maitxaúle então, transformado em urubu (vestindo suas roupas) e acompanhado por

sua mulher e seus cunhados, sobe ao céu e encontra o sogro que lhe impõe algumas tarefas

sob a ameaça de devorá-lo. Finalmente, o herói volta à terra e encontra novamente seus

parentes.

A oposição céu/terra é fortemente marcada e, em uma das versões do mito, ela é

ainda mais acentuada. Na versão Tembé68, que Koch-Grünberg resumiu a partir do texto de

Nimuendaju, o herói e a esposa-urubu, em sua viagem para o céu, chegam “primeiro à casa

do Sol, em seguida à casa da Lua, depois à casa do vento e, finalmente, à residência do

velho urubu-rei” (1916: 200). Tudo se passa como se, em um plano vertical, os personagens

fossem de um extremo ao outro percorrendo um máximo de distância espacial. Esse

percurso é realizado pelo herói, por sua esposa e por seus cunhados-urubu. Apenas o sogro

não se desloca. Está sempre no alto, onde, segundo Coll (1907-08), os índios dizem que se

encontra toda a ciência dos urubus.69

Esse jogo de posições pode também ser observado de um ponto de vista culinário e

perspectivista70. De início, há uma disjunção absoluta entre céu e terra que se torna

conjunção quando a filha do urubu-rei (habitante do céu) passa a viver com Maitxaúle

(habitante da terra). Ela faz a mediação entre céu e terra: é urubu, mas pode despir-se de

suas penas (roupas) e transformar-se em mulher; come carne assada, mas pode beber do

caxiri podre dos urubus71.

68 Grupo tupi que habita o norte do Estado do Pará e Maranhão (fora da “área da Guiana”), também conhecido como Tenetehara.

69 Coll faz esse comentário ao narrar um mito de um grupo indígena do Suriname (ele não especifica qual). Esse mito, “L’histoire du Piay Macanaholo”, é uma versão muito próxima de “a visita ao céu”.

70 Desnecessário lembrar o lugar essencial que, segundo Lévi-Strauss, ocupa a culinária na filosofia indígena. Segundo este autor, “ela não marca apenas a passagem da natureza à cultura; por ela e através dela, a condição humana se define com todos os seus atributos, inclusive aqueles que – como a mortalidade – podem parecer os mais indiscutivelmente naturais” (Lévi-Strauss 1964: 197).

71 Não disponho de muitas informações sobre a cosmologia pemon, mas, não muito longe deles, seus vizinhos Waiwai caracterizam o espaço por cinco níveis verticais: um ctônico, a superfície terrestre, onde vivem os homens, e três níveis celestes, cada um com seus típicos habitantes. Segundo Howard (1991), cada criatura encarna certas características e poderes do domínio de onde provém; cada uma pode ser um representante de seu domínio em outros contextos e trazer consigo os poderes de seu lugar de origem. De acordo com a autora,

O mito não coloca as coisas exatamente nestes termos, mas poderíamos sugerir que,

no primeiro momento (disjuntivo), o que ela vê como um banquete (e não como carniça),

ele vê como os corpos de seus parentes mortos. Em seguida, o herói e a filha do urubu-rei

(transformada em mulher) passam a viver juntos na terra. Ele traz para a casa a caça (um

veado), assa-a em uma grelha e a oferece à mulher que come com ele. Ou seja, ambos vêem

a mesma coisa como comida (como alimento cozido). Novamente ela vai ao céu e logo

volta com os cunhados de Maitxaúle. Nova disjunção e nova conjunção que repete a

primeira seqüência do mito intensificando-a. Aqui, além da mulher, há mais dois cunhados

que pedem ao herói para alimentá-los. Ele então mata um veado, cozinha a carne e todos

comem. Ou seja, todos vêem a mesma coisa como comida (cozida). Já a terceira seqüência

é, do ponto de vista dos deslocamentos, uma inversão das duas primeiras. É o herói que

sobe ao céu, transformado em urubu junto com sua esposa e seus cunhados, e encontra-se

com o sogro. Lá, a filha do urubu-rei dispensa Maitxaúle de comer da mesma comida que

eles.

O herói, quando vai para o céu, não consegue ver como comida o mesmo que os

urubus vêem como tal. Ou seja, as conjunções que se dão na terra e no céu são desiguais.

Na terra, a conjunção tende a ser mais forte já que os seres terrestres e celestes vêem da

mesma maneira o alimento: o cozido é visto por ambos como cozido. Mas, no céu, a

conjunção implica também uma disjunção: o cozido é visto como cozido por uns e como

podre por outros. Em outros termos, na terra, a diferença entre os seres terrestres e celestes

pode ser extremamente reduzida, enquanto que, no céu, ela persiste em sua irredutibilidade.

os pássaros são, neste sentido, símbolos ou “fragmentos” dos céus e das florestas de onde eles vêm e, por causa da sua habilidade de voar e atravessar os limiares entre estratos cosmológicos, são particularmente aptos à comunicação entre estes estratos e fazem entre eles uma ligação conceitual.

Temos, portanto, em um plano vertical, dois pares de oposições (humanos/urubus;

terra/céu). Potencialmente, há homens e urubus tanto na terra quanto no céu. No entanto, é

possível detectar um certo desequilíbrio na articulação desses quatro termos. Como se estes

dois dualismos pudessem ser pensados como um triadismo. Se definirmos a condição

humana e a condição urubu por suas respectivas dietas alimentares, tudo se passa como se,

na terra, só houvesse homens e, no céu, urubus e homens. Isso porque aqueles, quando vêm

à terra, conseguem portar-se ao modo dos humanos, ainda que, frisemos, não deixem

completamente de ser urubus. Maitxaúle, por sua vez, quando vai ao céu, não consegue

portar-se ao modo dos urubus (não come a comida deles). Na terra, aqueles que se portam

como humanos podem ser, na realidade, urubus, ao passo que, no céu, resta uma instância

última da qual os seres terrestres não podem participar: comer o podre.

Da exclusão de certos traços urubus dos homens (que não podem atualizá-los), resta

sempre uma parcela irredutível da diferença. Na atitude alimentar de “comer o podre”

residiria uma afinidade pura, ou potencial, revestida de “um valor propriamente

transcendental” (Viveiros de Castro 2002: 159), de impossível atualização. Da extensão de

certos traços humanos aos urubus (tomada como uma possibilidade que estes podem ou não

atualizar), resta uma humanidade incerta de onde sempre é possível irromper a diferença.

Aparentemente, na atitude alimentar dos homens e urubus em “comer o cozido” residiria a

partilha de uma mesma condição humana, na qual, entretanto, existiria sempre, ainda que

em estado latente, algum aspecto de não-humanidade. Assim, no mito, da atualização do

modo de vida na terra poderíamos extrair uma “contra-efetuação urubu”. (c.f. Viveiros de

Castro 2002: 403-ss).

Os três momentos de conjunção em que seres terrestres (Maitxaúle) e seres celestes

(os urubus) vivem juntos podem ainda ser vistos de outra maneira. Traduzindo a oposição

entre seres terrestres e celestes em termos das relações sociais implicadas, temos: 1) o herói

e sua esposa, na terra; 2) o herói, sua esposa e seus cunhados, na terra, e 3) o herói, sua

esposa, seus cunhados e seu sogro, no céu. Há, portanto, uma gradação no que diz respeito

aos afins (do ponto de vista de Maitxaúle) envolvidos na relação. Esta gradação é, em um

primeiro plano, quantitativa (o número de afins vai aumentando), mas também é qualitativa

(em cada seqüência, os afins introduzidos são cada vez mais distantes – a esposa, o

cunhado e, finalmente, o sogro). No pólo mais fraco desta gradação está a esposa de

Maitxaúle que, no mito, convive com ele na terra de maneira intensa: dorme com ele,

cozinha com ele, come com ele. Os cunhados, intermediários, vêm à terra, comem com o

herói, mas voltam logo. No pólo mais forte está o sogro que não vem à terra e, mais ainda,

ameaça devorá-lo.

Momentaneamente, deixemos em suspenso as observações feitas a partir deste mito,

para trazer à cena outras versões provenientes da mesma sociedade e de sociedades

vizinhas, tentando, simultaneamente, lançá-lo contra o escopo mais geral das Mitológicas.

II. A terra redonda da mitologia

Uma outra versão deste mito foi colhida por Simpson no início da década de 40

entre os Pemon e é, de maneira geral, bastante semelhante àquela narrada por Koch-

Grünberg. Nela, o motivo inicial da guerra entre dois grupos desaparece e, em seu lugar, se

desenvolve uma trama onde, a partir de uma disputa entre cunhados, o herói se vê obrigado

a fugir e acaba, como no primeiro mito, vivendo sozinho.

MII Pemon: A visita ao céu

Maichak viajou com os cunhados. Alguém precisava fazer as prensas e as peneiras para que as mulheres preparassem a mandioca enquanto os outros iam caçar. Maichak se ofereceu, embora não soubesse como fazê-lo. Os cunhados foram caçar e Maichak acabou não fazendo os utensílios. Os cunhados voltaram com a caça e ficaram furiosos com ele. Amarraram as mãos e os pés de Maichak, penduraram-no e mataram-no. Mas Maichak levantou-se e viveu novamente. Todos resolveram voltar para casa.

Maichak disse aos cunhados que fossem na frente porque ele e a mulher iriam caçar pecaris. Ele então resolveu se vingar dos cunhados e matou a mulher. Maichak colocou seu corpo junto à carne dos pecaris que havia caçado e levou tudo para a casa dos pais de sua esposa.

Enquanto Maichak foi se banhar, a mãe da esposa descobriu o corpo de sua filha. Os cunhados correram atrás de Maichak para matá-lo. Maichak fugiu e era sempre avisado pelos pássaros quando os cunhados estavam se aproximando. Ele pegou um barco e remou por dias até a sua cabeceira. Parou na frente de uma casa, plantou uma roça e passou a viver ali sozinho. Piaima, um homem-animal que vive nas montanhas e nas florestas e que pode ser visto apenas por xamãs, ensinou-lhe a fazer todos os utensílios. Então Maichak aprendeu a tecer as fibras e fazer todos os tipos de trabalhos masculinos.

Ele vivia bem, mas sentia-se muito sozinho. Resolveu então capturar um urubu-rei. Matou um tapir, lambuzou-se de uma graxa rançosa e, quando o animal estava pútrido, deitou-se perto dele fingindo estar morto. Os urubus vieram para comê-los. Maichak agarrou um deles e levou-o para casa. (Simpson apud Thomas, 1982).

A partir desse ponto e em linhas gerais, a história se segue como em MI. Nesse

episódio inicial de MII, o herói, castigado e morto por seus cunhados, ressuscita, torna-se

algoz de seus afins, matando e oferecendo como comida a própria esposa, e acaba sendo

perseguido por eles. Como veremos, todo o mito apresenta uma série de possibilidades

lógicas envolvendo as relações de Maichak com seus afins, sempre articuladas pelo

esquema da predação e do canibalismo.72

1. Origem dos porcos-do-mato

Aparentemente, o episódio nos remete aos mitos de origem dos porcos-do-mato

agrupados por Lévi-Strauss nas Mitológicas73. Este conjunto de mitos traz à cena um

conflito entre cunhados que ocorre por causa dos maus tratos que um irmão de mulheres é

vítima por parte dos maridos de suas irmãs (que lhe negam alimento, dão pouco ou

insolentemente). Porque estes se comportam de maneira a-social, mostrando-se

“desumanos”, são transformados pelo demiurgo em porcos-do-mato. Em MII, o que se

passa é também um conflito entre cunhados que se desencadeia porque o marido da irmã,

Maichak, não faz os utensílios que lhe cabia fazer para alimentar os irmãos dela. Mais

ainda, quando o herói então resolve caçar, mata a esposa e oferece aos cunhados como

alimento a carne da própria irmã. Ou seja, ele também não provê convenientemente seus

cunhados.

72 Depois deste primeiro episódio, a “visita ao céu”, propriamente dita, transcorre de maneira muito semelhante à de MI. Em seguida, o herói volta à terra, encontra duas irmãs e, com uma delas, passa por uma situação incestuosa. Depois, ele volta para casa e é bem recebido por todos. Essa versão do mito narra

condenado a selar laços com seres cuja natureza lhe parece irredutível à sua” (Lévi-Strauss

1964: 124). De fato, em MII, os doadores de mulheres são humanos e o tomador, Maichak,

embora não se transforme em porco-do-mato, tem uma natureza ambígua. O herói, depois

que ressuscita, tem, com a própria esposa, uma atitude canibal. Ele não a come, mas faz

dela comida para seus cunhados. Ou seja, tudo se passa como se, em MII, a transformação

do tomador de mulheres em porco-do-mato fosse substituída por sua transformação em

cunhado-canibal.76

A partir dos mitos de origem dos porcos-do-mato, Lévi-Strauss diz que “a relação

de aliança é concebida sob a forma de uma oposição, natureza/cultura, mas sempre

adotando o ponto de vista dos doadores de mulheres” (Lévi-Strauss 1964: 121). A título de

hipótese, poderíamos sugerir que o episódio inicial de MII, explora uma possibilidade

lógica dos mitos de origem dos porcos-do-mato: adota o ponto de vista do tomador (e não

dos doadores) de mulher e, ao fazê-lo, transforma-o não em porco, mas em cunhado-

canibal. No metassistema proposto por Lévi-Strauss (1964: 107-136), os cunhados se

dividem em duas categorias: jaguar, quando a natureza tende para a cultura, e porco-do-

mato, quando a cultura degenera em natureza. Mas, tudo se passa como se essa própria

degeneração da cultura em natureza pudesse acontecer de dois modos: um natural (quando

o mito assume o ponto de vista dos doadores e o tomador transforma-se em porco-do-mato,

i.e., presa) e outro cultural (quando o mito assume o ponto de vista do tomador e

transforma-o em cunhado-canibal, i.e., predador).

76 Note-se que as duas versões do outro mito pemon que também narra um conflito entre cunhados apresentam dois desfechos que contemplam as duas transformações possíveis do mau cunhado: pai dos porcos-do-mato ou glutão canibal.

Todo esse jogo de oposições entre doadores e tomadores, bons e maus cunhados,

canibais e porcos-do-mato pode ser expresso no seguinte diagrama:

[1] MII: Origem dos porcos-do-mato

doadores tomadores

� � �

bons maus

� � �

canibais porcos-do-mato

Segundo Lévi-Strauss, “os tomadores de mulheres têm a qualidade de homens

apenas quando os doadores são espíritos” (1964: 121). Essa inversão de perspectivas

acontece no episódio subseqüente – a visita ao céu, propriamente dita – quando,

diferentemente da primeira parte do mito, os doadores não são humanos. Maichak, depois

de revelar sua natureza “desumana” de mau cunhado e assassino de sua própria esposa, se

civiliza (aprende com Piaima as confeccionar seus utensílios, faz sua roça e vive bem em

sua casa). Na visita ao céu, o herói, apesar de continuar a ser um tomador de mulher, adota

uma perspectiva humana (e não de porco-do-mato ou de cunhado-canibal). Mas, dessa vez,

ele é que sofre ameaças de virar comida de seus afins. Quando seus aliados, doadores,

passam a ter uma conotação de espíritos, o herói passa de cunhado-canibal a genro-

canibalizado.

2. Origem do fogo

Como em MI, o herói, Maichak, após ter se afastado dos parentes, encontra-se como

que sozinho no mundo. Ele então se deita junto à carne apodrecida de um animal morto por

ele (e não dos parentes mortos pelos inimigos), fazendo-se de isca para capturar um urubu

carniceiro – de fato, uma mulher – que lhe faça companhia.

O detalhe desta técnica de caça talvez nos passasse despercebido, se não

soubéssemos do lugar fundamental que ela ocupa em diversos outros mitos, sobretudo nos

mitos tupi de origem do fogo apresentados por Lévi-Strauss (1964: 169-73).77 Estes mitos

narram a aquisição do fogo, que até então pertencia aos urubus, pelos homens. Em todas as

versões, os urubus são atraídos pela carne podre do próprio herói ou pela carne de caça

apodrecida com a qual ele se mistura. Quando as aves vêm para comê-lo, o herói rouba-lhes

o fogo. Lévi-Strauss sugere que este mito pode ser encontrado, de forma modificada, em

várias regiões, desde a Guiana até as regiões setentrionais da América do Norte (1964:

170). Mas, na visita ao céu, o tema do fogo é substituído pela captura de uma filha de

urubus que o herói engana fingindo ser uma carniça. Nestes mitos, o fogo e a mulher

possuem uma função mediadora entre dois termos: enquanto aquele se interpõe entre o céu

e à terra mantendo-os à boa distância, esta faz o mesmo entre dois afins de espécies

diferentes e que se definem por condutas alimentares opostas. O tema tupi da origem do

fogo, que aparece de modo implícito na visita ao céu, é, portanto, uma transformação, em

código cosmológico, da origem da aliança interespecífica, a dimensão espacial do

parentesco.

77 Nos mitos guianenses, freqüentemente, o fogo surge de uma mulher que o tinha guardado em suas vísceras e usava-o escondido de todos. (cf. Koch-Grünberg 1916: 100; Civrieux, 1997 e, nas Mitológicas, M259 (Warrau), M266 (Macuxi), M272 (Taulipang), respectivamente em Lévi-Strauss 1966: 199-201, 205 e 228).

O motivo também faz recordar a caça às águias entre os Hidatsa78 que foi descrita

com minúcia por Lévi-Strauss. Segundo ele, esse povo atribui um caráter sagrado a essa

atividade, pois ela teria sido ensinada aos homens pelos animais sobrenaturais. Os Hidatsa

caçam águias escondendo-se em covas e colocando, por cima, iscas (de carne crua). A

águia é por elas atraída e, quando a ave se aproxima, o caçador a agarra. Lévi-Strauss

aponta para o caráter paradoxal desta técnica: “o homem é a armadilha, mas para cumprir

esse papel deve descer a uma cova, isto é, assumir a posição do animal preso na armadilha,

ele é, ao mesmo tempo, caça e caçador” (1962b: 66). Ainda segundo o autor, no caso dos

Hidatsa, a importância ritual da caça às águias estaria ligada “à adoção de uma posição

singularmente baixa pelo caçador (no sentido próprio e também no figurado (...)), para

capturar uma presa cuja posição é a mais alta, objetivamente falando (a águia voa alto) e

também do ponto de vista mítico (em que a águia é colocada no topo da hierarquia das

aves)” (Ibid.: 67). A técnica implica uma redução deste afastamento máximo para uma

situação de plena contigüidade. Caçador e caça estão de tal modo unidos que pode haver

uma certa ambigüidade entre quem ocupa uma posição e quem ocupa outra.79

Do mesmo modo, nos mitos guianenses da visita ao céu e nos mitos tupi da origem

do fogo, poder-se-ia dizer que a captura do fogo ou da filha do urubu-rei expressam

78 Os Hidatsa são um grupo indígena norte-americano (de língua sioux) que vivem na confluência dos rios Missouri e Knife.

79 A situação faz lembrar um mito Warrau (M238), em que o herói é perseguido por um jaguar e eles correm em torno de uma árvore. Segundo Lévi-Strauss, “suas respectivas posições, antes precisamente definidas, tornam-se relativas, pois já não se sabe mais quem corre atrás de quem, quem é o caçador e quem é o caçado. (...) Embora o sistema esteja ainda reduzido a dois termos, não é mais um sistema polar, tornou-se cíclico e reversível” (1966: 162).

aproximações e afastamentos máximos entre os dois pólos da ação80. Uma relação que

conjuga elementos naturalmente disjuntos parece implicar uma possibilidade latente de se

reverter as posições entre predador e presa. O herói de MI e MII faz-se de caça para ser um

caçador e, depois, diante do sogro, vê-se ameaçado a tornar-se caça novamente.81 Mais uma

vez, podemos exprimir essas oposições através de um diagrama.

[2] MII: Origem do fogo

alto baixo

� � �

armadilha cova

� � �

caçador caça

O episódio central da visita ao céu de MII, ainda que possua algumas variações

significativas, de modo geral, apresenta uma semelhança de detalhes com o mesmo

episódio de MI. Maichak leva para sua casa a filha do urubu-rei que se transforma em

mulher e passa a viver com o rapaz. Um dia, ela o leva para conhecer o sogro (nesta versão,

a seqüência dos cunhados-urubu desaparece). O velho impõe ao genro as tarefas – secar o

lago, construir uma casa sobre a rocha e fazer-lhe um grande banco de pedra com duas

cabeças – sob a ameaça de, em caso de fracasso, ser devorado. Maichak, com a ajuda de

80 Nos mitos da visita ao céu que aqui estamos tratando, não se trata de águias, mas de urubus. Não tenho dados mais explícitos quanto ao lugar que ocupam estas aves, do ponto de vista cosmológico, entre os Pemon. Mas, para os Waiwai, o mais alto domínio espacial, no longínquo lado da morte e da putrefação, seria o do povo das aves de rapina – comedores de carniça que tiram a vida das carcaças pútridas (Howard, 1991).

81 Viveiros de Castro transcreve um comentário de Erikson, segundo o qual “o caçador é por excelência um genro”, e comenta: “com efeito, pois, em caso contrário, o genro será a caça por excelência” (Viveiros de Castro 2002: 177).

alguns animais, consegue realizar todas as tarefas e foge de volta para a terra. É então que

um novo episódio é acrescido.

3. Os irmãos incestuosos

O herói retorna à casa de sua família, mas, antes de se apresentar aos parentes, fica

escondido por três dias: tem medo de se mostrar por haver matado sua mulher. Ele vê suas

duas irmãs descendo o rio para se banharem, transforma-se em peixe e toca sua irmã mais

velha intimamente. A outra irmã consegue agarrá-lo com uma peneira e ameaça assá-lo e

comê-lo. Maichak transforma-se novamente em homem, revela que é irmão delas e volta à

aldeia, onde é bem recebido por todos. Ele ensina aos Pemon tudo o que aprendera em suas

viagens, torna-se famoso e outros Pemon vêm de longe também aprender com ele82.

O episódio guarda notáveis simetrias e inversões com a abertura do mito. No início,

Maichak é castigado pelos cunhados porque não faz as prensas e peneiras. No fim,

transformado em peixe, ele é capturado pela irmã precisamente com uma peneira. Para

fugir dos cunhados, o herói sobe um rio. Para seguir as irmãs, ele desce um rio. Em um

caso, o herói mata a mulher e coloca seu corpo junto à carne de caça. Em outro, o herói

transforma-se em peixe e toca intimamente sua irmã. Como se, nos dois casos, o herói

realizasse uma espécie de canibalismo figurado.

Esse último episódio da versão de Simpson da visita ao céu é particularmente

significativo porque, dentre todas as transformações até aqui consideradas, ele é o único

82 Os episódios que abrem e fecham MI e MII são, aparentemente, homólogos. Ainda que em MI, eles sejam bastante reduzidos, na abertura deste acontece uma guerra entre inimigos enquanto que a abertura de MII envolve uma briga entre cunhados. No desfecho de MI e MII, o herói reencontra seus parentes. No primeiro ele traz e distribui o milho, no segundo, o conhecimento de “como fazer as coisas”.

que põe em cena uma relação entre consangüíneos. Contudo, a relação possui uma

ambigüidade: as irmãs são tratadas como se fossem afins. O par incestuoso irmão/irmã

evoca outro grande tema mítico tratado por Lévi-Strauss, sobretudo em História de Lince

(1991), a saber, o dos gêmeos de mesmo sexo. Pode-se ver a análise que faz o autor sobre

este tema como se ela expressasse uma meta-teoria da diferença feita a partir da mitologia

ameríndia. Sem podermos desenvolver aqui este tema, lembro apenas que os gêmeos

ameríndios são sempre díspares e, com efeito, Lévi-Strauss os caracteriza como se

estivessem em um ‘desequilíbrio perpétuo’83. Na análise lévi-straussiana, tudo se passa

como se os gêmeos de mesmo sexo encarnassem o mais alto grau de semelhança entre dois

termos de uma relação que, no entanto, não deixam nunca de ser desiguais. Em clave

sociológica, pode-se dizer que os gêmeos míticos expressam o fato de que qualquer relação

de consangüinidade é, potencialmente, uma relação de afinidade.

O reencontro de Maichak com suas irmãs, no episódio final de MII, parece

justamente afirmar essa potencialidade da afinidade. Mas o mito tem o cuidado de fazer

com que o herói se encontre não com uma irmã, mas com duas, estabelecendo uma nova

diferenciação: ele toca uma irmã intimamente (ela é uma esposa) enquanto a outra ameaça

devorá-lo (ela é uma cunhada). Se dispusermos em um diagrama os elementos do mito a

partir de um critério de oposição entre predadores e presas (tal qual o fizemos nos

diagramas acima), teremos:

83 Makunaíma e Jigué (ou Piá) são dois gêmeos que aparecem em diversos mitos guianenses (cf. p. ex. Koch-Grünberg 1916: 59-76 e Roth 1915: 130-33). Entre os Ye’cuana, estes ‘mesmos’ personagens chamam-se Shikiemona e Iureke (Civrieux, 1997).

[3] MII: Os irmãos incestuosos

afins consangüíneos

� � �

irmão irmã

� � �

cunhada esposa

No mito, a definição de alguém como cunhada ou esposa, caçador ou caça, canibal

ou porco-do-mato não está dada de antemão. É na relação entre dois termos que cada um se

constitui. No primeiro episódio, o herói, mau cunhado, pode se tornar canibal ou porco-do-

mato, uma alternativa que só se configura quando outras versões são levadas em

consideração. No segundo, a alternância é temporal: o herói primeiro faz-se de caça para

depois se tornar caçador (da filha do urubu-rei) e volta a ser caça e, novamente, caçador (do

sogro)84. Na terceira parte, as irmãs do herói encarnam, simultaneamente, as duas posições

possíveis de afinidade. Tudo se passa como se cada personagem do mito guardasse dentro

de si uma dupla valência de predador e de presa e que, dependendo das relações

contextuais, um valor se sobrepusesse ao outro, mas sem eliminar aquele que foi eclipsado.

A outra parte permanece latente como uma virtualidade que pode se atualizar de acordo

com as relações empreendidas, relações essas que têm sempre a forma da predação e do

canibalismo. O movimento do mito é, portanto, de uma inesgotável diferenciação interna.

84 O raciocínio aqui é esquemático. De fato, o herói não chega a tornar-se caçador de seu sogro. Nas duas versões ele apenas o assusta com o banco que anda. Essa observação é importante porque parece-nos que nem todas as relações entre duas posições são reversíveis.

Cada gesto canibal é um impulso para uma metamorfos

Na versão de Simpson, apenas ficamos sabendo que Maichak, quando volta à terra, ensina

aos Pemon tudo aquilo que havia aprendido em suas viagens. Sem que o mito explicite,

pode-se imaginar que o cultivo das plantas é um desses ensinamentos, mas eles parecem

estar mais diretamente vinculados à arte da cestaria que, no início do mito, o herói não

dominava e, por isso, é castigado. Lembremos que, quando Maichak foge de seus

cunhados, ele encontra Piaima que lhe ensina a tecer todas as fibras e fazer todos os tipos

de trabalhos masculinos. Talvez pudéssemos então postular que, nestes mitos, as plantas

cultivadas e a cestaria são termos permutáveis88. Mas, de qualquer o modo, em ambos é a

própria estrutura do mito e os elementos de que ele se utiliza que sugerem sua inserção

nesse conjunto mítico de ampla difusão nas duas Américas.

As versões dos mitos de origem das plantas cultivadas possuem variações

significativas, mas, de modo geral, elas contêm um episódio em que um homem que está

em alguma condição de solidão (seja porque é viúvo ou porque é feio e desprezado por

todos ou, simplesmente, porque é solteiro) apaixona-se por uma mulher-estrela. Eles se

casam e ela ensina os homens a cultivar as plantas, pois, até então, as pessoas alimentavam-

se de madeira podre. Em algumas versões, ela se transforma em uma sarigüéia (às vezes,

um ratinho) que mostra aos homens uma árvore carregada de espigas de milho. Em outras,

um sarigüê é morto e comido por pessoas que, ao fazerem-no, perdem a juventude. Mas,

em um caso ou noutro, um animal caracterizado pelo mal-cheiro e pela podridão introduz, a

um só tempo, as plantas cultivadas e a mortalidade. Segundo Lévi-Strauss, esses mitos

possível resposta remete ao fato de que, nos mitos ameríndios, a ‘origem’ diz respeito antes ao roubo, à troca e à circulação que à criação ex nihilo.

88 Com efeito, Lévi-Strauss menciona um mito apinayé (M87a) em que a esposa-estrela não apenas traz aos homens as plantas cultivadas como também lhes ensina a cestaria (1964: 199).

afirmam que a velhice (ou a morte) se impõe à humanidade como se fosse o preço a pagar

pelas plantas cultivadas (1964: 203). Esse mesmo caráter ambígüo da estrela-sarigüéia

poderia ser atribuído à esposa-urubu deste grupo de mitos da “visita ao céu” (cf. Lévi-

Strauss, 1964: 370).89

A origem da vida breve é evocada em “a visita ao céu” na medida em que ela é um

corolário dos mitos de origem das plantas cultivadas. O tema, entretanto, permanece

latente. A favor da pregnância dessa virtualidade está o fato de que o herói, na primeira

parte de MII, é claramente imortal (seus cunhados o matam, mas ele ressuscita) e, em MI,

sua ‘imortalidade’, digamos assim, é apenas uma sugestão (o herói não morre, embora

todos os outros parentes tenham morrido).90 Essa é, ao menos, a situação inicial. Ele então

deseja uma mulher e a toma dos urubus, como se ouvisse o “doce chamado da podridão”,

tema que, segundo Lévi-Strauss, em diversos mitos, está associado ao encurtamento da vida

humana. Pode-se supor, então, que o herói torna-se mortal a partir daí.

Mas, além disso, há que se lembrar que uma outra série mítica muito comum na

Guiana faz com que a origem das plantas cultivadas esteja associada ao tema da árvore dos

alimentos91. Uma das versões guianesas onde este tema aparece é, justamente, um mito de

89 Apesar das semelhanças, nos mitos de origem das plantas cultivadas, o tema do sogro antropófago desaparece. Contudo, em uma versão xerente apresentada por Lévi-Strauss (M93), Estrela desce à terra para se casar com um homem que havia se apaixonado por ela. O mito não menciona a revelação das plantas cultivadas, mas faz com que Estrela leve ao céu seu marido. Lá, “o rapaz só vê carne humana defumada ou assada; a água em que se banha está cheia de cadáveres mutilados e carcaças estripadas” (1964: 201).

90 Segundo Lévi-Strauss, o grupo de mitos relativos à vida breve encara-a sob dois aspectos: um prospectivo, o outro retrospectivo. A imortalidade pode ser alcançada evitando que os homens morram ou ressuscitando os mortos (1964: 193). As duas versões do mito pemon parecem apresentar precisamente esta alternativa.

91 Essa árvore, antigamente, era conhecida apenas pelo tapir ou pela cutia. Os homens a descobriram e resolveram derrubá-la. Dela, jorrou uma água que se transformou em um dilúvio e destruiu a humanidade (cf. Lévi-Strauss 1964: 219; Koch-Grünberg, 1916: 59-64; Roth, 1915: 148-49).

origem da vida breve. Essa versão foi narrada por Brett e, nela, há uma oposição entre o

chamado da pedra e o chamado da água. Se os homens tivessem escutado o primeiro,

viveriam tanto quanto a rocha. Mas, ao dar ouvidos aos espíritos, liberaram as águas (apud

Lévi-Strauss 1964: 219). De fato, segundo Lévi-Strauss, o tema da vida breve está

associado ora à origem das plantas cultivadas, ora à origem do fogo. No primeiro caso, o

surgimento da vida civilizada seria concebido mais como cultura (conquista dos bens

culturais); no segundo, mais como sociedade (multiplicação dos povos, diversificação das

línguas e costumes). Referindo-se ao tema da árvore dos alimentos e do grande dilúvio,

Lévi-Strauss diz que, da Guiana ao Chaco, a origem da vida breve estaria ligada à origem

da água e à (destruição da) sociedade (1964: 222).

2. A anti-origem das plantas cultivadas e a imortalidade

Como procuramos demonstrar, na Guiana, o tema da mortalidade também se

encontra associado à origem das plantas cultivadas. Uma outra versão de “a visita ao céu”,

proveniente dos Trio, reforça ainda mais essa associação. Ela inverte em vários pontos as

versões que foram narradas por Koch-Grünberg e Simpson, mas acaba por expressar a

mesma mensagem: adquirir de outrem os bens culturais acarreta o fim da imortalidade. Este

mito foi comentado por Rivière em Marriage among the Trio (1969), no prefácio à edição

brasileira de Individual and Society in Guiana (2001b) e em um artigo recente (2001a).

MIII Trio: Përëpërëwa

Përëpërëwa vivia sozinho em um pequeno bosque de bambu. Sua comida era apenas as folhas do bambu. Um dia ele foi pescar com um anzol feito de garra de águia. Ele só pegava casca de batata, inhame e abacaxi. Finalmente ele pegou um peixe. O peixe era uma mulher, Waraku, que havia sido enviada por seu pai.

Ela pediu ao herói que lhe mostrasse sua aldeia, seus parentes e sua comida. Përëpërëwa disse que não tinha aldeia, não tinha parentes e que a comida era apenas aquelas folhagens. Waraku, então, foi buscar comida. Pulou na água e, logo depois, reapareceu trazendo banana, abacaxi, batata doce, inhame, todos os tipos de comida. O jovem não queria comer, não estava acostumado. Ela disse que o próprio pai havia lhe dito que Përëpërëwa deveria tornar-se seu protetor e o protetor de seu pai. Përëpërëwa riu e disse que não queria uma esposa.

Waraku disse ao herói que fizesse uma aldeia e construísse uma casa, que seu pai havia dito que isto era a coisa própria a se fazer. Mas, ela acabou fazendo tudo sozinha. Quando acabou, Waraku foi buscar uma rede, um banco, mais comida, fogo e barro para fazer potes. Përëpërëwa ficou quieto apenas se perguntando o que estava acontecendo. Waraku disse a Përëpërëwa que cortasse o campo, que era assim que o pai fazia nas estações secas. Mas ela mesma fez tudo. Përëpërëwa não fazia nada.

Depois de um tempo, Përëpërëwa começou a comer pão de mandioca e banana (mas não todos os alimentos). Eles foram, então, buscar mais comida com o pai de Waraku. Ela disse a Përëpërëwa que se firmasse na canoa do pai, que não tivesse medo dos olhos dele e que aceitasse rapidamente as coisas que ele lhe desse. Então, no meio do rio, apareceu Ariwimë (jacaré). Ariwimë foi em direção ao genro, trazendo mandioca, banana, tudo. Quando Përëpërëwa viu os olhos de Ariwimë, ele fugiu porque tinha medo que o velho o agarrasse. Ariwimë levou embora as melhores plantas que davam muito abacaxi, mandioca, banana.

Waraku, então, ficou grávida e deu a luz a um filho. Um dia, um espírito canibal de voz esganiçada chamado Kaikë comeu Waraku e se filho. Quando Përëpërëwa chegou em casa, falou com a mulher, mas, pela voz, desconfiou que não fosse ela. Përëpërëwa matou o menino e cozinhou seu corpo num pote de pimenta. Quando Kaikë voltou, Përëpërëwa ofereceu-lhe a comida. Kaikë, sem saber, comeu o próprio filho e o.caldo, que estava muito apimentado, queimou-lhe por dentro. Enquanto ela estava morrendo, Përëpërëwa feriu-a algumas vezes para ter certeza que ela não se levantaria de novo.

Então, Përëpërëwa estava de novo pobre, como no início, sem mulher. Um dia ele foi caçar e deixou uma pilha de batatas sem descascar em casa, quando voltou encontrou-as descascadas e, no dia seguinte, prontas para comer. Përëpërëwa se escondeu para descobrir quem estava fazendo aquelas coisas: era uma mulher-urubu vinda do céu. Përëpërëwa agarrou-a, pegou suas roupas e atirou-as no fogo. Então, ela disse que iria deixá-lo mais uma vez.Ela disse que se ele a tivesse recebido bem, eles tornariam a viver juntos, teriam filhos e netos, disse que o pai dela é que a havia mandado, que ele o queria bem. Mas ela foi embora.

Përëpërëwa novamente estava pobre e sozinho. O pai de Waraku havia fechado os rios e Përëpërëwa teve que procurar por água. Ariwimë, encontrou o genro e perguntou onde estava sua filha. Përëpërëwa tentou explicar o que havia acontecido. O sogro disse que tinha tentado apenas ajudá-lo, mas que agora tinha acabado. Então, Ariwimë despiu Përëpërëwa, amarrou-o e arrastou-o pela terra e pela água, mesmo nos rios profundos. Seu único objetivo era matar seu antigo genro, mas Përëpërëwa não podia morrer. Finalmente, Ariwimë levou Përëpërëwa para o céu, embora quisesse vingar sua filha. (Koelewijn, 1987: 15-21).

As diferenças entre a história de Përëpërëwa e as versões da visita ao céu acima

comentadas revelam notáveis simetrias. Em todos os casos, a situação inicial é a mesma: o

herói está sozinho. Nas versões pemon, ele é destituído da sociedade e dos bens culturais

pela morte de seus parentes ou por fugir dos parentes de uma esposa terrestre. Ao começar

a reconstituir seu mundo social, Maitxaúle (ou Maichak) deseja uma mulher e captura a

filha do urubu-rei. Na versão trio, por sua vez, o herói vive em estado de natureza, não

possui parentes nem qualquer bem cultural e, sobretudo, não deseja uma esposa.

Acidentalmente, ele pesca Waraku, uma mulher-peixe, que não vem do céu, mas do mundo

aquático subterrâneo. Përëpërëwa não vai ao céu ter com o sogro, mas, inversamente, é o

sogro que sobe à terra para dar ao genro uma série de plantas cultivadas. O sogro-jacaré

(que em algumas versões, segundo Koelewijn e Rivière, é uma anaconda), do ponto de

vista espacial (baixo/alto) e das atitudes (benfeitor/canibal), inverte o sogro-urubu92. O

herói também tem que cumprir uma série de tarefas, mas, no mito trio, é Waraku, a esposa,

quem as realiza. Përëpërëwa, finalmente, não sofre ameaça alguma por parte de seu sogro,

mas sua mulher é devorada por um espírito-canibal. Este, entretanto, usa a pele de sua

vítima para se transvestir nela, mas é descoberto e morto por Përëpërëwa.

Como se não bastassem todas essas inversões sistemáticas, o mito reafirma seu

vínculo com “a visita ao céu” fazendo com que a esposa do herói ressurja como uma

mulher-urubu numa seqüência similar à das versões pemon: ela prepara os alimentos do

herói sem se deixar notar, mas é, enfim, descoberta por ele. Mas o episódio parece cravar-

se no mito apenas para tornar mais explícita essa relação, logo em seguida, a esposa-urubu

abandona o herói. No fim, o sogro-jacaré tenta matar o genro arrastando-o por todos os

lugares, mas Përëpërëwa é imortal.

92 Um detalhe importante: o céu trio é dividido em quatro níveis, cada um associado a diferentes animais. O terceiro nível é o domínio, não apenas do urubu-rei, mas do jacaré gigante, em sua forma arco-íris de Mestre das chuvas. Depois, só há o nível mais alto, no distante lado da lua (cf. Koelewijn, 1987: 11-2).

Do ponto de vista etiológico, o mito também articul

essas origens se ajuntam à das plantas cultivadas e da vida breve. De maneira mais ou

menos explícita, o mito da visita ao céu está associado a todos esses conjuntos míticos95.

Com efeito, Lévi-Strauss conclui que, em toda a extensão do continente americano e

num certo plano de abstração, não haveria mais que um único mito. Em escala cósmica, ele

sugere que esse mito narra um conflito de aliados entre um povo do céu e um povo da terra.

Na América do Sul, esse conflito poderia dar-se de duas maneiras: um primeiro ciclo

operaria de baixo para cima, onde o herói se eleva para obter o fogo, e o segundo ciclo, de

cima para baixo, sendo a descida de uma estrela à terra para casar com um mortal

responsável pela introdução das plantas cultivadas (1971: 502-ss). Ora, a “visita ao céu”

realiza esses dois movimentos articulando, a um só tempo, a origem do fogo e das plantas

cultivadas e, portanto, a aliança e a mortalidade96, a dimensão espacial e temporal do

parentesco. O mito trio de Përëpërëwa efetua, ao contrário, a mesma demonstração, o que

nos faz lembrar a constatação de alguns autores segundo a qual, “a morte e a aliança são

condições conexas de possibilidade do socius, como atestam aquelas utopias ameríndias

que, negando uma, negam conjunta e necessariamente a outra” (Viveiros de Castro, 2002:

171).

95 Apenas não observamos as transformações que talvez nos levassem aos mitos de origem do tabaco. Estas parece que demandariam mais operações do que aquelas que poderíamos tratar aqui.

96 De fato, na “visita ao céu”, enquanto a origem do fogo é apenas aludida, o problema da aliança é posto em relevo. Ao mesmo tempo, enquanto a origem da mortalidade é algo que pode-se apenas entrever, a origem das plantas cultivadas é, explicitamente, a função etiológica do mito.

IV. O sogro-canibal: variações

De maneira implícita ou explícita, a figura do sogro-canibal aparece em diversos

mitos tanto na área da Guiana, quanto em outras regiões. Um mito proveniente da costa

canadense do Pacífico, analisado por Lévi-Strauss, pode ser aqui evocado: trata-se da A

Gesta de Asdiwal. Nele, vemos mais uma vez um sogro (o Sol) que impõe a seu genro

(Asdiwal) uma série de provas difíceis que ele vence graças a seus objetos mágicos e à

intervenção de seu pai. O sogro aqui não é canibal, ao contrário, ele ressuscita Asdiwal

(Lévi-Strauss 1958: 156)97. Koch-Grünberg também menciona um mito dos Pehuenche

(Araucano), onde o velho Tatrapaí só aceita dar suas duas filhas a seus dois sobrinhos caso

eles executem uma série de tarefas. Com a ajuda de forças sobrenaturais (o trovão) eles a

realizam e acabam matando o velho (1916: 201).98 Um outro mito citado pelo autor é uma

variação Tembé da versão Taulipang que lhe é muito próxima (Idem: 200; Wagley &

Galvão, 1961: 154-5).

Na Guiana, também poderíamos mencionar uma série de exemplos. Em um mito

arawak narrado por Roth, a mulher do herói (Makanauro) é que lhe dá as três tarefas. Só

depois que ele consegue realizá-las, é que eles sobem ao céu e vão ter com o sogro. Este,

97 Em diversos mitos, o sogro é figurado pelo sol e não por um urubu. Essa transformação é interessante, pois efetua uma inversão entre o podre e o queimado, estados máximos de disjunção ou conjunção do céu e da terra. Em alguns casos, essa inversão se faz acompanhar por outra: o sogro, em vez de ser canibal, ressuscita ou salva seu genro. Mas, na verdade, cada um deles pode possuir internamente essa dupla valência. Os urubus podem ser salvadores e canibais (como no mito bororo do desaninhador de pássaros). Lévi-Strauss, ao analisar a viagem de piroga (que, segundo o próprio autor, poderia ser vista como uma projeção no eixo horizontal de uma estrutura vertical de mediação como a da visita ao céu), também atribui ao Sol duas maneiras de ser: pai benfeitor ou monstro canibal (1967: 160).

98 Este mito, nas Mitológicas, corresponde a M413 (Lévi-Strauss, 1967: 127-8) e inverte o mito taulipang M149 (Idem, 1964: 304-5, Koch-Grünberg, 1916: 76-7). No primeiro, o sogro é avaro, no segundo, é um sogro [sol] generoso que dá ao herói uma de suas filhas em casamento, mas este a trai com uma filha dos urubus.

por sua vez, submete o herói a novas provas (1915: 343). Um outro mito que o mesmo

autor apresenta vem dos Warrau e o Sol (Yar) é o ge

tal como a descreve Joanna Overing (1984, 1985a, 1985b). Embora não disponhamos dos

próprios mitos onde figura o sogro antropófago, essa mitologia parece guardar muitas

coincidências com aquilo que já foi descrito até aqui101. Nela, o criador e dono original da

maior parte da cultura, Kuemoi, era um canibal de duas cabeças, uma das quais comia carne

cozida enquanto a outra comia carne crua. Segundo a autora, Kuemoi é sempre descrito

como um terrível homem mau cuja família é formada pelo crocodilo, o jacaré, os grandes

peixes, o gambá e o urubu. É também o avô do sono e o mestre da escuridão. Os traços

“diabólicos” desse personagem – e Overing, ao descrevê-los, está particularmente

interessada em investigar os sistemas morais subjacentes ao mito (1985a: 245) – estão

diretamente relacionados com os pormenores sobre a criação do mundo, segundo a

mitologia piaroa, que tentarei resumir abaixo.

Antes que os mundos terrestre e celeste fossem constituídos, todas as forças do

universo estavam contidas no mundo subterâneo, casa do ser mítico tapir/anaconda, Ofo

Da’ae. Este criou os dois demiurgos, Kuemoi (anaconda) e Wahari (tapir), cujos poderes

foram responsáveis pela criação de vários aspectos do mundo terrestre102. Wahari, o mestre

101 Segundo Lévi-Strauss, todas as versões de um mito devem ser consideradas ao mesmo título (1958: 250). Mesmo as interpretações de um mito, como é o caso dos comentários feitos por Overing, deveriam ser tomadas como se fossem versões dele. Mas, de fato, embora haja muitos pontos em comum entre a mitologia dos Piaroa, dos Trio e dos Pemon, pareceu-nos muito mais difícil articular o material piaroa com os mitos provenientes dos outros dois grupos. Não sabemos, todavia, se se trata de uma dificuldade intrínseca às transformações entre os diferentes conjuntos míticos ou se ela se deve ao fato de que nosso acesso aos mitos piaroa passam pela mediação interpretativa feita por Overing. A favor da primeira hipótese, chamo a atenção para o fato de que as mitologias pemon e trio (ao menos tomando-as a partir das coletâneas que aqui nos utilizamos) não parecem possuir um caráter tão marcadamente “cosmogônico” como entre os Piaroa. Nesse sentido, mais próximos destes estariam os Ye’cuana, segundo o ciclo mítico apresentado por Civrieux (1987).

102 Wahari e Kuemoi, ambos criados por Ofo Da’ae, são, a princípio, irmãos, mas acabam se tornando genro e sogro. Joanna Overing chama a atenção para esse caráter transformacional dos mitos, no que diz respeito às categorias de classificação social. Segundo ela, “indeterminacy in the ordering of mythic relationships is perhaps the hallmark of na Amerindian mythic past as a social system, where sisters become wives, fathers become brothers, lovers become sons, fathers become father-in-law, husbands become fathers, and so on” (1985b: 156).

da selva, criou a topografia da terra, suas montanhas, suas pedras, seu sistema de rios, suas

cachoeiras e seu céu com o sol e a lua. Ele também criou os Piaroa. Kuemoi, mestre das

águas, criou as plantas cultivadas, o curare, os artefatos e as capacidades para usá-los.

Segundo Overing, os dois demiurgos são fractalizações do primeiro genitor tapir/anaconda,

encarnações dos dois aspectos opostos de sua natureza. Em outras palavras, enquanto

Wahari foi o responsável pelos elementos naturais, Kuemoi foi o criador do conhecimento e

das capacidades culturais. As criações de Kuemoi, entretanto, são descritas como

‘venenosas’ e ‘selvagens’ e as de Wahari, como ‘neutras’ e ‘domesticadas’ (Overing,

1985a: 257-8).

Overing descreve Kuemoi como “o deus criador da cultura venenosa” (1985a).

Segundo a descrição da mitologia piaroa feita pela autora, o demiurgo não foi concebido

por meios naturais: cresceu de um alucinógeno poderoso e venenoso que seu pai

tapir/anaconda colocou dentro do útero de Isiri, a deusa do lago. Os poderes de Kuemoi

para criar todos os recursos culturais teriam sido dados a ele por drogas envenenadas.

Todos os meios através dos quais alguém pode adquirir e processar comida - a caça, a

pesca, as roças, a cozinha – seriam aspectos da cultura piaroa envenenados pela força do

sol103. Wahari, por sua vez, chegou à terra sem o conhecimento para a aquisição e o

processamento da comida e sem o poder para criá-lo. Ele teria passado a maior parte do

tempo mítico roubando estes conhecimentos de Kuemoi e tentando transformá-los em um

conhecimento mais domesticado para que ele e os Piaroa pudessem dele se aproveitar. Mas,

103 Segundo Overing, para os Piaroa, é da luz do sol (ou do calor imoderado) que vêm os poderes maus: “circles or rains of rust stained by the sun’s force fall from the sky and are filled with madness. Powerful hunting poisons or charms can be taken from vulture down, sky rust, centre-of-the-sky down, all of which are filled with the dangerous force of the sun down” (1985a: 254).

Wahari, ao roubar tais conhecimentos, muitas vezes era envenenado por eles e acabava

tornando-se mau, cometendo atos violentos. Ele passava a ter visões dos próprios

companheiros de casa em forma animal, comestível.

Kuemoi, portanto, foi o primeiro detentor dos conhecimentos culinários e, como ele

tivesse tais conhecimentos e estes conhecimentos fossem envenenados, isso fez com que

seus desejos se tornassem selvagens. Por isso ele se tornou um caçador canibal e, para

capturar jovens habitantes da floresta em armadilhas para comê-los, Kuemoi atraía-lhes

com sua filha, Kwaewáenyamu (milho), mas, dentro do útero dela havia piranhas e peixes

envenados.104 Wahari capturou Kwaewáenyamu, conseguiu limpar o ventre da jovem,

casou-se com ela e tornou-se genro de Kuemoi. Foi através deste casamento, entre

domínios distintos do universo (a terra e a água), que as relações sociais passaram a existir.

Mas essa relação, não sendo recíproca (Kuemoi não recebe nada pela filha e pelos presentes

que deu), seria, segundo Overing, altamente precária. Por isso, Kuemoi teria passado a

maior parte do tempo mítico tentando comer seu genro e outras criaturas da floresta que

eram da família de Wahari (1984: 146).

O mesmo tipo de oposição assimétrica que observamos nas outras versões do mito

parece existir entre estes dois personagens. Kuemoi é sempre um terrível predador que

persegue sua presa, seu genro, Wahari. Mas este, por sua vez, pode também, contaminado

pelo veneno de Kuemoi, tornar-se predador.

104 Note-se que em um outro mito guianês, um sogro dá a seu genro uma mulher de madeira sem a abertura da vagina. Os dois tipos de mulheres caracterizam-se por não cumprirem bem sua função de mediadoras da aliança.

Os mitos pemon, trio e piaroa parecem situar a origem da cultura em uma relação de

afinidade entre um sogro animal (urubu, jacaré ou anaconda) e um genro humano. Kasána-

pódole, Ariwimë e Kuemoi são todos detentores dos bens culturais, originários de níveis

superiores ou inferiores à superfície terrestre onde vivem os homens. Os personagens

piaroa e pemon são ambos canibais de duas cabeças que ameaçam devorar seus genros,

cumpram eles as tarefas dadas pelo sogro (como Maitxaúle) ou não (como Wahari).105 Já

entre o mito Trio inverte os valores da ação e extrai as conseqüências dessa inversão: o

sogro é um benfeitor, mas o genro nega os benefícios da cultura permanecendo assim

imortal.

Esse jogo de simetrias e inversões corresponde, segundo Lévi-Strauss, a uma

necessidade própria ao pensamento mítico que, nem bem elabora um tema, procura

explorar sua estrutura lógica para construir inteiro o grupo de transformações. Por sua vez,

essas relações de transformação, diz o autor, “respondem à dupla necessidade de conciliar e

opor o que se conhece do outro e o que se afigura como próprio” (1971: 278). A questão de

se saber o que faz com que os Piaroa, os Trio ou os Pemon assumam uma versão e não

outra é algo que não poderíamos aqui querer determinar. Mas, no nível de abstração que

estamos considerando estes mitos e as imagens da socialidade que neles estão implicadas,

tanto faz que tomemos um ou outro como ponto de partida. O que importa é tentar

encontrar a estrutura que se constitui precisamente nas relações de transformação entre eles

e com outros conjuntos de mitos mais distantes.

105 As duas cabeças do sogro-canibal nos faz imaginar que o personagem é, ao mesmo tempo, o um e seu outro, o que lembra aquela idéia de Clastres (1974: 187-ss), que aqui só posso aludir, segundo a qual o Mal é o Um e que o dois designa verdadeiramente os seres completos.

V. Outras margens da socialidade

Ao longo do capítulo, apresentamos alguns mitos Trio, Pemon e Piaroa onde

aparece, de modo direto ou transformado, um personagem típico da mitologia ameríndia: o

sogro-canibal. Nesses mitos, poderíamos dizer que sua imagem figura constantemente

como a expressão máxima da alteridade, o predador por excelência, a terceira margem que

confere dinamismo aos dualismos dos mitos. Os sogros-míticos possuem certos traços

comuns: geralmente, pertencem a patamares do mundo situados acima ou abaixo do mundo

dos homens e, muitas vezes, estão neles confinados. Sempre não-humanos, podem ser

urubus, guaribas, jacarés, anacondas ou mesmo o sol. Freqüentemente, estão associados a

dois estados extremos de disjunção ou conjunção: ora o queimado, ora a podridão.

Benfeitor ou canibal de duas cabeças, ele é uma virtualidade irredutível a qualquer

atualização.106 É também o dono da cultura e os homens, para obtê-la, devem tornar-se

mortais e correr o risco da devoração.

Mas, o canibalismo não é apenas a conduta alimentar típica deste personagem com

relação aos homens. Ele está disseminado, como uma ameaça constante e implícita, por

todas as coisas e relações. Os mitos que aqui examinamos apresentam uma série de

possibilidades lógicas e sensíveis envolvendo as relações de afinidade, relações essas

sempre assimétricas e articuladas pelo esquema da predação. Os termos do mito se

constituem constantemente em relação a outros termos. Ou, melhor dizendo, os termos

podem ser interpretados “como resíduos das relações que os constituem, aquilo que surge e

106 Quanto a isso, há um detalhe sugestivo que aparece em algumas versões da “visita ao céu”: ninguém nunca teria visto os rostos das duas cabeças do urubu-rei. E uma das tarefas impossíveis que o herói tem que realizar é justamente esculpir um banco com as imagens das cabeças do sogro. O herói só consegue cumprir sua tarefa com a ajuda de animais que, sorrateiramente, vêem as faces misteriosas do terrível canibal.

sobra quando estas se consumam e se consomem” (Viveiros de Castro 2001: 7). Nesse

regime de incessante metamorfose que caracteriza o que Viveiros de Castro chamou de

“fundo de socialidade virtual”, a questão de se saber quais blocos de afecções serão fundo

ou forma, parte ou todo, depende sempre do contexto, que, no caso do mito, pode

extrapolar a sua própria cadeia sintagmática. Aliás, o que é contexto em um plano, em

outro, pode bem constituir o texto de outro contexto. Lévi-Strauss já havia identificado essa

propriedade comum aos mitos caracterizando-a como um “desequilíbrio perpétuo”,

resultado da assimetria dos dualismos que os constitui.

O que vários autores têm sugerido para o contexto amazônico é que essa estrutura

fractal, que encontra plena expressão nos mitos, caracterizaria também a construção da

pessoa e, co-extensivamente, da própria socialidade. Haveria, portanto, uma continuidade

entre as relações interpessoais e intrapessoais, entre partes e todos, sendo o esquema da

predação e do canibalismo aquele a efetuar a passagem (cf. p. ex. Kelly 2001, Viveiros de

Castro 2002, Strathern 1994).

4

Conclusão

Para concluirmos este trabalho será preciso remontar às questões apresentadas na

introdução. Porque lá talvez esteja exposto de maneira mais clara o que foi o impulso que

nos fez percorrer o caminho até aqui. Mas, antes, gostaria de lembrar uma imagem usada

por Rivière no preâmbulo de um artigo recente. Nele, para caracterizar seu argumento, o

autor evoca aqueles rios que os geógrafos chamam de “dendríticos”. Estes, segundo ele, são

rios que correm para o interior das massas de terra, onde se perdem em pântanos. A partir

dessa imagem, e sobre as idéias desenvolvidas nesse artigo, Rivière diz, “espero [...] que

existam pontos de interesse ao longo de seu curso, e que ao menos sua nascente, se não sua

destinação, esteja bem definida” (Rivière 2001a: 31). Recupero aqui esta metáfora porque

penso não poder encontrar uma melhor forma para descrever o curso desta dissertação e

aquilo que podemos dela reter.

Nosso ponto de partida foi uma questão que há muito desafia a antropologia

enquanto ciência comparativa: o problema de se saber o que deve ser comparado. Tínhamos

em mãos dois “objetos” totalmente heterogêneos: por um lado, várias etnografias da área da

Guiana e, por outro, um conjunto de mitos provenientes da mesma região. Ambos

pareciam-nos articular discursos particulares sobre o socius. Mas, então, como relacioná-

los? De antemão, pensávamos que nenhum dos dois termos poderia deter a primazia dessa

relação. Ou seja, embora as descrições etnográficas fossem mais facilmente identificáveis

aos ‘fatos’ que as histórias ‘absurdas’ narradas pelos mitos, era preciso desconsiderar essa

aparente vantagem das primeiras sobre as segundas. O primeiro ponto, portanto, foi recusar,

algo arbitrariamente, a diferença epistemológica entre os dois discursos.107 Sendo assim, as

operações intelectuais (as comparações) implicadas em cada um deles é que seriam

diretamente comparáveis (cf. Viveiros de Castro 2004). Recusar a diferença não

significava, claro, supor que esses discursos fossem iguais. Mas, para que pudéssemos

seguir com nosso experimento, bastava que eles se assemelhassem enquanto procedimentos

analógicos e todo o resto poderia-deveria diferir (inclusive, ou talvez principalmente, os

objetivos destes procedimentos). A título de composição do artifício, tomamos uma relação

de parentesco que nos parecia epitomizar o sentido das relações sociais de maneira mais

ampla e que recebia tratamentos sugestivamente diversos nos dois contextos analisados. A

relação entre sogros e genros era descrita por uns em termos de “controle” e, por outros, em

temos de “canibalismo”. A questão de fundo era então a de estabelecer as “razões” dessas

diferenças.

Isso, ao menos, era o que pretendíamos fazer. Ao longo do trabalho, entretanto, a

questão se mostrou mais complexa do que havíamos previsto. Tratar os mitos como um

discurso antropológico ainda nos parece uma perspectiva fecunda e instigante, mas talvez

exija mais (ou outras) mediações do que aquelas que pudemos produzir. Desde o início

pensávamos que não gostaríamos de abordar os mitos pela superfície como se eles

estivessem a refletir mecanicamente a ‘realidade’ etnográfica. Tampouco queríamos tratá-

los como se constituíssem uma sintaxe que nada teria a dizer “sobre a ordem do mundo, a

natureza do real, a origem do homem ou o seu destino” (Lévi-Strauss 1971: 571). Entre

107 Aceitá-la também não deixaria de ser uma decisão arbitrária.

essas duas negativas, penso, corre um rio no fundo do qual os mitos poderiam ser vistos

como uma verdadeira teoria indígena do socius.

Mas, apesar das dificuldades intrínsecas à questão que nos colocamos, o contraste

entre controle e canibalismo pôde oferecer algumas pistas sobre os tipos de problemas

envolvidos nas duas “descrições da socialidade indígena”. Depois de passarmos pelas

descrições etnográficas de alguns povos indígenas da Guiana e por um emaranhado de

mitos das mais diversas regiões das duas Américas, podemos então tentar recolocar o

problema inicial de outro modo e ao menos esboçar uma maneira de olhar para os materiais

que aqui consideramos.

O problema, ele próprio, poderia ter sido traduzido de diversas outras maneiras. O

‘mesmo’ contraste está colocado, por exemplo, na relação entre dois dos principais estilos

nos estudos contemporâneos das sociedades amazônicas, tal como definidos por Viveiros

de Castro (2002: 333-ss). Uma dessas orientações é chamada por este autor de economia

política do controle e foi principalmente desenvolvida nos trabalhos de Terence Turner e

Peter Rivière. Este último, como vimos, propôs que o recurso crucialmente escasso na

Amazônia era o trabalho humano, o que seria responsável por uma ‘economia política de

pessoas’ fundada na distribuição e controle das mulheres. Na Guiana, esse controle (na

ausência de instituições supradomésticas) seria tipicamente um atributo de indivíduos: dos

pais sobre suas filhas e, através delas, sobre seus genros.

Outro desses estilos analíticos foi chamado por Viveiros de Castro de economia

simbólica da alteridade, que seria representada por vários etnólogos de inspiração

estruturalista, incluindo o próprio autor. A passagem abaixo traça, em linhas gerais, os

contornos que configuram essa vertente, que nos ofereceu elementos importantes para a

análise dos mitos apresentados.

Interessados nas inter-relações entre as sociologias e as cosmologias, estes pesquisadores

concentraram-se nos processos de troca simbólica (guerra e canibalismo, caça, xamanismo,

rituais funerários) que, ao atravessarem fronteiras sociopolíticas, cosmológicas e

ontológicas, desempenham um papel constitutivo na definição das identidades coletivas.

Isso desembocou em uma crítica da noção de Sociedade como mônada fechada e auto-

subsistente, contraposta já a mônadas análogas que lhe serviriam de espelho sociológico

[...], já a uma Natureza com função de Outro transcendente [...] – duas imagens conspícuas

na etnografia regional. Esta vertente explorou os significados múltiplos da categoria da

afinidade nas culturas amazônicas [...] sugerindo seu valor de operador sociocosmológico

central [...], e buscando determinar a tensão entre identidade e alteridade que estaria na base

dos regimes sociopolíticos amazônicos (2002: 336).

De maneira análoga, a oposição que nesta dissertação procuramos estabelecer

poderia nos remeter ainda aos desenvolvimentos de duas tradições distintas dentro do

campo mais amplo da antropologia social. Em uma leitura que faz Wagner (1974) da

“história” da disciplina, esses dois desenvolvimentos seriam o legado de Durkheim, através

dos desdobramentos que lhe deram Radcliffe-Brown e seus sucessores, de um lado, e

através Mauss e seus alunos (diretos ou indiretos), de outro. Aqueles, que foram geralmente

chamados de funcionalistas, estavam preocupados em identificar funções mais ou menos

centrais que fossem capazes de manter a sociedade unida. Segundo Wagner, essa

antropologia tornou-se uma ciência dos grupos de descendência e a constituição destes

passou a ser a questão fundamental para explicar as funções centrais da integração da

sociedade. De outro lado, o estruturalismo lévi-straussiano, herdeiro da apreensão mais

conceitualista de Mauss, não teria tanto se ocupado das “regularidades legais” e das

“harmonias integradas”, mas sim das oposições e contradições dentro da ordem social.

Wagner resume bem esse contraste no seguinte parágrafo:

A troca de dons, ou reciprocidade, é onde o estruturalismo começa. Ou melhor, é onde o

funcionalismo termina para os estruturalistas, porque a reciprocidade entre indivíduos e

entre grupos é a resposta estruturalista à questão funcionalista “o que integra a sociedade?”.

Assumindo a presença universal e o significado da reciprocidade, o estruturalismo tomou

como o seu maior problema aquele de como a sociedade e suas partes são conceitualizadas.

Então, isso inverteu completamente a orientação do funcionalismo que tomava como dado

essa conceitualização e focalizava sua atenção no problema da integração (Wagner 1974:

101).

À luz dessas observações, nossa questão talvez pudesse ser recolocada. O controle e

o canibalismo poderiam traduzir dois tipos de problemas diferentes: “o que integra a

sociedade?” e “como a sociedade e suas partes são conceitualizadas?”. No primeiro caso, as

unidades a serem integradas estariam dadas de antemão e restaria apenas determinar o que

faria delas partes da sociedade. No segundo caso, tratar-se-ia justamente de conceitualizar

essas partes. A torção entre os dois tipos de problemas sugere uma diferença fundamental

pois, nos termos de Strathern (1994), o que faz de uma parte uma pessoa não é o que faz a

pessoa uma parte da sociedade.108

A imagem construída por Rivière da socialidade indígena, poderíamos dizer, baseia-

se no segundo trecho da sentença, ou seja, o que faz da pessoa uma parte da sociedade.

Mas, no caso, as “pessoas” são concretamente imaginadas como indivíduos, totalidades

auto-contidas que se relacionam entre si conformando a sociedade. Por outro lado, se esta é

108 Segundo a autora, “what gave the part (“the individual”) distinctiveness as a whole person was not what made the person a part of the whole society” (1994: 207). A idéia parece ser uma reelaboração da idéia schneideriana segundo a qual o que faz de um parente uma pessoa não é o mesmo que faz de uma pessoa um parente.

geralmente concebida como uma outra totalidade que possui um nível de princípios de

organização diferente daqueles, o esforço de Rivière foi de demonstrar que, na Guiana, as

relações individuais e societais permanecem na mesma ordem de complexidade (Rivière

1984: 98). Mas, de todo o modo, a questão parece ainda se colocar nos mesmos termos:

sendo as “sociedades” da Guiana fluidas, amorfas, impermanente, etc., o que as integraria?

Se os dados apresentados pelo autor apontam sempre para o fantasma da dissolução, as

relações de controle entre os indivíduos parecem dar a garantia de que nem tudo está

perdido (ao menos para o antropólogo). Mesmo que frágeis, ainda há grupos porque,

supostamente, há indivíduos negociando suas relações sociais.

Quanto à primeira parte da sentença – o que faz de uma parte uma pessoa - Strathern

conclui, a partir de exemplos etnográficos particulares, que são antes de tudo relações que

constituem uma pessoa. Referindo-se mais diretamente ao contexto melanésio, a autora

propôs o conceito de “divíduo”, em contraposição a “indivíduo”, para traduzir o conceito

de pessoa. O alcance teórico dessas idéias foi tal que vários americanistas passaram a

considerá-las para pensar a pessoa no contexto amazônico. Tentando associar a teoria

perspectivista e essa visada stratherniana, Kelly, por exemplo, definiu as pessoas como

“seres duais sujeito/objeto a que se credita perspectiva e agência (participam da cultura e

têm uma alma imortal), mas que ao mesmo tempo são objeto de outra subjetividade (parte

da natureza de alguém)” (2001: 100). A idéia de Strathern é que as relações intrapessoais

poderiam servir de modelo para as relações sociais de maneira geral. Assim, como em uma

estrutura fractal, uma multidão de pessoas simplesmente aumentaria a imagem de uma

pessoa singular.

Ora, como vimos, essa operação de fractalidade é precisamente o que os mitos não

se cansam de efetuar em seu movimento “em desequilíbrio perpétuo”. Se a função do

controle é integrar as pessoas, a função do canibalismo e da predação é conceitualizá-las,

ou seja, definir em qual dos pólos do divisor canônico Eu/Outro ela se encontra (ainda que

provisoriamente). Embora haja também posições não reversíveis, como no caso dos sogros-

canibais, que mantêm a perspectiva de predadores e são “quase sujeitos puros” (cf. Kelly

2001:100).

Enquanto os sogros são caracterizados no modelo de Rivière como se encarnassem

a autoridade (o Estado, a Sociedade, etc), nos mitos, eles seriam, bem ao contrário, a

expressão máxima da alteridade. No primeiro caso, o problema é o controle das mulheres e

a (re)produção da vida. No segundo, o canibalismo e a morte. E a morte, como diz Viveiros

de Castro, é a janela da mônada matrimonial, que, descrita nos termos de uma economia

política do casamento, seria apenas a face local de uma economia simbólica da morte

(2002: 171).

Como adverti no início, o trabalho que ora finaliza não tem, de modo algum, um

caráter conclusivo. As questões levantadas serviram-nos, antes de tudo, de guia em meio a

diferentes tipos de problemas implicados nos conjuntos de etnografias e dos mitos

provenientes da área da Guiana. Mas era preciso limpar o campo e compor um horizonte a

partir dos materiais disponíveis. Certamente, ainda há muito por fazer. Muitos caminhos

foram deixados em aberto e, acredito, poderão ser mais bem trilhados com a realização de

um trabalho de campo a partir do qual seja possível refutar, confirmar e, sobretudo,

introduzir novas mediações nas formulações acima apresentadas.

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