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KATIA COSTA DOS SANTOS
CONSTRUO MULTICULTURAL:
REFLEXES SOBRE POLTICAS ALTERNATIVAS para o ensino de lngua estrangeira
Tese apresentada ao Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Doutor em Letras
Orientador: Prof. Dr. Lynn Mario Trindade Menezes de Souza
SO PAULO 2002
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AGRADECIMENTOS
Agradeo, em especial, ao meu orientador, Prof. Dr. Lynn Mario T. M. de Souza, por
sua disposio solidria, serenidade, motivao e orientaes to pertinentes durante todo esse
processo.
Ao Curso de Ps-Graduao em Lngua Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte-Americana
da Universidade de So Paulo, professores, funcionrios e colegas, pelo incentivo e apoio.
Ao Prof. Dr. Peter McLaren, pela oportunidade de participar de seus cursos e ampliar
conhecimentos que se mostraram relevantes durante este trabalho.
Profa. Dra. Marina MacRae, por ter acreditado em meu projeto inicial.
A minha famlia, pelo apoio sempre presente, e minha eterna gratido ao meu Deus.
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SUMRIO
RESUMO..................................................................................................................................... I
ABSTRACT .............................................................................................................................. II
INTRODUO.......................................................................................................................... 1
1. A PEDAGOGIA CRTICA E O MULTICULTURALISMO.......................................7
1.1 Pedagogia Crtica, Ideologia e Poder............................................................................. 8
1.2 Cultura Educao e Poder............................................................................................ 17
1.3 Currculo, tica e Identidade ....................................................................................... 19
1.4 Multiculturalismo: Abordagens e Desafios para a Educao de Hoje ....................... 23
1.4.1 Multiculturalismo Conservador....................................................................... 24
1.4.2 Multiculturalismo Liberal................................................................................ 27
1.4.3 Multiculturalismo Pluralista ............................................................................ 30
1.4.4 Multiculturalismo Essencialista de Esquerda ................................................. 33
1.4.5 Multiculturalismo Crtico ................................................................................ 34
1.4.6 Multiculturalismo Crtico e a Construo de Identidade................................ 36
2. A PEDAGOGIA CRTICA E O PS-MODERNO .................................................... 40
2.1 Polticas Moderna/Ps-Moderna ................................................................................. 41
2.2 A Crtica Ps-Moderna ................................................................................................ 46
2.2.1 A Crise da Totalidade ...................................................................................... 46
2.2.2 A Cultura e o Outro ......................................................................................... 48
2.2.3 Linguagem, Representao e Agncia ............................................................ 50
2.2.4 Agncia Docente/Discente sob uma Perspectiva Freireana ........................... 57
2.2.5 Diferena e voz ................................................................................................ 60
2.3 A Pedagogia Crtica e algumas de suas Problematizaes ......................................... 63
3 A PEDAGOGIA CRTICA E O CURRCULO ......................................................... 69
3.1 Perfil da Teorizao Curricular nos Estados Unidos .................................................. 70
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3.2 A Teorizao Curricular no Brasil Origens.............................................................. 77
3.3 Das Origens Dcada de 70: a Estruturao do Campo .............................................86
3.4 A Dcada de 80: Novos Desafios ............................................................................ 91
3.5 A Dcada de 90 e o Momento Atual: Neoliberalismo e Polticas Educacionais ....... 98
3.6 Os Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e a Pluralidade Cultural ................ 106
4 CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 128
5 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 136
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RESUMO
Esta pesquisa argumentativo-narrativa prope-se a investigar a construo do
multiculturalismo como conceito no Brasil, especialmente no contexto das propostas de
diversidade, como tema contido nas propostas de currculo nacional (Parmetros Curriculares
Nacionais), no contexto do ensino de Lngua Estrangeira.
O ensino de lnguas no Brasil permeado por uma pedagogia tecnicista, em que o conceito
de diversidade vinculado multiplicidade de experincias culturais, dissociado do conflito
cultural, garantidor de tolerncia e consenso. A Pedagogia Crtica, ao propor uma abordagem
dialtica de cultura, como fenmeno social em processo, e a educao/o currculo como uma
forma de poltica cultural, possibilita uma crtica do currculo, da escola, e das propostas
educacionais brasileiras, e reconhece tais espaos como interceptados por interesses
particulares, posies macropolticas especficas e narrativas mestras identificadas com um
discurso neoliberal, que formatam nossas subjetividades e as prticas culturais que nos
governam. Esta pesquisa, defendendo uma abordagem multicultural crtica, investiga um
conceito de diversidade que reconhea o poder da diferena, que questione e desafie as
estruturas de poder dominantes, que mascaram a desigualdade. Em especial esta pesquisa
examina propostas alternativas de hibridizao cultural no currculo, sob a perspectiva de uma
pedagogia reflexiva, crtica e transformadora.
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ABSTRACT
This argumentative-narrative research investigates the multicultural construction in Brazil,
especially the diversity proposal contained in the Parmetros Curiculares Nacionais, in the
context of Foreign Language teaching. Language teaching in Brazil is also permeated by a
technicist pedagogy, in which the concept of diversity is connected to the multiplicity of
cultural experiences, dissociated of the cultural conflict that guarantees tolerance and consensus.
The Critical Pedagogy, when proposing a dialectic approach of culture, as a social phenomenon
in process, and considering education/curriculum as a form of cultural politics, enables a
criticism of the curriculum, of school, and of the Brazilian educational proposals that recognizes
such spaces as intercepted. They are intercepted by particular interests, specific macropolitical
positions, master narratives identified with a neoliberal discourse, which format our
subjectivities and the cultural practices that guide us. This research, in defending a critical
multicultural approach, investigates a diversity conception that recognizes the power of
difference, which interrogate and challenge the domain structures and power relations that
disguise inequality. Especially, this research examines alternative proposals of cultural hibridity
in the curriculum, from the perspective of a reflexive, critical and transformative pedagogy.
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O estudo interpretativo da cultura representa um
esforo para aceitar a diversidade entre as vrias maneiras
que seres humanos tm de construir suas vidas no processo de
viv-las. [...] Ver-nos como os outros nos vem pode ser
bastante esclarecedor. Acreditar que outros possuem a mesma
natureza que possumos o mnimo que se espera de uma pessoa
decente. A largueza de esprito, no entanto, sem a qual a objetividade
nada mais que autocongratulao e a tolerncia apenas hipocrisia, surge
atravs de uma conquista muito mais difcil: a de ver-nos, entre outros,
como apenas mais um exemplo da forma que a vida humana adotou em
um determinado lugar, um caso entre casos, um mundo entre mundos.
Geertz, C.
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INTRODUO
Em nossa experincia como professores de Lngua Estrangeira (LE), tanto no ensino
mdio quanto no ensino superior, temos nos frustrado com a forma como o ensino de Lnguas
tem se desenvolvido no Brasil. Envolto em uma pedagogia tecnicista, cujos saberes so
meramente reproduzidos; uma preocupao com a avaliao e instrumentos que possam
mensurar com preciso o quanto as habilidades (impostas pelo mercado de trabalho) foram
aprendidas, mais do que com uma reflexo sobre o contexto do ensino e uma definio
adequada de objetivo. Neste contexto, a figura do professor limita-se a de um tcnico que
precisa executar tarefas (pedaggicas?) pr-determinadas, em tempo e contedo, oriundas de
um currculo construdo por outros, descontextualizado, enfim, um ensino que se preocupa
com o que/como fazer, em detrimento do por que fazer. E os alunos, envolvidos nesta
estrutura, convivem com a assimilao dos saberes que lhe so impostos, sem qualquer
reflexo sobre a relao entre estes e as relaes sociais, culturais e institucionais que
permeiam suas posies de sujeito no mundo. Diante desse quadro, temos nos perguntado:
que tipo de formao acadmica temos construdo com nossos alunos?
No campo especfico do ensino de LE, em cursos de Licenciatura, temos vivenciado
essa realidade de forma mais dolorosa porque so estes nossos alunos que estaro em breve no
mercado, atuando como produto (reprodutor) dessa estrutura que, em ltima anlise, mais
coopera para a alienao do que para a conscincia reflexiva e a construo de um espao
pblico que seja social, econmica, e culturalmente mais justo.
Diante da condio multicultural em que nos situamos hoje, a questo da
pluralidade/diversidade cultural tem ocupado um espao de destaque cada vez maior na mdia,
nos movimentos sociais de vrias origens, nos espaos acadmicos e em nossas polticas
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educacionais. A Reunio da ANPED, de 1999, por exemplo, teve como tema a
diversidade/desigualdade, e apontou-a como principal desafio para a educao neste novo
milnio. Neste contexto, os Parmetros Curriculares Nacionais, sugeridos em 1998, em seu
tema transversal de Pluralidade Cultural tem visado a reconhecer e valorizar a diversidade
cultural como instrumentais que desafiem os preconceitos contra a discriminao e a
excluso, ainda que sob uma perspectiva que percebe a diversidade de forma pouco
problemtica, em que os mecanismos produtores de opresso e discriminao no so
questionados. Na experincia do ensino acadmico, no contato com professores de ensino
mdio, ou mesmo nos eventos em que partilhamos pesquisas e experincias pedaggicas
temos percebido o quanto o tema da Pluralidade Cultural ainda se mostra equivocado, seno,
obscuro. E, muitas vezes, nos questionamos sobre suas possveis causas. Estariam tais
dificuldades relacionadas somente aplicabilidade do prprio tema em nossas aulas de LE, ou
seja, um problema metodolgico, ou haveria outras questes envolvidas?
A preocupao com a questo levou-nos a pesquisar o assunto. Primeiro, procuramos
visualizar o desenvolvimento da temtica do multiculturalismo como campo de pesquisas no
contexto educacional brasileiro (currculo e formao docente), atravs de pesquisadores
brasileiros que tm desenvolvido estudos no campo do currculo e formao docente,
propondo novos olhares, voltados para o reconhecimento e valorizao de identidades
culturais apagadas ou negadas em estruturas curriculares monoculturais. Os resultados de um
dos trabalhos analisados mostraram-se instigantes e nos favoreceram com uma panormica do
estado atual das pesquisas na rea. Tais trabalhos mostraram, assim, que no podemos falar de
pesquisas sobre multiculturalismo na dcada de 90, mas de uma rede de categorias que
evidenciam preocupaes voltadas para as discusses multiculturais. A partir de 96/97,
pesquisas com uma preocupao multicultural comearam a ser produzidas em maior
quantidade, centradas nas categorias de gnero e etnia. Entretanto, tais estudos assumiram
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posturas diferenciadas (liberais ou crticas) no tratamento das identidades plurais dos sujeitos
pesquisados. Para um melhor dimensionamento das tendncias dessas pesquisas, o trabalho
nos informa que em uma anlise das dissertaes e teses defendidas em programas de ps-
graduao e presentes no cd-rom da ANPED, DE 81 A 98, foram localizadas seis dissertaes
sob o descritor multiculturalismo, das quais quatro foram efetivamente consideradas
portadoras de potenciais multiculturais crticos. Em nenhuma dissertao sob os descritores
currculo e formao docente a categoria multiculturalismo esteve presente. Este trabalho
considerou como estudos multiculturais somente as pesquisas que questionam os mecanismos
que silenciam as identidades com base em determinantes de gnero, classe, etnia, padres
lingsticos e culturais, deficincias. O resultado de tal levantamento mostrou-nos como
urgente o desenvolvimento de pesquisas multiculturais no contexto educacional brasileiro.
Resolvemos, ento, localizar o desenvolvimento do tema multiculturalismo no mbito
das pesquisas educacionais internacionais, analisando suas principais vertentes e pressupostos
tericos, buscando interagir com uma teoria social crtica que ampliasse nossa compreenso
sobre a dinmica entre o conhecimento construdo na escola e a sociedade onde os sujeitos
desse conhecimento se situam. E a Pedagogia Crtica foi esse espao possvel, pois tem como
preocupao central mostrar como o conhecimento no uma construo neutra, dissociada
de valores, relaes de poder. Dedica-se a questionar e desafiar as formas como essa relao
conhecimento-poder se constri nos significados produzidos pelos indivduos e nas relaes
culturais, e seus efeitos como instrumentos legitimadores de posicionamentos poltico-
ideolgicos especficos. Sua preocupao com o multiculturalismo centra-se, portanto, em
compreender a diversidade em um universo mais amplo que considere os efeitos de poder da
diferena, com implicaes fundamentais para a educao/sociedade.
Durante esse perodo de interesse e pesquisa sobre o assunto, fomos convidados a
analisar um projeto multicultural de uma escola brasileira, de elite, localizada na cidade de
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So Paulo. O convite surgiu aps a Diretoria da escola tomar conhecimento de nossa
identificao com o tema, tanto sob o aspecto do ensino, como j explicitamos, quanto de
pesquisa, que teve suas origens em um estudo que desenvolvemos sobre o comportamento
lingstico em educao bilnge, no contexto de uma escola internacional, para o Mestrado.
Infelizmente, ao entrarmos em contato com o projeto, percebemos o quanto este havia sido
construdo sobre bases liberais e conservadoras, pois propunham a construo de um
contexto multicultural despolitizado, no ameaador, em que a diversidade confundida com
a celebrao das tradies culturais, como demonstrao de tolerncia, respeito e convivncia
harmoniosa entre as culturas. Alm disso, o projeto tem suas origens em uma organizao
internacional, cujos objetivos so empresariais, mercantilistas e assimilacionistas. Projeto, no
mnimo perturbador; se considerarmos que um de seus alvos seja a sua implantao em todo o
territrio nacional.
Por razes ticas pessoais no pudemos aceitar tal desafio. A escola permitiu-nos
acesso ao projeto e a documentos sigilosos por supor que o endossaramos em seus
pressupostos, acolhendo-o como objeto de pesquisa, o que, para a instituio seria uma forma
de legitim-lo para a sociedade. Como, evidentemente, este no seria o efeito de qualquer
anlise que fizssemos daquele projeto, consideramos a necessidade de expor escola as
razes de nossa recusa ao convite, o que, provavelmente com muito alvio, foi compreendido.
Tal experincia teve o efeito de nos alertar, mais uma vez, sobre a urgncia de
promover mais reflexes sobre o multiculturalismo como campo de pesquisas no meio
acadmico, em especial como forma de expandir crticas mais contundentes sobre propostas
educacionais, no mbito pblico e privado, de construo multicultural. No mago dessas
propostas situa-se a sociedade que desejamos construir, as foras que formatam nossas
identidades e limitam nossa conscincia reflexiva, nos caminhos por uma educao
verdadeiramente democrtica.
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Na tentativa de compreender melhor a construo multicultural no Brasil, em especial
a proposta de diversidade contida no tema transversal de Pluralididade Cultural, dos
Parmetros Curriculares Nacionais, resolvemos desenvolver essa pesquisa. Dada a
necessidade de contextualizar historicamente o surgimento e a plurissignificao dos
conceitos envolvidos, optamos por um gnero argumentativo-narrativo, e a metodologia
utilizada foi a leitura crtica de autores tericos da rea da Pedagogia Critica, do
Multiculturalismo e dos Parmetros Curriculares Nacionais. Partimos da hiptese inicial de
que o conceito de Multiculturalismo, dentro do mbito de propostas curriculares, usado
indiscriminadamente para se referir a significados diferentes e conflitantes, e que, portanto,
pode ter resultados pedaggicos tambm significativamente diferentes e conflitantes, com o
potencial de at invalidar o argumento inicial para a adoo de uma postura multicultural,
qual seja, o da valorizao das diferenas sociais. Tivemos, como principais objetivos:
analisar os pressupostos tericos de interseo entre educao e poder, no contexto da
Pedagogia Crtica e do Multiculturalismo;
analisar como a Pedagogia Crtica tem sido informada pelas teorias ps-modernas, que
contribuies estas tm prestado a essa rea;
analisar o desenvolvimento do pensamento curricular brasileiro, as incongruncias da
poltica educacional atual no que se refere diversidade cultural e as possibilidades de uma
abordagem crtica da diferena cultural em aulas de LE.
Essas anlises sero feitas em contexto mais amplo de luta por uma educao
reflexiva, inscrita em uma linguagem de possibilidades que reconstrua nossos valores de
democracia no espao pblico.
No primeiro captulo desta pesquisa, analisamos A Pedagogia Crtica em alguns de
seus postulados bsicos, e algumas abordagens multiculturais que tm desafiado a educao
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de hoje. Discutimos as concepes de ideologia, cultura, educao e poder no contexto da
Pedagogia Crtica e o papel do currculo na construo de nossas identidades; discutimos,
ainda, algumas abordagens multiculturais que tm caracterizado a polissemia do termo e
centramos nossa ateno na abordagem multiculturalista crtica, em nossas anlises dos
processos nos quais as diferenas so produzidas.
No segundo captulo, discutimos a Pedagogia Crtica sob a perspectiva da crtica ps-
moderna. Analisamos as polticas moderna/ps-moderna como pressupostos para a discusso
da crtica ps-moderna, que aborda: a crise da totalidade; a cultura e o Outro, a linguagem, a
representao e a agncia; a agncia docente/discente sob uma perspectiva freireana, e a
diferena e voz. Fazemos, ainda, uma retrospectiva crtica desses construtos sob a perspectiva
de uma postura ps-moderna de reconstruo e analisamos algumas de suas problematizaes
para a Pedagogia Crtica.
No ltimo captulo, fazemos uma retrospectiva da teorizao curricular. Traamos um
perfil da teorizao curricular nos Estados Unidos, desde suas origens e discutimos as origens
da teorizao curricular no Brasil, buscando compreender o papel da influncia estrangeira na
constituio deste campo. Discutimos a estruturao do campo, de suas origens dcada de
70; os desafios da dcada de 80 por uma orientao mais autnoma no mbito terico e o foco
no discurso educacional europeu. Analisamos as polticas educacionais da dcada de 90 no
contexto do neoliberalismo, os movimentos de descentralizao e a justificativa para adoo
dos Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em especfico o tema transversal de
Pluralidade Cultural. Finalmente, discutimos o conceito de transversalidade e diversidade
contidos no documento de Pluralidade Cultural, as posturas de desconstruo e ao propostas
diante da abordagem multicultural que tem informado nossas polticas educacionais, e
sugestes para os currculos de ensino de Lngua Estrangeira.
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PRIMEIRO CAPTULO
A PEDAGOGIA CRTICA E O MULTICULTURALISMO
A Pedagogia crtica tem, de certa forma, caminhado na contramo das polticas e
prticas educacionais que tm informado o sistema educacional brasileiro. Enquanto ela tem
buscado compreender a relao irremedivel que se coloca entre o conhecimento e o poder, a
realidade de nossas instituies educacionais, em sua maioria, tem apresentado um quadro
bem diverso. Tais instituies tm buscado, atravs de seus currculos, separar tal questo e
dar um tratamento eminentemente tcnico ao processo pedaggico.
Diante de tal realidade, podemos nos perguntar: se o conhecimento no neutro, a que
interesses tem servido? A resposta a essa pergunta requer um outro olhar sobre a pedagogia.
Exige que nos disponhamos a refletir sobre como os sistemas de inteligibilidade so
construdos, como a ideologia hegemnica se reproduz, como as prticas culturais
representam e organizam o poder, como o currculo constitui, formata e legitima as
identidades e diferenas; enfim, requer olhar a pedagogia como uma prtica poltico-cultural.
Neste contexto, o multiculturalismo tem sido um tema que tem preocupado a
Pedagogia Crtica porque tem permeado o espao educacional de forma emergente. As
questes que despontam em nosso contexto educacional referem-se forma como a
pluralidade cultural tem sido compreendida e reconhecida, de que forma os Parmetros
Curriculares Nacionais, em seu tema transversal de Pluralidade Cultural tm lidado com a
questo da diferena, e a que propsitos tal abordagem tem servido. Em especial para esse
estudo, que reflexos tais percepes tm causado no ensino de Lngua Estrangeira de nossas
instituies de 1 e 2 graus, em nossos cursos de Licenciatura e os desafios que nos
apresentam como educadores.
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Neste captulo, analisaremos a Pedagogia Crtica em alguns de seus postulados
bsicos, e algumas abordagens multiculturais que tm desafiado a educao de hoje.
Na primeira seo, discutiremos como a Pedagogia Crtica concebe a ideologia e o
poder. Na segunda seo, discutiremos como a cultura, a educao e o poder esto
conectados. Na terceira seo, analisaremos como o currculo est implicado na construo de
nossas identidades e supe uma postura tica por parte do educador. Na quarta seo,
trataremos das categorizaes multiculturais. Especial ateno ser dada s abordagens de
Multiculturalismo conservador, liberal, pluralista, essencialista de esquerda e crtico, os quais
sero discutidos nas cinco subsees posteriores. O ltimo item discutir a construo
identitria no contexto do multiculturalismo crtico, que nos parece a abordagem mais vivel
para uma anlise dos processos nos quais as diferenas so produzidas.
1.1 Pedagogia Crtica, Ideologia e Poder
A Pedagogia Crtica tem suas razes na Teoria Crtica, uma tradio terica
desenvolvida a partir da Escola de Frankfurt, Alemanha, na dcada de trinta, e que teve em
Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse seus nomes fundacionais. Durante os
ltimos trinta anos, tal abordagem terica tem sido informada pelo que poderamos denominar
ps-discursos, ou seja, pelo ps-modernismo, ps-estruturalismo, feminismo crtico,
estudos culturais, etc., os quais tm possibilitado novas formas de pesquisa e anlise da
construo dos indivduos (Kincheloe & McLaren, 2000: 281).
A Teoria Social Crtica preocupa-se especialmente com questes de poder e justia, e
as formas pelas quais a economia, raa, classe, gnero, ideologias, discursos, educao,
religio e outras instituies sociais e dinmicas culturais interagem para construir um sistema
social. Analisa os interesses de poder competitivos entre indivduos e grupos, buscando,
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9
segundo Kincheloe & McLaren (op. cit.: 281), um iluminismo crtico que exponha
vencedores e vencidos em determinados arranjos sociais e os processos pelos quais tais jogos
de poder operam1. Rejeita o determinismo econmico, pois reconhece as mltiplas formas de
poder e os fatores econmicos como sempre atrelados a outras formas de opresso. Visualiza
a racionalidade instrumental/tecnolgica como uma das caractersticas mais opressivas da
sociedade contempornea: mais interessada em mtodos e eficincia que em propsitos.
Aprecia a psicoanlise ps-estruturalista porque permite discernir os processos inconscientes
que criam resistncia a mudanas e induzem a comportamentos auto-destrutivos; o domnio
do psquico e scio-poltico tornam-se entrelaados, onde o desejo socialmente construdo e
manipulado por controladores do poder para efeitos destrutivos e opressores. A partir de tal
entendimento, os tericos crticos podem auxiliar a mobilizar o desejo para projetos contra-
hegemnicos.
A teoria crtica, ao buscar compreender as formas variadas e complexas como o poder
opera para dominar e formatar a conscincia, informada por uma epistemologia que
promove um outro olhar sobre o lcus e a dinmica do poder, entendendo-o como um
elemento bsico que molda as naturezas opressiva e produtiva da tradio humana. A
concepo terica de Foucault (1979) sobre a onipresena do poder, se por um lado
pessimista porque reconhece que o poder satura todos os espaos e relaes sociais, por outro
revigorante ao considerar novas formas de luta, mltiplas formas de resistncia, ao habilitar
para o empoderamento, para a democracia crtica, engajando grupos marginalizados em um
repensar de suas funes sociopolticas.
Nesse contexto, a Pedagogia Crtica surgiu nos ltimos vinte anos como uma nova
sociologia da educao, uma teoria crtica da educao, que busca romper com a anlise
1 In this context to seek critical enlightenment is to uncover the winners and losers in particular social arrangements and the processes by which such power plays operate (Cary, 1996, Fehr, 1993; King, 1996; Pruyn, 1994; Wexler, 1996).
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10
positivista, no-histrica e despolitizada utilizada pelos crticos liberais e conservadores da
escolarizao.
A pedagogia crtica tem como preocupao central a questo do poder no contexto
escolar e na sociedade. Preocupa-se com o como e a que interesses o conhecimento, as
formaes culturais so produzidos e distribudos, atuando como instrumentos de legitimao
de formas hegemnicas de poder. Deseja fomentar a capacidade crtica dos cidados,
capacitando-os a resistir, ainda que de forma limitada, a tais efeitos de poder. Representa uma
reao de educadores que questionam como a cultura adquirida, transmitida e distribuda,
seus significados e o papel que desempenha na formao do senso comum, nos falsos mitos
de oportunidade e mrito, na forma como os sistemas de crena/verdade/opinio tornam-se
to internalizados a ponto de indivduos e grupos serem moldados em seus sonhos e
aspiraes (Kincheloe & McLaren, 2000; McLaren, 1997).
Mais que o reconhecimento da injustia, a pedagogia Crtica busca, com seu ideal
emancipatrio, caminhos alternativos de mudana atravs da solidariedade. Freire (Apud
McLaren, Leonard, Gadotti, 1998) foi um dos educadores que mais fortemente defendeu a
necessidade de se reconhecer um sistema de relaes opressivas, sua dinmica e o lugar que
ocupamos nele2. Esse o caminho para se questionar a crena fatalstica na inevitabilidade e
necessidade de um status quo injusto. Como nos diz Giroux (1983, 1988), mais que uma
linguagem de crtica, que percebe a escola como instrumentos de reproduo das relaes
capitalistas e legitimao das ideologias dominantes, precisamos construir um discurso de
possibilidade, de prticas contra-hegemnicas nas escolas, que questione os sistemas de
inteligibilidade que guiam nossa sociedade, que desafie e transforme instituies, ideologias e
2 Ver discusso sobre esse tpico mais adiante na seo 2.2.4.
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11
relaes opressivas3. Tal projeto requer um novo tipo de solidariedade: que nos permita
trabalhar juntos, apesar de nossas muitas diferenas, para construir uma base comum de luta
pela justia cultural, social e econmica (McLaren, 1999).
No contexto do poder opressivo, a noo de hegemonia de Antonio Gramsci (Apud
Mayo, 1999) fundamental para entendermos os processos scio-psicolgicos usados para
obter o consentimento das pessoas dominao, atravs das instituies culturais (mdia,
escola, famlia, igreja, etc). A hegemonia, segundo Gramsci (Apud Mayo,1999: 35), diz
respeito condio social na qual todos os aspectos da realidade social so dominados ou
apoiados por uma determinada classe, ou seja, grupos dominantes da sociedade se juntam
formando um bloco e impem sua liderana sobre grupos subordinados. Baseia-se na
obteno do consenso construdo pela ordem dominante, criando um escopo ideolgico de
grupos diferenciados, que normalmente no concordariam uns com os outros. Apple (1999:
43) nos adverte sobre o instrumental bsico para tal dinmica, qual seja, chegar a um
compromisso, de tal forma que esses grupos se sintam como se suas preocupaes estivessem
sendo ouvidas (da a retrica ser essencial neste processo), mas sem que os grupos dominantes
tenham de abrir mo de sua liderana em relao s tendncias gerais da sociedade. Um
exemplo interessante deste processo a retrica neoliberal a respeito da qualidade das escolas
pblica e privada em nosso pas. Segundo tal discurso, a qualidade da primeira inferior da
segunda porque a administrao da escola pblica ineficaz, desperdia recursos, usa
mtodos atrasados.
Assim, o sistema reconhece o problema da desqualificao, mas vincula-o a problemas
de mercado e de tcnicas de gerenciamento, o que lhe permite estabelecer metas e programas
educacionais que girem em torno de tais alvos, demonstrando a preocupao governamental
3 As part of the language of possibility, a critical theory of literacy provides a crucial pedagogical insight into the dynamics of the learning process by linking the nature of learning itself with the dreams, experiences, histories, and languages that people bring to the cultural sphere. (Giroux, 1992: 245)
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12
com a qualificao educacional e um sentimento de consolo nos diferentes segmentos
atingidos por considerarem que suas necessidades esto sendo cuidadas. O que tal discurso
no considera, dentre outros fatores, a diferena social existente entre tais escolas, nem a
magnitude do capital econmico e cultural de cada uma. Assim, a noo de qualidade total
permeada por um tecnicismo que reduz os problemas sociais mais amplos a questes
administrativas, esvaziando os campos social e poltico do debate educacional4.
importante notar que o controle hegemnico no total, bem-sucedido em todas as
esferas da sociedade. A cultura dominante nunca comanda o campo inteiramente: ela deve
lutar de forma contnua com culturas residuais e emergentes. ( McGuigan Apud Apple, 1999:
44). Portanto, a noo de hegemonia fornece uma base terica para se entender no somente
como a dominao produzida, mas tambm como pode ser superada atravs de formas
variadas de resistncia, crtica e ao social.
Mayo (1999), ao analisar as ligaes entre os projetos de educao popular de Gramsci
e seus insights relativos cultura da classe trabalhadora, hegemonia ideolgica e conscincia
de classe, alerta-nos para os aspectos pedaggico e no-determinista (Giroux, 1981: 23) do
processo hegemnico, que abrem espao para uma linguagem que vai alm da crtica: uma
linguagem de possibilidade. Como nos diz Giroux (1999: 281):
Fora do isolamento (ghettoization) das disciplinas est a possibilidade de criar novas
linguagens e prticas sociais que conectam, em vez de separar, a instruo e o trabalho
cultural da vida cotidiana. na reconstruo da memria social, no papel dos trabalhadores
culturais como crticos transformadores, e no discurso da democracia radical como base para
a luta social e o trabalho cultural, que existe a base pedaggica para uma teoria da instruo
4 Ver discusso mais detalhada sobre esse tpico na seo 3.5.
-
13
que envolva a diferena cultural como parte de um discurso mais amplo de justia, igualdade
e comunidade.
Para Gramsci os aspectos da vida social so gerados e aceitos atravs de uma relao
de aprendizagem, portanto o processo hegemnico tambm educacional. Os agentes desse
processo so as instituies que formatam a sociedade civil. Tais agentes no so neutros,
esto ligados aos interesses dos grupos sociais dominantes, e tm a importante funo de
sedimentar a hegemonia existente, de estabelecer sua viso de mundo como inclusiva e
universal. Por outro lado, o sentido de agncia presente nas formulaes tericas de Gramsci a
respeito de hegemonia indicam o espao possvel para a atividade contra-hegemnica: sua
natureza no-esttica (constantemente aberta negociao, portanto sendo renovada e
recriada), incompleta e seletiva (o que faz supor a existncia de momentos em que todo o
processo passa por crises).
A formao de hegemonia, entretanto, no pode estar separada da produo de
ideologia, pois esta um de seus elementos constitutivos, que permeia toda a vida social;
como nos diz McLaren (1997: 209) o resultado da interseco de significado e poder no
mundo social. Stuart Hall e James Donald (Apud op. cit.: 209) definem ideologia como
as estruturas de pensamento que so usadas na sociedade para explicar, resolver e dar
sentido ou significado ao mundo social e poltico (...) Sem essas estruturas, no poderamos
nunca compreender o mundo. Mas, com elas, as nossas percepes so inevitavelmente
estruturadas em uma direo particular pelos prprios conceitos que usamos.
Tal conceito, como bem descreve McLaren (op. cit.: 209), aponta para a funo dupla
da ideologia: uma funo positiva que oferecer os conceitos, categorias, imagens e idias
por meios dos quais as pessoas do sentido ao seu mundo social e poltico, formam projetos,
chegam a uma certa conscincia do seu lugar no mundo, e nele agem; e uma funo negativa
que refere-se ao fato de que todas essas perspectivas so inevitavelmente seletivas, isto ,
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so estabelecidas a partir de relaes sistematicamente assimtricas de poder institucional
(dominao), que privilegiam alguns grupos sobre outros. Dessa forma, a ideologia torna-se
hegemnica, institucionalizada pela sociedade dominante, destituda de poder oposicional,
apresenta os interesses privados como bens pblicos, o senso-comum como verdade universal.
A ideologia sob tal perspectiva atua de formas diferenciadas. Atua por legitimao, onde o
sistema de dominao sustentado por ser representado como legtimo ou justo e digno de
respeito: os interesses das classes dominantes so vistos como representativos de toda a
comunidade. Por exemplo, ao legitimar o sistema educacional como meritocrtico (dando a
todos as mesmas oportunidades de sucesso), a cultura dominante esconde que a escolarizao
ajuda mais os que vm de famlias privilegiadas. Dados tabulados com base nas Pesquisas
Nacionais por amostra de Domiclio-Pnads (2002) do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatstica-IBGE (2002)), pelo socilogo Simon Schwartzman, ex-presidente da instituio,
mostram que o sonho do brasileiro da camada mais pobre da populao de chegar
universidade continuava to distante no final da dcada de 90 quanto era no incio dela. O
perodo foi marcado por uma forte expanso da oferta de vagas, mas no o suficiente para
aumentar a participao dos 50% mais pobres da populao ou diminuir a dos 10% mais ricos
(Jornal Folha de So Paulo, So Paulo, C1, 27.05.02).
Ainda, conforme McLaren (op. cit.: 209), outra forma de atuao da ideologia por
dissimulao, que se verifica quando as relaes de dominao so encobertas, negadas ou
obscurecidas de vrias maneiras. Por exemplo, os Parmetros Curriculares Nacionais (1998)
explicitam no documento relativo aos Temas Transversais que estes foram elaborados
procurando, de um lado, respeitar diversidades regionais, culturais, polticas existentes no
pas e, de outro, considerar a necessidade de construir referncias nacionais comuns ao
processo educativo em todas as regies brasileiras. Com isso, pretende-se criar condies, nas
escolas, que permitam aos nossos jovens ter acesso ao conjunto de conhecimentos (...)
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necessrios ao exerccio da cidadania. Entretanto, tal descrio permite camuflar a postura
assimilacionista de tais documentos, qual seja, defender a integrao e a assimilao de todas
as diferenas cultura hegemnica (Lopes, 1999: 69).
Ainda, a ideologia hegemnica exerce sua ao por fragmentao (op. cit.: 209), busca
a produo de significados que fragmentem grupos para que se oponham e, assim, se
fragilizem. Por exemplo, quando as anlises do sistema educacional brasileiro buscam atrelar
a responsabilidade pelos fracassos e desqualificao de nossa educao figura solitria do
professor, sem qualquer vnculo a relaes de poder mais amplas, tais anlises buscam
desqualificar as reivindicaes de grupos docentes e desfocar os espaos de interesses e lutas,
entre tais profissionais e setores mais amplos da sociedade, por um sistema educacional mais
democrtico e de qualidade em nosso pas.
Por ltimo, um outro modo de exerccio da ideologia por reificao, que ocorre
quando formas especficas de crenas, atitudes, valores e prticas so apresentados como
permanentes, naturais e consensuais. Por exemplo, a mxima de que se voc d educao,
cria igualdade de oportunidades e chances de ascenso que as pessoas normalmente no
teriam, (comentrio do socilogo Simon Schwartzman, em entrevista concedida ao Jornal
Folha de So Paulo, So Paulo, A4, 03.06.02) desconsidera os prprios limites dos projetos
impostos pelo sistema neoliberal em que vivemos. Tal sistema atribui um papel estratgico
educao, com, pelo menos, dois objetivos, conforme nos esclarece Marrach, S. (2000, 46-47;
53): atrelar a educao escolar preparao para o trabalho e a pesquisa acadmica ao
imperativo do mercado ou s necessidades da livre iniciativa; tornar a escola um meio de
transmisso dos seus princpios doutrinrios, ou seja, adequao da escola ideologia
dominante. Ora, o discurso neoliberal, ao insistir no papel estratgico da educao para a
preparao da mo-de-obra para o mercado, esquece que a revoluo tecnolgica impe o
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desemprego estrutural; atualmente o mundo do trabalho tanto ou mais excludente que o
sistema escolar5.
Giroux (1981), ao nos alertar para as contribuies de Marx sobre o conceito de
ideologia, enfatiza como o conceito marxista que descrevia a ideologia como um sistema de
idias que distorcem a realidade, a fim de servir aos interesses de uma classe dominante,
exigiu uma crtica que buscasse um modo de penetrar alm da conscincia dos sujeitos e de
desvelar as fundaes de sua dinmica, ou seja, um questionamento da natureza da
conscincia e dos processos histricos e contemporneos pelos quais crenas e prticas se
constituem como instrumentos legitimadores de uma sociedade6.
Tais crticas tm sido desenvolvidas por inmeros pensadores neo-marxistas, sendo
oportuno aqui ressaltar duas. A primeira foi a contribuio de George Lukacs (Apud Giroux,
1981: 20) ao estender a noo de fetichismo da mercadoria para o conceito de reificao,
i.e., o processo pelo qual as relaes concretas entre os seres humanos tornam-se como
relaes objetificadas entre coisas (Giroux, 1981:20-traduo nossa). A reificao expressa
os limites e as interconexes existentes entre a conscincia e a sociedade capitalista. Atrelada
a essa relao entre subjetividade e o capital, encontramos o conceito de pseudo-concreto,
desenvolvido por Karol Kosik (Apud Giroux, 1981: 21), que confere reificao um carter
permanente/a-histrico e consensual. Tais conceitos identificam-se com uma das formas de
atuao da ideologia hegemnica, apresentadas anteriormente por McLaren.
Porm, ideologia mais que reificao da conscincia e das relaes sociais,
tambm a luta (ainda que limitada) da conscincia para se constituir contra a natureza
objetificada da vida social (Giroux, 1981: 20); mais que crenas polticas, a forma como
5 Ver seo 3.5. 6 Marxs view of ideology delineated a form of ideology-critique and a call for political action. That is, ideology becomes a mode of penetrating beyond the consciousness of human actors, and of uncovering the real foundations of their activity, this being harnessed to the end of social transformation. (Giroux, 1981: 19)
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tais crenas so mobilizadas, como parte de um processo mais amplo de proteo de relaes
de poder assimtricas, de manuteno de dominao. Neste contexto, a Teoria Crtica percebe
a ideologia de forma dialtica, como uma forma crtica de construtivismo epistemolgico,
ancorado por uma compreenso da cumplicidade do poder nas construes que as pessoas
fazem do mundo e de suas funes nele. Tal perspectiva amplia a noo de dominao para
alm dos locais institucionais, para o contexto de lutas simultneas entre diferentes classes,
grupos raciais e de gnero, e setores do capital. Explora as formas como tal competio se
engaja em diferentes vises, interesses e agendas em diversos locais sociais locais antes
vistos como fora do domnio da luta ideolgica (Kincheloe, Steinberg, 1997: 113).
1.2 Cultura, Educao e Poder
Clifford Geertz um antroplogo amplamente conhecido por seus estudos
etnogrficos sobre a cultura javanesa e por seus trabalhos sobre interpretao cultural (1997).
Sob tal perspectiva antropolgica, Geertz tem enfatizado a importncia do simblico do
sistema de significao7 na compreenso do conceito de cultura.
Tal sistema formado pela interao entre os indivduos e destes com a comunidade.
Assim, Geertz critica todo tipo de abordagem mecanicista que ignore as condies histricas
da organizao social, o envolvimento afetivo, o papel do indivduo e suas necessidades
bsicas. A cultura como um produto inacabado de smbolos no o resultado de mecanismos
cognitivos ou herana biolgica, mas uma resposta pblica ao relacionamento social, um
fenmeno social a ser apreendido. Tal perspectiva vai alm da postura essencialista, que trata
a cultura como uma entidade superorgnica na qual indivduos nascem e so moldados por
uma cultura pr-existente que continua a existir nos mesmos padres aps cada gerao; como
7 Por sistema de significao entenda-se o conjunto de relaes (arbitrrias) entre um grupo de variveis (como palavras, comportamentos, smbolos fsicos, etc.) e os significados a ela atrelados.
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uma negao desumana da vontade, da habilidade humana em criar e transformar a cultura;
como uma abstrao que, muitas vezes, tem conduzido negao de direitos humanos bsicos
de grupos minoritrios na luta por manterem suas heranas culturais.
A cultura, sob tal perspectiva crtica (no-essencialista), tem se tornado o meio atravs
do qual as prticas sociais so produzidas e distribudas; o capital poltico cuja fora, como
meio de circulao de informao, transforma os setores da economia globalizada. Giroux
(2000:26), estabelece alguns parmetros de associao entre a cultura e a poltica, amparado
pela problematizao dessa questo j desenvolvida pelos Estudos Culturais, mais
especificamente por Stuart Hall. Explica-nos que a cultura torna-se poltica no s porque
mobilizada atravs da mdia e outras formas institucionais, as quais trabalham para legitimar
certas formas de autoridade e relaes sociais, mas tambm por constituir-se como um
conjunto de prticas que representam e organizam o poder, uma estrutura construtora/
produtora de significados, um espao de luta por formatao de identidades especficas, por
mobilizao do desejo, por legitimao de formas precisas de democracia e justia social.
A postura crtica sobre a questo cultural exige uma reflexo sobre as possibilidades
de acesso e interveno nessa dinmica social, o que nos leva a considerar o sujeito destas
possibilidades, as questes de agenciamento crtico, as formas de letramento, atravs dos
quais as pessoas definem a si mesmas e seu relacionamento com o mundo social8. Assim, a
pedagogia crtica percebe a educao (formal e informal) como uma forma de poltica
cultural; uma fora motivadora participao crtica na vida cvica. Percebe a prpria
pedagogia como uma prtica cultural, poltica e moral crucial, que conecta agncia social,
poder e poltica a processos mais amplos da vida pblica democrtica, atravs de um
relacionamento funcional com suas formaes sociais e ideolgicas (Giroux, 1999; McLaren,
1997).
8 Ver seo 2.2.3.
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No contexto da preocupao especfica deste trabalho, a Pedagogia Crtica constitui-se
em um espao possvel para analisarmos aspectos de nossa poltica educacional, em especial
os Parmetros Curriculares Nacionais, como instrumentais que se constroem em sua
articulao com processos educacionais e polticos mais amplos. Tal articulao est centrada
na percepo de que o conhecimento no neutro, esttico, mas constitudo em processos de
significao que so atravessados pelo poder, que traduzem valorizaes culturais, polticas e
morais que direcionam nossas construes identitrias, nossas subjetividades em processos
constantes de legitimao/ marginalizao.
1.3 Currculo, tica e Identidade9
A questo do currculo como prtica social e cultural, sob uma abordagem pedaggica
crtica exige, de forma prioritria, pensar a viso de educao, de construo de identidades
sociais pretendidas tanto pelas micro quanto macro estruturas de poder em nossa sociedade. A
viso dominante hoje, no Brasil, o projeto educacional centrado na excelncia do mercado,
dos interesses econmicos e da competitividade, qual seja, um projeto tecnicista,
mercadolgico, neoliberal. A educao vista como um instrumental que visa completude
de tais metas; um sistema de significaes fechado que neutraliza o discurso, apaga sua
histria e fabrica o consenso.
Neste contexto, o discurso de programas e propostas educacionais visto como
despojado de intenes e efeitos de sentido. Pretende uma neutralidade aparente, que busca
legitimar as subjetividades hegemnicas e, conseqentemente, marginalizar outras.
9 Uma verso preliminar desta seo foi apresentada como comunicao individual, durante o VI Congresso Brasileiro de Lingstica Aplicada, em 2001, e, posteriormente, publicada, em forma de artigo, com o ttulo Currculo, tica e poltica: um jogo decisivo, em Anais do referido congresso.
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A diferena conceituada como caracterstica sociocultural que precisa ser conhecida
(no para ser reconhecida), a fim de ser amalgamada. No discurso liberal, conforme explicita
McLaren (1999), o universalismo que permite a diversidade mascara as normas etnocntricas:
a diversidade acompanhada de uma norma transparente da sociedade hospedeira, que cria
um falso consenso, que serve para conter a diferena cultural.
Portanto, urgente aprofundar a anlise deste modelo que muitas vezes mascara suas
propostas como se elas fossem amplamente democratizantes e participativas. Somente
conhecendo as razes de suas idias e suas derivaes poderemos oferecer uma alternativa que
o supere e permita construir uma verdadeira proposta democrtica (Bianchetti, 1996:114).
Neste cenrio, como nos diz Silva (1999: 8-9), O trabalho da educao (...) reduz-se
(...) produo dualista de dois tipos de sujeito. De um lado, a produo do sujeito otimizador
do mercado, do indivduo triunfante e predador da nova ordem mundial. De outro, a
produo da grande massa que vai sofrer o presente em desespero e contemplar sem
esperana o futuro nos empregos montonos e repetitivos das cadeias de fast-food ou nas filas
do desemprego.
Ns, educadoras e educadores, precisamos o quanto antes interrogar nossa histria de
vida profissional, nosso fazer pedaggico, nosso refletir sobre horizontes alm do
consenso, sobre a amplitude do campo da significao. A educao pode, sim, construir
outros sentidos e significados: de direitos sociais, justia social, cidadania e espao pblico. E
o currculo o espao central dessa construo possvel.
O currculo uma construo social. A produo de significados gera efeitos de
sentido nos grupos sociais, projeta nossas construes de sujeito, identidade cultural e social,
e nossa relao de alteridade com o Outro. As relaes sociais intrnsecas a este processo so
tambm relaes de poder. Um aspecto importante sobre o poder, como enfatiza Foucault
(1979) que o poder est disseminado; significao/conhecimento/saber so permeados pelo
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poder; no existe conhecimento sem poder. Portanto, o currculo, como campo de produo
de significados e sentidos, campo de luta, de hegemonia, marcado por relaes hierrquicas,
assimtricas. Os efeitos de sentido/poder cooperam para fixar posies de sujeito especficas e
produzir identidades sociais particulares.
H uma tendncia em se naturalizar as identidades. Entretanto, estas se definem pelo
processo de produo da diferena, a qual cultural, social e histrica. Precisamos de uma
reescrita da diferena como diferena-em-relao, seguida por tentativas de mudana
dramtica das condies materiais que permitem que as relaes de dominao prevaleam
sobre as relaes de igualdade e justia social. (McLaren, 1999: 134)
As identidades so produzidas no interior das prticas de significao onde os
significados so contestados, negociados e transformados; no so produtos acabados, mas
sempre em processo, constitudos no interior da representao.
O processo de construo identitria plural/hbrida passa pela questo da alteridade; no
mbito educacional, passa por discursos e prticas curriculares que sensibilizam alunos para a
articulao que reconhece a existncia do Outro como o espao para o auto-conhecimento,
para o dimensionamento da prpria identidade/diferena, para o questionamento de
mecanismos/estratgias de seu silenciamento. Reconhecer e respeitar a diferena , portanto,
o caminho para se questionar estratgias de silenciamento de tais pluralidades. neste sentido
que Bhabha (1998: 107)10 nos convida a questionar o modo de representao da alteridade11.
10 Antes de passar construo do discurso colonial, quero discutir brevemente o processo pelo qual as formas de alteridade racial/cultural/histrica foram marginalizadas nos textos tericos que se ocupam da articulao da diferena, ou da contradio, com o fim de, alega-se, revelar os limites do discurso representacional do Ocidente. Ao facilitar a passagem da obra do texto e sublinhar a construo arbitrria, diferencial e sistmica dos signos sociais e culturais, essas estratgias crticas desestabilizam a busca idealista por sentidos que so, quase sempre, intencionalistas e nacionalistas. Isto no est em questo. O que precisa ser questionado, entretanto, o modo de representao da alteridade. 11 Ver seo 2.2.3.
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Por tudo isso, o currculo ocupa posio de destaque nas reformas sociais e
educacionais. Como poltica curricular, o currculo expressa as vises e significados das
reformas dominantes, em busca de sua legitimao. Como prtica de significao em sala de
aula, o currculo ainda constri as identidades que lhe so convenientes, em uma moldura
hierarquizada por determinantes exclusores de raa, classe, gnero, etc.
sob essa perspectiva que Silva (op. cit.: 29) nos diz que no Currculo se joga um
jogo decisivo; ele nos questiona sobre a posio que temos ocupado em tal jogo e sobre o
quanto o resultado de tal jogo depende dessa deciso. Ou seja, somos chamados a assumir
posturas neste jogo de significaes: queremos nos engajar em uma construo social que
interroga interesses, ideologias e prticas sociais ou vamos, simplesmente, legitimar sua
manipulao?
A postura assumida diante de tais questionamentos pode fazer a diferena entre dois
caminhos. Um que deseja perceber o currculo como um percurso em aberto, construtor de
sentidos/significaes permeados por relaes sociais/de poder que podem, sim, desafiar as
foras hegemnicas que silenciam as identidades por determinantes exclusores e que tratam a
diferena como instrumento hierarquizador de bens sociais. O outro caminho aquele que
identifica o currculo com uma trajetria demarcada pela aparente neutralidade, que busca
legitimar o discurso e o fazer social do consenso.
No propomos tal desafio porque cremos que a percepo de tal rede intrincada de
significaes, permeada por saber/poder, pode resultar em um locus livre e autnomo para
seus sujeitos, pois nossa subjetividade social e histrica, j assujeitada ao poder, mas
acreditamos que precisamos desafiar a conquista de outros espaos de assujeitamento, que aos
nossos olhos (inconstantes e limitados) mostrem-se mais justos socialmente, ou seja,
legtimo e possvel buscar outros sentidos para a educao, ainda que sempre comprometidos
e permeados pelo poder.
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1.4 Multiculturalismo: Abordagens e Desafios para a Educao de Hoje
O multiculturalismo um dos temas que tem sido objeto de pesquisa da pedagogia
crtica. O termo polissmico, como nos dizem Kincheloe e Steinberg (1997: introduo),
significa tudo e, ao mesmo tempo, nada, devido s muitas agendas conflitantes a que tem
servido. Portanto, no representado por um paradigma terico nico e difere amplamente em
suas nfases; falar em multiculturalismo ou educao multicultural hoje implica em
especificar a significao que se pretende com tal nomeao.
O multiculturalismo, em sua atuao como alvo, conceito, atitude, estratgia ou valor,
emergiu como conseqncia das mudanas demogrficas em movimento nas sociedades
ocidentais. As naes ocidentais, dentre elas, Os Estados Unidos, Inglaterra, Canad,
Austrlia e Nova Zelndia tm experimentado processos de imigrao e movimentos de
conscincia de gnero e raa que as tem induzido a confrontar questes relativas s formas
como definem a si mesmas e outras instituies sociais.
Desenvolveu-se na dcada de setenta como um conceito educacional e movimento
social de auxlio articulao de interesses sociais e polticos de grupos culturais e tnicos
diversos. Vrias categorizaes de posies multiculturais tm sido desenvolvidas durante os
ltimos vinte anos. Mas as categorizaes propostas por McLaren (1994)12 e Kincheloe,
Steinberg (1997: 2)13 tm servido de parmetro para um entendimento mais amplo das vrias
perspectivas multiculturais, buscando discernir as vrias formas pelas quais a diferena
construda e posicionada na sociedade. Tais tipologias no tm por objetivo hierarquizar ou
rotular cada posio, mas se reconhecem como uma tentativa de esquema terico idealizador,
12 McLaren desenvolveu tais perspectivas, originalmente, no artigo White terror and oppositional agency: toward a critical multiculturalism, em 1994. As anlises defendidas por ele nesta seo so baseadas em seu livro Multiculturalismo crtico, publicado no Brasil em 1999, em segunda edio. 13 As we understand it, the current debate about the multicultural nature of Western societies encompasses a set of identifiable positions. Influenced by Peter McLarens (1994) categorization of multicultutural positions, we lay out five types of multiculturalism.
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j que as caractersticas de cada posio tendem a se misturar umas com as outras dentro do
espao social, no devendo ser entendidas de forma monoltica.
1.4.1 Multiculturalismo Conservador
Para Kincheloe e Steinberg (1997: 3), tal posio pode ser considerada uma forma de
neo-colonialismo, ou seja, um retorno da tradio colonialista de supremacia do homem
branco. As expresses de inferioridade dos no-brancos ou pobres no so abertas, diretas,
mas camufladas sob a gide da ausncia de valores familiares e excelncia acadmica (por
bagagem cultural/intelectual inferior). A caracterstica central desta posio o esforo em
assimilar qualquer indivduo passvel de assimilao aos padres da classe mdia, branca.
As conseqncias de tal viso no mbito educacional originam-se no modelo de
privao/destituio defendido, segundo o qual os problemas oriundos do processo
educacional esto centrados no aluno, o que nos move para longe de uma posio de
conscincia da realidade de pobreza, sexismo e racismo e seus efeitos sobre o processo
educacional. As diferenas sociais, relacionadas linguagem, cultura, costumes, classe, etc.,
segundo tais tericos, so divisrias e a nica forma de construir uma sociedade funcional
atravs do consenso, da construo de uma cultura comum. Tal habilidade na constituio
do contedo de tal cultura demonstra a posio de poder que lhes acessada pelas instituies
e grupos sociais, e o espao para desenvolvimento de seu projeto mais amplo de redefinio
de democracia, igualdade e bem comum. Michael Apple (Apud Kincheloe, Steinberg, 1997:
5) nos adverte sobre a importncia da redefinio do conceito de senso comum como um dos
projetos de reeducao pblica mais amplos do sculo vinte. O sucesso alcanado baseado
na habilidade de seus defensores em desenvolver o argumento da cultura comum como uma
forma de senso comum (traduo nossa). Esse projeto um esforo internacional para re-
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escrever a histria e recriar a memria pblica, a fim de justificar os programas de ao
educacional, social e poltica que perpetuam a crescente desigualdade nas sociedades
ocidentais.
Ainda em sua perspectiva de ajuste social, os conservadores argumentam que a
assimilao abre portas para a mobilidade econmico-social (com o conseqente
comprometimento da herana cultural dos grupos marginalizados envolvidos). Se tal prtica
no se concretiza na realidade social, o argumento para o fracasso a bagagem cultural de
tais grupos. Nesse contexto, a pedagogia crtica procura tornar visvel as concepes de
mundo conservadoras e a sua compreenso do eu e do outro nos diversos espaos sociais
(escola, televiso, cinema, vdeo games, msica popular, etc.) de produo cultural; revela a
dinmica pedaggico-ideolgica, inscrita de forma to sub-reptcia, em nossas representaes
e significaes.
McLaren (1999: 111-119) centra sua discusso sobre o multiculturalismo conservador
nos motivos pelos quais tal perspectiva deve ser rejeitada, alguns dos quais detalharemos a
seguir. O primeiro, j explicitado, a busca por uma cultura comum. Como observa Jan
Nederveen Pieterse (Apud McLaren, 1999: 112), a Amrica do Norte tem sido
historicamente o pas do homem branco, no qual os padres institucionais e ideolgicos da
supremacia do branco sobre o negro e do homem sobre a mulher suplementam-se e reforam-
se. Tal projeto anula o conceito de fronteira atravs da deslegitimao das lnguas
estrangeiras e dialetos tnicos e regionais (op. cit.: 113). O que significa uma luta contra o
ingls no-oficial e a educao bilnge.
O conceito de fronteira refere-se desterritorializao da significao, onde o
sujeito adquire uma nova forma de agncia fora do discurso cartesiano euro-americano. A
cultura de fronteira ocorre no espao de traduo cultural, ou seja, o espao de articulao,
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resultado da coliso de signos. Tais colises podem criar significaes hbridas, uma
conscincia mestia, como nos fala Gloria Anzalda (Apud McLaren, 1999: 101-102):
A nova mestia capacita-se desenvolvendo uma tolerncia para com as contradies,
para com a ambigidade. Ela aprende a ser uma indiana em uma cultura mexicana, ou uma
mexicana do ponto de vista anglo; aprende a fazer malabarismos com as culturas. Ela tem
uma personalidade plural; opera de modo pluralstico nada descartado, o bom, o ruim, o
feio, nada rejeitado ou abandonado. Ela no somente sustenta as contradies, mas
transforma a ambivalncia em algo mais (...). O trabalho de conscincia mestia romper
com a dualidade sujeito-objeto (...) e mostrar (...) como a dualidade superada (...). A
resposta para o problema entre a raa branca e as de cor, entre homens e mulheres encontra-se
no fechamento da brecha que se origina no mago de nossas vidas, nossas culturas, nossas
linguagens, nossos pensamentos (traduo nossa)14.
O segundo motivo pelo qual a perspectiva conservadora deve ser rejeitada, conforme
McLaren, por recusar-se a tratar a branquidade como uma forma de etnicidade,
transformando-se, assim, em uma norma invisvel, legitimadora, a partir da qual construtos
culturais e valores democrticos so avaliados. A branquidade legitima a ideologia de
assimilao defendida pelos conservadores, assimilao essa camuflada pelo termo
diversidade. Assim, para ser integrado cultura dominante o indivduo precisa assumir uma
viso consensual de cultura, precisa desnudar-se, desracializar-se e despir-se de sua prpria
cultura, ou seja, precisa aceitar as normas patriarcais essencialmente euro-norte-americanas
do pas hospedeiro.
Terceiro, definem padres de desempenho acadmico que esto previstos no capital
cultural da classe mdia anglo-americana, para toda a juventude. Esses padres tornam-se
14 Ver o conceito de fronteira sob a perspectiva do hibridismo, de Bhabha, na seo 2.2.3.
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instrumentos raciais e classistas de justificao da opresso dos marginalizados. Assim, no
h questionamento do conhecimento elitizado, dos discursos dos regimes dominantes, das
prticas culturais e sociais opressoras. No contexto do conhecimento elitizado, podemos
incluir o prestgio concedido s lnguas ocidentais, consideradas as nicas sofisticadas o
suficiente para captarem a verdade como essncia, como se existisse uma verdade imanente
que s precisasse ser revelada. Mas esta idia contm um erro epistemolgico ao elevar a
lngua a um status de pronunciadora da verdade que a mantm isenta de seu
posicionamento ou embasamento poltico (McLaren, 1999: 118). Tal artifcio permite aos
conservadores expressarem sua prpria verdade, expandindo suas formas de dominao.
1.4.2 Multiculturalismo Liberal
A verso liberal de multiculturalismo acredita que os indivduos de raas, classes e
gneros diversos partilham de uma igualdade natural e uma humanidade comum. A razo para
a desigualdade de posies existentes entre esses grupos a ausncia de oportunidades sociais
e educacionais para competir com eqidade na economia. A dinmica ideolgica liberal
baseada em um processo universal e neutro de construo da conscincia, que emana da
crena modernista cartesiana de que a construo social pode ser abstrada da distribuio de
relaes assimtricas de poder, assim subestima as tentativas de entender, no mbito social e
educacional, as formas como raa, classe e gnero mediam e estruturam a conscincia, a
identidade e a experincia dos indivduos.
Tal perspectiva descontextualizada insiste em no reconhecer as dimenses
epistemolgicas e sociais de todo processo educacional, entretanto a tentativa de separar
educao e poltica no to simples. Como um professor escolhe um livro didtico? Como
decide que conhecimento ensinar? Como auxilia seus alunos a construir suas identidades,
sabendo-se que esse processo exige incorporao e rejeio de uma multiplicidade de
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construes ideolgicas competitivas? Estas e outras so, obviamente, decises polticas, que
precisam ser tomadas diariamente no contexto de uma sala de aula.
E ainda, como separar valores morais e ao poltica? O compromisso moral com a
justia no deveria ser a base da prtica poltica? Como nos dizem Kincheloe e Steinberg
(1997: 13): O multiculturalismo liberal, ao engajar-se nessa pseudo-despolitizao, abre
espao para ser cooptado por objetivos hegemnicos. A igualdade pretendida pelos liberais
permite que educadores e produtores culturais falem em diversidade, mas atrelando-a
normatizao eurocntrica. Assim, tanto quanto no multiculturalismo conservador, o currculo
multicultural liberal tambm assimilacionista.
McLaren (1999) chama a ateno para o aspecto de mobilidade social desenvolvido
pela ideologia liberal. O propsito atrelar a igualdade s oportunidades sociais e
educacionais, utilizadas como garantidoras de eqidade competitiva no mercado capitalista.
Se tais oportunidades no existirem, os tericos liberais acreditam que as restries
econmicas e socioculturais podem ser modificadas e reformadas, a fim de se alcanar uma
igualdade relativa. Para entendermos a dinmica que consagra tal pensamento, precisamos
voltar nosso olhar para algumas consideraes sobre a construo da desigualdade no
pensamento neoliberal.
Na estrutura neoliberal o Estado pouco deve intervir. A livre concorrncia mercantil
deve resolver os problemas econmicos e sociais relevantes: alocao dos recursos,
distribuio de rendimentos, condies de trabalho, currculos das escolas e universidades,
taxa de natalidade, qualidade do meio ambiente, etc. Resta apenas ao Estado zelar pelas boas
condies de funcionamento do mercado, facilitando a vida dos empreendedores privados.
Como bem exemplifica Malaguti (2000: 61):
Seja por meio da construo de uma infra-estrutura de transportes que diminua o
custo de deslocamento das mercadorias, de hospitais pblicos que reduzam as ausncias ao
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emprego, da criao de uma polcia e de um exrcito que garantam a propriedade privada, de
tribunais que zelem pelo cumprimento dos contratos, de escolas fundamentais que instruam
sem formar a fora de trabalho requerida pelas empresas, etc. Sempre e quando a isso se
ativer, a interveno do Estado desejvel e benfica. Caso contrrio, dizem os liberais, ela
deve ser considerada indevida, excessiva e perigosa.
Alm de exigir uma atuao seletiva do Estado, o neoliberalismo reconhece o carter
desigual da sociedade de mercado. Concorda que a livre iniciativa possa e deva conviver com
algum grau de desigualdade, como reconhece claramente Hayek (Apud Malaguti, 2000: 63):
em um sistema de livre iniciativa as oportunidades no so iguais, visto que tal sistema
baseia-se na propriedade privada e (...) no direito herana, com as diferenas de
oportunidades que lhes so inerentes. O mercado pode gerar desigualdades, mas nunca por
meio de mecanismos discriminatrios. (De fato, como aceitar uma rejeitando o outro?) Mas os
liberais, no podendo negar a desigualdade inerente ao sistema de livre mercado, tentam
naturaliz-la. Assim, no precisam assumir a responsabilidade pelas desigualdades existentes,
pois essas so inerentes/naturais ao sistema mercantil, nenhum esforo humano consciente
poder elimin-las.
Dito de uma outra forma, o mercado no pode evitar que existam miserveis,
excludos ou marginais, o que poder fazer gerenciar a misria. Diante desse quadro Malaguti
(2000: 66) expe o labirinto de conformidade e assujeitamento imposto por tal poltica
econmica: (...) resta aos homens apenas uma passiva resignao. O iderio liberal dissolve,
assim, as distines entre a histria (como construo humana) e o destino (como imposio
inquestionvel). Impedido de construir seu futuro, o homem liberal aceita, conforma-se e
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resigna-se. Defronta-se, pois, com o fim da histria15.
1.4.3 Multiculturalismo Pluralista
A perspectiva pluralista tem-se mostrado uma das mais populares dentre as vrias
abordagens analisadas. Mantm muitos pontos de contato com a perspectiva liberal, dentre
eles a postura de descontextualizao das questes relativas raa, classe e gnero e o no
questionamento da norma eurocntrica; porm difere ao centrar sua preocupao na
diferena, enquanto os liberais a centram na igualdade.
O tratamento concedido diferena pelos pluralistas tem como alvo a celebrao da
diversidade humana e a igualdade de oportunidades. No contexto educacional o currculo
pluralista busca desenvolver nos alunos comportamento de aceitao do Outro, em busca de
eliminao de conflitos, preconceitos e o conhecimento de valores, crenas, padres de
comportamento que caracterizam os diversos grupos. O letramento tem por objetivo habilitar
os indivduos da cultura dominante a atuar em subculturas e em situaes culturalmente
diferentes; e os oriundos de culturas subordinadas a aprender a operar na cultura dominante,
habilidade essencial para obter oportunidades sociais e educacionais. Neste ponto, essa
perspectiva difere da liberal, pois nos grupos subordinados culturalmente a educao
multicultural procura desenvolver o orgulho por sua herana e diferena culturais. O que tal
projeto esquece que
um multiculturalismo que opera nestas fronteiras pluralistas sempre servir ao status
quo, como uma construo no ameaadora, que consome a culinria, arte, arquitetura e moda
das vrias subculturas. De vrias formas o multiculturalismo pluralista castra a diferena,
15 Ver discusso sobre a posio do Estado Neoliberal na seo 3.5.
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transformando-a em uma diversidade segura (Kincheloe, Steinberg, 1997: 18-traduo
nossa).
O equvoco dessa postura parece estar na promessa de uma emancipao que no pode
efetivar, j que confunde afirmao psicolgica com empoderamento poltico; questes de
diversidade cultural so reduzidas temas de enriquecimento cultural; os contextos sociais e
histricos em que as identidades raciais so construdas so evitados; as desigualdades
socioeconmicas e polticas tornam-se nada mais que um produto de divergncia.
Assim, o currculo multicultural pluralista tem dificuldade em escapar das fronteiras
discursivas de mobilidade econmica, valores familiares, respeito diversidade e construo
da cidadania. A temtica da Pluralidade Cultural contida nos Parmetros Curriculares
Nacionais (1998) um exemplo deste olhar sobre a educao multicultural. Em sua
introduo, o texto inicia explicitando seu objetivo, como segue:
... diz respeito ao conhecimento e valorizao de caractersticas tnicas e culturais
dos diferentes grupos sociais que convivem no territrio nacional, s desigualdades
socioeconmicas e crtica s relaes sociais discriminatrias e excludentes que permeiam a
sociedade brasileira, oferecendo ao aluno a possibilidade de conhecer o Brasil como um pas
complexo, multifacetado e algumas vezes paradoxal.
Entretanto, o documento no inclui em seus objetivos uma anlise crtica das relaes
de opresso e dominao que sustentam tais desigualdades. Cameron McCarthy (Apud
Torres, 2001: 227), ao analisar a educao multicultural, enfatiza alguns modelos que tm
caracterizado tal pedagogia e, dentre eles, desejamos destacar dois que se pautam na
compreenso e competncia culturais. Tais modelos apiam-se em uma concepo de
relativismo cultural, traduzido em um discurso de reciprocidade e consenso, bem tpicos da
perspectiva multicultural pluralista descrita acima. A idia desenvolver estratgias
instrucionais/curriculares que promovam atitudes e interao cross-cultural que reduzam o
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antagonismo diante da diferena, busquem a harmonia para com a diversidade cultural, quer
preparando grupos minoritrios para a negociao cultural/social com a sociedade dominante,
quer desenvolvendo nos grupos majoritrios a aceitao de tal diversidade.
Os modelos acima mencionados do uma perspectiva de como o multiculturalismo
tem sido tratado no Brasil. Tais modelos refletem a prpria democracia liberal em que
vivemos: uma democracia de consenso, de neutralidade, onde as prticas antidemocrticas
passam sem questionamento, mascaradora das cises de classe. Ainda, utiliza-se do princpio
de aceitao da diferena para difundir uma mentalidade de convivncia pacfica, associando
desigualdades/diferenas, com o objetivo de velar qualquer questionamento por uma
sociedade menos injusta e desigual. No contexto educacional, tais modelos so aplicados ao
currculo com o objetivo de esconder as contradies do projeto neoliberal de sociedade, do
capitalismo contemporneo.
Malaguti (2000: 74), ao analisar a viabilidade de uma democracia representativa nesse
contexto, utiliza-se de seu carter intrinsecamente corporativo16. Este representa uma
multiplicidade de interesses, organizados em corpos institucionais dos mais variados tipos.
Segundo ele:
Nem a democracia, nem os tributos maiores da cidadania, podem sobreviver em um
cenrio social homogeneizado e no qual no existam mecanismos de representao ativa dos
distintos interesses de classes e grupos sociais. A impessoalidade do mercado no oferece
espao de discusso ou de reivindicao para interesses pessoais ou grupais. Todos so
submetidos a uma mesma lgica. As vontades particulares dissolvem-se. Parece claro, ento,
que entre o (neo)liberalismo e a democracia representativa existe uma relao de
16 Ver anlise mais detalhada sobre este tpico na seo 3.6.
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incompatibilidade e de antagonismo.
1.4.4 Multiculturalismo Essencialista de Esquerda
O multiculturalismo essencialista de esquerda no a nica forma de poltica cultural
essencialista. Seus defensores conectam a diferena a um passado histrico de autenticidade
cultural onde a essncia de uma identidade em particular foi desenvolvida uma essncia que
transcende as foras da histria, contexto social e poder. A busca essencialista por
autenticidade na identidade e histria tem conduzido a um privilgio da identidade como base
para a autoridade epistemolgica e poltica. Em sua valorizao do poder da autenticidade, os
essencialistas, com freqncia, assumem que somente as pessoas autenticamente oprimidas
possuem agncia moral, ou seja, tm autoridade de fazer crticas especficas por estarem em
uma posio de agenciamento privilegiado. Neste contexto, os essencialistas tm uma
tendncia de focar a ateno em uma forma de opresso, em detrimento de todas as outras.
Tal postura enfraquece a possibilidade de articulao de uma viso democrtica que responda
aos anseios e necessidades mais amplas de indivduos e grupos. Alm disso, esto mais
preocupados com a auto-afirmao, do que com o esforo em construir, em aliana com
outros grupos identitrios, coalises mais amplas em prol de uma democracia econmica,
cultural e poltica inclusiva.
McLaren(1999: 120-122) utiliza a denominao multiculturalismo liberal de
esquerda para referir-se s perspectivas pluralista e essencialista de esquerda, citadas por
Kincheloe e Steinberg (1997: 15-23). Ele centra sua anlise em dois aspectos. O primeiro o
carter essencializador concedido s diferenas culturais por seus defensores. Estes ignoram a
situacionalidade histrica e cultural da diferena, que tratada como essncia que existe
independentemente de histria, cultura ou poder. Assim, desconsidera a cultura dominante e
privilegia um conjunto no questionado de manifestaes culturais de grupos oprimidos. O
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segundo aspecto a reduo do poltico experincia pessoal, situa o significado atravs da
idia de experincia autntica, na falsa crena de que a poltica de localizao de uma
pessoa, de alguma forma, garante previamente uma postura politicamente correta, (...) a
teoria dispensada em favor da identidade pessoal e cultural prprias de uma pessoa
(McLaren, 1999).
1.4.5 Multiculturalismo Crtico
Para Kincheloe e Steinberg (1997: 23-26), classe a preocupao central do
multiculturalismo crtico, pois interage com questes de raa, gnero e outros eixos do poder.
Poder que tem operado para legitimar as categorias sociais em um processo que envolve a
dinmica pela qual as inscries ideolgicas so impressas nas subjetividades, as formas
como o desejo mobilizado para resultados hegemnicos, os meios pelos quais as foras
discursivas formatam a conscincia e o comportamento.
O multiculturalismo crtico tambm visualiza como os indivduos produzem e
reproduzem significados, em contextos constantemente formatados e re-formatados pelo
poder. Tal reproduo cultural envolve a forma como o poder (...) constri a experincia
coletiva em prol dos interesses da cultura dominante, do patriarcado, do elitismo classista e de
outras foras dominantes (Kincheloe, Steinberg, 1997-traduo nossa). Neste contexto, as
escolas com freqncia trabalham em cumplicidade com a cultura dominante, pois seus
professores operam como verdadeiros guardies, transmitindo os valores dominantes e
protegendo a cultura comum.
Quanto questo da diversidade, os multiculturalistas crticos buscam uma concepo
de diversidade que compreenda o poder da diferena, conceitualizada em uma preocupao
mais ampla de justia social. Para Kincheloe, essa a razo pela qual questes de classe so
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to importantes para os crticos, pois um multiculturalismo dedicado democracia que seja
incapaz de conduzir a transformaes sociais, polticas e educacionais, certamente no
reconhece os aspectos no-esttico e seletivo da hegemonia: espaos de construo de
resistncia e transformao.
Segundo McLaren (1999:122-135), o multiculturalismo crtico reconhece a
diversidade cultural, porm deseja dar um passo adiante do discurso ou da essncia, deseja
intervir no conflito social para fornecer acesso igualitrio aos recursos sociais, a fim de
transformar as relaes de poder dominantes (sociais, culturais ou institucionais) onde os
significados so gerados; procura mostrar como as polticas de significao operam na
experincia de vida das pessoas; no contexto pedaggico, v a educao e o currculo
(corporificao do conhecimento) como campos conflituosos de produo de cultura,
permeados por relaes assimtricas de poder que formatam as conscincias, as
subjetividades (pensamento e comportamento), o desejo e o prazer em prol de grupos elitistas;
procura mostrar os processos educacionais ocultos que privilegiam os j abastados e solapam
os esforos dos grupos subordinados e marginalizados.
Os parmetros que separam os diferentes grupos sociais e segregam identidades por
determinantes de classe, raa, gnero, etc. constituem a origem e o resultado das relaes de
poder. O multiculturalismo crtico procura compreender como tais categorias so
representadas nas vrias esferas sociais, conectando-as com seus efeitos materiais, qual seja,
compreendendo o poder da diferena quando conceitualizada a partir de uma preocupao
mais ampla de justia social. Como as sociedades tm lidado com a diferena? A que
propsito tal diferena tem servido?
Quando a educao Ocidental vista sob tal perspectiva crtica, a crena ingnua,
como nos alertam Kincheloe e Steinberg (1997), de que nossa educao fornece mobilidade
socioeconmica consistente para estudantes da classe trabalhadora, negros, ou oriundos de
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quaisquer outros grupos segregados no se sustenta. E ainda a noo de que a educao
fornece um conjunto de habilidades e conhecimentos politicamente neutros tambm se
diluem. Portanto, a avaliao realista e crtica das foras em conflito nas macro e
microrrelaes de poder nas escolas e entre elas, em consonncia com as relaes de
explorao e dominao que constituem o contexto social no qual a educao opera(Apple,
1999:162) exige um repensar do propsito educacional. Um esforo para tornar o
pedaggico, poltico17; tornar o processo educacional uma luta do educando por justia social.
Educadores/educandos precisam, ento, passar por um processo transformador, de
formas diferenciadas de re-leitura do mundo, de resistncia opresso, de vises de
comunidades democrticas progressistas. Tal processo visa ao desenvolvimento de uma certa
criticidade que o mova a reconhecer as foras que formatam sua identidade, os limites de sua
conscincia reflexiva, e as estratgias opressivas implcitas na forma como conhecimento,
valores e identidades so construdos.
1.4.6 Multiculturalismo Crtico e a Construo de Identidade
O multiculturalismo crtico reconhece a diversidade cultural, ...compreende a
representao de raa, classe e gnero como o resultado de lutas sociais mais amplas sobre
signos e significaes (...), mas enfatiza a tarefa central de transformar as relaes sociais,
culturais e institucionais nas quais os significados so gerados (McLaren, 1999). Neste
aspecto, precisamos perceber como o processo de constituio de identidades est atrelado aos
arranjos sociais, institucionais e polticos que mantm a sociedade atual.
As relaes sociais so o instrumental de promoo e sustentao das relaes
assimtricas de poder e de construo de nossas identidades. Em um contexto de convivncia
17 Ver discusso mais detalhada sobre este tpico na seo 3.6.
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com diferentes culturas raciais, tnicas e nacionais a diferena , sim, discursivamente
produzida, mas tambm sempre uma relao: no se pode ser diferente de forma absoluta,
(...) fora do processo discursivo de significao. (...) Na medida em que uma relao social,
o processo de significao que produz a diferena se d em conexo com relaes de poder
(Silva, T.T, 2000:87).
No possvel, portanto, pensar as identidades hbridas/plurais sem pensar nos
processos de discriminao que segregam tais identidades por determinantes de classe, raa,
gnero, etc, da a necessidade de interao entre a perspectiva discursiva e a crtica mais
ampla que questiona tais processos.
Qual o papel da teorizao crtica diante destes desafios? A teorizao crtica percebe
a educao/escola como campo conflituoso de produo/reproduo cultural e social, ou seja,
o currculo ocupa um papel central nesse processo, atravs dele que a cultura/ideologia
dominante se impe, identidades se constituem, as relaes sociais de poder se expressam. De
forma mais especfica, o que a escola faz estabelecer as condies para que alguns
indivduos e grupos definam os termos segundo os quais todos os demais vivero o processo
de participar na construo de suas prprias identidades e subjetividades, aceitando-o ou
resistindo (Giroux & McLaren, 1994:143).
A construo de identidades plurais/hbridas, no contexto escolar, passa por discursos
e prticas curriculares que sensibilizem alunos para a articulao identidade alteridade, pois
desconhecendo a experincia do Outro impossvel dimensionar a identidade prpria
(Bhabha, 1998). Reconhecer e respeitar a diferena , portanto, o caminho para se questionar
estratgias de silenciamento de tais pluralidades.
O multiculturalismo crtico ao propor a interveno neste conflito social atravs do
questionamento e desafio s estruturas e relaes injustas de domnio e poder, que mascaram
a desigualdade atravs de um discurso, muitas vezes, liberal que busca to somente legitimar
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um processo de homogeneizao cultural, pretende tambm buscar propostas alternativas de
hibridizao cultural nos currculos, pois, como nos diz Moraes, S. (2000:215): ...a escola
tem sido convidada a aceitar o pluralismo e a autenticidade de outras vozes e outros mundos;
questionar, como trabalhadores culturais(Giroux, 1999: 280-281) da educao, o que a
escola tem feito com esse convite vislumbrar os sentidos em jogo no processo scio-
histrico e ideolgico de sua aplicabilidade.
A idia de uma formao docente multicultural no supe to somente a aceitao de
manifestaes culturais, mas reconhece a multiplicidade de lnguas e cdigos dentro de uma
nica lngua; um dilogo consigo mesmo e com o Outro que contesta e rompe com a
estrutura narrativa de textos sociais dominantes (McLaren, 2000); um espao para a
traduo cultural. Tal processo implica em uma reviso ampla do currculo pedaggico,
incluindo como elementos de anlise planos e propostas (currculo formal), prticas sociais e
pedaggicas (currculo em ao), normas e valores no explicitados que governam as relaes
que se estabelecem em sala de aula (currculo oculto) e os dados efetivamente eliminados dos
planos e