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Mulheres e bordados: os têxteis como telas do coração
DÉBORA PINGUELLO MORGADO*
Resumo: Por muito tempo os trabalhos de linha e agulha foram pensados como
intrinsecamente femininos. De mãe para filha, desde cedo as meninas aprendiam a manejar a
agulha sobre o tecido, atividade que aplicavam na confecção dos têxteis decorativos da casa.
Nos meios rurais e nas pequenas cidades, como apontam as fontes orais utilizadas, essas
tarefas eram significativas, uma vez que as modestas condições financeiras obrigavam
mulheres a coser tecidos de algodão liso e a enfeitá-los com as imagens por elas bordadas.
Analisados enquanto estruturas de sentimentos, esses trabalhos buscarão ser compreendidos à
luz de seu aspecto subjetivo, como forma de comunicação de sentimentos e ações que
colocam em movimento a realidade de mulheres por meio de seu trabalho e das imagens por
elas construídas. Para além da força coercitiva das estruturas, a partir das entrevistas
coletadas, apreende-se o uso que mulheres fazem de suas agências no ato de comunicar, com
linguagem não verbal, os sentimentos destinados para aqueles que lhes são queridos. Por fim,
entende-se que os desenhos bordados se constituem enquanto imagens que, ao decorar o
coração de uma família, perenizam a memória de mulheres no mundo.
Introdução
No fazer historiográfico, durante muito tempo, as mulheres foram esquecidas ou então,
quando lembradas, anexadas aos grandes personagens masculinos que protagonizavam as
narrativas. Perrot (2015), por este mesmo viés, chama a atenção para a capa de invisibilidade
lançada sobre os trabalhos femininos no lar, que apenas recentemente vêm ganhando o status
de trabalho e entrando definitivamente para a História. Nesse sentido, a história oral, muito
mais do que dotar o historiador de metodologias para trabalhar com a oralidade, tem cumprido
um importante papel ao dar a voz às mulheres as quais outrora foram emudecidas. Assim,
além de ferramentas metodológicas e de se constituir enquanto um campo da história, a
história oral, pensada na perspectiva das mulheres, apresenta-se enquanto um espaço que
confronta o hegemônico ao lançar luz sobre as histórias e labores femininos.
Tenta-se recuperar, hoje, o que no passado foi descartado por ser pensado enquanto
trabalho menor ou não trabalho, a fim valorizar a história feminina, que é também a história
da família e a história de toda a sociedade, constituída por homens e mulheres. Os trabalhos
de linha e agulha realizados no lar, e passado entre mulheres de geração em geração,
costumeiramente eram dispensados, destruídos, destituídos de um valor que os tornassem
* UDESC, Doutoranda em História.
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objetos guardáveis (PERROT, 2015). Ou ainda, quando guardados, constituíam-se enquanto
um cofre com os segredos daquelas que os deram vida; gavetas nas quais se depositavam os
sentimentos e os afetos dos quais não se falavam. Malta (2015: 1), ao escrever sobre os
paninhos para a casa confeccionados por mulheres, reflete acerca de seu atual desuso, e
também que “Alguns os consideram um excesso, outros, uma cafonice. E assim, descansam e
amarelam-se no fundo de muitas gavetas.”. Esses tecidos amarelecidos foram, no passado,
decorados com imagens que ali se coloriram com fios e linhas, materiais trabalhados com a
agulha. Muitos desses panos são lembranças de importantes ocasiões, como o enxoval
preparado para o matrimônio ou as mantas e roupas de banho e cama confeccionadas para o
nascimento de um filho.
Na obra O Casaco de Marx, Stallybrass (2008) traz reflexões sobre memórias, família,
roupas e têxteis. Em uma interessante abordagem, o autor compara as roupas e as joias: as
roupas carregam as marcas humanas enquanto as joias, ainda que carreguem as marcas de
seus donos, resistem à história dos corpos, ridicularizam a mortalidade humana. Já a roupa e
os têxteis carregam o cheiro da mortalidade, as histórias de vida e morte de seu dono. A
roupa de alguém que já se foi, como observado no livro, é a parte viva de seu antigo usuário, a
parte que permaneceu viva dentro do guarda roupas; o lençol usado para acompanhar o sono
do namorado é a lembrança mais forte dele quando o dia amanhece e ele se vai. O que autor
aborda em sua obra, em outras palavras, é capacidade de transformação dos têxteis em vetores
de histórias e fontes históricas que podem e devem ser apropriadas pelo historiador.
A partir desse enfoque, e com os recursos da história oral, este artigo pretende
focalizar os trabalhos de bordado em têxteis realizados por mulheres enquanto fontes para
uma narrativa das ações das donas de casa no lar. Salienta-se, ainda, que há aqui uma tentativa
de dar movimento a essas ações, tal qual foram e ainda são vividas e experimentadas por essas
mulheres – tarefa para a qual os conceitos de estratégia e tática, de Certeau (1998), e
estruturas de sentimentos, de Williams (1979), serão aplicados. Os autores mobilizam esses
conceitos a fim de revelar a trama que é tecida no cotidiano e atravessada por sujeitos e
objetos. Enquanto as estratégias falam de uma estrutura de coerção mais forte, as táticas são
as formas como as pessoas agem diante das estratégias, utilizando-se de suas agências que,
muitas vezes, estão abaixo das estruturas. Estruturas de sentimentos, de forma simplificada,
apontam para os elementos objetivos e subjetivos que orientam as práticas cotidianas e
relevam-na como algo complexo.
A história oral e o seu poder de atuar na escala micro da história contribuem, por sua
vez, para dar movimento à história de mulheres com seus tecidos e seus bordados. Ao ter em
mãos, enquanto narra, a fonte da qual se narra, os sentimentos emergem e as lembranças
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revelam suas linhas inacabadas, acrescentando ao presente os nuances de um passado não
findado. São mulheres que aprenderam a costurar e a bordar ainda meninas, fosse porque este
era um trabalho obrigatório para as mulheres, ou porque a necessidade de coser as roupas da
família e as vestes da casa fora imposta pelas precárias condições financeiras. Tanto por
proximidade quanto pelo anseio de narrar a história daquelas que são geralmente esquecidas,
optou-se, para este trabalho, utilizar como fontes orais as histórias de seis mulheres
familiarizadas com certa rotina de costuras e bordados.
As mulheres selecionadas possuem entre 50 e 85 anos. O critério de escolha das fontes
foi baseado na região de moradia e na idade, considerando mulheres moradoras de pequenas
cidades - até quinze mil habitantes -, residentes rurais ou não, e que praticam o ofício do
bordado desde a infância ou adolescência. As entrevistas questionaram acerca da relação
dessas mulheres com o bordado, quais os tipos de bordados, quais as aplicações que deles são
feitas e quais as interações produzidas, por meio deles, entre elas e os demais membros da
família. Ainda, focaram nas imagens produzidas sobre os tecidos e nos sentimentos
envolvidos na escolha de determinados desenhos. O método de coleta da entrevista foi a
gravação seguida de transcrição, que após ser digitalizada foi revisada pelas autoras das falas
coletadas. Os têxteis dos quais se fala foram fotografados e se integram a este artigo no corpo
do texto.
1. O manejo das escalas e o enfoque oral para uma história das donas de casa
Nas dinâmicas que intermediam as relações no lar entre mulheres e homens, ressoam
os projetos, as estratégias e os acontecimentos de variadas escalas; incorporam-se as táticas
desses atores sociais: força basilar de sua sobrevivência. Depositadas em campos de
experiência, essas dinâmicas engendram horizontes de expectativa, ou seja, encadeiam sua
existência nas especulações para o futuro; conectam-se a outras experiências e expectativas
cujas sucessões elaboram a vida vivida por esses sujeitos. Não se pode medir a complexidade
das relações entre passado, presente e futuro utilizando-se, para isso, apenas uma escala de
observação, ou seja, apenas um enfoque historiográfico. Por muito tempo, a história foi feita
olhando-se somente para as estruturas, ignorando-se, portanto, as dimensões táticas dos
sujeitos abaixo delas – em muitos tempos e sociedades, as mulheres, principalmente, foram
colocadas em tal posição.
Para Revel (2010), importa menos priorizar a análise que focaliza uma escala do que
variar a escala para lançar luz aos vários ângulos dos objetos estudados.
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Retomando uma metáfora que foi muito utilizada nos últimos anos, variar a
focalização de um objeto não é unicamente aumentar ou diminuir seu tamanho no
visor, e sim modificar sua forma e sua trama. Ou então, para lançar mão de outro
sistema de referência que a mim pessoalmente me parece mais elucidativo – o
cartográfico –, a escolha de uma ou outra escala de representação não equivale a
representar em tamanhos diversos uma realidade constante, e sim transformar o
conteúdo da representação mediante a escolha do que é representável (REVEL,
2010: 438).
Cada escala de tempo e espaço guarda em seu interior uma das muitas facetas de um
objeto, de tal modo que optar por uma escala é também optar por um algo a se representar, o
que vai muito além de aumentar ou diminuir o tamanho da representação da realidade
analisada. A possibilidade de caminhar no espaço e no tempo lançando perguntas aos objetos
permite desvendar-lhes as dimensões que os integram, aproximando o historiador da verdade
almejada. Nesse mesmo sentido, Koselleck (2014: 304) utiliza a metáfora da câmara e suas
lentes: “A focalização de uma lente fotográfica também não permite um longshot e um close
ao mesmo tempo.”. Em suma, os autores concordam que cada temporalidade do objeto, cada
escala, guarda um algo em específico, necessitando essa troca de lentes para que esse algo
seja captado.
A perspectiva de escala, ao democratizar a história e incentivar a busca de ferramentas
para a percepção dos vários ângulos de um objeto, tenta dotar os objetos da história de
temporalidade e complexidade, uma vez que esses carregam em si estratos de tempo e que são
permeados por forças, desejos, sentimentos. São, em suma, objetos dotados de movimento,
que não são uma coisa apenas, mas que acontecem na vida que se vive enquanto é atravessado
por inúmeros eventos e escolhas. Difícil, então, ao se considerar esses aspectos, é escrever a
história sobre qualquer coisa que seja, uma vez que a escrita tende a ser congelante no seu ato
de perenizar com palavras gravadas no computador ou no papel. São problemas dos quais se
ocupam até mesmo os historiadores de história oral, pois há, na escrita da história, a
imobilização das falas coletadas. Isso não significa, no entanto, que não há saída para os
historiadores; trabalhar com a oralidade, em especial com grupos como mulheres – que
passam suas tradições utilizando-se do recurso oral – mostra-se uma ferramenta capaz de
representar, justamente, as cores de uma cultura vivida e que se vive.
Sahlins (1994) identifica que as linguagens não entram no mundo para, simplesmente,
adicionar aos objetos já dados; mas sim, são elas próprias as mediadoras na formulação dos
objetos. Quando representações se posicionam em cena, é a própria cultura acontecendo,
colocando-se enquanto “[...] síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente, de
diacronia e sincronia.” (SAHLINS, 1994: 180). Ou seja, a cultura é um movimento constante
que se desencadeia nos usos das linguagens. Assim, ao serem capturadas as falas de mulheres
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em relação às imagens bordadas em tecidos, é preciso que a leitura a ser feita não veja apenas
o passado da fala, mas também o presente, e a transformação daquele passado em presente no
objeto, transformando, por sua vez, o próprio conteúdo do objeto. A reelaboração dos
sentimentos passados e sua irrupção no presente para dar conta de uma história, não apenas
acontece e atua para falar das práticas e relações pretéritas, mas desponta como
transformadora da realidade daquele espaço.
É necessário também apontar para o convívio, na escala micro, entre os gêneros
opostos; homens e mulheres unidos e em oposição dentro de espaços, culturas, sociedades,
economias e políticas, o que pode ser mais compreendido, no que tange à questão de
movimentos e de fluxos, ao se considerar as estruturas de sentimento nesses âmbitos – como
propõe Williams (1979) –. Tais estruturas dizem respeito aos mais diversos elementos,
objetivos ou subjetivos, que atravessam as práticas das pessoas e que, por isso mesmo, não
traceja uma linha reta e contínua dentro de sustentações imóveis. O que dizer das mulheres
que, no emprego de práticas consideradas femininas, como é o caso da culinária e da costura,
conquistam espaço no coração dos homens e plantam ali, de forma sutil, algumas de suas
vontades? Como escrever sobre o amor empregado nas artes de fazer e nas formas de ser no
mundo, ainda que essas formas se valham das estruturas de poder?
Essas questões são levantadas para viabilizar, de forma resumida, as relações que dão
o tom deste trabalho na análise de têxteis e de lembranças de mulheres. Assim, para além das
forças de coerção, mas sem desligar-se delas, a análise micro busca adentrar portas, gavetas e
corações femininos; para além de estratégias engendradas por aqueles que detêm maior poder
– neste caso, os homens da casa –, as táticas das mulheres ao se utilizarem de sua própria
posição para driblar os campos de força; por fim, para além de escolhas baseadas em modelos
racionais de pensamento, estruturas de sentimentos que revelam desejos e sonhos escondidos.
O recipiente deste bolo, de tão instigantes ingredientes, é a história oral, que sustenta e dá a
forma e a vida da narrativa a se erigir.
2. Imagens em tecidos e sentimentos bordados
Os objetos do cotidiano trazem em si as marcas do humano e, portanto, possuem um
poder biográfico. O tempo e o uso modificam os objetos, o que lhes proporcionam uma
continuidade na história. A vida social e cultural está intrinsicamente ligada à vida dos objetos
materiais, cujas alterações sofridas pela ação humana se fazem representativas das mudanças
pelas quais passam a sociedade e os grupos que nela se inserem.
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Na medida em que os objetos materiais circulam permanentemente na vida social,
importa acompanhar descritiva e analiticamente seus deslocamentos e suas
transformações (ou reclassificações) através dos diversos contextos sociais e
simbólicos [...] Acompanhar o deslocamento dos objetos ao longo das fronteiras
que delimitam esses contextos é em grande parte entender a própria dinâmica da
vida social e cultural, seus conflitos, ambiguidades e paradoxos, assim como seus
efeitos na subjetividade individual e coletiva (GONÇALVES, 2007: 15).
Considerando isso, mais do que representativos, esses objetos possuem uma vida
própria e um modo particular de se comunicarem. Para decifrá-los é preciso atenção aos
detalhes. No caso dos têxteis, deve ser levado em consideração todo tipo de detalhe
circunscrito sobre os tecidos, o próprio tecido em si (ou linha, no caso dos trabalhos de
crochê), as cores e os desenhos. Oliveira (2007), ao pensar na linguagem dos tecidos e da
moda, considera que ela se dá por meio das texturas, estampas, linhas e bordados. E para a
leitura dessa linguagem, Gonçalves (2007: 21) complementa que é “relevante conhecer a
forma desses objetos, o material, a técnica de fabricação, assim como as modalidades e os
contextos de uso.” Pois o seu fabrico e o seus usos dizem muito de uma cultura, de uma
identidade, de uma biografia. Todos esses aspectos devem ser levados em consideração no
momento de análise dos objetos como fontes.
Não se deve esquecer, no entanto, que os objetos – até mesmo os escritos – possuem o
seu aspecto indescritível, ou seja, realidades que não aparecem como leitura que se pode ser
feita. Nesse sentido, a história oral tem muito a oferecer, pois tenta recuperar o indizível dos
objetos.
É através do oral que se pode apreender com mais clareza as verdadeiras razões de
uma decisão; que se descobre o valor de malhas tão eficientes quanto as estruturas
oficialmente reconhecidas e visíveis; que se penetra no mundo do imaginário e do
simbólico, que é tanto motor e criador da história quanto o universo racional
(JOUTARD, 2000: 34).
Nota-se a importância dos relatos orais ao serem observadas as imagens aqui
apresentadas. Na figura 1 é mostrado um jogo de copa que foi bordado para compor o enxoval
de uma das mulheres entrevistadas (M1, 60 anos). O bordado foi realizado sobre um tecido de
poliéster e apresenta bordas com chuleado manual, em recorte nuvem, e com flores
margeando os tecidos. A cor do tecido é azul claro e as flores são vermelhas e amarelas com
seus ramos em verde.
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Figura 1 – Flores nas bordas
Fonte: imagem própria
Eu fiz esse bordado quando tava juntando as coisas pro meu enxoval, eu já tava
com o casamento marcado. Isso aqui eu fiz tudo à mão, a gente tinha muita
habilidade. Eu escolhi flor porque eu amo desenho de flor, pra mim é a coisa mais
linda da natureza. Aí eu ficava imaginando que a gente ia comprar aqueles
armários lindos de madeira, e quando tava bordando fiquei pensando nesses
paninhos em cima da copa combinando com a cor da madeira. No fim o dinheiro só
deu pra comprar um armário mais barato que era todo vermelho, aí até achei que
tinha ficado legal ter flores vermelhas, mas o azul não sei se combinou muito com a
cor do armário. Eu usava mesmo assim e achava tão bonito quando o meu esposo
me ajudava a limpar a casa e ele pegava esse jogo pra colocar no armário... me
sentia feliz porque é uma coisa que a gente faz com carinho, né? (M1).
O depoimento da primeira mulher é bastante revelador sobre as expectativas de um
casamento, as frustrações impostas pelas condições financeiras e os sentimentos de carinho
que envolvem a confecção do bordado e, especialmente, o seu uso. A sensação de felicidade
se completava ao ver o esposo colocando, por ele mesmo, os paninhos sobre o armário. É
como se o esposo, ao utilizar os têxteis, assentisse o apreço por eles, e valorizasse aquele
trabalho. Os têxteis bordados com flores, como percebido na oralidade, falam de uma
aproximação das mulheres com as flores, aproximação essa que se concentra na concepção
histórica da feminilidade enquanto natureza delicada e frágil, tal como a flor.
Na Figura 2, a segunda entrevistada (M2, 53 anos), apresenta uma de suas toalhas de
chá, já bem manchada. A toalha tem os quatro cantos bordados com a imagem de uma flor,
um cravo, realizado em ponto cruz.
Figura 2 – Cravo em toalha de chá
Fonte: imagem própria
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Naquela época a gente não tinha como ficar comprando revista de bordado, a gente
morava no sítio e nem sei se vendia revista na cidade. Essa toalha eu bordei quando
ainda era moça, pensando no meu enxoval. Eu tinha ido na casa de um pessoal do
sítio vizinho e vi uma toalha com um bordado tipo esse, eu achei lindo e quis fazer
também. Eu já tinha essa toalha guardada, aí peguei e fui bordar. [...] Nossa, eu
usei tanto essa toalha, na cozinha tudo tinha que ter flor ou fruta, acho muito
bonito... borboleta também, passarinho... Eu fazia muito bordado, hoje eu bordo
mais pras minhas filhas que moram longe, aí sempre que eu vou eu levo algum
bordado ou um crochê. Minha maior alegria é chegar na casa delas e ver que elas
estão usando uma coisa que eu fiz. Minha caçula também faz bordado e as vezes me
dá umas coisas, mas é tão bonito que eu tenho até dó de usar (M2).
A fala dessa entrevistada demonstra, além das expectativas depositadas no casamento,
o amor do cuidado para com as filhas e o papel do bordado nessa relação de cuidado. A troca
de sentimentos entre mãe e filha se dá nos presentes trocados entre elas. A beleza e o esmero
com que foram feitos os tornam objetos de um valor muito íntimo para essas mulheres. O uso
desses presentes, ao mesmo tempo em que é a expectativa e felicidade de quem presenteou, é
uma probabilidade, para o presenteado, de estragá-lo com manchas ou outros danos do uso, o
que parece destruir o sentimento em sua forma material e, portanto, produz o movimento que
encerra os têxteis dentro de uma gaveta.
As imagens bordadas, mais uma vez, apresentam as flores, que na fala se complementa
com as frutas, as borboletas e os passarinhos. A relação entre esses objetos está na leveza, na
doçura, na pequeneza e delicadeza. Ainda, o ponto cruz feito sem um tecido guia apropriado
para o bordado, revela a habilidade da mulher em construir pontos tão parecidos uns com os
outros, apontando para uma boa noção de espaço, o que por sua vez faz pensar sobre um fazer
artístico, habilidoso, complexo, que equipara o trabalho dessas mulheres aos trabalhos de
artistas reconhecidos enquanto tal.
A terceira entrevistada (M3, 85 anos), apresenta também uma toalha de chá com
raminhos de flores bordados em ponto cruz nos cantos da toalha, como é demonstrado pela
Figura 3. As cores escolhidas foram o azul, o vermelho, o amarelo e o verde.
Figura 3 – Raminhos
Fonte: imagem própria
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Essa toalha eu fiz depois de casada, foi depois que os meninos já tinham crescido,
enquanto eu tinha que cuidar deles pequenos não dava muito tempo de fazer
bordado não. Eu gostava de fazer esses desenhos mais facinhos assim, uns
ramadinhos de flor... acho que fica mais delicado né. Essa toalha tá inteira porque
eu só usava quando vinha visita, não gostava de por no dia a dia, tenho dó dos meus
bordados. Aí era bacana quando o pessoal elogiava o que a gente fazia, a gente
gostava de deixar a casa bem enfeitada. As comadres ficavam querendo copiar as
coisas da gente. [...]. Hoje em dia eu não consigo mais fazer tanta coisa por conta
das vistas e porque a mão as vezes treme, mas dá pra fazer alguma coisa vez ou
outra. É bom que distrai, pra quem tem depressão é um remédio até (M3).
A fala da terceira entrevistada e sua toalha de chá vai ao encontro dos têxteis e dos
testemunhos das demais mulheres ao apresentar as flores e o apreço por elas. As flores
pequenas com ramos são as preferidas por seu aspecto mais delicado. A entrevistada ainda
aponta para as ocasiões de uso de seu bordado; ao utilizar somente quando iam as visitas, a
dona de casa buscava mostrar seus dotes e também criar um ambiente bonito para receber
aqueles por ela queridos.
Os fins de semana, as festas e as visitas dispendem, assim como a moda do vestir-se,
que a casa esteja com um traje diferente, bonito, enfeitado. Uma junção de tradições, entre as
quais a cristã, preconiza o embelezamento dessas datas, desses dias, como rituais que marcam
a sucessão dos dias no calendário, ou do passar do ano, fato reconhecido por meio das datas
comemorativas. O embelezamento é um “não passar em branco”, é a sensação de coisa feita e
nos “devidos conformes”, afinal, a espécie humana capta a maior parte dos sentidos pela visão
(FREITAS, 2011): sentido esse que demanda uma nutrição própria, toda uma construção de
mundo para saciar a fome de se enxergar a beleza.
Ao final do depoimento, a mulher indica que a relação com o bordado é também para
distração e para afastar o mal da depressão, o que é recorrente com as mulheres donas de casa,
e é também apontado pela quarta entrevistada (M4, 73 anos), junto ao seu pano de prato
decorado com rosas vermelhas e botões em ramos apresentado pela Figura 4.
Figura 4 – Rosas e botões
Fonte: imagem própria
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Pra mim rosa é tudo! Você viu né no meu jardim o tanto de rosa que tem. Eu gosto
de rosa de outras cores, mas gosto mais da vermelha porque me lembra o dia que
meu finado marido me trouxe uma rosa quando a gente ainda namorava. Tem uns
pés ali na frente que foi ele que plantou, eu não deixo ninguém tirar as rosas de
mim. Esse guardanapo aqui eu bordei não faz muito tempo, antes eu não sabia fazer
essas coisas com fita, aí vi isso numa revista e acabei fazendo, achei que ficou tão
lindo. [...] Depois que o meu marido morreu eu fico bordando mais do que antes,
porque aí penso menos nisso... as vezes dá uma solidão muito grande. Aí eu bordo,
dou presente pras minhas filhas, pras noras e pras netas também, todo mundo gosta
e fica me pedindo quando que eu vou fazer outro, ou então elas mostram um
desenho e pedem pra eu fazer. [...] Eu acho que é um jeito bonito de dar presente
porque aí eu sei que quando elas usam essas coisas que eu faço elas vão lembrar de
mim... e quando eu vir a faltar é uma coisa minha que elas vão ter de lembrança
(M4).
O depoimento da quarta entrevistada foi talvez o mais emocionante, e onde as
emoções transpareceram de forma mais evidente na fala e nos gestos da mulher, que olhava
para baixo e para o seu bordado enquanto falava. Há uma consciência muito grande acerca da
morte que se aproxima com o passar dos anos, e o anseio de deixar os registros de si no
mundo para não ser esquecida quando “vir a faltar”. As flores do jardim e as flores do
bordado, em especial as rosas vermelhas que a fazem se lembrar de sua época de namoro e de
seu finado marido, são cultivadas como forma de presentificar as ausências e o passado.
A quinta mulher (M5, 50 anos) e a sexta mulher (M6, 64 anos) entrevistadas, em suas
falas, revelam que se utilizaram do bordado para conseguir fazer dinheiro extra. Enquanto M5
borda como passatempo e aproveita a habilidade para complementar a renda, M6 utilizava o
bordado como ferramenta com a qual obtinha maior liberdade diante a autoridade do marido
já falecido.
Eu não podia trabalhar fora, tinha que ficar em casa, o meu marido era um homem
muito antigo e não me deixava trabalhar, aí eu fazia os bordados e vendia pra
alguma amiga que as vezes passava em casa. Eu vendia barato, não sei muito
cobrar essas coisas, mas aí o dinheirinho que dava eu comprava uma blusa, um
batom. Porque tudo o que eu ia comprar eu tinha que pedir para o meu marido, aí
quando eu tinha esse dinheiro eu ia escondido mesmo, e ele nem percebia quando
eu tava com uma roupa nova (M6).
A dimensão tática dessa fala é muito nítida, pois apresenta o uso de uma agência
feminina – os trabalhos manuais de bordado enquanto dotes – para a negociação da liberdade.
Ainda que a mulher tivesse que realizar as compras escondida do marido, o bordado permitia
que ela se enfeitasse com uma roupa ou batom novo. Ela revela que o seu marido mal notava
essas aquisições, o que aponta tanto para o fato dela poder comprar sem medo de ser
descoberta quanto para o fato de que ela não se embelezava para ele, uma vez que ele não era
capaz de reparar nesse aspecto.
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Os têxteis apresentados por essas mulheres também eram decorados com flores,
apontadas pelas duas como os seus desenhos favoritos. Por falta de espaço as imagens não
serão acrescentadas a este texto. Os bordados eram em ponto cheio, ou seja, um tipo de ponto
que traça um contorno de um desenho e o preenche inteiro com pontos simples. A quinta
entrevistada revelou, ao manusear o seu bordado de flores miúdas e coloridas, que:
Teve um dia que a gente brigou feio e eu fiquei com muito medo dele me deixar, aí
eu tinha que fazer a marmita dele pra ele levar pro trabalho, ele é pedreiro né, aí
aquele dia eu acordei cedo, a gente tinha brigado no dia anterior e ele tava sem
falar comigo, eu fiz a mistura preferida dele, que é um ovo mexido com batatinha, e
enrolei a marmita numa toalha que eu tinha bordado fazia pouco tempo. Ele tomou
café, tudo sem falar comigo, pegou a sacola que tava a marmita embrulhada dentro
e foi pro trabalho. Quando ele chegou em casa do trabalho ele parecia outra
pessoa, disse que era pra gente esquecer aquilo e que a gente tinha que ser um
casal unido. Eu tenho certeza que o meu ovo e a minha toalha mexeram com ele,
mas ele nunca falou (M5).
Os sentimentos presentes em um relacionamento e que direcionam as práticas do casal
são cruzados e modificados pelos objetos cotidianos. Como compreender a atuação
psicológica do alimento e do bordado na reconciliação da entrevistada com seu esposo? É
preciso atentar para o que Giard (1996) entende como a impressão de um estilo próprio de ser
no mundo. Como toda ação humana, as tarefas femininas dependem da ordem cultural que
varia entre as diferentes sociedades, classes sociais e à própria individualidade forjada pelas
relações, pelos aprendizados no decorrer do tempo e também por meio da subjetividade e
personalidade, imprimindo um estilo próprio e que se faz ver na arrumação da casa e preparo
dos alimentos.
Deste modo, apropriando-se do “saber-fazer” comum, cada “fada do lar” adquire
finalmente um modo próprio de fazer intervir, umas sobre as outras, as seqüências
cronológicas e de compor, sobre temas obrigatórios, ne varietur, uma música de
variações jamais fixas numa forma estável (GIARD, 1996: 218).
Os trabalhos femininos, então, conferem o movimento que complexificam a sua
cultura, não podendo ser capturadas apenas ao se considerar as estruturas de poder que se
colocam sobre as táticas dessas mulheres. É possível pensar que o marido, ao ver o estilo
próprio de sua mulher impresso naquela comida e naquele bordado, percebeu a
individualidade ali posta, única e insubstituível de sua esposa, o que o fez repensar e retornar
ao lar com o coração aberto à reconciliação.
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Considerações finais
Ao final deste texto, percebe-se uma evidente inclinação das mulheres em relação aos
desenhos de flores. As concepções de feminino da mulher como flor perpassam a história das
mulheres de múltiplas formas. Estão nos nomes das revistas, nos nomes das mulheres, nas
imagens que representam o feminino e nos desenhos bordados como um dos principais
elementos das artes decorativas de bordar sobre tecidos. O design de superfície têxtil
constituído por flores foi, ao longo da história e em diversas culturas, utilizado pelas mulheres
em seus corpos e na decoração de ambientes, principalmente para as roupas da cama e mesa
(EDWARDS, 2012).
O trabalho artístico da mulher, permeado pela sensibilidade, é cingido pelas flores. As
“naturezas semelhantes” entre mulheres e flores, como por muito tempo se acreditou, fazem
da flor um símbolo de feminilidade que contribui para a integração da mulher com a casa por
meio das vestes e dos têxteis domésticos. Se não estão, as flores, nos próprios desenhos
executados pelos trabalhos manuais, é comum que estejam compondo o estilo indumentário
dessas mulheres, aliando, portanto, a mulher com a sua casa, ambiente que historicamente se
constituiu enquanto espaço de mulher.
Apesar de disporem de táticas, as mulheres entrevistadas, como se pôde perceber,
precisavam respeitar um certo espaço. Dentro desse espaço, os “jeitinhos” iam se aplicando
nas formas por elas encontradas de registrar sua marca e levar amor para os que estavam
próximos de si ou mesmo distantes, como é o caso das filhas que moravam longe. “Ser-no-
mundo” a partir das “artes de fazer”, então, eram formas encontradas de se colocar nos
objetos, de participar das memórias de cada membro da família, de nutrir, de fortificar a vida
e de saciar com beleza. A casa das famílias dessas mulheres, antes de narrar sobre poder de
consumo, status social e aderência a certas modas, pode narrar sobre aconchego, cuidado e
amor, experimentado na interação com os elementos que concentram os símbolos de ser
mulher, ser mãe e esposa, símbolos de acolhimento e de afeto que fazem, dos momentos em
família, um grande abraço de mãe, ou um grande abraço de mulher.
Referências
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes,
1998.
EDWARDS, Clive. Como compreender design têxtil: Guia rápido para entender estampas e
padronagens. São Paulo: Senac, 2012.
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FREITAS, Renata Oliveira Teixeira de. Design de Superfície: Ações comunicacionais táteis
nos processos de criação. São Paulo: Blucher, 2011.
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