Mundo de Tinta - Contos - Funke, Cornelia

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CORNELIA FUNKE

MUNDO DE TINTACONTOS

TraduçãoRafael Mantovani

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PREFÁCIO

É verdade que já se passaram mais

de doze anos desde que escrevi asprimeiras frases de Coração de tinta?Ainda lembro que, na época, disse amim mesma: “Bom, esta vai ser umahistória para devoradores de livros. Vouescrever para aqueles que são tãoapaixonados pela palavra impressaquanto eu. Será a confissão de umvício”.

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Enquanto pesquisava sobrecolecionadores, encadernadores,maníacos e destruidores de livros, eujamais tinha pensado que um dia aquelahistória seria lida no mundo inteiro econtagiaria até não leitores com o vírusdas letras! Para mim, esses são os frutosmais maravilhosos que essa históriarendeu: todas as cartas de crianças eadultos que recebi, em que eles contamcomo o Mundo de Tinta os seduziu a ler,e muitas vezes também a escrever.Existe coisa mais bonita para se dizer auma contadora de histórias? Passei seteanos no Mundo de Tinta, emboraoriginalmente pretendesse escrever umúnico livro! Mas a história quis que

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fosse diferente.Mais uma lição que aprendi com os

Livros de Tinta: as histórias têm vontadeprópria, e escrevinhadores comoFenoglio e eu apenas transcrevemos oque elas nos ditam.

Nos últimos cinco anos, estiveviajando por outro mundo. Ou pelomenos pensei que fosse outro… Afinal,desta vez não foi um livro, mas umespelho que me transportou para lá.Porém, quanto mais longe eu viajo, maisfamiliares são os vestígios que encontro,e mais confirmo a suspeita de que essemundo é o mesmo por onde segui DedoEmpoeirado e Fenoglio. Na verdade,isso não é nenhuma surpresa. Viajo

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sempre com a mesma cabeça e o mesmocoração. Passaram-se alguns séculos. Ooutro mundo ficou mais velho — ouseria melhor dizer mais novo, porquemais próximo do nosso?

Será que Jacob Reckless um diavai visitar o castelo do Cabeça deVíbora? Ou encontrar um descendentede Dedo Empoeirado no Ogro Voraz, ataverna de Albert Chanute? Tãoemocionante! Por que existem LínguasEncantadas no nosso mundo? Será quealguém trouxe, através do espelho,algum objeto mágico com que Orfeu,Darius e Mortimer tiveram contato?

Tantas perguntas. Tantas aventuras.E tudo começou há mais de doze anos.

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Espero que venham outros doze. Masnão quero ser ambiciosa. Não importaquando vai terminar esta viagemliterária, ela foi e continua sendo umafantástica aventura!

Cornelia Funke

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ORFEU

Chuva. Chuva todo dia. E o frio!

Orfeu achava incrível que a tinta nãocongelasse. Brilho de Ferro reclamavatodas as manhãs de reumatismo nosmembros e gemia quando precisavaapontar as plumas de Orfeu, mas esseera só mais um dos truques do homem devidro para fugir do trabalho. Afinal,onde já se viu reumatismo em membrosde vidro?

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Tyrola… O nome do lugar soaratão promissor quando ele cruzou afronteira, quase morrendo de frio!Porém o reino inteiro era tão lastimávelquanto o clima. O castelo do rei nãomerecia ser chamado de castelo, e “rei”era um título muito elogioso para oimbecil que governava Tyrola. Seussúditos o chamavam pelas costas deSegismundo, o Louco. A maioria delesnão comia nada além de pão seco equeijo podre, e sobrevivia ao frioembriagando-se com a aguardente queeles mesmos destilavam em seuscasebres escuros nas montanhas.

Por sorte, pelo menos algunstinham alcançado certo conforto. Havia

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quase um ano, Orfeu garantia sua parcaexistência dando aulas na capital para asfilhas de um comerciante de tecidos quetinha o ambicioso plano de casá-las comdiversos príncipes. A mais nova, paraescrever seu próprio nome, mordia alíngua de tanto esforço.

Ah, era uma tortura! E umdesperdício gritante dos talentos que eletinha! Mas pelo menos Orfeu tinhacerteza de que as palavras de Fenogliocontinuavam impotentes naquelasmontanhas sombrias onde ele, faminto econgelado até os dedos dos pés, haviaencontrado refúgio. As criaturas que seavistavam nos bosques e desfiladeirosde Tyrola eram a prova: mandels,

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munguentuts, norggels… koboldspeludos cujos nomes ninguém ousavapronunciar, aranhas e bodesdevoradores de gente… O velho nãoescrevera palavra alguma sobre tudoisso. Orfeu tinha certeza. Afinal aindasabia de cor, palavra por palavra, olivro do Tecelão de Tinta, que o levaraàquele lugar esquecido por Deus.

Não. Aquelas montanhas nãopertenciam a Fenoglio — embora ovelho com certeza teria afirmado ocontrário. Afinal, com sua vaidade semlimites, acreditava ser o criador destemundo inteiro. Chegaria o dia em queOrfeu lhe daria uma bela lição. Ah, sim,com certeza chegaria. Mas infelizmente

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suas palavras também relutavam emganhar vida entre aquelas montanhas.

Desde que chegara, escrevia até osdedos doerem. Mas tudo o que surgiaquando ele lia as palavras era pálido esem força, como se o vento geladotivesse soprado para longe algumasletras decisivas.

Bruneck, a capital de Tyrola, ondeOrfeu ocupava dois aposentos caindoaos pedaços, teria cabido inteira (commuralha e tudo) no salão de audiênciasdo Cabeça de Víbora. E no mercado sóse ouvia os saltimbancos, mercadores esoldados contando como as coisas erammais emocionantes em Ombra: oPríncipe Negro negociava a paz com a

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viúva do Cabeça de Víbora… Violanteagora era chamada de “a Bondosa”, poisvendera suas joias para alimentar ospobres… Ela sem dúvida passara tempodemais com Mortimer, aquelenobilíssimo idiota! Não havia novashistórias sobre Gaio. Pelo jeito o heróiradiante tinha mesmo se aposentado. Noentanto, todos os saltimbancos contavamsobre o Dançarino do Fogo e sua belamulher, que dançava com as chamas, ousobre seu aprendiz Farid, que, com seustruques cintilantes ridículos, partia oscorações de todas as garotas do Reinode Tinta criado por Fenoglio.

Às vezes Orfeu ficava tão mal comessas histórias que passava horas

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vomitando num dos baldes que a donahorrorosa da pensão colocava para ascabras. Toda a conversa sobre os diasáureos de Ombra! Sobre as flores devidro que brotavam na muralha dacidade (flores de vidro! As ideias deFenoglio ficavam cada vez mais cafonascom a idade). Dizia-se que rouxinóis deprata cantavam nas árvores de Ombra,que um gigante vigiava o portão dacidade junto com seu filho, e queultimamente era possível comprartapetes voadores no mercado.

Ah, sim. Era bastante óbvio queFenoglio estava enchendo volumes comsuas baboseiras literárias, enquantoOrfeu mal conseguia fechar os dedos em

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volta da pena de tanto frio, e escreviacom uma tinta viscosa que escorria feitoalcatrão no pergaminho manchado queos mercadores vendiam ali.

Não era de se esperar que suaspalavras não surtissem efeito algum?Por que ele tinha deixado o castelo dolago e partido para o norte?

O céu estava inesperadamente azulquando Orfeu se pôs a caminho da casade uma aluna nova. Mas a primeira poçaem que pisou cobriu suas botas de cocôde cabra aguado.

Ah, Orfeu! O que foi que você setornou? Toda a riqueza — perdida!Todo o poder! Todo o prestígio! Tudojogado fora!

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Ele passara outra noite em claroperguntando-se de quem se vingariaprimeiro… Do encadernador? DeFenoglio? Ou o primeiro deveria serDedo Empoeirado? Sim, seu nome aindaera o espinho que mais doía na carnegelada de Orfeu. Ele simplesmente nãoconseguia esquecer a repulsa nos olhosde seu herói de infância. Sentira-secomo um verme, rastejando sobre carnepodre…

Sim, primeiro ele se vingaria deDedo Empoeirado.

Vingança. Essa perspectiva tornavasuportável a burrice de suas alunas — ea arrogância dos pais ricos delas.

O mestre padeiro que estava

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procurando um professor para sua filhaSeverina, de catorze anos, chamava-seAlois Haberkorn. Seu pão era ruim,porém com avareza e tino comercial eleacumulara uma riqueza considerável.Dizia-se que emprestava dinheiro para opróprio rei.

O criado que abriu a porta lançouum olhar desconfiado para o homem devidro no ombro de Orfeu antes deconduzi-lo, em silêncio, ao recinto ondesua aluna o aguardava. As máscaras nasparedes eram comuns em muitas casasda cidade. Orfeu achava aquelascarrancas entalhadas repulsivas, maselas supostamente afugentavam todo tipode espíritos indesejáveis das montanhas.

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Uma mesa, um banco, uma lareira — omestre padeiro não desperdiçavadinheiro mobiliando a casa.

Severina Haberkorn estava de péno meio da sala, reta feito uma tábua,como se estivesse se apresentando parauma inspeção. As tranças de seu cabeloloiro-acinzentado estavam presas bemfirme, como era costume naquelasbandas. Seu corpo arredondadomostrava os primeiros sinais defeminilidade.

— Sente-se.Com um suspiro, Orfeu abriu um

dos livros que usava para lecionar. Eleos roubara do comerciante de tecidos,cujas filhas também eram suas alunas. O

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homem, como era de se esperar, nuncase dera conta do roubo. A maioria dosricos daquela cidade via os livrosapenas como uma decoração necessáriae jamais sentia a mínima tentação deabri-los. E, sinceramente, em Ombra nãoera muito diferente.

Severina sentou-se à mesa semdizer uma palavra e segurou a pena, quejazia pronta ao lado do tinteiro. Precisoufazer um esforço enorme para não ficarencarando o homem de vidro.

— Meu método funciona daseguinte maneira — Orfeu começou aexplicação enquanto colocava Brilho deFerro sobre a mesa. — Se você sedesconcentrar e escrever alguma coisa

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errada, o homem de vidro irá corrersobre a tinta úmida. Se ficar demorandoou perder palavras inteiras, elederramará tinta no seu pergaminho.

Brilho de Ferro abriu um sorrisomaligno enquanto se posicionava aolado do tinteiro.

Sem dúvida aquelas medidas erampedagogicamente questionáveis, maspelo menos faziam com que as aulasfossem um pouco divertidas, tanto paraOrfeu quanto para o homem de vidro.

Severina cometia muitos erros. Pormil pesadelos! — era ainda mais burraque as outras alunas de Orfeu.

Palavras… Elas usavam aspalavras como gavetas, onde a vida era

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simplesmente jogada como se fosse pãoseco! Não era surpresa alguma que eledormisse tão mal. Nada restava ao fimde cada dia além de um rastro de letrasmortas, e o arranhar da pena ainda oacompanhava em seus sonhos.

Orfeu encontrou a tira depergaminho quando se sentou parajantar. Espantara-se com a tolerância desua nova aluna, que tranquilamentedeixara Brilho de Ferro passear sobresuas letras tortas pelo menos umas dozevezes. Mas ele próprio não sabia muitobem como a perspectiva de vingançapoderia tranquilizar a alma.

A imbecil tinha escondido a tira depergaminho num livro que ele deixara

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perto dela na mesa. Aquela era semdúvida a letra da menina, embora acaligrafia estivesse um pouco maiscaprichada.

Uma gota de sangue e extrato de

urtiga,Encantarão as palavras com fúria

inimigaO homem de vidro se contorcerá

de dorFeito uma lombriga num dia de

calor Olha só! A filha do mestre padeiro

acreditava no poder das palavras!Orfeu olhou à sua volta. O homem

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de vidro se contorcerá de dor…Ele não via Brilho de Ferro em

lugar algum, mas isso não queria dizernada. O homem de vidro geralmentepassava as noites procurando seussemelhantes nas ruelas estreitas deBruneck, embora Orfeu já tivesseexplicado infinitas vezes que os homensde vidro eram apenas uma criaçãomaluca do Tecelão de Tinta, e portantonão existiam naquela parte do mundo.

Talvez Rudolph tivesse vistoBrilho de Ferro. Orfeu contratara ocriado, ainda que não tivesse condiçõesfinanceiras para isso. Estava prestes achamá-lo quando ouviu um ofegar vindode trás da lata de açúcar.

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As pernas de Brilho de Ferrodebatiam-se desesperadas, e suas botasraspavam a mesa onde Orfeu tantasnoites tentara em vão dar vida àspalavras que lia.

Sim. Ele estava de fatocontorcendo-se como uma lombriga.

Orfeu ficou assistindo, fascinado, àagonia do homem de vidro.

Ah, aquilo era fantástico.Era simplesmente maravilhoso!Brilho de Ferro ainda estava se

contorcendo, com o rosto tomado pordor e fúria, quando Orfeu mandouRudolph trazer seu casaco. O homem eralento como um caramujo manco. Ah,quando as palavras voltassem a

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obedecê-lo, isso logo mudaria. Tudoiria mudar!

Lá fora, o céu ainda estava claro.Uma lua pálida pendia sobre os telhadosde madeira, e as ruelas estavam vazias,a não ser por uma cigana que agarrou amão dele para ler o futuro. Orfeu aempurrou para tirá-la do caminho. Ofuturo seria do jeito que ele escrevesse!

O criado do mestre padeiro lançou-lhe um olhar de desgosto e surpresaquando viu Orfeu parado diante da portanuma hora tão insólita, mas acreditou nahistória da lição de casa esquecida. Aaluna, por sua vez, não era tão burraassim. Severina Haberkorn sabia porque o professor tinha ido procurá-la tão

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tarde da noite.— Pare o feitiço! — Orfeu

esbravejou, sem perder tempo comformalidades. — Pare imediatamente!Ainda preciso do homem de vidro. Equero saber como você fez isso.

Severina olhou para a porta. Orfeunão soube ao certo se foi na esperançade ver seus pais, ou por medo deencontrá-los. Era difícil de decifraraquele rosto impassível. Por fim, elaestendeu a mão aberta para ele.

Orfeu entregou-lhe a tira depergaminho.

Ela cuspiu nas palavras e lhedevolveu a tira.

— É só isso?

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Ela fez que sim com a cabeça.— O que mais você consegue

fazer?— Consigo fazer os garotos se

apaixonarem por mim.— E?Ela mordeu o lábio e lançou-lhe um

olhar sombrio.— Fiz o meu nariz ficar mais fino.Céus… Aquele país era um lugar

mais perigoso do que ele tinha pensado.Se uma menina de catorze anos podiacriar, apenas com palavras, um novonariz, ou fazer o homem de vidro sedebater de dor…

— É preciso ler as palavras emvoz alta?

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Severina fez que não com a cabeça.Aquilo foi decepcionante. Orfeu

sempre se orgulhara de sua voz develudo. Por outro lado, isso significavaque os talentos do encadernador e de suafilha também eram inúteis ali. A ideiaera promissora.

— Quem te mostrou como issofunciona?

Sangue e extrato de urtiga… Comcerteza a menina não tinha descobertoaquilo sozinha.

Ela nem tentou esconder o ar detriunfo em sua voz.

— As palavras só obedecem àsmulheres.

Aquilo era novidade.

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As palavras no pergaminho tinhamse dissolvido com o cuspe.

— Vou perguntar de novo… Quemfoi que te mostrou isso?

A menina fez que não com acabeça.

— Quem conta os segredos delacai morto na hora.

— Ela?Ele ameaçou mostrar o pergaminho

para os pais dela, mas Severinacontinuou de boca fechada. Estava commedo. Até onde Orfeu sabia, nem onome de Fenoglio nem o seu própriojamais haviam despertado taissentimentos. Era impressionante.

A mulher do mestre padeiro entrou

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bem na hora que Orfeu estava prestes aagarrar as tranças da menina e lhearrancar a verdade na base da violência.Ele recolheu os pedaços de pergaminhodo chão e foi embora.

Tinta que se dissolvia com cuspe.Sangue. Veneno de urtiga. Pelo jeito,fazer as palavras respirarem era umprocedimento muito mais trabalhoso porali. Mas era possível.

Ela…Brilho de Ferro estava deitado ao

lado do tinteiro quando Orfeu chegou emcasa. Exausto, porém vivo.

Orfeu encontrou Rudolph nacozinha.

— Quem devo procurar quando

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preciso de palavras mágicas?O homem encolheu o pescoço feito

uma galinha diante de um machado.Mas quando Orfeu pôs embaixo do

nariz dele uma das moedas de prata queganhara com tanto suor, os olhoscastanhos do homem ficaram tãoredondos quanto a peça de metal. Eletinha quatro filhos para alimentar. Omais novo o deixara viúvo. Ele estavatão desesperado por trabalho que foramuito fácil convencê-lo a aceitar umamixaria como salário.

— É melhor não procurá-las — elemurmurou, sem tirar os olhos da moeda.

— Procurar quem? Desembuchalogo ou eu guardo a moeda de volta.

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Seus filhos parecem estar com bastantefome.

O homem apertou o cabo davassoura com força.

— Bruxas. — Rudolph pronuncioua palavra como se pudesse queimar seuslábios. Ah, sim, meu caro. E comopodem.

Bruxas. Fenoglio nunca tinhaescrito sobre bruxas. Orfeu quaseagarrou o pescoço raquítico de Rudolphcom as duas mãos.

Ombra ficava a pouco mais de cemmilhas de distância, e aquelas montanhasnunca tinham ouvido as palavras deFenoglio. Ah, como o mundo era grande!Claramente maior do que o ridículo

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Reino de Tinta, onde aquele velho seportava como um rei. Ah, Orfeu! Comovocê pôde falar tão mal daquelasmontanhas? Elas lhe forneceriam novaspalavras — mais escuras — para suavingança. Palavras com gosto de sanguee extrato de urtiga. De magia negra enoites frias de neblina. Havia tanta coisaa aprender.

— Onde eu encontro uma bruxa?Ele já sentia as palavras se

agitarem dentro dele, todas as palavrasque queriam ganhar vida. Orfeu escutavaseus sussurros. Não. Elas grasnavamcomo corvos, latiam como cãesensandecidos, uivavam feito lobosfamintos. Já fazia tempo que ele as

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ouvia.O criado cerrou o punho em volta

da moeda.— Na floresta… Elas estão sempre

na floresta. Bem afastadas das trilhas.Mas existem bruxas boas e bruxas más.

Excelente.— Onde eu encontro uma bruxa

má?

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CINCO ANOS DEPOIS

O céu ardia. Dedo Empoeirado

adorava atear fogo na noite. Suaschamas criavam brotos vermelhos entreas estrelas, feito papoulas abrindocaminho em um campo de floresbrancas.

Fenoglio estava parado à janela deseu quarto no sótão, apreciando a vista.Vivia outra vez sob o teto de Minerva.Aquele aposento simples ainda era o

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melhor lar, e a paisagem era muito maisesplêndida que a do castelo —principalmente nas noites em que DedoEmpoeirado armava o palco para suabela mulher. Roxane sempre dançavapara a Feia sob um céu bordado dechamas.

Dedo Empoeirado e Roxane… Jáfazia muito tempo que Fenoglio deixarade se referir a eles como criações suas.Deixara de acreditar que era possível,só com palavras, criar pessoas e osmundos onde elas viviam. Era possível,sim, capturá-las com palavras. Prenderseu eco no som de consoantes e vogais.Mas criá-las? Não. A vida em si nãonascia da tinta. Fenoglio aprendera a ser

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humilde com os dedos de um gigante,com uma trilha na floresta repleta decorpos de soldados, e com a filha doCabeça de Víbora, cuja sabedoria degovernante ele não tinha previsto quandoescrevera sobre uma menina solitária efeia. Mas mesmo que o tecido daquelemundo tecesse a si mesmo (ou fossefabricado por alguém que se escondia),Fenoglio não se opunha quando alguémo chamava com reverência — e um levetremor na voz — de Tecelão de Tinta.Fazia muito bem para sua vaidade e, nofinal das contas, às vezes ele realmenteembelezava o tecido daquele mundocom alguns bordados novos. Unsenfeites aqui e ali, um pouco mais de

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cor…Ali! As flores de Dedo

Empoeirado lançavam suas sementes defogo no veludo escuro da noite. Umarevoada de cisnes cruzou o céu, comasas de faíscas brancas. Ele inventavacenários muito criativos para as dançasque Violante, de tempos em tempos,pedia para Roxane apresentar aos seussúditos. Nessas noites os portões deOmbra ficavam abertos, e as pessoaschegavam de toda parte para admirar amulher que dançava com o fogo. Opróprio Fenoglio muitas vezes estiveraentre os espectadores, mas hoje em diapreferia a vista da janela de Minerva àmultidão do pátio do castelo.

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Ainda estava frio, embora fossequase fim de março, e os ossos cansadosde Fenoglio resistiam a todas aspalavras que ele escrevia tentandoexpulsar o reumatismo de suas juntas.As ervas de Roxane funcionavam melhor— mais uma prova das verdadeirasraízes e das realidades daquele mundo.

Ah, Tecelão de Tinta, você estáficando velho.

Envelhecer não era agradável emlugar nenhum, e ele não tinha vontade deestar em outro, embora às vezes sentissefalta de seu jornal de manhã ou do caféforte que tomava três vezes por dia. Eraum absurdo que o grão de café ainda nãotivesse chegado a Ombra. Vinho e chá,

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era só isso que se encontrava nomercado. Bom, não se podia ter tudo navida. Só que Fenoglio sempre acharadifícil aceitar esta regra.

Alguém bateu na porta. Pelo som,pareciam estar batendo na madeira como gargalo de uma garrafa.

Céus, aquele homem de vidro eratão impaciente que um dia iria acabar seestilhaçando!

Fenoglio ainda assumia o créditopor ter inventado os homens de vidro,embora Meggie gostasse de provocá-lofalando dos espécimes selvagens queviviam nas florestas. Era preciso admitirque estes últimos não levavam o menorjeito para afiar penas, e portanto

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desmentiam sua alegação de queinventara a espécie só para servir osescritores. Mas tanto fazia se elepróprio ou outra pessoa era responsávelpela criação dos homens de vidro: o fatoera que suas vozinhas engraçadasficavam absolutamenteincompreensíveis quando estavamaflitos. O que sem dúvida era mais umargumento para a opinião comum de quehomens de vidro em geral eram umacoisa supérflua, um conceito ridículo.

— Diga logo o que foi. Por quevocê já está tão agitado de novo? —Fenoglio gritou para Quartzo Rosa,enquanto fechava a porta atrás dele. (Oshomens de vidro nunca conseguiam fazer

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isso sozinhos.) — Estrume de vaca nacalçada? Uma galinha tentou te bicar?Você vai ver, um dia ainda vai explodirde raiva por alguma besteira qualquer!

Lá fora, Dedo Empoeiradocelebrava a arte e a beleza de suamulher, fazendo o fogo pintar a silhuetadançante de Roxane no céu. A mão delatentava agarrar a lua como se fosse umabola de prata.

— Aquele salafrário cinzento…!— Quartzo Rosa ofegava. — Eu tinhatanta certeza de que nunca mais veriaaquela cara feia. Nada além de umapilha de cacos, é isso que ele mereciaser! Cacos de vidro nas fezes de um cãopulguento!

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De quem Quartzo Rosa estavafalando? Do homem de vidro quedisputava com ele o amor da mulher devidro em que estava interessado? Sebem que aquele não era cinza, masvioleta (uma cor infeliz para um homemde vidro).

— Bom, espero que você nãoesteja pensando em se atracar com o seurival — Fenoglio disse, voltando para ajanela. — Se você quebrasse os braços,seria inútil não só para mim como parasua amada amarelada, essa porta-agulhas que está te tirando do sério.

O objeto de desejo de QuartzoRosa trabalhava para BeatriceSommavilla, uma costureira por quem

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quase todos os humanos de Ombrasuspiravam. Até Fenoglio escreverapoemas de amor para ela… A idade nãopoupava ninguém dessas tolices.

Ágil como uma aranha, QuartzoRosa escalou a cômoda que havia aolado da escrivaninha de Fenoglio.Odiava ter que ficar olhando para cimaenquanto discutiam. Bom, mesmo emcima da cômoda ele ainda precisavafazer isso. Criaturinha ridícula. Mas otalento dos homens de vidro para oalpinismo era realmente impressionante.

— Outra vez você não está meescutando! — Quartzo Rosa chiou. —Essa sua gente nunca escuta! Tantoespaço nessas cabeças disformes, e para

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quê? Brilho de Ferro! Eu vi Brilho deFerro, o homem de vidro de Orfeu!Imagino que você ainda se lembre dessenome, não? Brilho de Ferro estavasentado no ombro de um homem queparecia ainda mais sórdido que elepróprio, e ficou olhando fixo para oDançarino do Fogo, como se quisesseperfurar a pele dele com seu olhar devidro!

Lá fora, Dedo Empoeirado deixouo fogo morrer, e a noite ficou escuracomo fuligem.

— Que bobagem. Tenho certeza deque você está enganado. — Fenoglioodiou o tremor que ouviu em sua própriavoz. — Os homens de vidro são todos

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parecidos, só isso! E cinza não éexatamente a cor mais rara que existe.

— Os homens de vidro são todosparecidos? — A lista de insultos queQuartzo Rosa lançou sobre Fenoglio esobre toda a espécie humana erainterminável. Sem dúvida ele estavapassando tempo demais na taverna pertodo mercado, onde a taverneira deixava,em cima do balcão, uma dúzia debanquinhos minúsculos para os homensde vidro. Ela enchia dedais com seuvinho mais barato, e em troca elestranscreviam as canções picantes queela compunha para os músicos.

Ah, aquela vozinha estridente! Eracomo derramar vidro moído em seus

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velhos ouvidos.Mas e se o homem de vidro não

estivesse enganado? Fenoglio sentiu-seoutra vez como aquele lobo do conto defadas, aquele cujo estômago os setecabritinhos encheram de pedras.

Fazia cinco anos desde a últimavez em que ele ouvira o nome de Orfeu,no dia do nascimento de Dante, o irmãomais novo de Meggie. Fora naquelaocasião que Mortimer lhe contara, comtodos os detalhes, o que haviaacontecido no Castelo do Lago.

Cinco anos…Eles tinham comemorado o

aniversário de Dante fazia três dias. Suamãe desenhara para ele todas as suas

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criaturas favoritas (espíritos da floresta,ninfas, homens de vidro — e cachorros).Seu pai encadernara esses desenhos,criando o livro mais bonito que umacriança de cinco anos já possuíra.Meggie tinha costurado para o irmãouma réplica minúscula da capa que oPríncipe Negro vestia. Hoje em dia, elaera quase tão habilidosa com agulha elinha quanto com as palavras. Seu amigoDoria (que Dante idolatrava) esculpirapara ele uma carruagem de madeira queandava sozinha. E Dedo Empoeirado…Bem, Dedo Empoeirado obviamentetinha feito Dante esquecer todos essespresentes, enviando para ele umcachorro de fogo.

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Pedras no estômago…Cinco anos. Cinco anos

esplêndidos, mágicos. Não, Fenoglionão queria ouvir nada sobre Orfeu, nemsobre seu perverso homem de vidro.Ambos estavam mortos. Era o que tinhadito a si mesmo durante todos aquelesanos, quando pensava no Cabeça deQueijo.

Fenoglio passou a noite em claro.O céu sobre os telhados de Ombramergulhou numa escuridão perturbadoradepois que os fogos de DedoEmpoeirado se apagaram e, quando amanhã rompeu, estava tão pálido ecinzento quanto o homem de vidro quetirara o sono de Fenoglio. Até os filhos

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de Minerva ainda estavam dormindoquando ele foi ao estábulo buscar ocavalo que o Príncipe Negro lhe dera depresente.

As colinas estavam prateadas como orvalho suspenso em milhares de teiasde aranhas. Reluzentes armadilhasmortais… Fenoglio tentou formularalgum pensamento que não fossesombrio, mas era simplesmenteimpossível.

Quartzo Rosa também já estava depé, em busca do homem que tinha vistolevando Brilho de Ferro no ombro.Fenoglio o encarregara de pedir aosoutros homens de vidro que tambémficassem de olho bem aberto à procura

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daquele desconhecido. Além disso,enviara uma mensagem ao PríncipeNegro e a Mortimer. Mas para DedoEmpoeirado queria transmitir a mánotícia pessoalmente. Devia isso a ele.E além do mais, nunca perdia aoportunidade de fazer uma visita aRoxane. A beleza dela permitia queFenoglio, mesmo numa manhã comoaquela, acreditasse na perfeição domundo.

Entretanto, Roxane não estava aliquando Fenoglio freou seu cavalo dianteda casa simples onde ela morava comDedo Empoeirado. Naturalmente. Elagostava de colher as ervas que usava emseu ofício quando as folhas ainda

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estavam úmidas de orvalho. Fenoglioprecisava admitir que sentia saudadedas pílulas insípidas de seu mundoquando bebia as infusões amargas deRoxane — mesmo que estas muitasvezes funcionassem melhor. Obviamenteele nunca dizia isso, mas Roxane semprelhe lançava um sorriso cúmplice quefazia o sangue lhe subir às bochechasenrugadas.

Ah, o sorriso dela. DedoEmpoeirado podia se considerar, apesarde tudo o que lhe acontecera, um homemmuito sortudo, e não só por causa damulher que o amava. Embora não sesaiba quem urdiu a trama do destino doDançarino do Fogo, ele se tornara uma

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pessoa extraordinária desde que voltarados mortos. Uma chama pulsante, em pazcom a vida e com aquilo que vinhadepois. Dedo Empoeirado cruzava esselimiar com a mesma facilidade com quepassava do dia para a noite.

Ele estava parado na frente da casacom Jehan, filho do segundo casamentode Roxane. Jehan era aprendiz deferreiro em Ombra. Já tinha fama decriar maravilhas com ferro derretido,certamente em boa parte graças àquiloque seu padrasto lhe ensinara sobre ofogo.

Ambos pressentiram que Fenogliotrazia más notícias assim que ele entrouno pátio. Fenoglio às vezes ainda se

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pegava procurando no rosto de DedoEmpoeirado as cicatrizes que uma veztinha descrito. Ainda era um rosto cheiode segredos, embora as Damas Brancastivessem apagado todos os vestígios dedor.

— Precisamos encontrar o homemde vidro — Jehan disse. — E obrigá-loa confessar onde seu mestre estáescondido. Vou pendurá-lo em cima dafornalha, isso vai fazer ele abrir a boca!

O sorriso de Dedo Empoeirado eraainda mais misterioso desde que elevoltara das Damas Brancas. Sempredeixava Fenoglio constrangido. “Seitudo sobre você, seu velho bobo”, osorriso parecia dizer.

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— Não — disse DedoEmpoeirado. — Como vamos saber seele está falando a verdade? O PríncipeNegro devia mandar alguém atrás dele.Não vai fazer mal nenhum descobrironde Orfeu tem aprontado suasartimanhas.

— O Homem Forte com certezapode se encarregar disso — Jehan disse.— Na melhor das hipóteses, ele quebraos pescoços dos dois, do homem devidro e de Orfeu. Antes que ele possanos envenenar com palavras outra vez.

Dedo Empoeirado deixou umachama minúscula crescer em sua mão.

— Todos estes anos procurei porele no fogo — ele disse —, mas o fogo

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não conseguiu encontrá-lo. Ou ele estámorto e seu homem de vidro agora servea outro senhor, ou ele partiu para algumaterra que meu fogo não enxerga.

Pedras no estômago. Fenoglio viuterras selvagens diante de si, estranhas eperigosas… Terras que sabiam tãopouco de suas palavras quanto do fogode Dedo Empoeirado. Ele olhou para ohorizonte. Pela primeira vez teve medoda vastidão que espreitava além dele.

Quando a chama na mão de DedoEmpoeirado se apagou, as cinzasdesenharam em sua pele a silhueta deuma mulher dançando.

— Eu vou com você — ele disse aFenoglio. — Encontrar este homem de

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vidro. E falar com o príncipe.Cinco anos.Todos eles sentiram. Uma nova

história se anunciava. Ou será que aindaera a mesma de sempre?

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O LIVRO DE PRATA

Em Le Puy, uma cidadezinha na

França encravada nas montanhas deArdèche, existe um museu que atépoucos anos atrás guardava um tesouro.Agora a vitrine está vazia, a não ser poruma foto que mostra um livroencadernado em prata. Os fechos dovolume têm o formato de cisnes voando.A lombada é enfeitada com torrescercadas de rosas, e nas capas do livro

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a prata desenha lírios e gavinhasespinhosas, entre os quais o observadoratento pode descobrir um focinho delobo ou uma cabeça de unicórnio.

Os habitantes de Le Puy adoramseu Livro de Prata, e é por isso que afoto está lá. Esperam até hoje umvisitante que um dia pare em frente àvitrine vazia e declare: “Mas eu vi esselivro agorinha há pouco!”.

Temo que estejam esperando emvão. Os ladrões que roubaram o livro,na noite de 11 de novembro de 2009,agiam a mando do homem (se é quepodemos chamá-lo de homem) paraquem ele foi originalmente encadernado.

Impossível?

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Segundo a descrição que se lê naparede ao lado da vitrine, o Livro dePrata foi levado para Le Puy no ano de1823, como legado de um nobre quemorreu sem deixar herdeiros. Mas isso ésó metade da história. O livro éconsideravelmente mais antigo.

As iluminuras nos pergaminhos dolivro não possuem temática religiosa,como a maioria dos livros da época deseu surgimento. E, estranhamente, os reise príncipes que elas retratam não seencontram em nenhum relato histórico daregião. O Livro de Prata de Le Puy foiportanto interpretado como um volumede contos de fadas que entretinha osfilhos de algum nobre, ou a genealogia

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romanceada de algum príncipe há muitoesquecido.

A verdade, como tantas vezesacontece, é muito mais surpreendente. Olivro conservou seu segredo dentro deseu invólucro de prata durante todosesses séculos. Mesmo os ladrões que oroubaram pensavam que o queinteressava a seu contratante eram ascapas do volume. A advertência enfáticaque lhes foi feita apenas reforçou esteerro: eles não deviam encostar no livrocom as mãos descobertas em hipótesealguma, nem abrir os fechos que oprotegiam.

Ao longo dos séculos, catorzehomens e mulheres tiveram contato

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direto com o livro. Todos eles, depoisdisso, adquiriram um dom muito raro:podiam dar vida às palavras escritasatravés da voz. Criaturas, objetos, todosos mundos que se escondem entre aspáginas dos livros como em caixastipográficas… essas coisas ganhavamvida assim que ouviam a voz de umapessoa que tivesse sido tocada pelamagia do Livro de Prata. E não era sóisso, esse encantamento era tão forte queo dom concedido era transmitido aosdescendentes, em geral para a filha oufilho mais velho. O dom costumavaaparecer pela primeira vez por volta dosétimo aniversário, embora houvessecasos em que se manifestasse antes

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disso.Dos catorze Línguas Encantadas

conhecidos, a maioria manteve seu domem segredo. Afinal, esse é um talentomais que suspeito num mundo que já nãoacredita em magia há muito tempo.

O homem que encomendou o Livrode Prata, e séculos depois contratoualguém para roubá-lo (sim, é melhor ochamarmos de “homem”, ele não gostanem um pouco que seus segredos sejamexpostos), mandou encadernar o livropor dois motivos. Por um lado, elepreservava em suas páginas lembrançasde outro mundo — o mundo de ondevinha. Mas um propósito tão inofensivonão era suficiente. Seres como ele

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adoram dar um toque de travessura emtudo. Sendo assim, ele escondeu maisuma coisa na prata das capas do livro:uma magia que faz respirar toda a vidaque se esconde nas palavras escritas.

Os homens e mulheres cujas línguasforam encantadas pela prata nemperceberam quando isso aconteceu.Afinal, só tinham encostado num livro.

Ninguém sabe como o donooriginal perdeu o Livro de Prata. Talvezo primeiro Língua Encantada tenha sidoum ladrão comum.

Então houve a governanta que,depois de descobrir o Livro de Prata nabiblioteca da casa em que trabalhava,surpreendeu as crianças fazendo surgir

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um dragão de carne e osso enquanto liaa história favorita delas; o padre quesecretamente o retirou da estante de umbispo e poucos dias depois evocou umdemônio de um de seus livros sagrados;o criado que espanou o livro e jamaisdescobriu o dom que o objeto lheconcedera; o encadernador que oexaminou buscando vestígios de mofo efez surgir um elefante sem tromba deuma de suas histórias preferidas… Diz-se que seu filho Mortimer herdou o dom,e se tornou um Língua Encantada degrande talento. Ele desapareceu sobcircunstâncias misteriosas, junto comsua filha e sua mulher.

Ah, sim. E além disso há a história

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de Ferdinando Lampedusa Fenoglio, oescritor que, assim como MortimerFolchart, desapareceu sem deixar rastro.Supostamente ele usou, como inspiraçãopara um de seus próprios livros,algumas das histórias que o Livro dePrata contava em suas páginas. Umabrincadeira perigosa quando se estálidando com um livro encantado…

O guarda do museu, que abriu avitrine para Fenoglio porque era umgrande admirador de seus livros,obviamente não o deixou a sós com omaior tesouro do museu. Ele relata que oescritor ficou um tempão olhando para acapa prateada. Deduziu que fosseporque a prata era tão clara que parecia

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um espelho enfeitado de flores. Mas issocom certeza é um exagero da imaginaçãodele.

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Copyright © 2013 by Cornelia Funke

O selo Seguinte pertence à Editora Schwarcz S.A.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográficoda Língua

Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasilem 2009.

CapaCelso Koyama

PreparaçãoNathália Dimambro

RevisãoLarissa Lino Barbosa

Renato Potenza Rodrigues

ISBN 978-85-8086-930-9

Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA SCHWARCZ S.A.

Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32

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Sumário

CapaRostoPrefácioOrfeuCinco anos depoisO Livro de PrataCréditos