MUSEO UNIVERSAL.

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MUSEO UNIVERSAL. deixàrão sobre a soa fama huma aureola sanguenta que nem tocia a sua gloria nem todo o sea genio po- derão fazer desápparecer. Nà 'vespera dessa famosa batalha de Molwitz , que tãodecididàTftéftte provou aos Austríacos a superiori- dade de ‘Frederico ÏI, e os seus talentos militares, querendo o rei da Prússia modificar a disposição do seu campo sem que o inimigo pudesse descobrir essa manobra, deu ordem para que ninguem, sob pena de morte, conservasse fogo ou luz na sua bar- raca. Todavia, a despeito desta ordem, huma délias estava illuminada. Hum capitão, com o uniforme desse regimento de dragões de Bareith, que alguns annos depois se immortalisou em Schxveidnitz, es- tava a ponto de lacrar huma carta. Ao ver a sua ca- beça altiva e erecta, os seus olhos grandes e expres- sivos, as suas enérgicas feições, o talhe masculino dos seus labios sombriados por espessos bigodes louros, a sua testa queimada pelo sol e sulcada de cicatrizes, não se podia duvidar que nesse peito for- te havia hum coração joven e vigoroso. E quando lacrava a carta, hum homem de cinco pés e duas po- legadas, com farda azul de vivos encarnados e botoes de prata, chapéo armado de grandes dimensões, por baixo do qual apparecião bellos cabellos de cor castanha, penteados com affectação , entrou na bar- raca, seguido pelo illustre Shewren, general edu- cado na escola de Carlos X II, que devia perecer na idade de 73 annos, de huma morte heroica, junto aos fossos de Prague, e de Kleith, soldado c poeta, que vio despedeçada a sua lyra e a sua espada no campo da batalha de Kunesdorf. O capitão levantou-se logo que vio Frederico, sau- dou-o militarmente, e ficou em pé, pallido e immo- vel. O rei contemplou por algum tempo em silencio o official que tinha violado as suas ordens: a sua phy- sionomie, naturalmente agradavel, tomou huma ex- pressão dura e ameaçadora : — Capitão Zietern, perguntou elle, ignoraveis a or- dem que eu tinha dado? — Não, senhor, sabia que existia .... Mas estamos na vespera de huma batalha decisiva .... Resolvido a illus- trar-me nessa batalha, ou a morrer defendendo as vossas bandeiras, quiz dizer à minha mulher hum adeos que talvez seja o ultimo... Será isso hum crime? — Tão grave, tão positivo, tão incontestável, que se O melhor dos theus generaes dissesse que eu podia perdoar-vos, eu o démittiria im mediatamente. — Serihdr,¡respondeU o capitão, descobrindo o pei- to, estas cicatrizes não vos tornarão indulgente , não desarmarão a vossa severidade ? Recebi tres lança- das em Groslau, duas balas em Breslau. Véde se- nhor, que estas feridas ainda sangrão!... — No nosso exercito não faltão cirurgiões, dissp o rei com horrível tranquillidade, devieis ter cha- mado algum delles para vô-las curar .... Ainda quê tivesseis cem , não vos serviría isso de desculpa. 1 E,pegandb na carta, abrio-a lentamente, leu-a duas vezes, c, depois, encarando Zietern com hum olhar onde a cólera se misturava á ironia: -Faço-vos justiça, Sr. capitão, o vosso ostvlo he purissimo; o vosso professor de rhetorica foi sem duvida Maupertuis ou Voltaire .... Eis-ahi huma epis - tola que o mesmo major Kleith vos invejaria... Ainda assim acho que està incompleta .... Pegai na penna e accrescentai o que eu vos dictar : estais pròmpto ! — Sim, senhor. — Accrescentai: Dentro de huma hora morrerei no cadafalso. O capitão não pronunciou huma só palavra, não fez hum só gesto, e traçou essas poucas palavras com inalterável sangue frio; mas, ao levantar a ca- beça, vio-se que duas lagrimas lhe corrião pelas faces. — Sois soldado e chorais! disse o rei. — Saberei morrer, respondeu Zietern. E ajoelhando-se aos pés de Frederico: — Senhor! exclamou elle, cometti huma falta, o vós me p u n is .... Estais no vosso direito, direi mesmo que tal he vosso dever, e não me queixarei da vossa justiça... Matai-me, mas poupai-me o cadafalso... não deshonréis o meu nome, não deshonréis a minha familia!... deixai-mc até amanhã esta espada que tantas vezes desembainhei no vosso serviço .... Se não succumbir ás bayonetas austríacas, mandai-me es- pingardear e morrerei sem vos maldizer. Vendo esse rosto livido, esses labios pallidos e tremulos, esses olhos cheios de terror e deanxic- dade, todos esses symptomas de huma desesperaçâo lacerante, licou o rei por algum tempo indeciso e como combatendo entre o desejo de ser indulgente e a necessidade de ser cruel ; depois enterrando o chapéo sobre os olhos, dirigio-se a hum dos ofii- ciaes que o acompanhavão c disse-lho bruscamente: — Major Kleith , mandai apromptar o cadafalso. Hum quarto de hora depois foi decapitado o capi- tão Zietern, á frente do regimento de dragões de Bareith, e na presença de Frederico II. Custa muito a ser tão severo, disse o rei cm voz baixa voltando-se para Schewren com semblante me - lancólico; mas sem obediencia, não ha bons solda- dos ; sem disciplina, não ha exercito. ESTUDOS MORAES. Amor, cíume e vingança. (Novella Brozileira.) S Ï· Aquellos quejá navegarão pelo rio Iguassú devem recordar-se de hunía vasta e bella campiña, situada á sua margem direita, e distante tres leguas da bar- ra. No meio delia está edificado o conven to de S. Ben- to , velha, pequena, mas pitoresca igreja, rodeada de vinte a trinta chóiipãnas. O rio magestosamente ! atravessa a cam pina, despejando suas brancas agua* por entre mil Bellezas natüracs, amenas planicies, lindíssimas montanhas. De outro lado se avista a Ire- guezia de N. S. do Pilar, querendo elevar seus teclo·» e a torre esbelta de sua igreja alèm do cimo das al- vores, que em vão pretendem encobri-los. O silencio da solidão enche nó entanto todo este sitio aprazí- vel : anonas vem nor vezes interrompê-lo o nume-

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MUSEO UNIVERSAL.deixàrão sobre a soa fama huma aureola sanguenta que nem tocia a sua gloria nem todo o sea genio po­derão fazer desápparecer.Nà 'vespera dessa famosa batalha de Molwitz , que tãodecididàTftéftte provou aos Austríacos a superiori­dade de ‘Frederico Ï I , e os seus talentos militares, querendo o rei da Prússia modificar a disposição do seu campo sem que o inimigo pudesse descobrir essa manobra, deu ordem para que ninguem , sob pena de morte, conservasse fogo ou luz na sua bar­raca. Todavia, a despeito desta ordem, huma délias estava illuminada. Hum capitão, com o uniforme desse regimento de dragões de Bareith, que alguns annos depois se immortalisou em Schxveidnitz, es­tava a ponto de lacrar huma carta. Ao ver a sua ca­beça altiva e erecta, os seus olhos grandes e expres­sivos, as suas enérgicas feições, o talhe masculino dos seus labios sombriados por espessos bigodes louros, a sua testa queimada pelo sol e sulcada de cicatrizes, não se podia duvidar que nesse peito for­te havia hum coração joven e vigoroso. E quando lacrava a carta, hum homem de cinco pés e duas po­legadas, com farda azul de vivos encarnados e botoes de prata, chapéo armado de grandes dimensões, por baixo do qual apparecião bellos cabellos de cor castanha, penteados com affectação , entrou na bar­raca, seguido pelo illustre Shewren, general edu­cado na escola de Carlos X II , que devia perecer na idade de 73 annos, de huma morte heroica, junto aos fossos de Prague, e de Kleith, soldado c poeta, que vio despedeçada a sua lyra e a sua espada no campo da batalha de Kunesdorf.O capitão levantou-se logo que vio Frederico, sau- dou-o militarmente, e ficou em pé, pallido e immo- vel. O rei contemplou por algum tempo em silencio o official que tinha violado as suas ordens: a sua phy­sionomie, naturalmente agradavel, tomou huma ex­pressão dura e ameaçadora :— Capitão Zietern, perguntou elle, ignoraveis a or­dem que eu tinha dado?— Não, senhor, sabia que existia.... Mas estamos na vespera de huma batalha decisiva.... Resolvido a illus- trar-me nessa batalha, ou a morrer defendendo as vossas bandeiras, quiz dizer à minha mulher hum adeos que talvez seja o ultim o... Será isso hum crime?— Tão grave, tão positivo, tão incontestável, que se O melhor dos theus generaes dissesse que eu podia perdoar-vos, eu o démittiria im mediatamente.— Serihdr,¡respondeU o capitão, descobrindo o pei­to, estas cicatrizes não vos tornarão indulgente , não desarmarão a vossa severidade ? Recebi tres lança­

das em Groslau, duas balas em Breslau. Véde se­nhor, que estas feridas ainda sangrão!...— No nosso exercito não faltão cirurgiões, dissp o rei com horrível tranquillidade, devieis ter cha­mado algum delles para vô-las curar.... Ainda quê tivesseis cem , não vos serviría isso de desculpa. 1E,pegandb na carta, abrio-a lentamente, leu-a duas vezes, c, depois, encarando Zietern com hum olhar onde a cólera se misturava á ironia:-F a ço -v o s justiça, Sr. capitão, o vosso ostvlo he purissimo; o vosso professor de rhetorica foi sem duvida Maupertuis ou Voltaire.... Eis-ahi huma epis­tola que o mesmo major Kleith vos invejaria... Ainda assim acho que està incompleta.... Pegai na penna e accrescentai o que eu vos dictar : estais pròmpto !— Sim, senhor.— Accrescentai: Dentro de huma hora morrerei no cadafalso.O capitão não pronunciou huma só palavra, não fez hum só gesto, e traçou essas poucas palavras com inalterável sangue frio; mas, ao levantar a ca­beça, vio-se que duas lagrimas lhe corrião pelas faces.— Sois soldado e chorais! disse o rei.— Saberei morrer, respondeu Zietern.E ajoelhando-se aos pés de Frederico:— Senhor! exclamou elle, cometti huma falta, o vós me punis.... Estais no vosso direito, direi mesmo que tal he vosso dever, e não me queixarei da vossa justiça... Matai-me, mas poupai-me o cadafalso... não deshonréis o meu nome, não deshonréis a minha fam ilia!... deixai-mc até amanhã esta espada que tantas vezes desembainhei no vosso serviço.... Se não succumbir ás bayonetas austríacas, mandai-me es- pingardear e morrerei sem vos maldizer.Vendo esse rosto livido, esses labios pallidos e tremulos, esses olhos cheios de terror e deanxic- dade, todos esses symptomas de huma desesperaçâo lacerante, licou o rei por algum tempo indeciso e como combatendo entre o desejo de ser indulgente e a necessidade de ser cruel ; depois enterrando o chapéo sobre os olhos, dirigio-se a hum dos ofii- ciaes que o acompanhavão c disse-lho bruscamente:— Major Kleith , mandai apromptar o cadafalso.Hum quarto de hora depois foi decapitado o capi­tão Zietern, á frente do regimento de dragões de Bareith, e na presença de Frederico II.Custa muito a ser tão severo, disse o rei cm voz baixa voltando-se para Schewren com semblante me­lancólico; mas sem obediencia, não ha bons solda­dos ; sem disciplina, não ha exercito.ESTUDOS MORAES.

Amor, cíume e vingança.

(Novella Brozileira.)S Ï·Aquellos quejá navegarão pelo rio Iguassú devem recordar-se de hunía vasta e bella campiña, situada á sua margem direita, e distante tres leguas da bar­ra. No meio delia está edificado o conven to de S. Ben­to , velha, pequena, mas pitoresca igreja, rodeada de vinte a trinta chóiipãnas. O rio magestosamente !atravessa a campina, despejando suas brancas agua* por entre mil Bellezas natüracs, amenas p lan icies, lindíssimas montanhas. De outro lado se avista a Ire- guezia de N. S. do Pilar, querendo elevar seus teclo·» e a torre esbelta de sua igreja alèm do cimo das al­vores, que em vão pretendem encobri-los. O silencio da solidão enche nó entanto todo este sitio aprazí­vel : anonas vem nor vezes interrompê-lo o nume-

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MUSEO UNIVERSAL. 141mno cantico dos barqueiros que passão. Tudo parece manifestar o nada da existencia a par dos prazeres m undanos, o silencio do tumulo ao lado das alegrias h vida ; tudo , cinfim , revela a immensidado da natureza, o poder do Creador, e a fraqueza do ho-roemOh ! que felicidade não he o respirar essa athmos- ivhera melancólica dos bosques, esse aroma virginal das florestas ! Ditoso aquello que, desdenhando peque­nas ambições do mundo , esquecido de prejuízos, nasce, vive e morre de todos ignorado , e , entretan­to gozando das delicias da natureza , no proprio seio dos prodigios e grandeza do Creador ! Como então do- cemente.se deslisa a vida do homem, sem sobresal­tos e sem dor, longe dessas angustias mortaes, des­ses tormentos da sociedade que só servem para de­bilitar as nossas faculdades moraes, e , de envolta com ellas; estragar o corpo , e preparar o sepulcro ! Vida serena , tranquilla , como aquella que devem viver os anjos no paraizo.Ali, em huma daquellas pequenas choupanas, nas­ceu, educou-se e chegou á idade de 15 annosa mais bella e formosa donzella que jamais virão semelhan­tes lugares. Havia tanta graça ern toda a sua physio- nomia, tanta meiguice no seu sorriso, tanta oandura no seu olhar, que ninguem a poderia ver e resistir a seus encantos.Maria era seu nome, nome de bella sem duvida; nome da Santíssima Virgem, que exprime toda a do­çura de huma alma candida, que revela toda a pu­reza de hum coração de anjo. Ella havia passado os bellos periodos de sua infancia ao lado de Adolpho ; a par dos annos que roubava ao tempo, sorvia o nec­tar das paixões, saboreava as delicias do amor. E elle também a estimava como sua irmão, amava-a já como sua esposa , e adorava-a como se fora a propria mãi do Redemptor, que dos céos baixasse para salvar os liomens.IIum amor destes não se extingue...· Foi o alimen­to da infancia * cresceu e progredio com os annos, sanccionou-se com os primeiros abraços, os primei­ros osculos e os primeiros carinhos que baibucião üous entes, apenas encetando a carreira da vida ; amor puro , sincero , vehemente , profundo, eterno, que sobrevive á propria existencia no mundo.Quererieis por ventura arrancar-lhes d’alma essa paixao de fogo, esse sentimento puro do coração? Mas já elle se havia empossado de todas as suas facul­dades.-—Nao era mais tempo para dizer ao coração: não sintas, não lhe consagres adoração.—Nem forças numanas, nem poder divino serião capazes de servir de obstaculo , de oppôr-se á torrente de seus des­tinos.Suas almas jovens, candidas e puras, estavão forte- mente dominadas pela paixão; e mais fácil seria fazer parar o sol, como Josuó ; abrir passagem por entre as ondas irritadas do Oceano, como Moyses; arrancar do cabos o mundo, como o creador do universo , do que obrigar esses corações a não palpitarem mais hum Pelo outro.«Iu a capella do convento tinha ouvido seus jura­mentos de eterno amor; mutuas promessas de per­petua estima haviàoelles feito perante Deos. Sua exis­tencia, sua vida, estava ligada a essa paixão, delia dependia. Deixai-os , portanto, amar-se.

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s ».Hum triste acontecimento , porém , veio perturbar s 'UPgria dos dons amantes. () velho Alberto , pai de

Maria, vivia de lavoura, e estava bastantemente in- dividado para com hum negociante de escravos do Rio de Janeiro , que lhe havia vendido alguns a mui subido preço; e o barbaro credor ha teinposque o ameaçava com huma penhora em seus bens. Não contente de tanto affligtr o infeliz velho , esse deshu­mano quer ainda gozar do prazer brutal de o ver a seus pés, implorando a graça de alguns rnezes de es­pera para seu total embolso. Deixa a cidade . chega a S, Bento, e vai hospedar-se cm casa de hum vizi­nho de Alberto, seu particular Inim igo, na intenção de ainda mais prejudicar a sua reputação.A vista, no entanto, de Maria basta para abrandar esse coração de pedra, basta para submetter e cur­var essa alma de brouze , habituada ao infame trafi­co da carne humana. Elle se esquece da divida , im­plora o perdão das offensas , e depõe nas mãos da formosa donzella a sua sorte e sua vida.Como poderia Alberto recusar-lhe a. mão de sua filha? Comprava, he verdade , a felicidade delia, mas á custa de sua honra, do sua reputação, que se aeha- vâo empenhadas na mão desse homem egoísta. E , acaso , as circumstandas pecuniarias de seu pai não impunhão a huma filha virtuosa c amante o dever de por elle sacrificar-se? Não devia ella deixar de parle seu am or, esquecer-se de seu amante , e re­signar-se á sorte que se lhe offerecia ?Sim , e a candida Maria o prometteu fazer; infeliz para sempre seria, he verdade, porque ella não ama­va esse homem , antes o aborrecia , mas salvava seu p a i, salvava aquelle a guem devia a existencia, que agora lhe convinha sacrificar em pagamento.Chorou e bastante , foi o unico lenitivo que teve; as lagrim as, corn quanto mitiguem a d ô r, não nos roubão, comtudo , ο soffrimento. No dia seguinte , sem que nada contasse a seu amante, sem que mes­mo podesse dizer o adeos, talvez derradeiro, cm- barcàrão-se todos em huma lancha do Iguassú que seguia viagem para o Rio de Janeiro.Oh! como devia ser triste e pezaroso o momento em que cila deixou o seu berço, a terra dos seus amores!... Não hc hum sonho de imaginação a dôr que então nos opprime ; antes o fosse, porque a rea­lidade breve substituiría tão duro presente, porque sempre a esperança abrandaria o actual soíl'ri- mento.Deixar a terra onde correu a nossa existencia lim­pida e tranquilla, como hum desses regatos que doce e mollemente se despenhão por entre pérolas e dia­mantes ! Desamparar o paiz onde á sombra das ar­vores , ao ruido das torrentes, ao rumor dos bosques, ao sussurro dos ventos, mil vezes nos repousámos de nossas fadigas, mil vezes recuperámos a vida !Deixar o lugar em que soltámos o primeiro ge­mido, balbuciámos a primeira palavra , e ainda no patamal da vida aprendémos a recitar huma sup­plica branda e innocente por aquellos que nos abri­rão as portas delia !E o amor que ali pela primeira vez sentimos c conhecémos, primeiro amor d’alma e do coração, que resiste ao tempo e a suas phases , á idade , c á sua mesma inconstancia! Oh! sem duvida que cila , essa rosa que então começava a desabrochar aos raios da madrugada, tinha toda a razão de sof- frer, chorar e maldizer o seu destino !Quando aos olhos dc Maria foi pouco a pouco dcsappareccndo o Convento de S. Bento c o arraial que o circumda, cila não pôde suster-so, c, repousan­do sua fronte abrasada sobre os braços dc seu p a i, desfez-se em copioso pranto.

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M.V.e* . . 1 ,

FLORESTA YIIUTEM,

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M UIEO UNIVERSAL.— São saudades da terra natal, disse o velho Al­berto.— Oh ! meu pai, já vos esquecestes delle.... Eu nun­ca o poderei fazei.... S ιπ.Hum anno he decorrido depois desse dia tris- tonho em que deixou Maria o seu paiz natal. Ella se havia casado no Rio, e conservava seu pai em sua com panhia. Acaso teria esquecido Adolpho? Nos braços de outrem, no meio dos suspiros voluptuosos de e s p o s a , não escaparia hum , dedicado a esse aue outr’ora dominara seu coração, attrahira seu pensam ento? E correría, por ventura, sua vida no seio dos prazeres e da felicidade domestica?Ao menos, se alguma dôr lhe estreitava o corá­ceo, se soffrimentos domésticos lhe encurtavão a existencia, ninguem o sabia. Era hum segredo entre ella e o céo. Seu proprio pai o ignorava, e a conside­rava feliz, já porque ella o enchia de carinhos, já porque de nada se queixava, cumprindo sempre os deveres de boa e obediente esposa.Adolpho e Maria, desde esse dia terrível da separa­ção, não se tinhão mais visto.Elle, apenas soube que ella estava ligada a outro homem, que já nao podia ser su a , que o fio de seus destinos se havia para sempre rompido, ven­deu o que possuía em S . Bento, deixou o lugar em que nascéra, e em que amàra.... e foi estabelecer-se na Villa de Vassouras, que se acha situada em cima das Serras, a doze legoas de distancia de Iguassú, e seis de Valença.Comprou huma pequena fazenda situada no mais aprazível lugar daquelle districto. Estava a casa de vivenda edificada em cima de hum monte lindíssimo; dir-se-hia humacorôa de brilhantes cingindo afronte de monarchas. Huma vasta campina entrecortada por hum pequeno regato se extendía adiante delia , até perder-se no seio de huma immensa c magestosa flo­resta. Adolpho ia por vezes ali mitigar sua dor, ali­viar seu sotírimento. A grandeza do Creador parecia cifrar-se toda naquella floresta. Arvores gigantescas elevavão suas frontes até ao perder de vista, atra­vessando pitorcscamentc os ares, e balanceando seus ramos ao mais pequeno sopro da athmosphera. Outras erguião-se da terra esbeltas e direitas, pare­cendo levar aos pés de Deos as preces do homem.— Aquellas, como que não podendo sustentar-se, cor- covavão-se todas, como serpentes que se enrolâo.— He sem duvida huma floresta virgem o mais pomposo espectáculo do Brazil, o unico que revela toda a mag­nificencia da natureza, toda a força do Creador e toda a magestade do solo. ·Era a noite do sétimo dia de abril. Huma terrível tempestade fazia estremecer e roncar as serras cha­madas do Verneck. As tropas e os passageiros es- tavão todos arranchados nas pequenas choupanas (|e palha, que, de distancia em distancia, se succedcm na serra. As arvores curvavão-se com a força do 'onto , gemendo, como que com dores agudas. Es- eunssima era a noite , e a chuva vinha augmentar o scu horror, precipitando-se com força desusada sobre a terra. A’s vezes hum surdo rumor tirava a monotonia desse terrível espectáculo , erão algumas Pedras, alguns troços de arvores que a força da tem­pestade arrancava a seus lugares, e rolava pelos im­mensos precipicios.

Os raios não faltavão , e a natureza inteira mos­trava-se irritada contra os homens. Algum grande crime terião elles commettido ?Adolpho achava-se deitado em hum rancho cha­mado pelos viajantes do alto da serra. Elle estava estupefacto á vista de tal espectáculo , e admirava com enthusiasmo o poder do Creador. E seu pensa­mento, como que transferindo-se para lugares mais bellos, para noites mais felizes , para espectáculos mais encantadores, lhe trazia a reminiscencia dos sonhos de sua infancia, dos seus amores.... Elle ainda pensava nella !Pouco a pouco foi-se abrandando a tempestade, e cessou a chuva. E , neste momento , passou hum ho­mem a cavallo , acompanhado por hum pagem, e ia descendo a serra.— Audacioso! disse Adolpho, assim zombado po­der de Déos a misera creatura ! Assim se atreve esse homem a não respeitar a desordem da natureza, e a arriscar-se, no meio da noite tenebrosa e funebre, a perder-se pelos precipicios que Se encontrão a cada passo nesta estrada ! Oh! Essa imprudencia commetteria e u , mas só se ella m’o ordenasse!... Ella ! sempre ella! Para que , oh meu pensamenso. me has-de sempre recordar os antigos e felizes mo­mentos! Minha alma está cançada de espectáculo; basta, deixa-a tranquilla e pacifica !E , alguns minutos depois, ouvio-se hum grito , como que escapado a huma pessoa em criticas cir- cumstancias, em apuro de vida; hum desses gritos dolorosos que exigem prompto soccorro.... Adolpho levantou-se , chamou seu pagem , lançou mão de humas pistolas que trazia aos coldres do sellim, e, sem receio, sem temor, precipita-se fóra do rancho, corre para o lado d’onde parecia vir a voz que o chamava, c desapparece breve.Foi triste a scena que elle presenciou: luetava hum homem contra tres assassinos; o sangue lhe corria a jorros de huma ferida ; a seus' pés eslava morto hum cavallo, atravessado por huma bala. A alguns passos d’ahi corria hum escravo gritando e pedindo soccorro. Adolpho e ó seu pagem lanção-se no meio do combate; os assassinos fogem, e o homem cahio desfallecido. .. Esse homem era Frederico, es­poso de Maria e rival de Adolpho ! ! !§ IV .Em huma sala ricamente adornada de huma casa situada no Botafogo, estava huma joven senhora me­lancólicamente debruçada sobre hum canapé.—Huma 'lampada accesa , collocada em cima de huma mesa esclarecia a sala. debuxando nas paredes mil objectos diversos, mil differentes sombras que entretanto pa­redão todas, como de acordo , exprimir o mesmo pensamento triste que animava aquella senhora. O murmurio das ondas que vinhão morrer sobre as aréas da praia ecoava ao longe, unindo seu rouco gemido à dôr que inspiravão naquelle momento os objectos que acabamos de descrever.Ella ergueu-se hum pouco, olhou para o reIogio,que repetio no mesmo instante nove horas', e desfazendo- se em pranto abrió hum papel, que apertavao seus dedos de rosa, que ensopaváo suas lagrimas de pero- las....— He meu unico consolo esta carta de minha mãi ! Pobre mãi !... E por tua causa he tão infeliz tua filha ! ... Mas hc sonho a existencia, venhao ainda algumas ho­ras, e todos nos reuniremos.,., sem duvida em mais

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m MUSEO UNIVERSAL.afortunado lugar. Ile sua letra esta , escripta por suas proprias mãos, regada porseu proprio pranto na hora derradeira, á entrada do sepulcro.« Minha filha , consente que a alma de tua mai communique ao menos á tua hum dosseus pensa­mentos. Recebe do rneu coração, que vai cessar de b ater, esta ternura para com teu p a i, que foi minha unica felicidade no mundo. Nunca me conhecerás, por­que breve descerei ao tumulo. Eu era pobre, orphãa, abandonada; e teu pai soccorreu-me, salvou-me. Ha no seu coração thesouros de amor e de affeição que valem mais que as riquezas que me elle deu; fica a teu cargo o pagamento dessa divida de reconheci­mento e de amor.« Oh! rogo-te por piedade,cumpreineuultimovoto, a minha supplica derradeira ; faze tudo pela felicidade daquelle a quem eu tudo devo , e as bênçãos de tua mãi descerão sòbre ti do céo, ondo eu vou rogar por ambos.—Tua mãi. »— Minha pobre mãi!— Matar-se-ia elle acaso! Talvez!... Fica-me entre­tanto a gloria de havercumprido omeudever. Mas este coração que por elle sempre palpita , este coração cm que elle domina como hum Deos em seu tem­plo, como póde assim esquecê-lo !E foi pouco a pouco deixando cahir a cabeça abra­sada sobre o travesseiro. Seus olhos, como que can- çados , e procurando o repouso, fechárão-se leve­mente. Hum minuto de somno , porém, bastou para mais viva lhe tornar ainda a lembrança de hurna vida de dôres, de hum século de pezares. Aquelles que são agitados pelo amor, em idênticas circums­tandas , accumulão todas as penas do passado. A consciencia, infinita como o espaço, abraça então pelo pensamento males sem fim , sem nome, e sem esperança....Abrio-se de repente a porta da sala, e entrou o marido de Maria, que chegava de huma longa via­gem á serra, aonde fôra para negocios commer- ciaes.Maria acordou sobresaltada pelo rum or, reconhe­ceu seu esposo , quiz lançar-se em seus braços, mas huma força irresistível a deteve, remorsos que en­tão se manifestarão, porque ella não tinha pensado huma só vez nelle, porque nem hum pensamento, que lhe escapàra , pertencia a aquelle a cujos des­tinos estava sua sorte encadeada.O marido , porém, pensando ser aquillo effeito de hum pudor natural, a mais bella das qualidades com que mimoseou o Eterno o sexo feminino , foi a seu encontro, abraçou-a....— Oh ! se soubesses, disse-lhe e lle , se soubesses que teu esposo prestes esteve a ser assassinado, que hum homem salvou-o, e esse homem te conhece, sem duvida que lhe consagrarias a mesma amizade que, desde aquelle momento, consagrei-lhe eu.— E esse h o m em ?...— He Adolpho!— Adolpho ?— Sim ; e a bem custo veio comigo passar alguns dias em minha casa. Amanhaa o verás.— \Tê-lo! ainda huma vez!... Oh! meus bellos so­nhos, meus lindos sonhos da infancia, tornareisacaso ? § V.Era Julio hum moço do tom ; vestia-se admiravel­mente, ia a todas as sociedades, a todos os bailes,

por todos estimados, e até pelas damas adorado Nin guem melhor do que elle podia contar factos os mais minuciosos, acontecimentos os mais pequenos que se tivessem passado no seio das familias; Tudo sabia, tudo narrava, e tudo criticava ; era , portan­to, Julio considerado o typo de bom gosto pelo bellõ sexo, que tanto procura novidades. Tinha sido amigo dê infancia de Adolpho, e confidente de seus amores Hum dia encontrou-o elle em huma das ruas da ci­dade, depois de quasi dous annos de ausencia. Cus- * tou a reconhecê-lo. Seu rosto macilento e pallido seus olhos' encovados, e hum sentimento profundo dê dôr desenhado em toda a sua physionomia, o haviãn totalmente mudado.Oh ! que prazer não he encontrar-se dous amigos depois de larga ausencia, abraçar-se, contar-se mu­tuamente seus successos? Entretanto, nem Adolpho nem Julio o sentirão. O primeiro se hâvia feito nii- santhropo, e o ultimo prezava mais os divertimentos do que a amizade. Depois de trocar-se algumas pa­lavras sobre seu estado presente, Ju lio perguntou- lhe se ainda amava M aria....— Se aiiida a amo ! .. . Oh! que não; hoje a odeio» foi minha vida, essa extinguio-se ; foi minha alegria e já eu a não sinto ; foi meu orgulho, meu unico pensamento, minha felicidade de todos os instantes, e para mim já se não antolha ventura sobre a terra. Mas muito solfri, meu caro amigo.— Assim o creio. A experiencia compra-se com a dôr. Vem o homem ao inundo com virtudes e pai­xões; aquelle que he dotado de espirito deixa de parte ridicularias, e paga sempre na mesma moe­da. No principio, porque ella passou-se aos braços de outro, quizeste-te matar! Que asneira! Nessa posição, o homem que sabe viver faz-se amigo do marido, he admitlido na intimidade da mulher....— Acaso te hei eu dado o direito de me não acredi­tares homem de bem ! Amei-a com toda a pureza da alma, com toda a igenuidade do coração ; ãmor destes nada tem de material: he hum sentimento profundo, filho da imaginação que soffre, do pensamento ce­leste que eleva o homem ao creador. Abusar da sua candura, aproveitar-se da sua infelicidade, fazê-la esquecer seus deveres de esposa , he o mais vil de todos os crimes, e a sociedade não deve nem p'óde tolera-lo.— A sociedade brazileira, meu amigo, está mais civilisada do que pensas; adquirió novas idéas, principios modernos importados da Europa. O tem­po, aperfeiçoando tudo, banio do amor todo o sen­timento m oral.. . Em vez de affeição , ha egoísmo, e tudo se occulta com a capa da hypocrisia....— Mas ha ainda homens de bem, que sabem apreciar e conservar sentimentos nobres.— Hoje? illusão ! Se tu não souberes aproveitar as lindas circumstandas em que te achas para com Maria, outros a vingaráõ desse teu desprezo.... far-te- iião as vezes....— Pois que ousem ! Desgraçado para sempre será aquelle que se atrever a perturbar seusocego, que levar suas pretençóes ao ponto de ama-la. Eu saberei defendê-la, vingar-me cruelmente !...— Ainda tens ciúmes? Então, meu amigo, tu pro­curas illudir-te a ti mesmo.... Ainda a amas.— Eu ama-la ainda? Enganas-te, Julio . H o je eu a odeio, aborreço e desprezo.

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Muía e Adolpho vião-se todos os dias, e raras ve- , ,fse fallávao. Ambos so evitaváo com cuidado e mdencia. Quem os visse, em taes momentos , já - P1 js poderia suspeitar que elles se haviao amado, e .. . . se amavão ainda. Infelizes, que se illudião m utua­mente! . . . .Ella ouvio a voz de sua consciencia, respeitou os si'us deveres de esposa, e soube conter no peito os sen­tim entos de amor que a abrasavão.... Soube reter as lavas do vesuvio, que dentro ardião, e que ameaçava huma terrível irrupção. Resignou-se Maria a nao co­nhecer o seu antigo amante senão cuino o amigo de seu esposo, o seu salvador.Belle, pensando despreza-la, nao perdia occasião alguma èm que lhe podesse fugir Apenas concluísse òs°negocios que o trouxerao á córte, tencionava partir para sua fazenda, pretendendo sepultar e perder en­tre os bosques .os dias amargurados e sombrios que llie restavão de existencia. O frio acolhimento de sua amada o havia inteiramente convencido de sua ingra­tidão, e da fraqueza do coração fem inino.... Elle ju ­rou rião acreditar mais em suspiros, promessas e la­grimas de mulher algum a....: Enganava-se ainda, porque o coração de huma se­nhora he mais susceptível de conservar huma paixão do que o do homem. O amor para ellas he a vida, he tudo.... e para os homens não passa de hum episo­dio de sua existencia, que elles com mais delicias in- tentão desfruetar....Frederico foi obrigado, durante este tempo, a fazer huma viagem á villa de Magé. Apezar de todos os es­forços de seu hospede, que queria deixar sua casa e habitar em outra, emquanto fosse forçado a demorar se no Rio de Janeiro, elle, ignorante que era!... obri­gou-o a ali continuar a morar, ao lado de sua esposa, perto de sua amante.... ambos debaixo do mesmo tec­to.... tanto se fiava Frederico na honra de Maria !...Adolplio, entretanto, quiz por si mesmo evitar al­guma infelicidade que lhe presagiava o coração. Pre­parava-se para partir o mais breve possível.Huma noite estava elle encostado a huma janel- la que dava sobre o mar. Serião oito horas. A lua começava a sahir, e já mil riscos de fogo annun- ciavão sua appanção, entrecortando os ares, que se esbranquecião.... O mar brandamente se movia, pra­teando-se ao reflexo do astro brilhante que come­çava a apparecer.... reinava o silencio por toda a parte....Neste momento o som de huma voz harmoniosa que acompanhava o gemido de huma guitarra rou­bou a Adolpho as reflexões a que se entregara.... Elle não pôde escutar essa voz sem que profundamente se sensibilisasse.... Era o cantico de hum anjo que se confundia com os hymnos da natureza....· Ainda era mais para elle .... porque era a voz de Maria que re­petia huma cansonetta, por elle mesmo composta em ■listantes de melancolia....Que pensamentes então lhe vien to!... Que tristes ■ ecordaçoes de dôr, de afllicção, de soffrimcnto se apo­derarão desse espirito . . . fraco .... quem sabe?... Se- 1'eis acaso mais fo rte?...Como erão differentes os dous horizontes, o da in- "iicia e da madureza ; o dos amores e da desventura ! vUe acontecimentos diversos se intercalarão entre aquella época em que elle compôz a canção, e esta uima em que a ouvio ecoar como hum hymno de '•mor que se deslisa em honra do Creador!... Então o

sol risonho da infancia affagava com doce olhar mo­mentos de dita e de ventura, e agora como que a lua com seus suspiros melancólicos, a noite com seu man­to tristonho, o oceano com seus grilos de dôr, convi- nhão melhor â sua situação, combinavão-se admira­velmente com o seu estado!...Todas as idéas da infancia se amontoarão nes.ee ins~ tante.... Elle recordou-se de hum pai que já não exis­tia . . . de huma mai que com tanta ternura o beijava, e cujos restos mortaes estavão longe.... no seu paiz natal!...A dura saudade veio dominar e dirigir Adolpho..,. Ha no céo que virão nossos olhos, entre-abrindo-se á lu z , ha no ar que respirou nosso peito joven, livre e contente , ha no nosso paiz natal , emíim , hum encanto que nada pôde desfazer.... Elie sentio então a necessidade de hum tumulo. .. o de seu pai , talvez.... que servisse de testemunha á sua dôr... que fosse por seus pés calcado e regado com suas la­grim as!... Hum tumulo he hum objecto sagrado.... hum companheiro na infelicidade, hum lenitivo no soffrimento ...Estava então a lua de todo descoberta, o golfo do Botafogo apresentava o mais bello espectáculo que se pôde imaginar..., as estrellas que coroavão a cupola celeste parecião ás vezes despenhar-se no mar , e mergulhar-se nas ondas, tão brilhantes como fios de pérolas... A atmosphera estava fresca , apezar de não se sentir brisa alguma....E a voz maviosa ecoava ainda.Adolpho , banhado em lagrimas, voltou os olhos para o lado d’onde parecia vir aquella harmonia. Como elle a havia reconhecido, como que hum re­morso o forçava a não arrancar do golfo o seu olhar....Não pôde suster-se por mais tem po.... Por baixo de hum caramanchão de jasmins estava sentada huma senhora vestida de branco, a tocar huma guitarra . e a acompanhar seus accentos melancólicos com hum cantico ainda mais melancólico.... Dir-se-hia huma dessas Sacerdotisas dos Gaulos, que , inspiradas por potestades sobrenaturaes, prognosticavao a seus com­patriotas reunidos o futuro que os aguardava....Meu Deos! meu Deos! clamou Adolpho, se me preparavas este espectáculo , para que me nao do­taste com huma alma de ferro?... Para que nao for­taleceste este peito contra todos os embales das paixões humanas ? Ei-la ali, aquella unica que eu amei, que eu amo agora , talvez, ainda mais que nunca ! ... E outro, outro homem a chama sua ! .. . Piedade! oh ! meu Deos!... piedade; sinto todas as forças me fal­tarem .... não poderei resistir; a paixão he mais pode­rosa!... Senhor, tende piedade de mim !...E Deoso não quiz ouvir, porque a paixão venceu , c e lle , desesperado , convulso , todo trem ulo, foi lançar-se aos pés d elia!...§ ΥΠ­Ο sol dourava já o cume das montanhas lindíssimas j) B otafogo, e dardejava seus raios voluptuosos so- rc as limpidas aguas do mar , e ainda , contra o seu )stum e, se não havia erguido do leito a esposa derederico.Adolpho passeava só , triste , pensativo , pelas ruas o ja rd im .... por vezes sentou-se embaixo do fataliram anchão.... , , .Que lindíssimo que elle e ra !... Formado de hum meo que todo se torcia, e cujas fo lh as, desenhan- o-se ao s o l, representavão o mais bello espectáculo. in ohrifrnvíi Hobnixo de seus ramos todos os ciu·*TOMO II 19

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146 MUSEO UNIVERSAL.ali vinhão pedir refugio , ao passo que recebia por todos os lados o balsamo e o perfume das plañías .e das flôres que adornavão aquelle ugar....A dolpho, entretanto, nenhuma attenção prestava a tamañitas bellezas, a tantos encantos, parecendo absorver-se todo em huma profunda e seria me­ditação....Soavão oito horas quando hum escravo veio cha­mar Adolpho da parte de sua senhora, que naquelle instante acordàra. Elle deixou-se levar, como que machinalmente.... Entrarão na sala, e ahi encontràrão Maria recostada sobre o sofá.— Approximai-vos, Adolpho, disse-lhe ella, appro- ximai-vos; temeis acaso?...E elle obedeceu a esta ordem , mas como que en­vergonhado de si mesmo....— Oxalá eu nunca vos tivesse conhecido , que não seria hoje a mais infeliz creatura! continuou ella , e não tivestes piedade de meus gritos, de minha dor, de minhas lagrimas ?— Mas não vias tu , Maria, gritou-lhe elle prostran- do-se humildemente a seus pés, que eras minha vida...quedevias pertencer-me?... Separados, desuni­dos, vivíamos entretanto com os mesmos pensamen­tos , com as mesmas dôres.... Eu soffria quando tu soffrias.... eu chorava quando tu choravas .. . alegria , lagrimas, desesperação, tudo foi entre nós comm uai... he impossível separar-nes.„.— Oh! calai-vos, calai-vos, por piedade!...— E pensavas, continuou elle ganhando forças , pensavas, acaso, que eu me reuniría com tigo, para de novo collocar nas mãos do destino o poder de separar-nos?.... Enganavas-te; esse novo sacrifício era impossivel..., Muito já soffri longe de ti, descanço não conhecia, não conhecia repouso nem somno.... só sentia o sangue que me ardia nas vêas.... Era bas­tante para enlouquecer ou para morrer!...— Por piedade, não continueis.... blasphémais ainda depois de commetter o crim e, o mais vil de todos os crimes ? ... Olhai para m im , véde esta pallidez que se manifesta em todo o meu semblante , esta febre terrivel e abrasadora que me queima o corpo.... que quereis agora que eu faça.... eu que vos não pude resistir!... Como me hei de apresentar diante■ d’aquelle a quem jurei fidelidade aos pés do altar ? Como hei de recebé-lo nesta casa que vio consum- mar-se hum crime horrível.... como hei de eu poder fallar-lhe * quando já os remorsos me dila- cerão o coração.... quando a manifestação do crim e, mào grado meu , se está revelando a cada instan­te ? .,. Não, isso he impossivel.... he de mister sepa- rar-nos . . . he necessario que partas!,..*— Eu partir!.. E como o posso?... Pois he possível separar-nos agora?... Não..; . tua presença he hoje minha v id a ... se queres que eu morra.... dize-o, eu morrerei como desesperado, blasphemando a ti, a Deos, a natureza.... a tudo !... Oh ! tu não sabes amar como eu te am o.... porque , em fim , he mister que t’o de­clare.... agora sinto a paixão mais forte que nunca....— Eu nãoseiam ar!... Ingrato, ecommetti hum cri­me ! ... Esqueci meus deveres, olvidei a razão.... tudo... e isso não he amor? E então o que chamais amor, vós, homens barbaros?... Acaso me não perdi com­tigo?— Oh! sim .... sim .... c que importa o resto ? Com­tigo , Maria, o inferno, a morte !...— Sim , o inferno, a morte ; se o pudesse eu fazer, conservando minha honra, guardando a fidelidade que prometti.... Mas para isso.... para que eu possa pedir perdaó a Deos.... he de mister separar-nos!— Eu deixar-le ! ... Mas então nao ha meio decon- vencer-te de que nao posso viver sem li ..,, que tua

presença , tua vista he tao necessaria para mim como o ar que respiro..,.— Nós cominettêmos hum crime, Adolpho !— Como sois cruel, M aria!... Deixa-me viver dessa vida.... deixa-me esquecer esse passado onde lia hum crime; deixa-me esquecer esse futuro onde ha remor­sos!... Lembremo-nos só do presente !... Só diante dè teus olhos vivo !...— E o futuro?— Para que cuidar nelle?... Por ventura cuido eu na morte que, de hum instante a outro, póde vir? Não M aria..., venha emb >ra a infelicidade, ao menos gozei na vida momentos felizes, ao menos resplandeceu no meu céo huma estrella brilhante..,.— Mas eu, que vou morrendo pouco a pouco.... não tenho essa força de que alardeas.... porque desde o momento em que fui tua victima, não tive hum só ins­tante de repouso... porque verei continuamente meu esposo nas minas vigilias, nos meus sonhos.... '[em piedade de mim, Adolpho.. . . he preciso que partas....- Não, nao posso.... quero expirar a teus olhos."" tamanho sacrificio não cabe em m im ... só tenho forças para am ar-te...,- Pois, barbaro , não vias que tudo isto era para poupar-te a vista de hum outro crime? Não conhecias o nosso coração ? .. Pensavas acaso que huma senhora que faltou ao mais sagrado de todos os deveres, fosse qual fosse o motivo, huma senhora de educação que. trahe os laços conjugaes, podia verem face seu esposo, abraça-lo, fallar-lhe com palavras hypocritas, suspi­ros e sorrisos hypocrites? Pensavas qiie depois do meu crime eu seria ainda tão vilque illudisse aquelle a cujos destinos está ligada minha vida, que dormisse tranquillamente sobre seu peito, que pudesse fríamen­te descer ao sepulcro? Enganavas-te... Coinmetti hum crime, sujeito-me ao castigo. Enganei meu esposo, he de mister vingança!... Adolpho!... E nada com- prehendias disto? Que pallidez he esta minha? Que dolorosa contracção de meus labios !... Vós, homens, sois capazes de tudo, aptos para tudo.... Não queres partir.... pois bem !... presencia ao menos minha morte !... Eu estou envenenada ! ...§ viu.Ha na igreja de S. Bento, situada na villa de Iguassú, hum tumulo, entre outros, que sempre foi respeitado por todos os habitantes daquelle lugar, por causa dos milagres e actos de beneficencia que praticára em sua vida a pessoa que se acha nellc dormindo o somno eterno....Em cima desse tumulo estão gravadas as seguintes palavras:« Aqui jaz Maria , filha obediente, esposa fiel, do­tada dos melhores sentimentos. Pobres c infelizes que nella encontrastes sempre hum coraçao disposto a fazer o bem ..., rogai por ella .... Nasceu em S Benlo em 1816, e morreu no Rio de Janeiro em 1835. »No livro dos assentos de obito da freguezia de Vas­souras se acha escripta a seguinte declaraçao: -Mor­reu Adolpho d e .... em janeiro de 1836; foi enterrado nesta igreja....Os moradores dessa freguezia que conhecerão esse joven, dizem que elle, de volta de huma viagem do lue de Janeiro, cahio gravemente molesto , e quasi qm enlouqueceu... Ignorava-se os motivos que lhe causaran tamanha desventura. Por vezes ello se tinha quenm assassinar; mas de repente vinha-lhe huma boa íuCy lembrava-se de que o —suicidio ira hum moi a ,

religioso e social....Pf.retua da Si i va.