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ISSN 2177-8892 1255
MUNDO RURAL, TRABALHO E EDUCAÇÃO: ALGUNS ENLACES
HISTÓRICOS
Ana Elizabeth Santos Alves
Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB
Ivana Teixeira Silveira
Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB
Tânia Maria Rodrigues da Rocha
Mestranda do Programa de Memória: Linguagem e Sociedade da Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB
Agência Financiadora: Fapesb
O presente texto tem como objetivo discutir as relações entre o Trabalho e a
Educação no Mundo Rural, particularmente em comunidades rurais (agricultura
tradicional campesina), por meio do processo histórico de modernização do campo e a
consequente expropriação do produto do trabalho e dos meios de produção do
camponês atrelado à acumulação capitalista. A análise que ora apresentamos é parte de
um estudo que estamos desenvolvendo em quatro comunidades tradicionais rurais do
município de Planalto, BA, localizadas na Mesorregião do Centro‐Sul Baiano, a 477 km
da capital Salvador. Nesse estudo, realizamos observações e entrevistas
semiestruturadas com vinte e três grupos familiares moradores dessas comunidades
sobre as condições de trabalho e as possibilidades educativas de homens e mulheres, no
sentido de observar de modo mais amplo o núcleo de produção familiar. As famílias
tem a posse de um pedaço de terra que é espaço de moradia e de produção mínima para
autoconsumo. Entretanto, mesmo elas possuindo terras para realizar sua subsistência, a
maioria das vezes tal atividade fica prejudicada ou até mesmo impossibilitada de ser
desenvolvida devido às condições climáticas, territoriais e principalmente à falta de
condições tecnológicas, educacionais e econômicas. Os moradores dessas comunidades
são obrigados a vender a sua força de trabalho. São expropriados dos meios e os objetos
do seu trabalho; o controle do seu trabalho é transferido para quem detém a propriedade
dos meios de produção às quais eles estão subordinados. Sendo assim, eles se submetem
ao trabalho assalariado em outras propriedades rurais ou em atividades diversas, cuja
subsistência é garantida.
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Um dos caminhos para entender do ponto de vista histórico as razões das
precárias condições de vida e de trabalho de mulheres e homens nestas comunidades
rurais, é revisitar o modelo de modernização da agricultura brasileira socialmente
excludente construído no Brasil, realizado para o desenvolvimento do trabalho dos
grandes proprietários como pode ser comprovado no cenário político a partir dos anos
1950 e na criação do Estatuto da Terra em 1964. Os processos educacionais a que têm
acesso esses trabalhadores atendem a exigências políticas, sociais e econômicas das
relações de produção capitalista, determinados pelos interesses de classe. Neste texto,
apresentamos uma breve discussão sobre o processo de modernização da agricultura
brasileira e o Estatuto da terra, entrecruzando com algumas análises pontuais sobre a
relação trabalho- educação e depoimentos colhidos no campo empírico da pesquisa.
**
As linhas ideológicas do Pós-Guerra nos anos 50 identificam-se com a
impregnação da Guerra Fria, consolidando a divisão do mundo nos blocos capitalista e
socialista. Numa tentativa de afirmação nacionalista este fato provocou revoluções,
guerras localizadas, o que levou à autonomia política de numerosos países do
Continente Asiático e Africano. Desta forma, a aspiração ao desenvolvimento passou a
ser o grande propósito das Nações que não pertenciam ao grupo privilegiado das
industrializadas.
Todo este panorama internacional permeado por aspirações desenvolvimentistas
e nacionalistas configurou no Brasil embates no cenário político, mediante os quais o
Governo passou a deliberar esforços contraditórios rumo à conquista de uma política, ao
mesmo tempo, nacionalista e desenvolvimentista. Foi nítida a estratégica paradoxal
adotada no Governo Vargas, mediante a instalação de um alinhamento com Washington
em decorrência direta da Guerra Fria, contrapondo-se, interinamente, com a tomada de
uma consciência nacionalista delimitada nos traços principais de sua plataforma política
dos anos 50. (IANNI, 1992).
O dinâmico debate em torno do Petróleo Brasileiro, conferindo à PETROBRÁS
o monopólio estatal desta mesma fonte energética, representou uma das culminações em
torno das manifestações nacionalistas que caracterizaram o último mandato presidencial
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de Getúlio. Merece igualmente destaque a criação do Plano de Valorização Econômica
da Amazônia e do Plano para o Vale do São Francisco (1952). (IANNI, 1992).
A campanha desenvolvimentista no país esboçou-se em dois polos de oposição:
de um lado, os nacionalistas, que defendiam o desenvolvimento baseado na
industrialização, enfatizando a necessidade de se criar um sistema econômico
autônomo, independente do sistema capitalista internacional. Isso significava dar ao
Estado um papel importante como regulador da economia e como investidor em áreas
estratégicas como o petróleo, siderurgia, transportes, comunicações. Sem recusar o
capital estrangeiro, os nacionalistas o encaravam com muitas restrições, seja por razões
econômicas, seja porque acreditavam que o investimento de capital estrangeiro em áreas
estratégicas poria em risco a soberania nacional.
Por outro lado, os adversários dos nacionalistas, defendiam uma menor
intervenção do Estado na economia. O progresso do país dependia de uma abertura
controlada ao capital estrangeiro. Demarcavam uma postura de rígido combate à
inflação, através do controle da emissão de moeda e do equilíbrio dos gastos do
governo. (IANNI, 1992).
A política educacional que caracteriza esse período expressa os interesses
econômicos de modernização e racionalização dos setores privilegiados; reflete a
política de desenvolvimento industrial capitalista. (FREITAG, 1986). O entendimento
dessa questão é dado nas relações produtivas que se estabelecem entre o capital e o
trabalho. A divisão social e a divisão técnica do trabalho constituem condição
indispensável para a formação dessas relações. A separação entre teoria e prática educa
distintamente homens e mulheres para atuarem em posições hierárquica e tecnicamente
diferenciadas no sistema produtivo. (KUENZER, 1992).
É bastante ilustrativo considerar que, nos anos 50 foram acentuados o
empobrecimento do campo, o êxodo rural, as secas do Nordeste e a extrema
concentração da terra, levando, não somente, a um quadro de miséria, mas também a
mobilizações e organizações proletárias agrícolas em todo o país, quer por entre os
cortadores de cana do Nordeste açucareiro, ou por entre os colonos expulsos das
fazendas de café de São Paulo, ou entre os pequenos proprietários e lavradores sem terra
do Rio Grande do Sul. Em meio a estes acontecimentos, partidos e movimentos
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organizados da sociedade civil começam a atuar no campo, frente aos tradicionais
controles da oligarquia rural do Norte e Nordeste e da burguesia agrária do sul cafeeiro1.
Com mais ênfase que o governo Vargas, o governo de Juscelino Kubitscheck
empunhou a bandeira de conquista do desenvolvimento, não a partir de uma linhagem
meramente nacionalista, mas a partir de uma estratégia voltada interinamente para a
industrialização atrelada ao capital internacional.
As bases da política de modernização do campo estavam lançadas e pode ser
traduzida a partir da configuração histórica descrita acima.
O carro-chefe do Governo foi o chamado Plano Desenvolvimentista de Juscelino
(Plano de Metas), que convocava a nação a superar o atraso econômico, “crescendo 50
anos em cinco”: a construção de Brasília, a inauguração de uma série de estradas,
favoreceu a entrada do capital e da tecnologia estrangeiros no campo da indústria
automobilística, da construção naval. Tratava-se de modernizar o País, em meio à
acumulação do capital industrial que aflorava sempre mais as intensas disparidades de
classe e o empobrecimento do campo e em meio às gritantes diferenças regionais entre
Norte/Nordeste e Sul/Sudeste. (BEOZZO, 1996).
Portanto, o Governo Juscelino demarca, no Brasil um verdadeiro ‘virar de
página’ para a anterior orientação herdada de Getúlio Vargas, frente aos
empreendimentos de uma industrialização sob o controle do Estado, em vistas de
assegurar uma maior independência nacional, perpetuando-se na história do Brasil uma
verdadeira política de ‘abrir as portas’ para as forças econômicas internacionais.
Como solução, especificamente, para o dilema do Nordeste, o governo JK traçou
várias estratégias políticas em meio às quais um grupo de técnicos, defendia um
desenvolvimento que aproveitasse o máximo da mão de obra local, em atividades
agrícolas compatíveis com as condições climáticas dominantes na região, ao passo que
outro grupo de técnicos mais ligados ao BNDE2 inclinou-se para a defesa de um modelo
de industrialização capaz de absorver o excedente de mão de obra nordestina que
1 Merece destaque a participação da Igreja Católica através da criação de inúmeros trabalhos voltados a
apoiar estas lutas sociais no campo. Ação Católica, Movimento de Natal e Sindicalismo Rural são alguns
dos mais destacados. No início dos anos 60, havia 50 sindicatos da Igreja, mas nenhum era até então
reconhecido pelo Governo. De modo que, não demorou muito e ela conseguiu a legalização de 22
sindicatos junto ao Ministério do Trabalho (BEOZZO, 1996). 2 Banco Nacional do Desenvolvimento.
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migrava do campo para a cidade, contemplando soluções tanto para os efeitos da seca
como para o desequilíbrio inter-regional.
A expressão nacional-desenvolvimentismo, em vez de nacionalismo, sintetiza,
desta forma, a política econômica de JK, perante os quais se entrelaçaram o Estado, a
empresa privada nacional e o capital estrangeiro nesta promoção do desenvolvimento,
com ênfase na industrialização.
De forma análoga a Getúlio, JK teve na aristocracia rural uma das principais
bases de sua sustentação política. Logo, a política de modernização do campo
impregnou a passagem do capitalismo agrário tradicional, para o capitalismo rural
moderno e passou a ser uma das principais plataformas do seu governo.
Segundo DELGADO (2001), no início dos anos 60 entra em debate no cenário
político o tema da questão agrária. Foi impulsionado pelas intensas mobilizações sociais
que vinham acontecendo no campo. Três centros de reflexão entram como linhas de
frente das discussões: o Partido Comunista Brasileiro; setores progressistas da Igreja
Católica e a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL).
Evidentemente, o que engendrou esse debate sobre a questão agrária foram, de um
lado, as lutas sociais no campo em torno, não somente, de pequenos proprietários,
lavradores, bem como diante das populações indígenas; do outro lado, foi a política de
modernização do campo que já vinha sendo adotada mais precisamente a partir do
Governo de Juscelino Kubitscheck.
Dois segmentos se formaram em defesa e contrário à política de modernização do
campo. O segmento da defesa foi encabeçado pela CEPAL, tendo à frente Celso
Furtado, Delfim Neto, Roberto Campos e outros. Representou o “aprofundamento das
relações técnicas da agricultura com a indústria e de ambos com o setor externo”:
Denominei este processo de integração técnica-agricultura-indústria,
caracterizado de um lado pela mudança na base técnica de meios de
produção utilizados pela agricultura, materializada na presença crescente de
insumos industriais (fertilizantes, defensivos, corretivos do solo, sementes
melhoradas e combustíveis líquidos etc.); e máquinas industriais (tratores,
colhedeiras, implementos, equipamentos de injeção, entre outros). De outro
lado, ocorreu uma integração de grau variável entre a produção primária de
alimentos e matérias-primas e vários ramos industriais (oleoginosos,
moinhos, indústrias de cana e álcool, papel e papelão, fumo, têxtil, bebidas
etc.). (DELGADO, 2001, p. 164).
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O segmento contrário à política de modernização do campo ficou por conta do
Partido Comunista Brasileiro, setores progressistas da Igreja Católica e intelectuais
como Caio Prado Júnior e Ignácio Rangel, nas palavras desses autores: “(...) o que se
entende e deve entender por “reforma agrária” nas atuais circunstâncias do país é a
elevação dos padrões de vida da população rural, sua integração em condições humanas
de vida, o que não é e está longe de ser o caso em boa parte do Brasil”. (CAIO PRADO
JR. apud DELGADO, 2001, p. 159).
Esses intelectuais defendiam que a política de modernização do campo em
sobremaneira agravou a insegurança das populações rurais, aumentando os despejos de
colonos e posseiros, a perseguição aos sindicatos rurais e criando, acima de tudo, um
infindável conflito de terras. Especificamente na região amazônica, a agressiva política
de ocupação daquelas áreas por grandes grupos econômicos, nacionais e estrangeiros,
em detrimento das populações indígenas e dos antigos moradores, impregna-se a
impunidade dos que praticavam a ocupação violenta de áreas já cultivadas, pela
grilagem de terras, falsificação de documentos, corrupção de juízes, cartórios e órgãos
do Governo.
Disto decorre que, a modernização do campo não deveria tomar por base uma
perspectiva de simplesmente transportar para o meio rural a tecnologia do processo
industrial. Deveria, sobretudo, criar condições de resposta aos problemas provocados
pelas correntes migratórias desordenadas, que provocavam, especialmente, as inchações
crescentes das áreas periféricas dos grandes centros urbanos. Essa discussão despontou-
se, tendo em vista, a desoladora seca de 1958, que colocou o Nordeste em intensa
disparidade com as regiões Sudeste-Sul. Estima-se que, no referido ano, dois milhões de
pessoas perderam toda a sua produção agropecuária e tiveram de recorrer às frentes de
trabalho abertas pelo governo.
Em face destas questões, a década de 1950 foi o momento em que se acelerou o
processo de industrialização da agricultura e de formação dos primeiros complexos
agroindustriais do País, mediante os quais se fixaram mudanças profundas na estrutura
da produção e da comercialização agropecuária. Foi a partir desse momento histórico
que entra em cena a designada questão agrária no Brasil, uma vez que, a partir de então,
o rural passou a se constituir como problema político e, simultaneamente, como objeto
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teórico e empírico de estudos. Com o Golpe Militar de 1964 e a consequente
perseguição aos partidos de esquerda, os movimentos sociais do campo foram também
fortemente afetados, a exemplo das Ligas Camponesas3.
O fato é que no ano de 1963 o projeto de reforma agrária vai ao Congresso
Nacional. Contudo, os grandes proprietários rurais posicionaram-se contra a aprovação
do projeto, de forma que ele não foi aprovado. E após o Golpe Militar o Governo cria o
Estatuto da Terra que acaba levando à frente a política de modernização do campo, haja
vista o fato de que ele reproduziu políticas em favor da agricultura comercial, voltada
para o mercado externo e apoiada em empresas agrícolas demarcadoras de rígidos
critérios instalados para produtos de exportação.
Segundo WANDERLEY (2009), o Estatuto da Terra foi resultado de um “pacto”
entre o Estado e os grandes proprietários de terra, em razão de que ele expressa a
conjunção de dois projetos: a reforma agrária e o desenvolvimento da Agricultura. Ela
afirma que o texto do Estatuto expressa a determinação de eliminar as desproporções
entre o minifúndio e o latifúndio do País, através da instalação de Empresas Rurais.
Essas Empresas são definidas pelos seguintes critérios:
Para que um imóvel rural possa ser considerado empresa, é necessário que a
área cultivada corresponda a, pelo menos 50% da área agricultável; que se
obtenha um rendimento médio pelo menos igual aos mínimos previamente
fixados; que se adotem práticas conservacionistas e se empregue no mínimo
a tecnologia de uso corrente; que se obedeça às condições mínimas de
administração e de exploração social. (WANDERLEY, 2009, p. 48).
Conforme a autora, podemos observar que o modelo de modernização da
agricultura brasileiro privilegia as propriedades que se organizam como empresa e
adquiriram uma visível forma de produção moderna pela sua nova funcionalidade em
relação ao capital, impulsionada pelo processo de modernização. Com efeito, tais
mudanças ocorreram tanto na base técnica dos meios de produção como nas relações
sociais de produção, caracterizado efetivamente, pela implantação de novas técnicas de
produção e mecanização.
3 As Ligas Camponesas ganharam fama como um grande movimento de militância rural promovido pelos
trabalhadores rurais, criadas inicialmente no Estado de Pernambuco. Contudo, elas se espalharam
posteriormente para os Estados da Paraíba, Rio de Janeiro, Goiás e em outras regiões do Brasil, além de
terem persistido historicamente no período que se estendeu de 1955 até a queda de João Goulart em 1964.
(ALVES e SILVEIRA, 2014)
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Na medida em que parte da agricultura brasileira4 sob a direção expansionista do
capital se moderniza, impera o contraste da luta pela sobrevivência de trabalhadores
camponeses5, pequenos produtores da economia de subsistência, que se proletarizam e,
por conseguinte, se integram ao processo de acumulação do capital.
Diante das explicações de Wanderley, é possível constatar que o Estatuto da
Terra, de fato, acaba por reproduzir a política de modernização do campo, haja vista o
fato de que ele ponderou muito mais em favor dos grandes proprietários de terra, do que
dos pequenos proprietários e dos desapropriados. Que incentivo o pequeno produtor
teve para com a lida da terra? O que o Governo garantia diante de políticas públicas
financeiras, bem como do apoio técnico para com o homem do campo? Que
preocupação o Governo teve para com os despossuídos da terra? São questões que, o
Estatuto não avança. Ele, sim, ratifica a política de modernização do campo, através de
uma agricultura comercial, voltada para o mercado externo e apoiada em empresas
agrícolas, produtora de sementes selecionadas, do uso intensivo de adubos, fertilizantes
e máquinas.
A resposta para essas questões são históricas e estão localizadas no campo do
conflito de interesses entre os setores modernizantes da agricultura empresarial e a
realidade da expropriação do trabalho dos pequenos produtores, especialmente de
camponeses de unidades de produção familiar que são transformados em trabalhadores
migrantes. (ALVES e ALMEIDA, 2014). Como nos ensina Martins (2012, p. 60), a
compreensão da atualidade da questão agrária “não se explica (...) por acontecimentos e
4 A multidimensionalidade do Mundo rural revela a presença de estruturas econômicas, predominando
formas “tradicionais” de exploração do trabalho ou formas modernas que contam com o trabalho
assalariado. Há também formas de uso da força de trabalho (familiar e assalariada) na agricultura familiar
"tecnificada", adaptada às exigências do mercado ou na agricultura camponesa de subsistência, em
diversas situações específicas e particulares. 5 Em comunicação aceita para ser apresentada no VII Encontro Estadual de História explicamos que “a
relação trabalho, família e propriedade constitui a agricultura tradicional rural. Em tal organização
camponesa os seus membros dispõem de autonomia social, econômica e demográfica. No aspecto
econômico, a autonomia diz respeito a capacidade do grupo em fornecer bens de subsistência à família e
pode ser explicado segundo dois aspectos: a subsistência ligada às necessidades primárias e a reprodução
da família pelas gerações vindouras. A conjunção desses aspectos resulta em características cruciais
acerca do campesinato, qual sejam: o sistema específico de produção e a centralização do patrimônio na
família. Partindo da leitura de Wanderley (1996), identificamos os elementos básicos da constituição do
campesinato, com base nos estudos clássicos, por meio dos seguintes pontos: o acesso à terra, a
reprodução de formas particulares de produção, e meios próprios de sociabilidade.” (PAIVA, FARIAS e
ALVES, 2014, p 1-2)
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circunstâncias imediatos”, mas sim pela “busca da sua lenta expressão desde o
passado”. Evidentemente, para começar a entender as precárias condições de vida e de
trabalho de mulheres e homens das comunidades rurais que estamos estudando foi
necessário fazer o percurso histórico descrito acima. Por exemplo, uma das nossas
preocupações iniciais logo que visitamos o lugar era o fato de encontrar muitos espaços
vazios, anunciando que os moradores, principalmente os jovens, tinham ido trabalhar
em outros lugares. Assim, para ilustrar essas análises apresentamos nos parágrafos
seguintes alguns resultados dessa pesquisa.
**
As comunidades rurais de que trata a nossa análise são caracterizadas como de
agricultura camponesa tradicional (os moradores se autodenominam de pequenos
agricultores), baseada na produção de subsistência gerida pela família. A proletarização
de homens e mulheres é visível na relação que se estabelece com o uso da terra, ao
migrar temporariamente para outros lugares a procura de trabalho com o objetivo de
assegurar a reprodução da família.
Em razão da ausência de condições trabalho que assegure a sobrevivência destes
atores rurais em sua terra, eles migram para os grandes centros urbanos. As entrevistas
realizadas com moradores do município de Planalto comprovam essas afirmativas. O
depoimento de Marcos6, integrante do sindicato dos trabalhadores rurais, é elucidativo
no que se refere à nossa investigação: “[...] Exatamente, a maioria deles (moradores das
comunidades), sai, vão pra São Paulo, trabalhar em São Paulo [...]. Trabalhar de
pedreiro, muitos trabalham de pedreiro né, trabalham nas construções”. (Entrevista
realizada em 09/03/2013)
Outra entrevistada, Maria, funcionária da Câmera de Vereadores do município,
expõe que os jovens das comunidades rurais, que não dispõem de condições materiais
para sobreviver, são obrigados a vender a força de trabalho temporariamente para os
fazendeiros de café da região da mata7:
[...] Agora mesmo eu soube que o café, mesmo embora não seja como
antes, tem absorvido muita gente, muita mão de obra aqui na região,
muitos tem ido pra colheita do café [...] muitos tem sidos absorvidos,
6 Neste texto estamos usando nomes fictícios para os entrevistados.
7 A qualidade das terras do município de Planalto é dividida em região da caatinga, onde vive a população
mais pobre, e a região da mata onde estão localizadas as fazendas de café e as terras mais valorizadas.
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nesses últimos quatro e cinco meses que deve ir até outubro a colheita.
É tem absorvido muita gente mesmo até aqui da comunidade mesmo,
pessoas que lidam com salões, manicures que vão de casa em casa
nesse período preferem ir para o café porque a oferta está melhor e
tem muitos jovens envolvidos com isso, mas o destino é realmente
uma condição de trabalho [...] (Entrevista realizada em 05/09/2013)
No depoimento dos moradores das comunidades destacamos um exemplo:
Eu acho que se tivesse um meio de trabalho aqui na comunidade seria
bem mais interessante. Eu sei que nem todo mundo estaria lá em São
Paulo, porque geralmente as pessoas não vão mais só pra São Paulo,
umas pessoas vão pro Maranhão outras vão pra Natal, tem várias
pessoas da comunidade que faz o trabalho fora, tem outros que agora
... Conquista já tem muito trabalho, tem gente que já prefere ficar em
Conquista.(Dona Janice. Entrevista realizada em 05/10/2013).
O acesso dessas pessoas à educação, saúde e outras demandas básicas é permeado
por desigualdades, tornando-as “vítimas de processos sociais políticos e econômicos
excludentes” (MARTINS, 2012, p.14). Essa realidade fica ilustrada na fala de uma
senhora idosa, Dona Rosa, que ao se remeter à sua história de vida, tem na palavra
“luta” a sua principal característica e lembrança:
Porque naquele tempo era um dia sofrido, a gente pra criar filho carecia
lutar muito, trabalhava o dia todo naquele solão, pra chegar em casa
outra vez pra tornar a lutar outra vez a mesma coisa, no outro dia
tornava a descer de novo a semana toda, entra dia, semana e sai semana.
(Entrevista realizada em 16/07/2012).
Outra moradora, Dona Julia, descreve a sua luta cotidiana, na qual a fizeram
assumir grandes responsabilidades e a trabalhar desde criança:
(...) a história minha, muito cansada, porque naquele tempo tudo era
assim devagar as coisinhas pra gente, tinha por muito sofredor, (...) era
brigando com a vida, assim de caçar jeito de coisinha (jeito de
conseguir as coisas) e quase passando precisão e era essas luitas
(lutas) todas, (...) nós nasceu e criou aqui; meu pai morava ali,
trabalhador... (...) meu pai saiu largou nós tudo pequeno, (...) eu já
veia moçinha, já grandinha, (...) largou o caçula ainda piquenim (sic),
também daí pra cá nós não nunca soube do meu pai (...). (Entrevista
realizada em 13/06/2012)
Como se percebe, Dona Julia lembra um tempo no qual as condições materiais
de vida na roça eram demasiadamente precárias. Mas, com as vivências da nossa
pesquisa percebemos que esse não é um passado distante, a luta diária também é parte
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da história dos filhos de Dona Julia e de tantos outros. Os jovens reproduzem a mesma
história e sintetizam uma existência de privação de uma camada sofrida da população
brasileira.
É latente nas nossas observações a migração dos jovens para os grandes centros,
em busca de oportunidades de uma vida melhor, menos sofrida que a vida dos seus pais
na roça. Pensamos então esse processo como um reflexo da expansão das indústrias
(desenvolvimento próprio do modo capitalista de produção), quando o homem do
campo torna-se mão de obra para o capital. Os camponeses detêm a posse das terras,
porém não possuem as condições materiais para o desenvolvimento da atividade
produtiva. São compelidos a vender a força de trabalho para os proprietários dos meios
de produção, a fim de garantir a sobrevivência da família. São lançados, portanto, na
lógica do trabalho assalariado.
Meu marido trabalha na diária quando ele acha, pra ir labutar, falando
pra você. Quando acha diária ele trabalha, o difícil é trabalho mesmo,
porque a maioria dos jovens sai pra distante é por causa da dificuldade
do trabalho que aqui não tem. (Dona Vilma. Entrevista realizada em
05/10/2013).
Nos tempo das plantações mesmo as chuvas faltam, outra hora quando
dá uma chuvinha a gente pranta (sic), o tempo levanta. Eles acham
melhor trabalhar fora pra ganhar o dinheiro já apurado de que
trabalhar na roça e risca não ter nada, mas muita gente não pensa
assim não. (Dona Lucia. Entrevista realizada em 05/10/2013).
Os sujeitos da Agricultura Camponesa de nossos estudos, por um lado, não são
educados na implementação de um trabalho agrícola voltado efetivamente como
unidade produtiva de mercado. A agricultura de subsistência em conjunto com a
impregnação de estratégias de reprodução, a exemplo do trabalho doméstico, compõe o
real perfil destes sujeitos em questão.
Como são educados muito mais na reprodução doméstica do trabalho, eles
primam em tomar as decisões do que comprar e do que plantar em função de não
prejudicar o núcleo familiar.
Eu trabalho no meu terreno aqui e trabalho no terreno do rapaz ali
embaixo também. O rapaz tem uma terrinha, ele mora in Planalto. Aí
até quando ele comprou essa terrinha ... Eu saio daqui doze horas,
vamo supor, vou lá pra baixo; três horas eu chego aqui, porque meu
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café de 3:00 horas é sagrado, né. Eu tomo meu café vou trabalhar aqui
pra mim, né, até 4:30 às 5:00 horas. 5:00 horas eu vou lá pra baixo
prender, da comida as criação dele e fecha pra eu ir embora. (Seu
Alcino. Entrevista realizada em 05/10/2013)
Entretanto, contraditoriamente, por outro lado, a migração temporária os inclui em
processos educacionais racionalizados do trabalho assalariado. Quando vão trabalhar em
outros lugares é com a intenção de preservar a unidade de produção, conforme podemos
observar no depoimento:
A gente nasceu e criou aqui, né, a gente gosta daqui, né, do lugar que
a gente nasceu. Eu lhe disse que eu sair fora muitos anos pra cuidar
dos filhos, pra trazer sempre as coisas pra casa, mas o lugar que a
gente nasceu é muito bom pra gente morar. (Dona Nalva. Entrevista
realizada em 05/10/2013).
A falta de chuva, a precariedade da vida, o desconhecimentos técnico agrícola
transformam estes atores de uma educação que não reproduz uma real fixidez na
localidade em que moram. Os seus ciclos de vida, ao mesmo tempo em que os fazem
presentes na localidade de morada, também os distanciam, em boa parte de suas vidas:
Eu acho que se tivesse um meio de trabalho aqui na comunidade seria
bem mais interessante. Eu sei que nem todo mundo estaria lá em São
Paulo, porque geralmente as pessoas não vão mais só pra São Paulo,
umas pessoas vão pro Maranhão outras vão pra Natal, tem várias
pessoas da comunidade que faz o trabalho fora, tem outros que agora
... Conquista já tem muito trabalho, tem gente que já prefere ficar em
Conquista (Dona Aparecida. Entrevista realizada em 05/10/2013).
Enfim, a histórica política de modernização da agricultura dos anos 50 estabeleceu
uma educação voltada a privilegiar o grande latifúndio, em detrimento do pequeno
agricultor, isto é, do minifúndio.
Toda a efervescência da campanha desenvolvimentista firmou, como fonte do
progresso, a cidade e não o campo. Esta foi uma marca-chave da passagem do
capitalismo agrário tradicional para o capitalismo rural moderno.
Se, de um lado, o homem do campo viu-se muito dependente da mecanização
agrícola (novos processos de tecnologia mecânica, insumos, defensivos, adubos, etc.),
por outro lado, estas transformações não foram suficientes para integrar o pequeno
produtor na esfera econômica.
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Ao mesmo tempo, em que a cadeia de Agronegócio da Agricultura Familiar se
fortaleceu e o trabalho tornou-se mais complexo, com a utilização de novas técnicas e
uso de máquinas agrícolas, ocorreu de igual modo, a expropriação do trabalho no
campo. Além disso, também na contrapartida, a tradicional agricultura camponesa foi
relegada ao segundo plano, pois não alcançou essa inovação tecnológica.
Diante dessas contradições, é notável considerar que agricultura familiar
brasileira ficou limitada em sua expansão, as unidades e produção familiar são vítimas
de processos sociais, políticos e econômicos gerados por meio de um modelo perverso
de produção e de desenvolvimento no mundo rural.
REFERÊNCIAS
ALVES, ANA E. S; SILVEIRA, Ivana T. Anos 50 e mundo rural: na terra do “atraso” a
semente da luta. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 56, p. 118-131, mai. 2014.
Disponível em: http://www.fe.unicamp.br/revistas/ged/histedbr/article/view/6511/5398
ALVES, ANA E. S; ALMEIDA, Miriam C. C. A centralidade do trabalho na
determinação da mobilidade territorial dos trabalhadores rurais. Revista HISTEDBR
On-line, Campinas, nº 55, p. 250-266, mar. 2014. Disponível em:
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