multiculturalismo[1].pdf

download multiculturalismo[1].pdf

of 151

Transcript of multiculturalismo[1].pdf

  • KATIA COSTA DOS SANTOS

    CONSTRUO MULTICULTURAL:

    REFLEXES SOBRE POLTICAS ALTERNATIVAS para o ensino de lngua estrangeira

    Tese apresentada ao Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Doutor em Letras

    Orientador: Prof. Dr. Lynn Mario Trindade Menezes de Souza

    SO PAULO 2002

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo, em especial, ao meu orientador, Prof. Dr. Lynn Mario T. M. de Souza, por

    sua disposio solidria, serenidade, motivao e orientaes to pertinentes durante todo esse

    processo.

    Ao Curso de Ps-Graduao em Lngua Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte-Americana

    da Universidade de So Paulo, professores, funcionrios e colegas, pelo incentivo e apoio.

    Ao Prof. Dr. Peter McLaren, pela oportunidade de participar de seus cursos e ampliar

    conhecimentos que se mostraram relevantes durante este trabalho.

    Profa. Dra. Marina MacRae, por ter acreditado em meu projeto inicial.

    A minha famlia, pelo apoio sempre presente, e minha eterna gratido ao meu Deus.

  • SUMRIO

    RESUMO..................................................................................................................................... I

    ABSTRACT .............................................................................................................................. II

    INTRODUO.......................................................................................................................... 1

    1. A PEDAGOGIA CRTICA E O MULTICULTURALISMO.......................................7

    1.1 Pedagogia Crtica, Ideologia e Poder............................................................................. 8

    1.2 Cultura Educao e Poder............................................................................................ 17

    1.3 Currculo, tica e Identidade ....................................................................................... 19

    1.4 Multiculturalismo: Abordagens e Desafios para a Educao de Hoje ....................... 23

    1.4.1 Multiculturalismo Conservador....................................................................... 24

    1.4.2 Multiculturalismo Liberal................................................................................ 27

    1.4.3 Multiculturalismo Pluralista ............................................................................ 30

    1.4.4 Multiculturalismo Essencialista de Esquerda ................................................. 33

    1.4.5 Multiculturalismo Crtico ................................................................................ 34

    1.4.6 Multiculturalismo Crtico e a Construo de Identidade................................ 36

    2. A PEDAGOGIA CRTICA E O PS-MODERNO .................................................... 40

    2.1 Polticas Moderna/Ps-Moderna ................................................................................. 41

    2.2 A Crtica Ps-Moderna ................................................................................................ 46

    2.2.1 A Crise da Totalidade ...................................................................................... 46

    2.2.2 A Cultura e o Outro ......................................................................................... 48

    2.2.3 Linguagem, Representao e Agncia ............................................................ 50

    2.2.4 Agncia Docente/Discente sob uma Perspectiva Freireana ........................... 57

    2.2.5 Diferena e voz ................................................................................................ 60

    2.3 A Pedagogia Crtica e algumas de suas Problematizaes ......................................... 63

    3 A PEDAGOGIA CRTICA E O CURRCULO ......................................................... 69

    3.1 Perfil da Teorizao Curricular nos Estados Unidos .................................................. 70

  • 3.2 A Teorizao Curricular no Brasil Origens.............................................................. 77

    3.3 Das Origens Dcada de 70: a Estruturao do Campo .............................................86

    3.4 A Dcada de 80: Novos Desafios ............................................................................ 91

    3.5 A Dcada de 90 e o Momento Atual: Neoliberalismo e Polticas Educacionais ....... 98

    3.6 Os Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e a Pluralidade Cultural ................ 106

    4 CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 128

    5 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 136

  • RESUMO

    Esta pesquisa argumentativo-narrativa prope-se a investigar a construo do

    multiculturalismo como conceito no Brasil, especialmente no contexto das propostas de

    diversidade, como tema contido nas propostas de currculo nacional (Parmetros Curriculares

    Nacionais), no contexto do ensino de Lngua Estrangeira.

    O ensino de lnguas no Brasil permeado por uma pedagogia tecnicista, em que o conceito

    de diversidade vinculado multiplicidade de experincias culturais, dissociado do conflito

    cultural, garantidor de tolerncia e consenso. A Pedagogia Crtica, ao propor uma abordagem

    dialtica de cultura, como fenmeno social em processo, e a educao/o currculo como uma

    forma de poltica cultural, possibilita uma crtica do currculo, da escola, e das propostas

    educacionais brasileiras, e reconhece tais espaos como interceptados por interesses

    particulares, posies macropolticas especficas e narrativas mestras identificadas com um

    discurso neoliberal, que formatam nossas subjetividades e as prticas culturais que nos

    governam. Esta pesquisa, defendendo uma abordagem multicultural crtica, investiga um

    conceito de diversidade que reconhea o poder da diferena, que questione e desafie as

    estruturas de poder dominantes, que mascaram a desigualdade. Em especial esta pesquisa

    examina propostas alternativas de hibridizao cultural no currculo, sob a perspectiva de uma

    pedagogia reflexiva, crtica e transformadora.

  • ABSTRACT

    This argumentative-narrative research investigates the multicultural construction in Brazil,

    especially the diversity proposal contained in the Parmetros Curiculares Nacionais, in the

    context of Foreign Language teaching. Language teaching in Brazil is also permeated by a

    technicist pedagogy, in which the concept of diversity is connected to the multiplicity of

    cultural experiences, dissociated of the cultural conflict that guarantees tolerance and consensus.

    The Critical Pedagogy, when proposing a dialectic approach of culture, as a social phenomenon

    in process, and considering education/curriculum as a form of cultural politics, enables a

    criticism of the curriculum, of school, and of the Brazilian educational proposals that recognizes

    such spaces as intercepted. They are intercepted by particular interests, specific macropolitical

    positions, master narratives identified with a neoliberal discourse, which format our

    subjectivities and the cultural practices that guide us. This research, in defending a critical

    multicultural approach, investigates a diversity conception that recognizes the power of

    difference, which interrogate and challenge the domain structures and power relations that

    disguise inequality. Especially, this research examines alternative proposals of cultural hibridity

    in the curriculum, from the perspective of a reflexive, critical and transformative pedagogy.

  • O estudo interpretativo da cultura representa um

    esforo para aceitar a diversidade entre as vrias maneiras

    que seres humanos tm de construir suas vidas no processo de

    viv-las. [...] Ver-nos como os outros nos vem pode ser

    bastante esclarecedor. Acreditar que outros possuem a mesma

    natureza que possumos o mnimo que se espera de uma pessoa

    decente. A largueza de esprito, no entanto, sem a qual a objetividade

    nada mais que autocongratulao e a tolerncia apenas hipocrisia, surge

    atravs de uma conquista muito mais difcil: a de ver-nos, entre outros,

    como apenas mais um exemplo da forma que a vida humana adotou em

    um determinado lugar, um caso entre casos, um mundo entre mundos.

    Geertz, C.

  • INTRODUO

    Em nossa experincia como professores de Lngua Estrangeira (LE), tanto no ensino

    mdio quanto no ensino superior, temos nos frustrado com a forma como o ensino de Lnguas

    tem se desenvolvido no Brasil. Envolto em uma pedagogia tecnicista, cujos saberes so

    meramente reproduzidos; uma preocupao com a avaliao e instrumentos que possam

    mensurar com preciso o quanto as habilidades (impostas pelo mercado de trabalho) foram

    aprendidas, mais do que com uma reflexo sobre o contexto do ensino e uma definio

    adequada de objetivo. Neste contexto, a figura do professor limita-se a de um tcnico que

    precisa executar tarefas (pedaggicas?) pr-determinadas, em tempo e contedo, oriundas de

    um currculo construdo por outros, descontextualizado, enfim, um ensino que se preocupa

    com o que/como fazer, em detrimento do por que fazer. E os alunos, envolvidos nesta

    estrutura, convivem com a assimilao dos saberes que lhe so impostos, sem qualquer

    reflexo sobre a relao entre estes e as relaes sociais, culturais e institucionais que

    permeiam suas posies de sujeito no mundo. Diante desse quadro, temos nos perguntado:

    que tipo de formao acadmica temos construdo com nossos alunos?

    No campo especfico do ensino de LE, em cursos de Licenciatura, temos vivenciado

    essa realidade de forma mais dolorosa porque so estes nossos alunos que estaro em breve no

    mercado, atuando como produto (reprodutor) dessa estrutura que, em ltima anlise, mais

    coopera para a alienao do que para a conscincia reflexiva e a construo de um espao

    pblico que seja social, econmica, e culturalmente mais justo.

    Diante da condio multicultural em que nos situamos hoje, a questo da

    pluralidade/diversidade cultural tem ocupado um espao de destaque cada vez maior na mdia,

    nos movimentos sociais de vrias origens, nos espaos acadmicos e em nossas polticas

  • 2

    educacionais. A Reunio da ANPED, de 1999, por exemplo, teve como tema a

    diversidade/desigualdade, e apontou-a como principal desafio para a educao neste novo

    milnio. Neste contexto, os Parmetros Curriculares Nacionais, sugeridos em 1998, em seu

    tema transversal de Pluralidade Cultural tem visado a reconhecer e valorizar a diversidade

    cultural como instrumentais que desafiem os preconceitos contra a discriminao e a

    excluso, ainda que sob uma perspectiva que percebe a diversidade de forma pouco

    problemtica, em que os mecanismos produtores de opresso e discriminao no so

    questionados. Na experincia do ensino acadmico, no contato com professores de ensino

    mdio, ou mesmo nos eventos em que partilhamos pesquisas e experincias pedaggicas

    temos percebido o quanto o tema da Pluralidade Cultural ainda se mostra equivocado, seno,

    obscuro. E, muitas vezes, nos questionamos sobre suas possveis causas. Estariam tais

    dificuldades relacionadas somente aplicabilidade do prprio tema em nossas aulas de LE, ou

    seja, um problema metodolgico, ou haveria outras questes envolvidas?

    A preocupao com a questo levou-nos a pesquisar o assunto. Primeiro, procuramos

    visualizar o desenvolvimento da temtica do multiculturalismo como campo de pesquisas no

    contexto educacional brasileiro (currculo e formao docente), atravs de pesquisadores

    brasileiros que tm desenvolvido estudos no campo do currculo e formao docente,

    propondo novos olhares, voltados para o reconhecimento e valorizao de identidades

    culturais apagadas ou negadas em estruturas curriculares monoculturais. Os resultados de um

    dos trabalhos analisados mostraram-se instigantes e nos favoreceram com uma panormica do

    estado atual das pesquisas na rea. Tais trabalhos mostraram, assim, que no podemos falar de

    pesquisas sobre multiculturalismo na dcada de 90, mas de uma rede de categorias que

    evidenciam preocupaes voltadas para as discusses multiculturais. A partir de 96/97,

    pesquisas com uma preocupao multicultural comearam a ser produzidas em maior

    quantidade, centradas nas categorias de gnero e etnia. Entretanto, tais estudos assumiram

  • 3

    posturas diferenciadas (liberais ou crticas) no tratamento das identidades plurais dos sujeitos

    pesquisados. Para um melhor dimensionamento das tendncias dessas pesquisas, o trabalho

    nos informa que em uma anlise das dissertaes e teses defendidas em programas de ps-

    graduao e presentes no cd-rom da ANPED, DE 81 A 98, foram localizadas seis dissertaes

    sob o descritor multiculturalismo, das quais quatro foram efetivamente consideradas

    portadoras de potenciais multiculturais crticos. Em nenhuma dissertao sob os descritores

    currculo e formao docente a categoria multiculturalismo esteve presente. Este trabalho

    considerou como estudos multiculturais somente as pesquisas que questionam os mecanismos

    que silenciam as identidades com base em determinantes de gnero, classe, etnia, padres

    lingsticos e culturais, deficincias. O resultado de tal levantamento mostrou-nos como

    urgente o desenvolvimento de pesquisas multiculturais no contexto educacional brasileiro.

    Resolvemos, ento, localizar o desenvolvimento do tema multiculturalismo no mbito

    das pesquisas educacionais internacionais, analisando suas principais vertentes e pressupostos

    tericos, buscando interagir com uma teoria social crtica que ampliasse nossa compreenso

    sobre a dinmica entre o conhecimento construdo na escola e a sociedade onde os sujeitos

    desse conhecimento se situam. E a Pedagogia Crtica foi esse espao possvel, pois tem como

    preocupao central mostrar como o conhecimento no uma construo neutra, dissociada

    de valores, relaes de poder. Dedica-se a questionar e desafiar as formas como essa relao

    conhecimento-poder se constri nos significados produzidos pelos indivduos e nas relaes

    culturais, e seus efeitos como instrumentos legitimadores de posicionamentos poltico-

    ideolgicos especficos. Sua preocupao com o multiculturalismo centra-se, portanto, em

    compreender a diversidade em um universo mais amplo que considere os efeitos de poder da

    diferena, com implicaes fundamentais para a educao/sociedade.

    Durante esse perodo de interesse e pesquisa sobre o assunto, fomos convidados a

    analisar um projeto multicultural de uma escola brasileira, de elite, localizada na cidade de

  • 4

    So Paulo. O convite surgiu aps a Diretoria da escola tomar conhecimento de nossa

    identificao com o tema, tanto sob o aspecto do ensino, como j explicitamos, quanto de

    pesquisa, que teve suas origens em um estudo que desenvolvemos sobre o comportamento

    lingstico em educao bilnge, no contexto de uma escola internacional, para o Mestrado.

    Infelizmente, ao entrarmos em contato com o projeto, percebemos o quanto este havia sido

    construdo sobre bases liberais e conservadoras, pois propunham a construo de um

    contexto multicultural despolitizado, no ameaador, em que a diversidade confundida com

    a celebrao das tradies culturais, como demonstrao de tolerncia, respeito e convivncia

    harmoniosa entre as culturas. Alm disso, o projeto tem suas origens em uma organizao

    internacional, cujos objetivos so empresariais, mercantilistas e assimilacionistas. Projeto, no

    mnimo perturbador; se considerarmos que um de seus alvos seja a sua implantao em todo o

    territrio nacional.

    Por razes ticas pessoais no pudemos aceitar tal desafio. A escola permitiu-nos

    acesso ao projeto e a documentos sigilosos por supor que o endossaramos em seus

    pressupostos, acolhendo-o como objeto de pesquisa, o que, para a instituio seria uma forma

    de legitim-lo para a sociedade. Como, evidentemente, este no seria o efeito de qualquer

    anlise que fizssemos daquele projeto, consideramos a necessidade de expor escola as

    razes de nossa recusa ao convite, o que, provavelmente com muito alvio, foi compreendido.

    Tal experincia teve o efeito de nos alertar, mais uma vez, sobre a urgncia de

    promover mais reflexes sobre o multiculturalismo como campo de pesquisas no meio

    acadmico, em especial como forma de expandir crticas mais contundentes sobre propostas

    educacionais, no mbito pblico e privado, de construo multicultural. No mago dessas

    propostas situa-se a sociedade que desejamos construir, as foras que formatam nossas

    identidades e limitam nossa conscincia reflexiva, nos caminhos por uma educao

    verdadeiramente democrtica.

  • 5

    Na tentativa de compreender melhor a construo multicultural no Brasil, em especial

    a proposta de diversidade contida no tema transversal de Pluralididade Cultural, dos

    Parmetros Curriculares Nacionais, resolvemos desenvolver essa pesquisa. Dada a

    necessidade de contextualizar historicamente o surgimento e a plurissignificao dos

    conceitos envolvidos, optamos por um gnero argumentativo-narrativo, e a metodologia

    utilizada foi a leitura crtica de autores tericos da rea da Pedagogia Critica, do

    Multiculturalismo e dos Parmetros Curriculares Nacionais. Partimos da hiptese inicial de

    que o conceito de Multiculturalismo, dentro do mbito de propostas curriculares, usado

    indiscriminadamente para se referir a significados diferentes e conflitantes, e que, portanto,

    pode ter resultados pedaggicos tambm significativamente diferentes e conflitantes, com o

    potencial de at invalidar o argumento inicial para a adoo de uma postura multicultural,

    qual seja, o da valorizao das diferenas sociais. Tivemos, como principais objetivos:

    analisar os pressupostos tericos de interseo entre educao e poder, no contexto da

    Pedagogia Crtica e do Multiculturalismo;

    analisar como a Pedagogia Crtica tem sido informada pelas teorias ps-modernas, que

    contribuies estas tm prestado a essa rea;

    analisar o desenvolvimento do pensamento curricular brasileiro, as incongruncias da

    poltica educacional atual no que se refere diversidade cultural e as possibilidades de uma

    abordagem crtica da diferena cultural em aulas de LE.

    Essas anlises sero feitas em contexto mais amplo de luta por uma educao

    reflexiva, inscrita em uma linguagem de possibilidades que reconstrua nossos valores de

    democracia no espao pblico.

    No primeiro captulo desta pesquisa, analisamos A Pedagogia Crtica em alguns de

    seus postulados bsicos, e algumas abordagens multiculturais que tm desafiado a educao

  • 6

    de hoje. Discutimos as concepes de ideologia, cultura, educao e poder no contexto da

    Pedagogia Crtica e o papel do currculo na construo de nossas identidades; discutimos,

    ainda, algumas abordagens multiculturais que tm caracterizado a polissemia do termo e

    centramos nossa ateno na abordagem multiculturalista crtica, em nossas anlises dos

    processos nos quais as diferenas so produzidas.

    No segundo captulo, discutimos a Pedagogia Crtica sob a perspectiva da crtica ps-

    moderna. Analisamos as polticas moderna/ps-moderna como pressupostos para a discusso

    da crtica ps-moderna, que aborda: a crise da totalidade; a cultura e o Outro, a linguagem, a

    representao e a agncia; a agncia docente/discente sob uma perspectiva freireana, e a

    diferena e voz. Fazemos, ainda, uma retrospectiva crtica desses construtos sob a perspectiva

    de uma postura ps-moderna de reconstruo e analisamos algumas de suas problematizaes

    para a Pedagogia Crtica.

    No ltimo captulo, fazemos uma retrospectiva da teorizao curricular. Traamos um

    perfil da teorizao curricular nos Estados Unidos, desde suas origens e discutimos as origens

    da teorizao curricular no Brasil, buscando compreender o papel da influncia estrangeira na

    constituio deste campo. Discutimos a estruturao do campo, de suas origens dcada de

    70; os desafios da dcada de 80 por uma orientao mais autnoma no mbito terico e o foco

    no discurso educacional europeu. Analisamos as polticas educacionais da dcada de 90 no

    contexto do neoliberalismo, os movimentos de descentralizao e a justificativa para adoo

    dos Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em especfico o tema transversal de

    Pluralidade Cultural. Finalmente, discutimos o conceito de transversalidade e diversidade

    contidos no documento de Pluralidade Cultural, as posturas de desconstruo e ao propostas

    diante da abordagem multicultural que tem informado nossas polticas educacionais, e

    sugestes para os currculos de ensino de Lngua Estrangeira.

  • 7

    PRIMEIRO CAPTULO

    A PEDAGOGIA CRTICA E O MULTICULTURALISMO

    A Pedagogia crtica tem, de certa forma, caminhado na contramo das polticas e

    prticas educacionais que tm informado o sistema educacional brasileiro. Enquanto ela tem

    buscado compreender a relao irremedivel que se coloca entre o conhecimento e o poder, a

    realidade de nossas instituies educacionais, em sua maioria, tem apresentado um quadro

    bem diverso. Tais instituies tm buscado, atravs de seus currculos, separar tal questo e

    dar um tratamento eminentemente tcnico ao processo pedaggico.

    Diante de tal realidade, podemos nos perguntar: se o conhecimento no neutro, a que

    interesses tem servido? A resposta a essa pergunta requer um outro olhar sobre a pedagogia.

    Exige que nos disponhamos a refletir sobre como os sistemas de inteligibilidade so

    construdos, como a ideologia hegemnica se reproduz, como as prticas culturais

    representam e organizam o poder, como o currculo constitui, formata e legitima as

    identidades e diferenas; enfim, requer olhar a pedagogia como uma prtica poltico-cultural.

    Neste contexto, o multiculturalismo tem sido um tema que tem preocupado a

    Pedagogia Crtica porque tem permeado o espao educacional de forma emergente. As

    questes que despontam em nosso contexto educacional referem-se forma como a

    pluralidade cultural tem sido compreendida e reconhecida, de que forma os Parmetros

    Curriculares Nacionais, em seu tema transversal de Pluralidade Cultural tm lidado com a

    questo da diferena, e a que propsitos tal abordagem tem servido. Em especial para esse

    estudo, que reflexos tais percepes tm causado no ensino de Lngua Estrangeira de nossas

    instituies de 1 e 2 graus, em nossos cursos de Licenciatura e os desafios que nos

    apresentam como educadores.

  • 8

    Neste captulo, analisaremos a Pedagogia Crtica em alguns de seus postulados

    bsicos, e algumas abordagens multiculturais que tm desafiado a educao de hoje.

    Na primeira seo, discutiremos como a Pedagogia Crtica concebe a ideologia e o

    poder. Na segunda seo, discutiremos como a cultura, a educao e o poder esto

    conectados. Na terceira seo, analisaremos como o currculo est implicado na construo de

    nossas identidades e supe uma postura tica por parte do educador. Na quarta seo,

    trataremos das categorizaes multiculturais. Especial ateno ser dada s abordagens de

    Multiculturalismo conservador, liberal, pluralista, essencialista de esquerda e crtico, os quais

    sero discutidos nas cinco subsees posteriores. O ltimo item discutir a construo

    identitria no contexto do multiculturalismo crtico, que nos parece a abordagem mais vivel

    para uma anlise dos processos nos quais as diferenas so produzidas.

    1.1 Pedagogia Crtica, Ideologia e Poder

    A Pedagogia Crtica tem suas razes na Teoria Crtica, uma tradio terica

    desenvolvida a partir da Escola de Frankfurt, Alemanha, na dcada de trinta, e que teve em

    Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse seus nomes fundacionais. Durante os

    ltimos trinta anos, tal abordagem terica tem sido informada pelo que poderamos denominar

    ps-discursos, ou seja, pelo ps-modernismo, ps-estruturalismo, feminismo crtico,

    estudos culturais, etc., os quais tm possibilitado novas formas de pesquisa e anlise da

    construo dos indivduos (Kincheloe & McLaren, 2000: 281).

    A Teoria Social Crtica preocupa-se especialmente com questes de poder e justia, e

    as formas pelas quais a economia, raa, classe, gnero, ideologias, discursos, educao,

    religio e outras instituies sociais e dinmicas culturais interagem para construir um sistema

    social. Analisa os interesses de poder competitivos entre indivduos e grupos, buscando,

  • 9

    segundo Kincheloe & McLaren (op. cit.: 281), um iluminismo crtico que exponha

    vencedores e vencidos em determinados arranjos sociais e os processos pelos quais tais jogos

    de poder operam1. Rejeita o determinismo econmico, pois reconhece as mltiplas formas de

    poder e os fatores econmicos como sempre atrelados a outras formas de opresso. Visualiza

    a racionalidade instrumental/tecnolgica como uma das caractersticas mais opressivas da

    sociedade contempornea: mais interessada em mtodos e eficincia que em propsitos.

    Aprecia a psicoanlise ps-estruturalista porque permite discernir os processos inconscientes

    que criam resistncia a mudanas e induzem a comportamentos auto-destrutivos; o domnio

    do psquico e scio-poltico tornam-se entrelaados, onde o desejo socialmente construdo e

    manipulado por controladores do poder para efeitos destrutivos e opressores. A partir de tal

    entendimento, os tericos crticos podem auxiliar a mobilizar o desejo para projetos contra-

    hegemnicos.

    A teoria crtica, ao buscar compreender as formas variadas e complexas como o poder

    opera para dominar e formatar a conscincia, informada por uma epistemologia que

    promove um outro olhar sobre o lcus e a dinmica do poder, entendendo-o como um

    elemento bsico que molda as naturezas opressiva e produtiva da tradio humana. A

    concepo terica de Foucault (1979) sobre a onipresena do poder, se por um lado

    pessimista porque reconhece que o poder satura todos os espaos e relaes sociais, por outro

    revigorante ao considerar novas formas de luta, mltiplas formas de resistncia, ao habilitar

    para o empoderamento, para a democracia crtica, engajando grupos marginalizados em um

    repensar de suas funes sociopolticas.

    Nesse contexto, a Pedagogia Crtica surgiu nos ltimos vinte anos como uma nova

    sociologia da educao, uma teoria crtica da educao, que busca romper com a anlise

    1 In this context to seek critical enlightenment is to uncover the winners and losers in particular social arrangements and the processes by which such power plays operate (Cary, 1996, Fehr, 1993; King, 1996; Pruyn, 1994; Wexler, 1996).

  • 10

    positivista, no-histrica e despolitizada utilizada pelos crticos liberais e conservadores da

    escolarizao.

    A pedagogia crtica tem como preocupao central a questo do poder no contexto

    escolar e na sociedade. Preocupa-se com o como e a que interesses o conhecimento, as

    formaes culturais so produzidos e distribudos, atuando como instrumentos de legitimao

    de formas hegemnicas de poder. Deseja fomentar a capacidade crtica dos cidados,

    capacitando-os a resistir, ainda que de forma limitada, a tais efeitos de poder. Representa uma

    reao de educadores que questionam como a cultura adquirida, transmitida e distribuda,

    seus significados e o papel que desempenha na formao do senso comum, nos falsos mitos

    de oportunidade e mrito, na forma como os sistemas de crena/verdade/opinio tornam-se

    to internalizados a ponto de indivduos e grupos serem moldados em seus sonhos e

    aspiraes (Kincheloe & McLaren, 2000; McLaren, 1997).

    Mais que o reconhecimento da injustia, a pedagogia Crtica busca, com seu ideal

    emancipatrio, caminhos alternativos de mudana atravs da solidariedade. Freire (Apud

    McLaren, Leonard, Gadotti, 1998) foi um dos educadores que mais fortemente defendeu a

    necessidade de se reconhecer um sistema de relaes opressivas, sua dinmica e o lugar que

    ocupamos nele2. Esse o caminho para se questionar a crena fatalstica na inevitabilidade e

    necessidade de um status quo injusto. Como nos diz Giroux (1983, 1988), mais que uma

    linguagem de crtica, que percebe a escola como instrumentos de reproduo das relaes

    capitalistas e legitimao das ideologias dominantes, precisamos construir um discurso de

    possibilidade, de prticas contra-hegemnicas nas escolas, que questione os sistemas de

    inteligibilidade que guiam nossa sociedade, que desafie e transforme instituies, ideologias e

    2 Ver discusso sobre esse tpico mais adiante na seo 2.2.4.

  • 11

    relaes opressivas3. Tal projeto requer um novo tipo de solidariedade: que nos permita

    trabalhar juntos, apesar de nossas muitas diferenas, para construir uma base comum de luta

    pela justia cultural, social e econmica (McLaren, 1999).

    No contexto do poder opressivo, a noo de hegemonia de Antonio Gramsci (Apud

    Mayo, 1999) fundamental para entendermos os processos scio-psicolgicos usados para

    obter o consentimento das pessoas dominao, atravs das instituies culturais (mdia,

    escola, famlia, igreja, etc). A hegemonia, segundo Gramsci (Apud Mayo,1999: 35), diz

    respeito condio social na qual todos os aspectos da realidade social so dominados ou

    apoiados por uma determinada classe, ou seja, grupos dominantes da sociedade se juntam

    formando um bloco e impem sua liderana sobre grupos subordinados. Baseia-se na

    obteno do consenso construdo pela ordem dominante, criando um escopo ideolgico de

    grupos diferenciados, que normalmente no concordariam uns com os outros. Apple (1999:

    43) nos adverte sobre o instrumental bsico para tal dinmica, qual seja, chegar a um

    compromisso, de tal forma que esses grupos se sintam como se suas preocupaes estivessem

    sendo ouvidas (da a retrica ser essencial neste processo), mas sem que os grupos dominantes

    tenham de abrir mo de sua liderana em relao s tendncias gerais da sociedade. Um

    exemplo interessante deste processo a retrica neoliberal a respeito da qualidade das escolas

    pblica e privada em nosso pas. Segundo tal discurso, a qualidade da primeira inferior da

    segunda porque a administrao da escola pblica ineficaz, desperdia recursos, usa

    mtodos atrasados.

    Assim, o sistema reconhece o problema da desqualificao, mas vincula-o a problemas

    de mercado e de tcnicas de gerenciamento, o que lhe permite estabelecer metas e programas

    educacionais que girem em torno de tais alvos, demonstrando a preocupao governamental

    3 As part of the language of possibility, a critical theory of literacy provides a crucial pedagogical insight into the dynamics of the learning process by linking the nature of learning itself with the dreams, experiences, histories, and languages that people bring to the cultural sphere. (Giroux, 1992: 245)

  • 12

    com a qualificao educacional e um sentimento de consolo nos diferentes segmentos

    atingidos por considerarem que suas necessidades esto sendo cuidadas. O que tal discurso

    no considera, dentre outros fatores, a diferena social existente entre tais escolas, nem a

    magnitude do capital econmico e cultural de cada uma. Assim, a noo de qualidade total

    permeada por um tecnicismo que reduz os problemas sociais mais amplos a questes

    administrativas, esvaziando os campos social e poltico do debate educacional4.

    importante notar que o controle hegemnico no total, bem-sucedido em todas as

    esferas da sociedade. A cultura dominante nunca comanda o campo inteiramente: ela deve

    lutar de forma contnua com culturas residuais e emergentes. ( McGuigan Apud Apple, 1999:

    44). Portanto, a noo de hegemonia fornece uma base terica para se entender no somente

    como a dominao produzida, mas tambm como pode ser superada atravs de formas

    variadas de resistncia, crtica e ao social.

    Mayo (1999), ao analisar as ligaes entre os projetos de educao popular de Gramsci

    e seus insights relativos cultura da classe trabalhadora, hegemonia ideolgica e conscincia

    de classe, alerta-nos para os aspectos pedaggico e no-determinista (Giroux, 1981: 23) do

    processo hegemnico, que abrem espao para uma linguagem que vai alm da crtica: uma

    linguagem de possibilidade. Como nos diz Giroux (1999: 281):

    Fora do isolamento (ghettoization) das disciplinas est a possibilidade de criar novas

    linguagens e prticas sociais que conectam, em vez de separar, a instruo e o trabalho

    cultural da vida cotidiana. na reconstruo da memria social, no papel dos trabalhadores

    culturais como crticos transformadores, e no discurso da democracia radical como base para

    a luta social e o trabalho cultural, que existe a base pedaggica para uma teoria da instruo

    4 Ver discusso mais detalhada sobre esse tpico na seo 3.5.

  • 13

    que envolva a diferena cultural como parte de um discurso mais amplo de justia, igualdade

    e comunidade.

    Para Gramsci os aspectos da vida social so gerados e aceitos atravs de uma relao

    de aprendizagem, portanto o processo hegemnico tambm educacional. Os agentes desse

    processo so as instituies que formatam a sociedade civil. Tais agentes no so neutros,

    esto ligados aos interesses dos grupos sociais dominantes, e tm a importante funo de

    sedimentar a hegemonia existente, de estabelecer sua viso de mundo como inclusiva e

    universal. Por outro lado, o sentido de agncia presente nas formulaes tericas de Gramsci a

    respeito de hegemonia indicam o espao possvel para a atividade contra-hegemnica: sua

    natureza no-esttica (constantemente aberta negociao, portanto sendo renovada e

    recriada), incompleta e seletiva (o que faz supor a existncia de momentos em que todo o

    processo passa por crises).

    A formao de hegemonia, entretanto, no pode estar separada da produo de

    ideologia, pois esta um de seus elementos constitutivos, que permeia toda a vida social;

    como nos diz McLaren (1997: 209) o resultado da interseco de significado e poder no

    mundo social. Stuart Hall e James Donald (Apud op. cit.: 209) definem ideologia como

    as estruturas de pensamento que so usadas na sociedade para explicar, resolver e dar

    sentido ou significado ao mundo social e poltico (...) Sem essas estruturas, no poderamos

    nunca compreender o mundo. Mas, com elas, as nossas percepes so inevitavelmente

    estruturadas em uma direo particular pelos prprios conceitos que usamos.

    Tal conceito, como bem descreve McLaren (op. cit.: 209), aponta para a funo dupla

    da ideologia: uma funo positiva que oferecer os conceitos, categorias, imagens e idias

    por meios dos quais as pessoas do sentido ao seu mundo social e poltico, formam projetos,

    chegam a uma certa conscincia do seu lugar no mundo, e nele agem; e uma funo negativa

    que refere-se ao fato de que todas essas perspectivas so inevitavelmente seletivas, isto ,

  • 14

    so estabelecidas a partir de relaes sistematicamente assimtricas de poder institucional

    (dominao), que privilegiam alguns grupos sobre outros. Dessa forma, a ideologia torna-se

    hegemnica, institucionalizada pela sociedade dominante, destituda de poder oposicional,

    apresenta os interesses privados como bens pblicos, o senso-comum como verdade universal.

    A ideologia sob tal perspectiva atua de formas diferenciadas. Atua por legitimao, onde o

    sistema de dominao sustentado por ser representado como legtimo ou justo e digno de

    respeito: os interesses das classes dominantes so vistos como representativos de toda a

    comunidade. Por exemplo, ao legitimar o sistema educacional como meritocrtico (dando a

    todos as mesmas oportunidades de sucesso), a cultura dominante esconde que a escolarizao

    ajuda mais os que vm de famlias privilegiadas. Dados tabulados com base nas Pesquisas

    Nacionais por amostra de Domiclio-Pnads (2002) do Instituto Brasileiro de Geografia e

    Estatstica-IBGE (2002)), pelo socilogo Simon Schwartzman, ex-presidente da instituio,

    mostram que o sonho do brasileiro da camada mais pobre da populao de chegar

    universidade continuava to distante no final da dcada de 90 quanto era no incio dela. O

    perodo foi marcado por uma forte expanso da oferta de vagas, mas no o suficiente para

    aumentar a participao dos 50% mais pobres da populao ou diminuir a dos 10% mais ricos

    (Jornal Folha de So Paulo, So Paulo, C1, 27.05.02).

    Ainda, conforme McLaren (op. cit.: 209), outra forma de atuao da ideologia por

    dissimulao, que se verifica quando as relaes de dominao so encobertas, negadas ou

    obscurecidas de vrias maneiras. Por exemplo, os Parmetros Curriculares Nacionais (1998)

    explicitam no documento relativo aos Temas Transversais que estes foram elaborados

    procurando, de um lado, respeitar diversidades regionais, culturais, polticas existentes no

    pas e, de outro, considerar a necessidade de construir referncias nacionais comuns ao

    processo educativo em todas as regies brasileiras. Com isso, pretende-se criar condies, nas

    escolas, que permitam aos nossos jovens ter acesso ao conjunto de conhecimentos (...)

  • 15

    necessrios ao exerccio da cidadania. Entretanto, tal descrio permite camuflar a postura

    assimilacionista de tais documentos, qual seja, defender a integrao e a assimilao de todas

    as diferenas cultura hegemnica (Lopes, 1999: 69).

    Ainda, a ideologia hegemnica exerce sua ao por fragmentao (op. cit.: 209), busca

    a produo de significados que fragmentem grupos para que se oponham e, assim, se

    fragilizem. Por exemplo, quando as anlises do sistema educacional brasileiro buscam atrelar

    a responsabilidade pelos fracassos e desqualificao de nossa educao figura solitria do

    professor, sem qualquer vnculo a relaes de poder mais amplas, tais anlises buscam

    desqualificar as reivindicaes de grupos docentes e desfocar os espaos de interesses e lutas,

    entre tais profissionais e setores mais amplos da sociedade, por um sistema educacional mais

    democrtico e de qualidade em nosso pas.

    Por ltimo, um outro modo de exerccio da ideologia por reificao, que ocorre

    quando formas especficas de crenas, atitudes, valores e prticas so apresentados como

    permanentes, naturais e consensuais. Por exemplo, a mxima de que se voc d educao,

    cria igualdade de oportunidades e chances de ascenso que as pessoas normalmente no

    teriam, (comentrio do socilogo Simon Schwartzman, em entrevista concedida ao Jornal

    Folha de So Paulo, So Paulo, A4, 03.06.02) desconsidera os prprios limites dos projetos

    impostos pelo sistema neoliberal em que vivemos. Tal sistema atribui um papel estratgico

    educao, com, pelo menos, dois objetivos, conforme nos esclarece Marrach, S. (2000, 46-47;

    53): atrelar a educao escolar preparao para o trabalho e a pesquisa acadmica ao

    imperativo do mercado ou s necessidades da livre iniciativa; tornar a escola um meio de

    transmisso dos seus princpios doutrinrios, ou seja, adequao da escola ideologia

    dominante. Ora, o discurso neoliberal, ao insistir no papel estratgico da educao para a

    preparao da mo-de-obra para o mercado, esquece que a revoluo tecnolgica impe o

  • 16

    desemprego estrutural; atualmente o mundo do trabalho tanto ou mais excludente que o

    sistema escolar5.

    Giroux (1981), ao nos alertar para as contribuies de Marx sobre o conceito de

    ideologia, enfatiza como o conceito marxista que descrevia a ideologia como um sistema de

    idias que distorcem a realidade, a fim de servir aos interesses de uma classe dominante,

    exigiu uma crtica que buscasse um modo de penetrar alm da conscincia dos sujeitos e de

    desvelar as fundaes de sua dinmica, ou seja, um questionamento da natureza da

    conscincia e dos processos histricos e contemporneos pelos quais crenas e prticas se

    constituem como instrumentos legitimadores de uma sociedade6.

    Tais crticas tm sido desenvolvidas por inmeros pensadores neo-marxistas, sendo

    oportuno aqui ressaltar duas. A primeira foi a contribuio de George Lukacs (Apud Giroux,

    1981: 20) ao estender a noo de fetichismo da mercadoria para o conceito de reificao,

    i.e., o processo pelo qual as relaes concretas entre os seres humanos tornam-se como

    relaes objetificadas entre coisas (Giroux, 1981:20-traduo nossa). A reificao expressa

    os limites e as interconexes existentes entre a conscincia e a sociedade capitalista. Atrelada

    a essa relao entre subjetividade e o capital, encontramos o conceito de pseudo-concreto,

    desenvolvido por Karol Kosik (Apud Giroux, 1981: 21), que confere reificao um carter

    permanente/a-histrico e consensual. Tais conceitos identificam-se com uma das formas de

    atuao da ideologia hegemnica, apresentadas anteriormente por McLaren.

    Porm, ideologia mais que reificao da conscincia e das relaes sociais,

    tambm a luta (ainda que limitada) da conscincia para se constituir contra a natureza

    objetificada da vida social (Giroux, 1981: 20); mais que crenas polticas, a forma como

    5 Ver seo 3.5. 6 Marxs view of ideology delineated a form of ideology-critique and a call for political action. That is, ideology becomes a mode of penetrating beyond the consciousness of human actors, and of uncovering the real foundations of their activity, this being harnessed to the end of social transformation. (Giroux, 1981: 19)

  • 17

    tais crenas so mobilizadas, como parte de um processo mais amplo de proteo de relaes

    de poder assimtricas, de manuteno de dominao. Neste contexto, a Teoria Crtica percebe

    a ideologia de forma dialtica, como uma forma crtica de construtivismo epistemolgico,

    ancorado por uma compreenso da cumplicidade do poder nas construes que as pessoas

    fazem do mundo e de suas funes nele. Tal perspectiva amplia a noo de dominao para

    alm dos locais institucionais, para o contexto de lutas simultneas entre diferentes classes,

    grupos raciais e de gnero, e setores do capital. Explora as formas como tal competio se

    engaja em diferentes vises, interesses e agendas em diversos locais sociais locais antes

    vistos como fora do domnio da luta ideolgica (Kincheloe, Steinberg, 1997: 113).

    1.2 Cultura, Educao e Poder

    Clifford Geertz um antroplogo amplamente conhecido por seus estudos

    etnogrficos sobre a cultura javanesa e por seus trabalhos sobre interpretao cultural (1997).

    Sob tal perspectiva antropolgica, Geertz tem enfatizado a importncia do simblico do

    sistema de significao7 na compreenso do conceito de cultura.

    Tal sistema formado pela interao entre os indivduos e destes com a comunidade.

    Assim, Geertz critica todo tipo de abordagem mecanicista que ignore as condies histricas

    da organizao social, o envolvimento afetivo, o papel do indivduo e suas necessidades

    bsicas. A cultura como um produto inacabado de smbolos no o resultado de mecanismos

    cognitivos ou herana biolgica, mas uma resposta pblica ao relacionamento social, um

    fenmeno social a ser apreendido. Tal perspectiva vai alm da postura essencialista, que trata

    a cultura como uma entidade superorgnica na qual indivduos nascem e so moldados por

    uma cultura pr-existente que continua a existir nos mesmos padres aps cada gerao; como

    7 Por sistema de significao entenda-se o conjunto de relaes (arbitrrias) entre um grupo de variveis (como palavras, comportamentos, smbolos fsicos, etc.) e os significados a ela atrelados.

  • 18

    uma negao desumana da vontade, da habilidade humana em criar e transformar a cultura;

    como uma abstrao que, muitas vezes, tem conduzido negao de direitos humanos bsicos

    de grupos minoritrios na luta por manterem suas heranas culturais.

    A cultura, sob tal perspectiva crtica (no-essencialista), tem se tornado o meio atravs

    do qual as prticas sociais so produzidas e distribudas; o capital poltico cuja fora, como

    meio de circulao de informao, transforma os setores da economia globalizada. Giroux

    (2000:26), estabelece alguns parmetros de associao entre a cultura e a poltica, amparado

    pela problematizao dessa questo j desenvolvida pelos Estudos Culturais, mais

    especificamente por Stuart Hall. Explica-nos que a cultura torna-se poltica no s porque

    mobilizada atravs da mdia e outras formas institucionais, as quais trabalham para legitimar

    certas formas de autoridade e relaes sociais, mas tambm por constituir-se como um

    conjunto de prticas que representam e organizam o poder, uma estrutura construtora/

    produtora de significados, um espao de luta por formatao de identidades especficas, por

    mobilizao do desejo, por legitimao de formas precisas de democracia e justia social.

    A postura crtica sobre a questo cultural exige uma reflexo sobre as possibilidades

    de acesso e interveno nessa dinmica social, o que nos leva a considerar o sujeito destas

    possibilidades, as questes de agenciamento crtico, as formas de letramento, atravs dos

    quais as pessoas definem a si mesmas e seu relacionamento com o mundo social8. Assim, a

    pedagogia crtica percebe a educao (formal e informal) como uma forma de poltica

    cultural; uma fora motivadora participao crtica na vida cvica. Percebe a prpria

    pedagogia como uma prtica cultural, poltica e moral crucial, que conecta agncia social,

    poder e poltica a processos mais amplos da vida pblica democrtica, atravs de um

    relacionamento funcional com suas formaes sociais e ideolgicas (Giroux, 1999; McLaren,

    1997).

    8 Ver seo 2.2.3.

  • 19

    No contexto da preocupao especfica deste trabalho, a Pedagogia Crtica constitui-se

    em um espao possvel para analisarmos aspectos de nossa poltica educacional, em especial

    os Parmetros Curriculares Nacionais, como instrumentais que se constroem em sua

    articulao com processos educacionais e polticos mais amplos. Tal articulao est centrada

    na percepo de que o conhecimento no neutro, esttico, mas constitudo em processos de

    significao que so atravessados pelo poder, que traduzem valorizaes culturais, polticas e

    morais que direcionam nossas construes identitrias, nossas subjetividades em processos

    constantes de legitimao/ marginalizao.

    1.3 Currculo, tica e Identidade9

    A questo do currculo como prtica social e cultural, sob uma abordagem pedaggica

    crtica exige, de forma prioritria, pensar a viso de educao, de construo de identidades

    sociais pretendidas tanto pelas micro quanto macro estruturas de poder em nossa sociedade. A

    viso dominante hoje, no Brasil, o projeto educacional centrado na excelncia do mercado,

    dos interesses econmicos e da competitividade, qual seja, um projeto tecnicista,

    mercadolgico, neoliberal. A educao vista como um instrumental que visa completude

    de tais metas; um sistema de significaes fechado que neutraliza o discurso, apaga sua

    histria e fabrica o consenso.

    Neste contexto, o discurso de programas e propostas educacionais visto como

    despojado de intenes e efeitos de sentido. Pretende uma neutralidade aparente, que busca

    legitimar as subjetividades hegemnicas e, conseqentemente, marginalizar outras.

    9 Uma verso preliminar desta seo foi apresentada como comunicao individual, durante o VI Congresso Brasileiro de Lingstica Aplicada, em 2001, e, posteriormente, publicada, em forma de artigo, com o ttulo Currculo, tica e poltica: um jogo decisivo, em Anais do referido congresso.

  • 20

    A diferena conceituada como caracterstica sociocultural que precisa ser conhecida

    (no para ser reconhecida), a fim de ser amalgamada. No discurso liberal, conforme explicita

    McLaren (1999), o universalismo que permite a diversidade mascara as normas etnocntricas:

    a diversidade acompanhada de uma norma transparente da sociedade hospedeira, que cria

    um falso consenso, que serve para conter a diferena cultural.

    Portanto, urgente aprofundar a anlise deste modelo que muitas vezes mascara suas

    propostas como se elas fossem amplamente democratizantes e participativas. Somente

    conhecendo as razes de suas idias e suas derivaes poderemos oferecer uma alternativa que

    o supere e permita construir uma verdadeira proposta democrtica (Bianchetti, 1996:114).

    Neste cenrio, como nos diz Silva (1999: 8-9), O trabalho da educao (...) reduz-se

    (...) produo dualista de dois tipos de sujeito. De um lado, a produo do sujeito otimizador

    do mercado, do indivduo triunfante e predador da nova ordem mundial. De outro, a

    produo da grande massa que vai sofrer o presente em desespero e contemplar sem

    esperana o futuro nos empregos montonos e repetitivos das cadeias de fast-food ou nas filas

    do desemprego.

    Ns, educadoras e educadores, precisamos o quanto antes interrogar nossa histria de

    vida profissional, nosso fazer pedaggico, nosso refletir sobre horizontes alm do

    consenso, sobre a amplitude do campo da significao. A educao pode, sim, construir

    outros sentidos e significados: de direitos sociais, justia social, cidadania e espao pblico. E

    o currculo o espao central dessa construo possvel.

    O currculo uma construo social. A produo de significados gera efeitos de

    sentido nos grupos sociais, projeta nossas construes de sujeito, identidade cultural e social,

    e nossa relao de alteridade com o Outro. As relaes sociais intrnsecas a este processo so

    tambm relaes de poder. Um aspecto importante sobre o poder, como enfatiza Foucault

    (1979) que o poder est disseminado; significao/conhecimento/saber so permeados pelo

  • 21

    poder; no existe conhecimento sem poder. Portanto, o currculo, como campo de produo

    de significados e sentidos, campo de luta, de hegemonia, marcado por relaes hierrquicas,

    assimtricas. Os efeitos de sentido/poder cooperam para fixar posies de sujeito especficas e

    produzir identidades sociais particulares.

    H uma tendncia em se naturalizar as identidades. Entretanto, estas se definem pelo

    processo de produo da diferena, a qual cultural, social e histrica. Precisamos de uma

    reescrita da diferena como diferena-em-relao, seguida por tentativas de mudana

    dramtica das condies materiais que permitem que as relaes de dominao prevaleam

    sobre as relaes de igualdade e justia social. (McLaren, 1999: 134)

    As identidades so produzidas no interior das prticas de significao onde os

    significados so contestados, negociados e transformados; no so produtos acabados, mas

    sempre em processo, constitudos no interior da representao.

    O processo de construo identitria plural/hbrida passa pela questo da alteridade; no

    mbito educacional, passa por discursos e prticas curriculares que sensibilizam alunos para a

    articulao que reconhece a existncia do Outro como o espao para o auto-conhecimento,

    para o dimensionamento da prpria identidade/diferena, para o questionamento de

    mecanismos/estratgias de seu silenciamento. Reconhecer e respeitar a diferena , portanto,

    o caminho para se questionar estratgias de silenciamento de tais pluralidades. neste sentido

    que Bhabha (1998: 107)10 nos convida a questionar o modo de representao da alteridade11.

    10 Antes de passar construo do discurso colonial, quero discutir brevemente o processo pelo qual as formas de alteridade racial/cultural/histrica foram marginalizadas nos textos tericos que se ocupam da articulao da diferena, ou da contradio, com o fim de, alega-se, revelar os limites do discurso representacional do Ocidente. Ao facilitar a passagem da obra do texto e sublinhar a construo arbitrria, diferencial e sistmica dos signos sociais e culturais, essas estratgias crticas desestabilizam a busca idealista por sentidos que so, quase sempre, intencionalistas e nacionalistas. Isto no est em questo. O que precisa ser questionado, entretanto, o modo de representao da alteridade. 11 Ver seo 2.2.3.

  • 22

    Por tudo isso, o currculo ocupa posio de destaque nas reformas sociais e

    educacionais. Como poltica curricular, o currculo expressa as vises e significados das

    reformas dominantes, em busca de sua legitimao. Como prtica de significao em sala de

    aula, o currculo ainda constri as identidades que lhe so convenientes, em uma moldura

    hierarquizada por determinantes exclusores de raa, classe, gnero, etc.

    sob essa perspectiva que Silva (op. cit.: 29) nos diz que no Currculo se joga um

    jogo decisivo; ele nos questiona sobre a posio que temos ocupado em tal jogo e sobre o

    quanto o resultado de tal jogo depende dessa deciso. Ou seja, somos chamados a assumir

    posturas neste jogo de significaes: queremos nos engajar em uma construo social que

    interroga interesses, ideologias e prticas sociais ou vamos, simplesmente, legitimar sua

    manipulao?

    A postura assumida diante de tais questionamentos pode fazer a diferena entre dois

    caminhos. Um que deseja perceber o currculo como um percurso em aberto, construtor de

    sentidos/significaes permeados por relaes sociais/de poder que podem, sim, desafiar as

    foras hegemnicas que silenciam as identidades por determinantes exclusores e que tratam a

    diferena como instrumento hierarquizador de bens sociais. O outro caminho aquele que

    identifica o currculo com uma trajetria demarcada pela aparente neutralidade, que busca

    legitimar o discurso e o fazer social do consenso.

    No propomos tal desafio porque cremos que a percepo de tal rede intrincada de

    significaes, permeada por saber/poder, pode resultar em um locus livre e autnomo para

    seus sujeitos, pois nossa subjetividade social e histrica, j assujeitada ao poder, mas

    acreditamos que precisamos desafiar a conquista de outros espaos de assujeitamento, que aos

    nossos olhos (inconstantes e limitados) mostrem-se mais justos socialmente, ou seja,

    legtimo e possvel buscar outros sentidos para a educao, ainda que sempre comprometidos

    e permeados pelo poder.

  • 23

    1.4 Multiculturalismo: Abordagens e Desafios para a Educao de Hoje

    O multiculturalismo um dos temas que tem sido objeto de pesquisa da pedagogia

    crtica. O termo polissmico, como nos dizem Kincheloe e Steinberg (1997: introduo),

    significa tudo e, ao mesmo tempo, nada, devido s muitas agendas conflitantes a que tem

    servido. Portanto, no representado por um paradigma terico nico e difere amplamente em

    suas nfases; falar em multiculturalismo ou educao multicultural hoje implica em

    especificar a significao que se pretende com tal nomeao.

    O multiculturalismo, em sua atuao como alvo, conceito, atitude, estratgia ou valor,

    emergiu como conseqncia das mudanas demogrficas em movimento nas sociedades

    ocidentais. As naes ocidentais, dentre elas, Os Estados Unidos, Inglaterra, Canad,

    Austrlia e Nova Zelndia tm experimentado processos de imigrao e movimentos de

    conscincia de gnero e raa que as tem induzido a confrontar questes relativas s formas

    como definem a si mesmas e outras instituies sociais.

    Desenvolveu-se na dcada de setenta como um conceito educacional e movimento

    social de auxlio articulao de interesses sociais e polticos de grupos culturais e tnicos

    diversos. Vrias categorizaes de posies multiculturais tm sido desenvolvidas durante os

    ltimos vinte anos. Mas as categorizaes propostas por McLaren (1994)12 e Kincheloe,

    Steinberg (1997: 2)13 tm servido de parmetro para um entendimento mais amplo das vrias

    perspectivas multiculturais, buscando discernir as vrias formas pelas quais a diferena

    construda e posicionada na sociedade. Tais tipologias no tm por objetivo hierarquizar ou

    rotular cada posio, mas se reconhecem como uma tentativa de esquema terico idealizador,

    12 McLaren desenvolveu tais perspectivas, originalmente, no artigo White terror and oppositional agency: toward a critical multiculturalism, em 1994. As anlises defendidas por ele nesta seo so baseadas em seu livro Multiculturalismo crtico, publicado no Brasil em 1999, em segunda edio. 13 As we understand it, the current debate about the multicultural nature of Western societies encompasses a set of identifiable positions. Influenced by Peter McLarens (1994) categorization of multicultutural positions, we lay out five types of multiculturalism.

  • 24

    j que as caractersticas de cada posio tendem a se misturar umas com as outras dentro do

    espao social, no devendo ser entendidas de forma monoltica.

    1.4.1 Multiculturalismo Conservador

    Para Kincheloe e Steinberg (1997: 3), tal posio pode ser considerada uma forma de

    neo-colonialismo, ou seja, um retorno da tradio colonialista de supremacia do homem

    branco. As expresses de inferioridade dos no-brancos ou pobres no so abertas, diretas,

    mas camufladas sob a gide da ausncia de valores familiares e excelncia acadmica (por

    bagagem cultural/intelectual inferior). A caracterstica central desta posio o esforo em

    assimilar qualquer indivduo passvel de assimilao aos padres da classe mdia, branca.

    As conseqncias de tal viso no mbito educacional originam-se no modelo de

    privao/destituio defendido, segundo o qual os problemas oriundos do processo

    educacional esto centrados no aluno, o que nos move para longe de uma posio de

    conscincia da realidade de pobreza, sexismo e racismo e seus efeitos sobre o processo

    educacional. As diferenas sociais, relacionadas linguagem, cultura, costumes, classe, etc.,

    segundo tais tericos, so divisrias e a nica forma de construir uma sociedade funcional

    atravs do consenso, da construo de uma cultura comum. Tal habilidade na constituio

    do contedo de tal cultura demonstra a posio de poder que lhes acessada pelas instituies

    e grupos sociais, e o espao para desenvolvimento de seu projeto mais amplo de redefinio

    de democracia, igualdade e bem comum. Michael Apple (Apud Kincheloe, Steinberg, 1997:

    5) nos adverte sobre a importncia da redefinio do conceito de senso comum como um dos

    projetos de reeducao pblica mais amplos do sculo vinte. O sucesso alcanado baseado

    na habilidade de seus defensores em desenvolver o argumento da cultura comum como uma

    forma de senso comum (traduo nossa). Esse projeto um esforo internacional para re-

  • 25

    escrever a histria e recriar a memria pblica, a fim de justificar os programas de ao

    educacional, social e poltica que perpetuam a crescente desigualdade nas sociedades

    ocidentais.

    Ainda em sua perspectiva de ajuste social, os conservadores argumentam que a

    assimilao abre portas para a mobilidade econmico-social (com o conseqente

    comprometimento da herana cultural dos grupos marginalizados envolvidos). Se tal prtica

    no se concretiza na realidade social, o argumento para o fracasso a bagagem cultural de

    tais grupos. Nesse contexto, a pedagogia crtica procura tornar visvel as concepes de

    mundo conservadoras e a sua compreenso do eu e do outro nos diversos espaos sociais

    (escola, televiso, cinema, vdeo games, msica popular, etc.) de produo cultural; revela a

    dinmica pedaggico-ideolgica, inscrita de forma to sub-reptcia, em nossas representaes

    e significaes.

    McLaren (1999: 111-119) centra sua discusso sobre o multiculturalismo conservador

    nos motivos pelos quais tal perspectiva deve ser rejeitada, alguns dos quais detalharemos a

    seguir. O primeiro, j explicitado, a busca por uma cultura comum. Como observa Jan

    Nederveen Pieterse (Apud McLaren, 1999: 112), a Amrica do Norte tem sido

    historicamente o pas do homem branco, no qual os padres institucionais e ideolgicos da

    supremacia do branco sobre o negro e do homem sobre a mulher suplementam-se e reforam-

    se. Tal projeto anula o conceito de fronteira atravs da deslegitimao das lnguas

    estrangeiras e dialetos tnicos e regionais (op. cit.: 113). O que significa uma luta contra o

    ingls no-oficial e a educao bilnge.

    O conceito de fronteira refere-se desterritorializao da significao, onde o

    sujeito adquire uma nova forma de agncia fora do discurso cartesiano euro-americano. A

    cultura de fronteira ocorre no espao de traduo cultural, ou seja, o espao de articulao,

  • 26

    resultado da coliso de signos. Tais colises podem criar significaes hbridas, uma

    conscincia mestia, como nos fala Gloria Anzalda (Apud McLaren, 1999: 101-102):

    A nova mestia capacita-se desenvolvendo uma tolerncia para com as contradies,

    para com a ambigidade. Ela aprende a ser uma indiana em uma cultura mexicana, ou uma

    mexicana do ponto de vista anglo; aprende a fazer malabarismos com as culturas. Ela tem

    uma personalidade plural; opera de modo pluralstico nada descartado, o bom, o ruim, o

    feio, nada rejeitado ou abandonado. Ela no somente sustenta as contradies, mas

    transforma a ambivalncia em algo mais (...). O trabalho de conscincia mestia romper

    com a dualidade sujeito-objeto (...) e mostrar (...) como a dualidade superada (...). A

    resposta para o problema entre a raa branca e as de cor, entre homens e mulheres encontra-se

    no fechamento da brecha que se origina no mago de nossas vidas, nossas culturas, nossas

    linguagens, nossos pensamentos (traduo nossa)14.

    O segundo motivo pelo qual a perspectiva conservadora deve ser rejeitada, conforme

    McLaren, por recusar-se a tratar a branquidade como uma forma de etnicidade,

    transformando-se, assim, em uma norma invisvel, legitimadora, a partir da qual construtos

    culturais e valores democrticos so avaliados. A branquidade legitima a ideologia de

    assimilao defendida pelos conservadores, assimilao essa camuflada pelo termo

    diversidade. Assim, para ser integrado cultura dominante o indivduo precisa assumir uma

    viso consensual de cultura, precisa desnudar-se, desracializar-se e despir-se de sua prpria

    cultura, ou seja, precisa aceitar as normas patriarcais essencialmente euro-norte-americanas

    do pas hospedeiro.

    Terceiro, definem padres de desempenho acadmico que esto previstos no capital

    cultural da classe mdia anglo-americana, para toda a juventude. Esses padres tornam-se

    14 Ver o conceito de fronteira sob a perspectiva do hibridismo, de Bhabha, na seo 2.2.3.

  • 27

    instrumentos raciais e classistas de justificao da opresso dos marginalizados. Assim, no

    h questionamento do conhecimento elitizado, dos discursos dos regimes dominantes, das

    prticas culturais e sociais opressoras. No contexto do conhecimento elitizado, podemos

    incluir o prestgio concedido s lnguas ocidentais, consideradas as nicas sofisticadas o

    suficiente para captarem a verdade como essncia, como se existisse uma verdade imanente

    que s precisasse ser revelada. Mas esta idia contm um erro epistemolgico ao elevar a

    lngua a um status de pronunciadora da verdade que a mantm isenta de seu

    posicionamento ou embasamento poltico (McLaren, 1999: 118). Tal artifcio permite aos

    conservadores expressarem sua prpria verdade, expandindo suas formas de dominao.

    1.4.2 Multiculturalismo Liberal

    A verso liberal de multiculturalismo acredita que os indivduos de raas, classes e

    gneros diversos partilham de uma igualdade natural e uma humanidade comum. A razo para

    a desigualdade de posies existentes entre esses grupos a ausncia de oportunidades sociais

    e educacionais para competir com eqidade na economia. A dinmica ideolgica liberal

    baseada em um processo universal e neutro de construo da conscincia, que emana da

    crena modernista cartesiana de que a construo social pode ser abstrada da distribuio de

    relaes assimtricas de poder, assim subestima as tentativas de entender, no mbito social e

    educacional, as formas como raa, classe e gnero mediam e estruturam a conscincia, a

    identidade e a experincia dos indivduos.

    Tal perspectiva descontextualizada insiste em no reconhecer as dimenses

    epistemolgicas e sociais de todo processo educacional, entretanto a tentativa de separar

    educao e poltica no to simples. Como um professor escolhe um livro didtico? Como

    decide que conhecimento ensinar? Como auxilia seus alunos a construir suas identidades,

    sabendo-se que esse processo exige incorporao e rejeio de uma multiplicidade de

  • 28

    construes ideolgicas competitivas? Estas e outras so, obviamente, decises polticas, que

    precisam ser tomadas diariamente no contexto de uma sala de aula.

    E ainda, como separar valores morais e ao poltica? O compromisso moral com a

    justia no deveria ser a base da prtica poltica? Como nos dizem Kincheloe e Steinberg

    (1997: 13): O multiculturalismo liberal, ao engajar-se nessa pseudo-despolitizao, abre

    espao para ser cooptado por objetivos hegemnicos. A igualdade pretendida pelos liberais

    permite que educadores e produtores culturais falem em diversidade, mas atrelando-a

    normatizao eurocntrica. Assim, tanto quanto no multiculturalismo conservador, o currculo

    multicultural liberal tambm assimilacionista.

    McLaren (1999) chama a ateno para o aspecto de mobilidade social desenvolvido

    pela ideologia liberal. O propsito atrelar a igualdade s oportunidades sociais e

    educacionais, utilizadas como garantidoras de eqidade competitiva no mercado capitalista.

    Se tais oportunidades no existirem, os tericos liberais acreditam que as restries

    econmicas e socioculturais podem ser modificadas e reformadas, a fim de se alcanar uma

    igualdade relativa. Para entendermos a dinmica que consagra tal pensamento, precisamos

    voltar nosso olhar para algumas consideraes sobre a construo da desigualdade no

    pensamento neoliberal.

    Na estrutura neoliberal o Estado pouco deve intervir. A livre concorrncia mercantil

    deve resolver os problemas econmicos e sociais relevantes: alocao dos recursos,

    distribuio de rendimentos, condies de trabalho, currculos das escolas e universidades,

    taxa de natalidade, qualidade do meio ambiente, etc. Resta apenas ao Estado zelar pelas boas

    condies de funcionamento do mercado, facilitando a vida dos empreendedores privados.

    Como bem exemplifica Malaguti (2000: 61):

    Seja por meio da construo de uma infra-estrutura de transportes que diminua o

    custo de deslocamento das mercadorias, de hospitais pblicos que reduzam as ausncias ao

  • 29

    emprego, da criao de uma polcia e de um exrcito que garantam a propriedade privada, de

    tribunais que zelem pelo cumprimento dos contratos, de escolas fundamentais que instruam

    sem formar a fora de trabalho requerida pelas empresas, etc. Sempre e quando a isso se

    ativer, a interveno do Estado desejvel e benfica. Caso contrrio, dizem os liberais, ela

    deve ser considerada indevida, excessiva e perigosa.

    Alm de exigir uma atuao seletiva do Estado, o neoliberalismo reconhece o carter

    desigual da sociedade de mercado. Concorda que a livre iniciativa possa e deva conviver com

    algum grau de desigualdade, como reconhece claramente Hayek (Apud Malaguti, 2000: 63):

    em um sistema de livre iniciativa as oportunidades no so iguais, visto que tal sistema

    baseia-se na propriedade privada e (...) no direito herana, com as diferenas de

    oportunidades que lhes so inerentes. O mercado pode gerar desigualdades, mas nunca por

    meio de mecanismos discriminatrios. (De fato, como aceitar uma rejeitando o outro?) Mas os

    liberais, no podendo negar a desigualdade inerente ao sistema de livre mercado, tentam

    naturaliz-la. Assim, no precisam assumir a responsabilidade pelas desigualdades existentes,

    pois essas so inerentes/naturais ao sistema mercantil, nenhum esforo humano consciente

    poder elimin-las.

    Dito de uma outra forma, o mercado no pode evitar que existam miserveis,

    excludos ou marginais, o que poder fazer gerenciar a misria. Diante desse quadro Malaguti

    (2000: 66) expe o labirinto de conformidade e assujeitamento imposto por tal poltica

    econmica: (...) resta aos homens apenas uma passiva resignao. O iderio liberal dissolve,

    assim, as distines entre a histria (como construo humana) e o destino (como imposio

    inquestionvel). Impedido de construir seu futuro, o homem liberal aceita, conforma-se e

  • 30

    resigna-se. Defronta-se, pois, com o fim da histria15.

    1.4.3 Multiculturalismo Pluralista

    A perspectiva pluralista tem-se mostrado uma das mais populares dentre as vrias

    abordagens analisadas. Mantm muitos pontos de contato com a perspectiva liberal, dentre

    eles a postura de descontextualizao das questes relativas raa, classe e gnero e o no

    questionamento da norma eurocntrica; porm difere ao centrar sua preocupao na

    diferena, enquanto os liberais a centram na igualdade.

    O tratamento concedido diferena pelos pluralistas tem como alvo a celebrao da

    diversidade humana e a igualdade de oportunidades. No contexto educacional o currculo

    pluralista busca desenvolver nos alunos comportamento de aceitao do Outro, em busca de

    eliminao de conflitos, preconceitos e o conhecimento de valores, crenas, padres de

    comportamento que caracterizam os diversos grupos. O letramento tem por objetivo habilitar

    os indivduos da cultura dominante a atuar em subculturas e em situaes culturalmente

    diferentes; e os oriundos de culturas subordinadas a aprender a operar na cultura dominante,

    habilidade essencial para obter oportunidades sociais e educacionais. Neste ponto, essa

    perspectiva difere da liberal, pois nos grupos subordinados culturalmente a educao

    multicultural procura desenvolver o orgulho por sua herana e diferena culturais. O que tal

    projeto esquece que

    um multiculturalismo que opera nestas fronteiras pluralistas sempre servir ao status

    quo, como uma construo no ameaadora, que consome a culinria, arte, arquitetura e moda

    das vrias subculturas. De vrias formas o multiculturalismo pluralista castra a diferena,

    15 Ver discusso sobre a posio do Estado Neoliberal na seo 3.5.

  • 31

    transformando-a em uma diversidade segura (Kincheloe, Steinberg, 1997: 18-traduo

    nossa).

    O equvoco dessa postura parece estar na promessa de uma emancipao que no pode

    efetivar, j que confunde afirmao psicolgica com empoderamento poltico; questes de

    diversidade cultural so reduzidas temas de enriquecimento cultural; os contextos sociais e

    histricos em que as identidades raciais so construdas so evitados; as desigualdades

    socioeconmicas e polticas tornam-se nada mais que um produto de divergncia.

    Assim, o currculo multicultural pluralista tem dificuldade em escapar das fronteiras

    discursivas de mobilidade econmica, valores familiares, respeito diversidade e construo

    da cidadania. A temtica da Pluralidade Cultural contida nos Parmetros Curriculares

    Nacionais (1998) um exemplo deste olhar sobre a educao multicultural. Em sua

    introduo, o texto inicia explicitando seu objetivo, como segue:

    ... diz respeito ao conhecimento e valorizao de caractersticas tnicas e culturais

    dos diferentes grupos sociais que convivem no territrio nacional, s desigualdades

    socioeconmicas e crtica s relaes sociais discriminatrias e excludentes que permeiam a

    sociedade brasileira, oferecendo ao aluno a possibilidade de conhecer o Brasil como um pas

    complexo, multifacetado e algumas vezes paradoxal.

    Entretanto, o documento no inclui em seus objetivos uma anlise crtica das relaes

    de opresso e dominao que sustentam tais desigualdades. Cameron McCarthy (Apud

    Torres, 2001: 227), ao analisar a educao multicultural, enfatiza alguns modelos que tm

    caracterizado tal pedagogia e, dentre eles, desejamos destacar dois que se pautam na

    compreenso e competncia culturais. Tais modelos apiam-se em uma concepo de

    relativismo cultural, traduzido em um discurso de reciprocidade e consenso, bem tpicos da

    perspectiva multicultural pluralista descrita acima. A idia desenvolver estratgias

    instrucionais/curriculares que promovam atitudes e interao cross-cultural que reduzam o

  • 32

    antagonismo diante da diferena, busquem a harmonia para com a diversidade cultural, quer

    preparando grupos minoritrios para a negociao cultural/social com a sociedade dominante,

    quer desenvolvendo nos grupos majoritrios a aceitao de tal diversidade.

    Os modelos acima mencionados do uma perspectiva de como o multiculturalismo

    tem sido tratado no Brasil. Tais modelos refletem a prpria democracia liberal em que

    vivemos: uma democracia de consenso, de neutralidade, onde as prticas antidemocrticas

    passam sem questionamento, mascaradora das cises de classe. Ainda, utiliza-se do princpio

    de aceitao da diferena para difundir uma mentalidade de convivncia pacfica, associando

    desigualdades/diferenas, com o objetivo de velar qualquer questionamento por uma

    sociedade menos injusta e desigual. No contexto educacional, tais modelos so aplicados ao

    currculo com o objetivo de esconder as contradies do projeto neoliberal de sociedade, do

    capitalismo contemporneo.

    Malaguti (2000: 74), ao analisar a viabilidade de uma democracia representativa nesse

    contexto, utiliza-se de seu carter intrinsecamente corporativo16. Este representa uma

    multiplicidade de interesses, organizados em corpos institucionais dos mais variados tipos.

    Segundo ele:

    Nem a democracia, nem os tributos maiores da cidadania, podem sobreviver em um

    cenrio social homogeneizado e no qual no existam mecanismos de representao ativa dos

    distintos interesses de classes e grupos sociais. A impessoalidade do mercado no oferece

    espao de discusso ou de reivindicao para interesses pessoais ou grupais. Todos so

    submetidos a uma mesma lgica. As vontades particulares dissolvem-se. Parece claro, ento,

    que entre o (neo)liberalismo e a democracia representativa existe uma relao de

    16 Ver anlise mais detalhada sobre este tpico na seo 3.6.

  • 33

    incompatibilidade e de antagonismo.

    1.4.4 Multiculturalismo Essencialista de Esquerda

    O multiculturalismo essencialista de esquerda no a nica forma de poltica cultural

    essencialista. Seus defensores conectam a diferena a um passado histrico de autenticidade

    cultural onde a essncia de uma identidade em particular foi desenvolvida uma essncia que

    transcende as foras da histria, contexto social e poder. A busca essencialista por

    autenticidade na identidade e histria tem conduzido a um privilgio da identidade como base

    para a autoridade epistemolgica e poltica. Em sua valorizao do poder da autenticidade, os

    essencialistas, com freqncia, assumem que somente as pessoas autenticamente oprimidas

    possuem agncia moral, ou seja, tm autoridade de fazer crticas especficas por estarem em

    uma posio de agenciamento privilegiado. Neste contexto, os essencialistas tm uma

    tendncia de focar a ateno em uma forma de opresso, em detrimento de todas as outras.

    Tal postura enfraquece a possibilidade de articulao de uma viso democrtica que responda

    aos anseios e necessidades mais amplas de indivduos e grupos. Alm disso, esto mais

    preocupados com a auto-afirmao, do que com o esforo em construir, em aliana com

    outros grupos identitrios, coalises mais amplas em prol de uma democracia econmica,

    cultural e poltica inclusiva.

    McLaren(1999: 120-122) utiliza a denominao multiculturalismo liberal de

    esquerda para referir-se s perspectivas pluralista e essencialista de esquerda, citadas por

    Kincheloe e Steinberg (1997: 15-23). Ele centra sua anlise em dois aspectos. O primeiro o

    carter essencializador concedido s diferenas culturais por seus defensores. Estes ignoram a

    situacionalidade histrica e cultural da diferena, que tratada como essncia que existe

    independentemente de histria, cultura ou poder. Assim, desconsidera a cultura dominante e

    privilegia um conjunto no questionado de manifestaes culturais de grupos oprimidos. O

  • 34

    segundo aspecto a reduo do poltico experincia pessoal, situa o significado atravs da

    idia de experincia autntica, na falsa crena de que a poltica de localizao de uma

    pessoa, de alguma forma, garante previamente uma postura politicamente correta, (...) a

    teoria dispensada em favor da identidade pessoal e cultural prprias de uma pessoa

    (McLaren, 1999).

    1.4.5 Multiculturalismo Crtico

    Para Kincheloe e Steinberg (1997: 23-26), classe a preocupao central do

    multiculturalismo crtico, pois interage com questes de raa, gnero e outros eixos do poder.

    Poder que tem operado para legitimar as categorias sociais em um processo que envolve a

    dinmica pela qual as inscries ideolgicas so impressas nas subjetividades, as formas

    como o desejo mobilizado para resultados hegemnicos, os meios pelos quais as foras

    discursivas formatam a conscincia e o comportamento.

    O multiculturalismo crtico tambm visualiza como os indivduos produzem e

    reproduzem significados, em contextos constantemente formatados e re-formatados pelo

    poder. Tal reproduo cultural envolve a forma como o poder (...) constri a experincia

    coletiva em prol dos interesses da cultura dominante, do patriarcado, do elitismo classista e de

    outras foras dominantes (Kincheloe, Steinberg, 1997-traduo nossa). Neste contexto, as

    escolas com freqncia trabalham em cumplicidade com a cultura dominante, pois seus

    professores operam como verdadeiros guardies, transmitindo os valores dominantes e

    protegendo a cultura comum.

    Quanto questo da diversidade, os multiculturalistas crticos buscam uma concepo

    de diversidade que compreenda o poder da diferena, conceitualizada em uma preocupao

    mais ampla de justia social. Para Kincheloe, essa a razo pela qual questes de classe so

  • 35

    to importantes para os crticos, pois um multiculturalismo dedicado democracia que seja

    incapaz de conduzir a transformaes sociais, polticas e educacionais, certamente no

    reconhece os aspectos no-esttico e seletivo da hegemonia: espaos de construo de

    resistncia e transformao.

    Segundo McLaren (1999:122-135), o multiculturalismo crtico reconhece a

    diversidade cultural, porm deseja dar um passo adiante do discurso ou da essncia, deseja

    intervir no conflito social para fornecer acesso igualitrio aos recursos sociais, a fim de

    transformar as relaes de poder dominantes (sociais, culturais ou institucionais) onde os

    significados so gerados; procura mostrar como as polticas de significao operam na

    experincia de vida das pessoas; no contexto pedaggico, v a educao e o currculo

    (corporificao do conhecimento) como campos conflituosos de produo de cultura,

    permeados por relaes assimtricas de poder que formatam as conscincias, as

    subjetividades (pensamento e comportamento), o desejo e o prazer em prol de grupos elitistas;

    procura mostrar os processos educacionais ocultos que privilegiam os j abastados e solapam

    os esforos dos grupos subordinados e marginalizados.

    Os parmetros que separam os diferentes grupos sociais e segregam identidades por

    determinantes de classe, raa, gnero, etc. constituem a origem e o resultado das relaes de

    poder. O multiculturalismo crtico procura compreender como tais categorias so

    representadas nas vrias esferas sociais, conectando-as com seus efeitos materiais, qual seja,

    compreendendo o poder da diferena quando conceitualizada a partir de uma preocupao

    mais ampla de justia social. Como as sociedades tm lidado com a diferena? A que

    propsito tal diferena tem servido?

    Quando a educao Ocidental vista sob tal perspectiva crtica, a crena ingnua,

    como nos alertam Kincheloe e Steinberg (1997), de que nossa educao fornece mobilidade

    socioeconmica consistente para estudantes da classe trabalhadora, negros, ou oriundos de

  • 36

    quaisquer outros grupos segregados no se sustenta. E ainda a noo de que a educao

    fornece um conjunto de habilidades e conhecimentos politicamente neutros tambm se

    diluem. Portanto, a avaliao realista e crtica das foras em conflito nas macro e

    microrrelaes de poder nas escolas e entre elas, em consonncia com as relaes de

    explorao e dominao que constituem o contexto social no qual a educao opera(Apple,

    1999:162) exige um repensar do propsito educacional. Um esforo para tornar o

    pedaggico, poltico17; tornar o processo educacional uma luta do educando por justia social.

    Educadores/educandos precisam, ento, passar por um processo transformador, de

    formas diferenciadas de re-leitura do mundo, de resistncia opresso, de vises de

    comunidades democrticas progressistas. Tal processo visa ao desenvolvimento de uma certa

    criticidade que o mova a reconhecer as foras que formatam sua identidade, os limites de sua

    conscincia reflexiva, e as estratgias opressivas implcitas na forma como conhecimento,

    valores e identidades so construdos.

    1.4.6 Multiculturalismo Crtico e a Construo de Identidade

    O multiculturalismo crtico reconhece a diversidade cultural, ...compreende a

    representao de raa, classe e gnero como o resultado de lutas sociais mais amplas sobre

    signos e significaes (...), mas enfatiza a tarefa central de transformar as relaes sociais,

    culturais e institucionais nas quais os significados so gerados (McLaren, 1999). Neste

    aspecto, precisamos perceber como o processo de constituio de identidades est atrelado aos

    arranjos sociais, institucionais e polticos que mantm a sociedade atual.

    As relaes sociais so o instrumental de promoo e sustentao das relaes

    assimtricas de poder e de construo de nossas identidades. Em um contexto de convivncia

    17 Ver discusso mais detalhada sobre este tpico na seo 3.6.

  • 37

    com diferentes culturas raciais, tnicas e nacionais a diferena , sim, discursivamente

    produzida, mas tambm sempre uma relao: no se pode ser diferente de forma absoluta,

    (...) fora do processo discursivo de significao. (...) Na medida em que uma relao social,

    o processo de significao que produz a diferena se d em conexo com relaes de poder

    (Silva, T.T, 2000:87).

    No possvel, portanto, pensar as identidades hbridas/plurais sem pensar nos

    processos de discriminao que segregam tais identidades por determinantes de classe, raa,

    gnero, etc, da a necessidade de interao entre a perspectiva discursiva e a crtica mais

    ampla que questiona tais processos.

    Qual o papel da teorizao crtica diante destes desafios? A teorizao crtica percebe

    a educao/escola como campo conflituoso de produo/reproduo cultural e social, ou seja,

    o currculo ocupa um papel central nesse processo, atravs dele que a cultura/ideologia

    dominante se impe, identidades se constituem, as relaes sociais de poder se expressam. De

    forma mais especfica, o que a escola faz estabelecer as condies para que alguns

    indivduos e grupos definam os termos segundo os quais todos os demais vivero o processo

    de participar na construo de suas prprias identidades e subjetividades, aceitando-o ou

    resistindo (Giroux & McLaren, 1994:143).

    A construo de identidades plurais/hbridas, no contexto escolar, passa por discursos

    e prticas curriculares que sensibilizem alunos para a articulao identidade alteridade, pois

    desconhecendo a experincia do Outro impossvel dimensionar a identidade prpria

    (Bhabha, 1998). Reconhecer e respeitar a diferena , portanto, o caminho para se questionar

    estratgias de silenciamento de tais pluralidades.

    O multiculturalismo crtico ao propor a interveno neste conflito social atravs do

    questionamento e desafio s estruturas e relaes injustas de domnio e poder, que mascaram

    a desigualdade atravs de um discurso, muitas vezes, liberal que busca to somente legitimar

  • 38

    um processo de homogeneizao cultural, pretende tambm buscar propostas alternativas de

    hibridizao cultural nos currculos, pois, como nos diz Moraes, S. (2000:215): ...a escola

    tem sido convidada a aceitar o pluralismo e a autenticidade de outras vozes e outros mundos;

    questionar, como trabalhadores culturais(Giroux, 1999: 280-281) da educao, o que a

    escola tem feito com esse convite vislumbrar os sentidos em jogo no processo scio-

    histrico e ideolgico de sua aplicabilidade.

    A idia de uma formao docente multicultural no supe to somente a aceitao de

    manifestaes culturais, mas reconhece a multiplicidade de lnguas e cdigos dentro de uma

    nica lngua; um dilogo consigo mesmo e com o Outro que contesta e rompe com a

    estrutura narrativa de textos sociais dominantes (McLaren, 2000); um espao para a

    traduo cultural. Tal processo implica em uma reviso ampla do currculo pedaggico,

    incluindo como elementos de anlise planos e propostas (currculo formal), prticas sociais e

    pedaggicas (currculo em ao), normas e valores no explicitados que governam as relaes

    que se estabelecem em sala de aula (currculo oculto) e os dados efetivamente eliminados dos

    planos e