MUITOS Enredos Chico Dos Bonecos

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MUITOSDEDOS:ENREDOSUm rio de palavras deságua num mar de brinquedos

FRANCISCO MARQUES(Chico dos Bonecos)

Fotografia: Marcelo Berg

Editora Peirópolis

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NO FUNDO DESTAS ÁGUAS

Esta e uma obra de ficção. Qualquer semelhança com propostas educativas será mera coincidência. Entretanto, caso o leitor encontre tal semelhança... Viva o encontro! Afinal, a vida e repleta de coincidências ficcionais. O leitor, por acaso, pode descobrir, nesta obra, um roteiro de trabalho sobre a nossa Língua Portuguesa - uma chuva de provocações ao redor da leitura e da escrita. Esta obra rio de palavras - apresenta seis capítulos: cinco curvas e o mar. Que tal buscar, no fundo destas águas, a tal semelhança educativa - ou a tal coincidência ficcional? Na primeira curva, vamos mergulhar na leitura do conto "A Saparia do Mundaú". Em seguida, vamos conhecer esse mesmo enredo através das narrativas de Esopo, Fedro e La Fontaine. Temos aqui, no fundo destas águas, o desafio da recriação recreativa: re-inventar fábulas, re-imaginar contos, recontar casos, redesenhar memórias. E sempre perseguindo o famoso provérbio: quem conta um conto omite um ponto e aumenta três. Na segunda curva, "A Bicharada Novidadeira" convida o leitor a contar a história. O próprio conto revela, dentro do seu enredo, a experiência de narrar para os ouvintes. Nessa aventura, a voz do leitor re-inventa a palavra - e a palavra, reinventada, transforma o corpo do contador. Temos aqui, no fundo destas águas, o desafio de ler e reler até descolar a palavra do papel e oralizar a literatura. Para tomar o desafio mais sedutor, a "Espalhadeira de Recortes" se encarrega de debulhar uma coleção de casos e comentários sobre o contador e suas platéias. Na terceira curva, encontramos "O Balaio" - uma peça para teatro de fantoches. Nessa aventura, a palavra e re-inventada pelo objeto que ganha ânimo, alma, animação. Temos aqui, no fundo destas águas, o desafio de transformar a leitura em ensaio, de desdobrar o leitor em ator e boneco. Na quarta curva, a surpresa do "Catiripapo" - uma peça radiofônica. A relação entre os narradores e os ouvintes é re-inventada pela palavra gravada. Temos aqui, no fundo destas águas, o desafio de transformar o leitor em locutor: lapidar a entonação das palavras, buscar o brilho das frases, fazer vibrar o calor das pausas, experimentar ruídos e barulhos, criar cenários sonoros. Ainda nestas águas, podemos encontrar o desafio de continuar o "Catiripapo": apropriando-se da dinâmica dos apresentadores e da estrutura dos quadros, podemos encaixar novos diálogos, contos e poemas. No ato de contar história, três fontes se articulam: palavra, voz e corpo. No ato de gravar a palavra, a ausência do corpo provoca outra conjugação entre palavra e voz. Na quinta curva, pulamos no rio com a "Menina Janaina" - uma história com gestos, verdadeira literatura corporal. Na grande roda, somos, ao mesmo tempo, narradores, ouvintes, atores e platéia. Temos aqui, no fundo destas águas, o desafio de transformar o movimento narrativo em movimentos corporais coletivos, enredando as vozes que saem dos ombros, dos cotovelos, dos calcanhares, das sobrancelhas. Finalmente, felizmente, o mar - "Instrumentos de Imaginar", uma recriação recreativa de alguns brinquedos milenares e planetários, sempre contemporâneos e futuristas. Esse álbum de fotografias deseja apenas mostrar os objetos desconcertantes, ou seja, provocar uma apreciação curiosa, investigativa, desatar um olhar inventivo, contemplativo - como se estivéssemos diante do mar e suas ondas e seus mistérios, o mar e seus horizontes e seus litros de céu. Temos aqui, no fundo destas águas, o desafio de interpretar o funcionamento desses maquinários abracadabrantes - e o desafio de pesquisar, na família e na vizinhança, na biblioteca e na internet, as histórias desses instrumentos de imaginar. Todos esses brinquedos - é bom avisar - podem ser encontrados no seguinte endereço: na esquina da Rua da Imaginação com a Avenida da Memória, bem no centro do Bairro da Convivência. Nesse endereço, por exemplo, encontramos o carrinho de carregar miudezas... Nesta obra, portanto, cada capítulo fabrica a sua própria linguagem: ler, narrar, animar, vocalizar,

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gestualizar, olhar. Podemos, ainda, misturar tudo e promover uma dança de linguagens: "A Saparia do Mundaú" vira uma história para ser contada; "A Bicharada Novidadeira" vira uma peça para teatro de fantoches; "O Balaio" vira uma peça radiofônica - ou uma história com gestos ou um álbum de fotografias. Nessa fábrica de tantas linguagens, a obra já não cabe no livro - e transborda, busca outros suportes. No cedê "Leituras Silenciosas com Apetrechos de Ouvirimagens", os contos "A Saparia do Mundaú" e "A Bicharada Novidadeira" ganham voz e cenários percussivos. "Muitos dedos: enredos" não e uma obra para a criança - nem para o adulto. O seu destino e a Infância - o fio unificador da Infância e todas as suas variações para corrupios e carências. Aqui, as palavras e os brinquedos estão filiados aquele vasto repertório que - simplesmente - transita, circula, atravessa. Nesse universo, em constante explosão, podemos puxar os fios de uma arte intergeracional - um verdadeiro cruzaréu de vozes, onde crianças e adultos e velhos e jovens se reencontram e se enlaçam e se encantam.

FRANCISCO MARQUES (Chico dos Bonecos)

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PRIMEIRA CURVA

A Saparia do MundaúColeção de NarizesEmbarulhosTigudunsEspântano

SEGUNDA CURVA

A Bicharada Novidadeira 27Espalhadeira de Recortes 33Receitas e Moldes 47

TERCEIRA CURVA

O Balaio 53(Peça para teatro de fantoches)

QUARTA CURVA

Catiripapo 63(Peça radiofônica)

QUINTA CURVA

Menina Janaína 77(História com gestos)

MAR

Instrumentos de Imaginar 89(Álbum de fotografias)Brinquedos e Construções 97

O AUTOR 99O livro transborda, busca outros suportes: cedê

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OLHOS DE OUVINTE

Para Edmir Perrotti

Certa vez, uma professora revelou o seguinte segredo... Da minha época de escola? Ah... A grande lembrança da minha época de escola são os olhos da minha professora quando lia uma história para a turma. Os seus olhos transitavam das páginas do livro para a turma, da turma para as páginas do livro, num passeio suave, quase um bailado. Do livro para a turma, da turma para o livro, sem que a Ieitura sofresse qualquer tropeço. Suave bailado, das páginas do livro para a turma, da turma para as páginas do livro... E eu torcia para que os seus olhos de Ieitora esbarrassem nos meus olhos de ouvinte - e eles sempre se esbarravam, e até demoravam uns nos outros. Cheguei a imaginar, na minha imaginação de menina, que a história também estava escrita nos nossos olhos. Era como se a história estivesse sendo lida, alternadamente, no livro e nos ouvintes. Cheguei a imaginar, na minha imaginação de menino, que as páginas do livro eram os ouvintes da história que a professora lia nos nossos olhos. Isso mesmo: o livro era o ouvinte da história que a professora lia na gente. Nos éramos os livros, obras vivas, vivíssimas! O tempo foi passando, passando...Aqueles sentimentos provocados pela professora-Ieitora me ligaram eternamente a palavra escrita, e me fizeram trazer a Ieitura para esse território íntimo de nossas vidas, onde só circula o que e essencial - como, por exemplo, a amizade.

Chico Francisco dos Bonecos Marques

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A SAPARIA DO MUNDAÚ

Escute só o converseiro da saparia na lagoa do Mundaú: - Que mané votação, eleição! - É reunião ... É discussão ... - Já disse: chatice. - Ou seja: boceja. Ah ... - Haja paciência! - Ah! Já chega! No meio desse zunzunzum, os sapos improvisaram um coral repleto de "Ós”:- Ó céus! Chega de governo democrático! Ó céus! Queremos um ditador! Ó céus! Mande um ditador! (Em todas as fábulas - e não só nas fábulas - acontecem coisas sem pé nem cabeça. Resultado: a gente põe a cabeça e o pé onde quiser. Imagine, portanto, o que vem por aí ...)Mal terminaram de pronunciar a derradeira frase e um Ditador Gigante desabou na lagoa - e provocou um estrugido estarrecedor e um esparrame de águas digno de um dilúvio. Bem, os sapos, como costumam fazer diante dessas situações rambresgüéticas, jimisgüilicas, foram para o fundo da lagoa e ficaram lá, sugigados, entanguidos, confabulando:- Já estamos vendo os benefícios de um governo ditatorial. Decisões rápidas. - Mas precisava assustar a gente assim desse tanto?! - Um disparaté! - Isso demonstra clareza de objetivos. - E precisava jogar tanta água pra fora da lagoa? - será que ele não sabe que nos estamos em época de seca? - Um desperdício! - U e! Vocês não estão sentindo falta de um sapo? - Um?! Eu estou sentindo falta de dois! Súbito, o Mundaú desandou a fervilhar ... Eram os sapos borbulhando na superfície da lagoa em busca dos três ou quatro faltantes. Nessa fervura, deram de papo com o Ditador Gigante. Sorratéiramente, foram assuntando, sapeando, cochichando: - Por que ele não se mexe? - Acho que morreu na queda. - Ora, um Ditador não se mexe à toa. Ele apenas esta concentrado na sua tarefa de governar. - Eu acho que e um pedaço de galho que caiu do jequitibá. - será que o seu plano governamental se resumiu nesse desabamento fenomenal? - Quantas orelhas têm o nosso Ditador? Nesse instante de puf-puf, um sapo assustado, coitado!, escorregou de uma pedra altíssima e, procotó!, em cima daquilo que poderia ser o olho esquerdo do Ditador. Foi um susto gigantesco! o Ditador, simplesmente, não aluiu do lugar. Repito. o Ditador, simplesmente, não aluiu do lugar, não arredou uma palha, um cisco. Aproveitando essa repetição, um sapo sabereta, repleto de sapituca, pulou sobre aquilo que poderia ser o nariz do Ditador. Neca de pitibiriba! Nenhum espirro! Nem o mínimo fungado! E outro procotó! E outro prequeté! E outros e ainda outros sobre o pescoço, a barriga, a boca. E muitos outros sobre os pés e os ombros e os joelhos. E em pouco tempo a saparia do Mundaú saracoteava em cima do corpo do Ditador. Repito. E em pouco tempo a bicharada bichareda saracoteava em cima do corpo do Ditador. No meio desse forféu, os sapos improvisaram um bloco carnavalesco repleto de "ós”:- Ó céus! Esse Ditador não se mexe! Ó céus! Queremos outro Ditador! Ó céus! Mande um Ditador!

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(Em todas as fábulas - e não só nas fábulas ... Não! Não me diga? que você esta pensando isso que eu estou pensando que você esta pensando.)Mal terminaram de pronunciar a derradeira exclamação e um Ditador de Asas, belíssimo, exuberante, num vão rasante, colheu meia dúzia de sapos - e ainda deixou para trás uma ventania digna de um furacão ismiguça e um redemunho roscolofe. Bem, os sapos, como costumam fazer diante dessas situações cajumerélicas, isbroglóticas, foram para o fundo da lagoa e ficaram lá, embodocados, embasbacados, debulhando a prosa:- Já estamos vendo os benefícios de um governo ditatorial. Decisões rápidas. - Mas para onde será que o nosso Ditador levou aqueles sapos? - Levar assim? Tão de repente? Sem maiores explica<;6es? E euheim! Isso não me parece uma maneira muito cordial. - Está claro que o nosso Ditador levou os sapos para serem osseus ministros. Auxiliares, entendem? - E por que eles foram os escolhidos? - será que ele vai levar mais alguém? - Certamente. Um Ditador precisa de muitos auxiliares. - Eu acho que o nosso Ditador levou os sapos pra dentro da barriga. - Para auxiliar a digestão? Encerrando esse longo e celestial desfile de ditadores, os sapos, que são bons de papo e não são bobos, decidiram retornar ao governo democrático - aquele que é feito para o sapo, pelo sapo e com o sapo. (Com licença. Eu disse "retornar"? Não, não é por aí. A palavra "retornar" não traz o som e a imagem que nós precisamos para esse final gudal de gurrunfal de maracutal xiringabutal. Talvez ... Quem sabe? Isso!)No fundo, no fundo, a saparia do Mundaú decidiu inventar um governo diferente: os sapos ficaram mais borbulhantes, mais presentes, mais saltitantes, e a democracia ficou menos lenta, menos chata, menos bocejante. Ah ... Boa Pescaria! Dessa pequena história, podemos esparramar muitas idéias. Eu, por exemplo, conversando com o meu nariz, pesquei três ... Primeira: A-a-atchim! E se o Ditador Gigante tivesse espirrado também? Segunda: Já que está em época de seca, não é melhor pedir chuva para os céus? Terceira: A palavra "inventar" traz o som e a imagem daquele sapo assustado, coitado!, que escorregou de uma pedra altíssima e procotó! E, agora, lanço um pequeno desafio:- Vamos esparramar a prosa e pescar outras idéias?

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COLEÇÃO DE NARIZES

Encerrando essa longa e profunda pescaria, Vou amarrar alguns barbantes ao redor das imagens que acabamos de debulhar. A peça radiofônica: "A. Saparia do Mundaú" é uma recriação recreativa de uma das fábulas do poeta francês Jean de La Fontaine - que, por sua vez, são recriações de fábulas de Fedro e Esopo - que, por sua vez, são recriações de sutilezas populares. Tudo isso de acordo com a momentosa tradição milenar:- Quem conta um conto ... Quase! Quem conta um conto omite um ponto e aumenta três. E para que você, amigo ouvinte, possa bisbilhotar o que foi aumentado e omitido, vou soprar as imagens originais que me animaram a desenhar : "A. Saparia do Mundaú". Para tornar essa tarefa mais saltitante, vou puxar a mesma fábula pelo nariz daqueles três autores. Hum ... Já estou até sentindo o cheiro.

EMBARULHOS(PELO NARIZ DE Esopo. A-A-ATCHIM!)

Irritadas com tanta bagunça, as rãs enviaram um pedido para Zeus: - Queremos um Rei! Zeus, então, zapt!, jogou um pedaço de pau embrulhado em duas palavras:- Já vai! Assustadas com o barulho, as rãs fugiram para a parte mais profunda da lagoa. Como o pedaço de pau não se mexia, as rãs voltaram à superfíciee começaram a caçoar do monarca. E até montaram em suas costas! As rãs, irritadíssimas, enviaram um novo pedido para Zeus: - Não queremos um Rei preguiçoso! Zeus, zapt!, jogou uma cobra embrulhada num travalíngua: - Jararaca Jabiquara Jabiraca Jabaquara. As rãs, bem, hã hã, as rãs apreciaram muito o travalíngua, mas a cobra ... Hum ... A cobra. A cobra ...

TIGUDUNS(PELO NARIZ DE FEDRO. A-A-ATCHIM!)

Numa bela manhã de chuva, as rãs armaram uma gritaria para Júpiter: - Chega de bagunça! Queremos um Rei! Júpiter, o pai dos deuses, escutou, sorriu e... Tigudum! o movimento das águas e o estrondoso barulho deixaram as rãs amedrontadas. Silencio. As rãs, escondidas. o Rei, quieto. Uma rã, por acaso, espichou os olhos e observou aquele estranho monarca. Vozes. Movimentos. E as rãs nadaram até o falso Rei e começaram a pular sobre ele. Depois de humilhar aquele pedaço de pau, as rãs pediram outro Rei para Júpiter. Diante dessa nova gritaria, o pai dos deuses... Tigudum! Com os seus dentes brilhantes, a cobra gigantesca, "rápida como um relâmpago", desandou a devorar a população das águas. As rãs, atarantadas, mal conseguiam pronunciar o travalíngua: - Picuinha Picumã Carapicuma Camapuã. Enquanto isso, do outro lado da lagoa, três rãs, penduradas na orelha esquerda de Mercúrio,

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coaxavam o seguinte recado para Júpiter: - E precisava ficar zangado desse tanto? E eu heim...

ESPÂNTANO (PELO NARIZ DE LA FONTAINE. A-A-ATCHIM!)

Enfadadas com a democracia, as rãs viviam cantando para Júpiter: - Árquico! Árquico! Queremos o poder monárquico! Um dia, caiu do céu um rei muito ífico ífico pacífico. A queda provocou tanto barulho, tanto!, que as rãs do pântano foram se esconder sob as águas. E ficaram la, quietas, tentando inventar um travalíngua: - Ababadado Abadalado Ababelado Abobadado. Ora, o que caiu, na verdade verdadeira, foi um galho de arvore. Um galho pensativo, compenetrado, ófico ófico filosófico. Uma ra aventureira, entretanto, resolveu espiar, bisbilhotar. Uma outra seguiu atrás. E outra fez a mesma coisa. E foi chegando uma multidão. No fim, as rãs, saltitantes, pululavam sobre os ombros do Rei. E o bom senhor foi recebendo com tranqüilidade todo esse atrevimento. Não demorou muito, não demorou nada!, e aquela musiquinha entojada começou a borbulhar na cabeça de Júpiter: - Ente! Ente! Queremos um Rei que se movimente! Júpiter, então, enviou uma ave de asas enormes e longos bicos e pernas compridas. (Não! Não me diga? que você esta pensando isso que eu estou pensando que você esta pensando.) Diante de tanto espanto no pântano, as rãs, e claro, e claríssimo!, voltaram a se queixar. Agora, bem, muito bem!, agora foi a vez de Júpiter reclamar: - Ai ai ai ... Ai ai ai. Ai ai ai!

Mergulhos

Para desenhar "A Saparia do Mundaú" e a "Coleção de Narizes", mergulhei nas seguintes obras: 1. "As Fábulas de Esopo". Texto bilíngüe. Tradução direta do grego, prefacio, introdução e notas de Manuel Aveleza de Sousa. Rio de Janeiro: Thex Editora, 1999. (Esopo caçou sarna pra se coçar entre os anos 62o e 56o antes do fabulista de Nazaré.) 2. "Fedro - Fábulas". 4a edição. Versão portuguesa de Nicolau Firmino. Clássicos Inquérito. Lisboa: 199o. (Fedro chorou pela primeira vez no ano 15 antes de Cristo e perdeu a sombra no ano 5o depois do mesmo.) 3. "As Fábulas de La Fontaine". A folha de rosto traz a seguinte explicação: "Uma antologia de tradutores do texto clássico, entre os quais o Barão de Paranapiacaba, Bocage, Couto Guerreiro, Filinto Elisio, Curvo Semmedo, Costa e Silva e outros notáveis poetas do Brasil e de Portugal. Prefacio de La Fontaine. Introdução de Pinheiro Chagas. Texto fluente de Iside M. Bonini". Gráfica e Editora Edigraf Limitada. São Paulo - Brasil. A obra não indica o ano de sua publicação. A fabula "As rãs que pedem Rei", que inspirou essa recriação, foi traduzida por João Cardoso de Meneses e Sousa (1827-1915), Barão de Paranapiacaba. (Jean de La Fontaine chorou pela primeira vez em 1621 e perdeu a sombra em 1695.)

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A BICHARADA NOVIDADEIRA

Vou apresentar para vocês um brinquedo invisível. ("Ai ai ai. Tanto brinquedo visível e ele vai apresentar logo o invisível?!") Ou seja: vou contar uma história - sendo uma história, cada um imagina a paisagem, os objetos de cena, os barulhos, as personagens. E tem mais: dentro dessa história existe um outro brinquedo invisível escondido. ("Que coisa complicada! o brinquedo e invisível e ainda esta escondido?!") Nos vamos decifrar essa charada la no final - se e que existe um final pra tudo isso que vem por ai. Respirando profundamente ... E boa imagem, quer dizer, boa viagem! o planeta Terra estava ainda em formação - e a nossa história aconteceu exatamente nessa época. Um dia (e nada melhor do que duas noites com um dia no meio), surgiu no planeta uma Árvore Nova. Os bichos rodearam a novidade, cheiraram, entreolharam-se, e resolveram enviar a Jaguacacaca para aprender o nome da fruta. La no inicio do mundo, antes de comer a primeira fruta da primeira arvore ... E Ia se foi a Jaguacacaca, cinco silabas e cinco "as". Chegando no alto da montanha, perguntou: - Óóó Estrela, qual o nome daquela fruta nova que pipocou aqui na Terra? E a Estrela respostou: - o nome da fruta e gudanja de gurrunfanja de maracutanja xiringabutanja. Uma vez, estava numa praça empinando essa história para um grupo de crianças, adultos, bicicletas e passarinhos. E quando a Estrela falou "o nome da fruta e gudanja de gurrunfanja de maracutanja xiringabutanja" uma menina levantou a mão, com absoluta convicção, e anunciou: - Ma<;a! Voltando para a história. Onde estávamos? ("A Estrela acabou de respostar.") Obrigado. A Jaguacacaca agradeceu e desceu cantando: - Gudanja de gurrunfanja de maracutanja xiringabutanja. De repente, de rompante, nesse instante de puf-puf, surge a Misteriave Osa - e ela vai se aproximando, sobrevoando e cantando: - Panja serramatutanja catibiribanja fifirififanja panja. E assim, esvoalando, cantaroçante, a Osa Misteriave desapareceu do jeitinho que apareceu: de repente, de rompante. Quando a Jaguacacaca tropeçou na sombra da Árvore Nova, a bicharada já estava la, boquiaberta, novidadeira: - Qual o nome da fruta? E os cinco "as" respiraram profundamente: - o nome da fruta e gudanja panja franja esbarra esbanja arranha arranja. Errei erranja. o nome da fruta e gudanja panja franja canja. Canja? "E canja, e canja, e canja de galinha! Arranja outro bicho pra jogar na nossa linha!" o que significa isso? o nome virou um verdadeiro xis-bola-parafuso-guindaste! Diante daquela situação deveras cajumerélica, isbroglótica, a Murucututu, cinco silabas e cinco "us", esparramou a idéia na nova sombra: - Que tal enviarmos o compadre Jabuti? Justamente o Jabuti ... Ah! o Jabuti ficou do feliz com aquela escolha, tão feliz ficou!, que resolveu fazer um discurso: - Volto já já! E Ia se foi o Jajabuti andando pelo nosso planetinha. Em menos de uma semana, conseguiu escapulir da sombra da Arvore Nova. Seis meses depois, chegou no alto da montanha e soltou a especula-de-rodinha: - Óóó Estrela, qual o nome daquela fruta nova que pipocou aqui na Terra? Silencio.

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- Acho que a Estrela não consegue me escutar. Vocês poderiam me ajudar? Óóó Estrela, qual o nome daquela fruta nova que pipocou aqui na Terra? Silencio. Enquanto a Estrela não responde, vamos combinar o seguinte: vou paralisar a melosquência nessa cena, exatamente nessa cena. Em seguida, vamos sair de dentro da história, aprender o nome da fruta e depois voltar pra dentro da história e ver como termina esse bafuá - se é que esse bafuá tem fim. Pronto. La esta a nossa história. o que estamos vendo ali? fl!.qual o nome da nossa personagem? Uma vez, estava numa sala de aula apresentando esse brinquedo para as crianças. fl!.quando saí de dentro da história e perguntei "o que estamos vendo ali?",': um menino respondeu: - Uma tomada! Sempre desconfiei que existia uma tomada no inicio do mundo ... Voltando para a história. Onde estávamos? ("Voltar pra onde? Você saiu de dentro da história neste minuto!") Obrigado. Bem lembrado. Então, vamos aprender o nome da fruta. Eu canto um pedacinho e vocês cantam em seguida. Respirando profundamente ... - Gudanja ... De gurrunfanja ... De mararacutanja ... Xiringabutanja ... Esta ficando bom - e vai ficar melhor. vamos dividir os ouvintes em duas turmas. Este grupo canta os dois primeiros pedacinhos: - Gudanja de gurrunfanja. Aquele grupo, os dois últimos pedacinhos: - De maracutanja xiringabutanja. Chegou a hora de costurar os quatro pedaços e cantar o nome completo: - Gudanja de gurrunfanja de maracutanja xiringabutanja. Beleza! Quem diria?, o que pare cia impossível virou cantoria. Merecemos uma salva de dedos. Agora, vamos voltar pra dentro da história e ver como termina esse trololó - se e que esse trololó tem fim. De onde eu sai? Pronto. Voltamos para a história exatamente na cena ... Seis meses depois, a Estrela respostou: - o nome da fruta e gudanja de gurrunfanja de maracutanja xiringabutanja. o Jajabuti agradeceu e desceu cantando: - Gudanja de gurrunfanja de maracutanja xiringabutanja. Sendo o Jajabuti um bicho muito calmo, tranqüilo, paciente - parente que é da Tartaruga -, ele cantava um pouco mais jajabutisticamente: - Gudanja de gurrunfanja de maracutanja xiringabutanja. De repente, de rompante, nesse instante de puf-puf, surge a Misteriave Osa - e ela vai se aproximando, sobrevoando e cantando ... Vamos combinar o seguinte: eu saio por aí cantando a musica da Osa Misteriave e vocês cantam a musica do Jajabuti. Pronteco terereco? Vou contar de "um" até "já". Aténção. Um, dois, três e já! - Gudanja de gurrunfanja panja serramatutanja de maracutanja catibiribanja xiringabutanja fifirififanja panja gudanja ... E assim, esvoalando, cantaroçante, a Misteriave Osa desapareceu do jeitinho que apareceu: de repente, de rompante. Seis meses depois, o Jajabuti mergulhou na sombra da Arvore Nova. E a bicharada novidadeira sapecou a pergunta: - Qual o nome da fruta? E para o espanto planetário o Jajabuti respondeu cantando: - Gudanja de gurrunfanja de maracutanja xiringabutanja. E o que aconteceu daí pra frente, do "espanto planetário" em diante? Dai pra frente ... Haja cantoria!

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E acontece, também, que a história já esta de bom tamanho. Na minha opinião, ela poderia, muito bem, terminar por aqui, mas ... E a vontade de continuar imaginando? Por exemplo ... Por que essa tal de Misteriave Osa vivia sobrevoando o caminho dos bichos? o que vocês imaginam? J a escutei, de um menino, a seguinte explicação: - Deu linha cruzada. A Osa Misteriave fazia parte de outra história. Certa vez, uma menina arquitetou esse argumento: - A Misteriave Osa não suportava aquela musiquinha entojada. Ela queria alguma coisa mais dançante: Panja Serramatutanja Catibiribanja Fifirififanja Panja. Antes de terminar o interminável, quero relembrar a charada inicial. Vocês se lembram? "E tem mais: dentro dessa história existe um outro brinquedo invisível escondido.("Que coisa complicada! O brinquedo é invisível e ainda está escondido?!") Encontraram? Desconfiaram? Então, vamos descobrir juntos. Por exemplo: o meu apelido e Francisco e o meu nome é Chico. Chico?! Gudico de Gurrunfico de Maracutico Xiringabutico. Hãh! E a musica do Jajabuti! Por favor, qual o seu nome? Rosângela?! Hãh! Gudângela de Gurrunfângela de Maracutângela Xiringabutângela. será possível? Por obséquio, o seu nome? Gabriel?! Hãh! Gudel de Gurrunfel de Maracutel Xiringabutel. Pescaram o segredo? Uma vez, estava conversando com uma criança: - Qual o seu nome? Antonio?! Gudônio de Gurrunfônio de Maracutônio Xiringabutônio. Ai o menino arregalou os olhos e respondeu: - E eu sei dar cambalhota debaixo d'agua! Continuando as descobertas ... Onde estávamos? ("Estamos tentando terminar o interminável.") Obrigado. Qual o seu nome, por obséquio? Janaina?! Pina Serramatutina Catibiribina Fifirififina Pina. Hãh! A mesma coisa - só que diferente. E a musica da Misteriave Osa! Decifraram a charada? o "brinquedo invisível escondido" e uma brincadeira com palavras, uma mistura de língua secreta com travalíngua. A gente pesca a rima do nome e encaixa naqueles sons abracadabrantes. Abracadabrantes?! Hãh! Pantes Serramatutantes Catibiribantes Fifirififantes Pantes. Por esse motivo serramatutivo, a fruta da Árvore Nova - muitos e muitos e muitos anos depois - recebeu o nome de ... Laranja. Ainda bem que mudaram o nome da fruta. J a pensou? chegar na feira e pedir "uma dúzia de gudanja de gurrunfanja de maracutanja xiringabutanja" . E ... Fica mais fácil falar - mas e tão bom cantar. Já estou com saudade daquela musiquinha. Como e mesmo?

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ESPALHADEIRA DE RECORTES

Aos poucos, jajabutisticamente, ''A Bicharada Novidadeira" se desdobrou numa história-mundo-sem-fundo - o horizonte apalpando o pelo labiado do bicho estrada. História-mundo-sem-fundo e aquela que a gente repete uma, duas, tantas vezes, varias, e se aconchega no enredo - e se entrega ao prazer de escolher palavras, iluminar barulhos, umedecer pausas e encaixar silêncios. Desenrolando varias vezes a mesma história, o contador tropeça num outro prazer: recolher as intervenções dos ouvintes, reunir as provocações do ambiente e do momento, montar o jogo das coincidências, amarrar os imprevistos aos seus improvisos. Na minha profissão de desenrolador de brincadeiras, recortei e colecionei esses prazeres repletos de descobertas e sapitucas. A parir de agora, vou espalhar alguns desses recortes. Viva a ventania! r) "Vou apresentar para vocês um brinquedo invisível (Ai ai ai. Tanto brinquedo visível e ele vai apresentar logo o invisível?!")" Muitas falas atravessam essa história: o narrador, o contra-narrador (que aparece entre aspas e entre parênteses), o contador de casos, as crianças e as personagens - Jaguacacaca, Estrela, Osa Misteriave, os bichos, Murucututu e Jajabuti. Para desenhar essas falas, corro atrás das transformações mínimas. A voz recebe outra inflexão, as palavras recebem outras entonações - a fala sempre ecoando na palma da mão. o corpo recebe alguns presentes: olhar de esguelha; leve contração dos lábios; ligeira queda dos ombros; arquear de sobrancelhas. Na voz e no corpo, mínimas transformações - assim, a platéia tem tempo, e calma, para fazer funcionar os seus apetrechos de ouvirimagens. Ao mesmo tempo, a fala do ouvinte tece um colar de interpretações - e desencadeia, no contador, uma nova construção narrativa. Na obra "O Ermitão de Mequém", de Bernardo Guimarães, publicada pela primeira vez em 1865, o contador de histórias e o condutor do romance: "Como o romeiro de Mequém tinha de seguir sua viagem por alguns dias na mesma direção que nos levávamos, durante quatro noites entreteve-nos ele os serões do pouso com a narração da história que vamos reproduzir, e que por essa razão dividiremos em quatro pousos. " Nesta passagem, Bernardo Guimarães descreve o clima poético instaurado pela narração: "Enfim, estando já tudo arranjado no rancho, assentamo-nos em nossas redes aguardando a narração que o romeiro de Mequém nos prometera. Tudo foi silencio imediatamente; cessaram as vozerias e toques de violas dos camaradas, e até os cães, deitados ao pe do fogo estendendo o focinho por sobre as patas encruzadas, pareciam estudar com religiosa aténção as palavras do narrador." ("O Ermitão de Mequém", de Bernardo Guimarães. Edição critica preparada por Antonio Jose Chediak. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1972. Coleção de Literatura Brasileira, 7·) A Arte de Contar, claro, claríssimo!, se desdobra na Arte de Ouvir - e vice-versa. Portanto, o convite está lançado. Puxe pela memória, imagine um mistério, invente um sonho, descreva uma cena, uma paisagem, um objeto, repita pela milésima vez aquele caso da sua infância ... 2) "Ou seja: vou contar uma história - sendo uma história, cada um imagina a paisagem, os objetos de cena, os barulhos, as personagens. " Vou contar a história de um contador de história - e as lições que ele deixou para um menino de dez anos ... Em 1970, na cidade de Paraguaçu, no sul de Minas Gerais, conheci o querido charadista Antonio Fressato (7/9/1916 - 11/2/1999). Seu Tonico, lavrador de muitas ro<;as, semeava uma ventania de palavras: contava, em detalhes, a vida rocambolesca de Gonçalo, do romance "O Ermitão de Mequém", de Bernardo Guimarães; entoava os clássicos da canção caipira; desenrolava histórias da

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bicharada bichareda; espalhava trovas e adivinhas; ensinava a decifrar e a compor charadas. Uma peça literária, entretanto, tinha o poder de colocar o Seu Tonico no centro de todas as aténções: o poema narrativo "o soldado jogador", de autoria de Leandro Gomes de Barros (Pombal / Paraíba 19/11/1865 - Recife / Pernambuco 4/3/1918). Na obra "Cantadores Poesia e linguagem do sertão cearense" (Rio de Janeiro: Livraria Editora Cátedra, 1978, 5a edição), Leonardo Motta reproduz esse poema conforme era declamado pelo Cego Aderaldo. Vinda diretamente do tempo da zagalha de gancho, a aventura malasartiana do soldado jogador já circulava pela Europa - como revela a obra "Literatura oral no Brasil", de Luis da Câmara Cascudo (Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1984). o seu enredo, portanto, já chegou ao Brasil debulhado em versos: o soldado Ricarte está jogando baralho na igreja; o soldado é preso pelo sargento; levado a presença do comandante, Ricarte anuncia a sua explicação para o "crime"; o soldado transforma o seu baralho num livro de reza, buscando uma referencia bíblica para cada carta; comovido, o comandante liberta Ricarte e anuncia a sua promoção a sargento. Em cima dessa mesa/enredo, Leandro Gomes de Barros lançou a sua toalha/literatura - pano de mesa belíssimo, convidativo, com muitos bordados e rendas. Muitos autores lançaram suas toalhas literárias sobre esse enredo. No maravilhoso "ABC do baralho", por exemplo, o poeta Antonio Teodoro dos Santos vai lendo o mundo através das cartas - e tecendo a sua visão critica, humorística, irreverente, macunaímica ... O poema "ABC do baralho" está publicado na obra "Antologia da Literatura de Cordel" (Natal: Fundação João Augusto, 1977), de Sebastião Nunes Batista. Seu Tonico leu "o soldado jogador" num almanaque: "Faz muito tempo, era rapaz ainda. Li e gostei demais. Parece história de Pedro Malasartes. Logo comecei a decorar: falava pro mato, pra porteira, pro cavalo. A família achou que eu estava ficando manicado. Quando comecei a contar, todos gostaram e entenderam aquela mania de conversar sozinho. A partir dai, a minha vida e declamar essa história". Antonio Fressato tratava com carinho cada palavra do poema, sonorizava os versos com vivacidade, gesticulava pouco, explorava com delicadeza as expressões faciais, as falas das personagens eram caracterizadas com muita sutileza - e era mágico na arte de inventar a pausa, um silencio que vibrava de tanta expressividade. Essa maneira de declamar fazia a platéia se concentrar no tecido literário - mobilizando todos os nossos apetrechos de ouvirimagens. Declamar "o soldado jogador" foi a obra de arte do meu mestre Antonio Fressato - obra de uma vida inteira. Hoje, trinta e tantos anos depois, também de clamo esse poema pelos quatro cantos do Brasil planetário. Costumo declamar enquanto construímos a escada-de-Jacó - um brinquedo que envolve quinze pedaços de fitas coloridas, seis caixas de fósforo e seis desejos. Nessas oficinas, sempre encontro professoras que fazem revelações emocionadas: - Eu me lembro dessa história. Faz tempo ... - o meu avo declamava esse poema! - Nunca imaginei que ouviria isso outra vez ... Ouvi o mestre Antonio Fressato declamar dezenas de vezes "o soldado jogador". Era uma alegria para o menino de dez anos - e continua sendo uma lição alegre para o me nino que veio depois. 3) "O planeta Terra estava ainda em formação - e a nossa história aconteceu exatamente nessa época. "A Bicharada Novidadeira" é uma recriação recreativa de uma trama milenar. A centelha dessa história esta escondida no conto "o cagado e a fruta", da obra "Contos Populares do Brasil", do novidadeiro Silvio Romero, publicada pela primeira vez em 1885. (Silvio Romero. "Contos populares do Brasil". 2a edição. São Paulo: Landy Editora,2oo2.) Numa outra versão, o conto "o cagado e a fruta" pode ser encontrado na maravilhosa obra "Literatura oral para a infância e a juventude - Lendas, contos e fábulas populares no Brasil", de

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Henriqueta Lisboa (São Paulo: Editora Peirópolis, 2oo2). Dessa me sma centelha, escapuliu "O Nome da Fruta" - outra história-mundo-sem-fundo, portas e janelas escancaradas. Esse conto pode ser encontrado no cede "Histórias gudórias de gurrunfórias de maracutórias xiringabutórias - Leituras silenciosas com barulhos de brinquedos", de Francisco Marques (Chico dos Bonecos). (São Paulo: Selo "Palavra Cantada", 1999.) 4) ('La no inicio do mundo, antes de comer a primeira fruta da primeira arvore ... Numa bela manha de chuva, estava contando a história "O Nome da Fruta": - Mas (... e esse é o segundo "mas" da história ...) acontece que somente um bicho, unzinho, em toda a Floresta da Brejaúva, sabia o tal nome da tal fruta. o nome desse bicho rima com "mariposa". Nesse instante de puf-puf, uma menina desvendou o mistério: - Marimbondo! 5) "A Jaguacacaca agradeceu e desceu cantando". o contador compõe uma musica para cada frase ou pedaço de frase, silaba ou pedaço de silaba, para cada gesto ou respiração. Por exemplo: "A Jaguacacaca agradeceu e desceu cantando". Como montar o quebra-cabeça dessa frase? No exercício da contação de história, montei as pe<;as desta maneira: ''A Ja-gua-ca-ca-ca agradeceu... e desceu... cantaaando!" Colecionando as manifestações dos ouvintes - e as minhas reações diante das expressões dos ouvintes -, vou desvendando o mistério desses quebra-cabeças sonoros, dessas maquininhas de efeitos especiais. Dentro desses quebra-cabe<;as - e importante lembrar! - pulsa um outro jogo: a peleja entre o Contador e o Escritor. Quando os dois vestem a mesma pele ... Sinto isso na palavra! Muitas querelas atravancam a madrugada: - Observe o leque de significados! Sinta as imagens! - Observe o leque de entonações! Sinta as melodias! Na maioria das vezes, entretanto, os do is brincam juntos. O Escritor recebe frases em estado de "platéia olhirridente" - presentes do Contador. E o Contador recebe frases em estado de "silêncio aflitivo" - presentes do Escritor. 6) "Gudanja de gurrunfanja de maracutanja xiringabutanja." Para musicar o "gudanja de gurrunfanja..." e o "panja serramatutanja...", as desorientações são as seguintes: de coração, com o nome na ponta da língua, a gente começa a dançar, assoviar, batucar. Nasce, assim, a cantoria certa, letra e musica bem articuladas, em permanente estado de saracotico. 7) "De repente, de rompante, nesse instante de puf-puf surge a Misteriave Osa - e ela vai se aproximando, sobrevoando e cantando." Um pouco antes deste "de repente", a Misteriave sai das costas do contador, sobrevoa os ouvintes e rabisca a história. O vôo da Misteriave e a mão do contador. Basta seguir este manual de instruções ... Seu Vizinho, Pai de Todos e Fura Bolo, bem juntinhos, grudados, representam o corpo da Osa Misteriave. Mindinho e Cata Piolho, bem abertos, longe dos três grudentos, desenham, com suavidade, o movimento das asas. 8) "E lá se foi o Jajabuti andando pelo nosso planetinha. Em menos de uma semana, conseguiu escapulir da sombra da Árvore Nova. Seis meses depois, chegou no alto da montanha e soltou a especula-de-rodinha ". Era uma vez um encontro com as crianças da terceira serie do ensino fundamental ... Terminei de contar as aventuras do Jajabuti e comecei a apresentar alguns brinquedos. Estava mostrando como construir o jabolô: pegar dois funis de plástico, cortar os biquinhos, unir os funis com um pedacinho de mangueira, atravessar um parafuso e apertar. Mas ( ... e esse e o primeiro "mas" do jabolô ... ) acontece que o parafuso era maior do que eu imaginava - eu apertava a rosca, apertava, e nada de chegar ao fim. E foi ai, bem ai, que um me nino

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me salvou com uma sutil observação: - Seis meses depois ... Puxa vida! o me nino foi pescar um detalhe da história para encaixar no detalhe do brinquedo. Que maravilha! Para nós, crianças e adultos, brincar com as miudezas e a melhor das brincadeiras - a maior das alegrias. Dai em diante, para qualquer movimento de suspense, a platéia lançava a sua novíssima invenção: - Seis meses depois ... 9) (Pronto. La esta a nossa história." Saio da história com uma passada larga e lenta. Enquanto estiver do lado de fora" organizando a cantoria, permaneço no espaço cenográfico da platéia, circulando entre os ouvintes. Certa vez, enquanto desenrolava o festival de "gudanjas", observei duas meninas se arrastando despistadamente pelo chão. Qual seria o objetivo desse esforço monumental? Com as atenções enganchadas na cantoria e a curiosidade chaleirando aquela dupla, consegui decifrar o enigma: as meninas queriam ficar debaixo da Árvore Nova. Aproveitando esse caso ... E importante anunciar aos quatro ventos: o sopro que provocou essa "Espalhadeira de recortes" veio da obra ''A arte de ler e contar histórias", de Malba Tahan. o abracadabrante conto "O Castelo Amarelo", por exemplo, traz vinte e oito notas de pé de página - uma chuva de orientações sobre o tom de voz, os gestos, a pausa, o relacionamento com os ouvintes e, é claro, o caso de uma interferência curiosa de uma menina de sete anos. (Malba Tahan. ''A arte de ler e contar histórias." Rio de Janeiro: Conquista, 1966.) 10) "O que estamos vendo ali?Qual o nome da nossa personagem?" Alguns respondem: "Jabuti" - e, em seguida, desaba um ar de desconfiança sobre a platéia. Outros, ligeirinho, desvendam o mistério: "Jajabuti". E todos revivemos a cena do famoso discurso: "Volto já já". Por aquelas e estas, aquarelas e festas, o contador vive tropeçando em descobertas ... o ouvinte não se envolve apenas com o rumo dos acontecimentos, mas também - e principalmente! - com o rumor das palavras. 11) "Então, vamos aprender o nome da fruta. Eu canto um pedacinho e vocês cantam em seguida." Com esse ensaio relâmpago, os ouvintes conseguem aprender a canção escalafobética do "gudanja". Mais adiante, esse aprendizado será incorporado a história - na cena em que o contador, no papel de Osa Misteriave, e a platéia, no papel de Jajabuti, realizam o "combaté das cantorias". E, para o espanto planetário, ninguém se deixa embaralhar pelo canto da esvoaçante. 12) Beleza!Quem diria?, o que pare cia impossível virou cantoria. Merecemos uma salva de dedos. "Salva de dedos"? O que "isgnifica" isso?! Todos são convidados a estalar os dedos. O resultado sonoro e uma salva de palmas muito calma, tranqüila, paciente - parente que e do Jajabuti. E por falar em "salva de dedos" ... Estava andando pelo corredor da escola, carregando a mala dos bonecos e a mala dos jabolôs, quando parei para descansar ao lado de um grande mural - de proporções verdadeiramente planetárias ... Nesse mural, dezenas de papeis coloridos traziam mensagens de Ano Novo, Novo Milênio, escritas por crianças de 9 e 1o anos. Do lado esquerdo, la no alto, um papelzinho verde embandeirava a seguinte frase: "Eu queria que o mundo fosse calmo". 13) "De onde eu sai? Pronto. Voltamos para a história exatamente na cena ... " Retorno com a mesma passada larga e lenta. Volto para o local de onde saí, ou seja, para a posição do Jajabuti. As crianças costumam colaborar: "mais pra cá.", "nesse risquinho", "vai pisar na cabeça do Jajabuti!" Uma vez, um me nino foi lei pra frente, esparramou as duas mãos no chão e anunciou: "E aqui". 14) ('For exemplo ... Por que essa tal de Misteriave Osa vivia sobrevoando o caminho dos

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bichos? O que vocês imaginam?" Imaginar e coçar é só começar ... Uma criança lançou uma questão cósmica: - Por que a Estrela demorou tanto para responder ao Jajabuti? Outra criança pescou um detalhe lá do início da história: - A Jaguacacaca tropeçou na sombra da Árvore Nova? Tropeçou na sombra?! Certa vez, uma criança se levantou, caminhou vagarosamente, chegou bem perto de mim e cochichou: - Meu pai comprou um gato. E, diante do silencio curiosa da platéia e do espanto do contador, o menino voltou para o seu lugar pulando amarelinha. Nos encontros com educadores, costumam pipocar comparações ... - Eu me vi no papel da Misteriave Osa - e vi os meus alunos no papel da Jaguacacaca. As vezes, na hora de abordar um assunto simples, dou tantas voltas que acabo dando um no na idéia das crianças. - A cena da Jaguacacaca com a Misteriave Osa aconteceu comigo. Igualzinho! Num belo dia, cheguei a escola, toda animada, serelepe, entrei na sala dos professores e pesquei, sem querer, esse restinho de conversa: "Será que ela não tem desconfiometro? Essa cantoria com as crianças só serve para atrapalhar as outras aulas. Essa história de ficar cantando e pura enrolação de serviço!" Aquele restinho de conversa, pra mim, foi um verdadeiro espanto pedagógico. Fiquei tonta, sem eira nem beira. Naquele dia, dei a pior aula da minha vida. Lembro-me como se fosse hoje. No final, um aluno me entregou um bilhetinho: "Professora, a senhora está triste ou doente?" Certa vez, uma educadora lançou este anzol: - Por que a Estrela não cantava o nome da fruta? E por que ela falava tão ligeirinho? E outra educadora, ligeirinho, pescou: - E que o seu curso de pedagogia ensinava a ensinar dessa maneira. Num desses encontros, uma professora partilhou a seguinte inquietação: - Tem um menino na minha turma que sempre dorme quando eu começo a contar história. E é só na hora do conto que ele tem esse sono. Dorme a história todinha. Impressionante! será que eu devo acordar esse menino? Essa questão despertou uma solidária rede de idéias ... Todos partimos do mesmo ponto de vista: o me nino não deve ser acordado. Ensaiamos, entretanto, algumas maneiras de abordar essa criança: - Você se lembra do inicio da história? Você quer saber como ela termina? Então, agora, os colegas vão contar a história para você. Cada um vai contar um pedaço. Quem quer começar? - Você dormiu e deve ter sonhado bastante. Você se lembra do seu sonho? Então, conta pra gente. E quem mais gostaria de contar um sonho? Eu também tenho um sonho pra contar ... Na educação, na arte, na vida, o importante, mesmo!, e beber dos imprevistos. Perder a oportunidade de incorporar o "não planejado" - ou, o que é pior!, perder a paciência diante do inesperado - e perder não só o melhor da festa, mas perder a chave da própria casa. Numa bela manha de chuva, perguntei para uma menina que estava equilibrando uma casca de mexerica na cabeça: - o que você mais gosta na escola? Sem desequilibrar, a menina respondeu: - Na escola? O que eu mais gosto? Brincar de escolinha na hora do recreio. Na introdução ao "Tesouro Poético da Infância", publicado pela primeira vez em 1883, Antero de Quental revela um diálogo instigante entre o poeta e o educador: "Para uns entezinhos, em que tudo e movimento e imaginação, a escola, se não for jardim, será só

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prisão, a doutrina, se não for encanto, será só tortura." ("Tesouro Poético da Infância." Antero de Quental. Lisboa: propriedade e edição de Couto Martins, 1943.) 15) Antes de terminar o interminável, quero relembrar a charada inicial Vocês se lembram? "E tem mais: dentro dessa história existe um outro brinquedo invisível escondido. ("Que coisa complicada! O brinquedo e invisível e ainda está escondido?!") Encontraram? Desconfiaram? Era um encontro com crianças e adultos num parque ... Mal terminei a pergunta, uma menina anunciou: - Eu vi o brinquedo invisível. E um ioiô! A platéia ficou assustada - e eu, confesso, mais assustado ainda. A menina, então, continuou o seu anuncio: - De vez em quando, você 1evantava e abaixava o braço, e eu via o barbante saindo do seu dedo. E um ioiô vermelho! E essa foi a primeira lição de uma tarde no parque: se e para imaginar, eu olho para onde quiser e imagino o que eu quiser. 16) "Então, vamos descobrir juntos. Por exemplo: o meu apelido é Francisco e o meu nome é Chico. Chico?! Gudico de Gurrunfico de Maracutico Xiringabutico. Hãh! E a musica do Jajabuti!" A paisagem "hãh" - um "a" entre dois agás, com um til sobrevoando - corre atrás do emocionante som do "a" falado para dentro. Nesse som, a gente engole, ao mesmo tempo, o ar e o "a". E a famosa trilha sonora do susto: "Hãh! Verdade? Quando?" De acordo com a festa do contexto, o "hãh" pode se fantasiar de diferentes entonações: aberto, fechado, estalado, arrastado ... Agasalhado no contexto, o "hãh" pode sonhar com diferentes cenas: alegria, tristeza, medo, advertência, descoberta ... 17) "Por favor, qual o seu nome? Rosângela!?! Hãh! Gudângela de Gurrunfângela de Maracutângela Xiringabutângela. Será possível?" Quando me preparei para contar essa história pela primeira vez, arquitetei um plano infalível: "Pergunto dois ou três nomes e, rapidamente, desvendo a engrenagem do jogo de palavras". Eu estava rápida e redondamente enganado. Perguntei o nome de quarenta crianças e cantamos o nome de quarenta crianças - e sempre renovando o brilho nos olhos e na voz dos ouvintes. Esses viveres: olhar. Esses olhares: tecer. Esses teceres: contar. Esses contares: viver Para continuar essa tecelagem, vem ai mais um acaso filosófico ... Era uma vez, na cidade de São Paulo, um encontro com as crianças na Biblioteca Infanto-Juvenil... Nesse encontro, apresentei um brinquedo invisível - quer dizer, contei a história do gudanja e do Jajabuti. Em seguida, apresentei os brinquedos visíveis: a escada-de-Jacó, a coleção de jabolôs, os corrupios, o rabo-de-gato, o enrola-bola, a menina Jornalina, o teatro de bonecos e o teatro de sombras - e sempre espalhando os brinquedos pelo chão. No final, respirando profundamente, puxamos ':A arvore da montanha" - a famosa canção com gestos. E aqui, bem aqui, aconteceu o imprevisto ... As crianças, oitenta crianças!, foram rapidamente se aproximando, rodeando, curiosas, ávidas, novidadeiras. O que essas crianças pretendiam fazer? Certamente, queriam brincar com os brinquedos que estavam ali, semeados, ladrilhando o chão, generosos na sua displicência ... Neca de pitibiriba! Mais uma vez, eu estava rápida e redondamente enganado. Elas queriam, simplesmente, brincar com as palavras: cada criança queria que eu cantasse o seu nome. E não apenas "o seu nome", porque muitas emendavam estas indiretas: - o nome da minha irmã é Letícia. - o meu pai e Antonio. - E a professora Marina?

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Por outras e estas, ostras e frestas, o contador vive tropeçando em descobertas ... o ouvinte não se envolve apenas com o rumo dos brinquedos, mas também - e principalmente! - com o rumor das palavras. Antes de terminar o interminável, quero relembrar a charada inicial. Vocês se lembram? "Na minha profissão de desenrolador de brincadeiras, recortei e colecionei esses prazeres repletos de descobertas e sapitucas. A partir de agora, vou espalhar alguns desses recortes. Viva a ventania!" Esse disparaté de recortes desejou, simplesmente, destelhar os enredos, aquecer as palavras, esquecer os acontecimentos, escutar os esquecimentos. Portanto, longe, muito longe!, de querer proclamar receitas e moldes. Hãh! "Receitas e moldes"?! Hum ... Essas palavrinhas tem cheiro de lendas familiares.

RECEITAS E MOLDES

Minha vu e minha mãe sempre labutaram na culinária e na costura. Duas criativas e irreverentes costureira e cozinheira. Cresci entre gigantescas folhas de moldes e grossos cadernos de receitas. Apesar de tantas receitas e moldes, vovó e mamãe sempre foram de inventar moda, alterar ingredientes, inverter os cortes, desmanchar, desconfiar, descobrir. Em primeiro lugar, vou falar da mãe da minha mãe ... Vó Maria gostava de sapecar a terminação "oré" nas palavras: - Vai chover. Vamos emboré! - Vou levar a maquinoré pra consertar. A gramática dessa língua, entretanto, sempre foi uma coleção de enigmas: - Cuidadoré. Perigo tem! - Estou indo. Vou só pegar o deré. - Corre! Avisa que acabou o poroporé. Afinal, qual a regra para essa colagem de sufixos? "Pó" vira "poroporé", "documento" vira "deré", "cuidado" vira "cuidadoré" ... Várias hipóteses vem sendo analisadas: "depende da tonicidade da palavra", "depende do número de silabas", "depende do ritmo da frase", "influencia de algumas línguas indígenas", "depende do dia, da hora, do interlocutor", "ela era muito cuidadosa com as suas tristezas" ... Vó Candota, vó da vó Maria, nunca freqüentou escola, mas tratava de todos os doentes e feridos daquelas redondezas do sul de Minas. Já nos anos de 186o, costumava preparar pequenos comprimidos, verdadeiramente milagrosos!, elaborados a partir do bolor da laranja - aquilo que Alexander Fleming, em 1928, iria batizar com o nome de penicilina. (Você aí, do outro lado do papel, deve estar lendo e torcendo o nariz: "Então esse escrevinhador esta querendo dizer que essa tal de Candota foi a verdadeira inventora da penicilina?!" Não quero dizer isso, mas vou dizer algo mais fabuloso: a tecnologia medicinal a partir do bolor já passeava, há séculos, pelas culturas de diversos povos do nosso planeta. E ai você e eu nos perguntamos: "Mas como é que pode?!") Vou falar, agora, da filha da minha vó... Como Deus cismou de dar asas aos lápis e as canetas, mamãe desenvolveu a habilidade de riscar os moldes com a unha do polegar direito. Não demorou muito, passou das linhas dos figurinos para os desenhos das palavras. Com a unha calma e rígida, mamãe começou a sulcar as letras cursivas no papel - para isso, executava um cuidadoso movimento circular com o pulso, chegando mesmo a se exibir nesse curioso balé. Quando tropeçamos nessa novíssima caligrafia, nós, os filhos, começamos a desconfiar das superfícies. Com o tempo, tivemos que desenvolver uma técnica especial de leitura: com a cabeça

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levemente tombada, de esguelha, era só recolher a luminosidade que escorria nos sulcos - e as frases se revelavam. Podíamos, assim, descobrir qualquer recado unhagrafado na capa da revista, na tampa da caixa de camisa, no desenho do calendário, no baténte da porta e até numa página em branco. Bem, acho que estou indo longe demais nas minhas lendas familiares... Contei essas histórias apenas para confessar o seguinte: as palavras "molde" e "receita" não possuem, no meu jeito de respirar, nenhuma relação com as "faltas" - falta de criatividade, falta de liberdade, falta de ar. Para mim, "receita" e "molde" são, na culinária, na costura, na escola, na vida, pontos de partida, linhas de largada, convites para a invenção e a irreverência. (O conto "Receitas e Moldes", de Francisco Marques (Chico dos Bonecos), foi publicado originalmente na obra "Oficinas de sonho e realidade na formação do educador da infância." Organização: Marieta Lucia Machado Nicolau e Marina Célia Moraes Dias. Campinas: Papirus Editora, 2003.) o conto esta presente no capitulo "Brinquedos e brincadeiras: o fio da infância na trama do conhecimento", escrito em parceria com Cyrce Andrade.)

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O BALAIO(PEÇA PARA TEATRO DE FANTOCHES)

(José, serelepe, inquieto, entra puxando a sua fábrica de perguntas.)JOSE: será o impossível!? Não passa ninguém nessa estrada? (Conversa com a platéia. Insiste na pergunta. Quer uma explicação para aquele deserto em forma de estrada.)(Antes de começar o espetáculo, o bonequeiro combinou, com uma pessoa da platéia, a frase-chave: "Nessa estrada passa Deus e o mundo". O público conversa um pouco com o José e, em seguida, a tal pessoa lança a chave - mas sempre floreando a frase, para não parecer "coisa combinada".)PESSOA DA CHAVE: Essa estrada é movimentadíssima. A poeira não tem um minuto de sossego. Nessa estrada passa Deus e o mundo. JOSE: O quê? Nessa estrada passa Deus e o mundo? Deus e o mundo?! Hãh! Então, é hoje! (Sai).VOZ DO JOSE: E hoje! (Jose entra segurando uma rede de caçar borboletas).JOSE: Se nessa estrada passa Deus e o mundo, um dia Deus vai passar e eu, ó, tigudum!, vou pegar. (Sai)(Maria entra carregando um balaio. Passa caminhando, cantarolando e sai. Jose retorna carregando a sua conclusão.).JOSE: Esse jeitinho de cantar... E ele! (Sai.).(Maria entra carregando o balaio, cantarolando e dançando. Atrás, cautelosamente, Jose surge com a famosa rede de caçar Deus. Perigo no ar. Maria vira para trás e Jose desaparece. Maria volta a dançar pela estrada, Jose aparece, tigudum!, e prende a cantarolante. Maria fica totalmente enredada, e o balaio cai atrás da cortina.)JOSE: Peguei Deus! MARIA: (Sufocada.) Que mane Deus! Me tira daqui. Eu sofro de claustrofobia de filó. (Com muito custo, Jose tira a rede que envolve a Maria.).JOSE: Me desculpe, seu Deus, mas faz um tempão que eu estou com uma pergunta arranhando a garganta. MARIA: Eu tenho cara de Deus? Meu nome e Maria Pia Serramatutia Catibiribia Fifirififia. JOSE: Muito prazer. E o meu nome e Jose Pe Serramatute Catibiribe Fifirifife. (Para a platéia.) Deus tem mania de modéstia. (Para a Maria.) Posso enganchar a pergunta? MARIA: Desembucha. JOSE: Eu quero saber, seu Deus, por que você fez o mundo assim tão espandongado? MARIA: Espan o quê? JOSE: Es-pan-don-ga-do. Quer ver? Espia só. (Passa para o outro lado da Maria.) De um lado, tem um tiquitinho de gente que tem tanta coisa que nem sabe o que tem. (Volta it posição anterior.) Do outro lado, tem um tãrantantão de gente que de tanto não ter nada nem sabe que nada tem. MARIA: E eu heim! Ô pergunta isbroglótica. Preciso pensar um pouco... (Maria caminha pensativa e Jose, meditativo, segue atrás. De repente, meia volta!, e retornam matutando. Maria baté nas costas do Jose.)MARIA: Já pensou? JOSE: Ainda não. (Desabando em si.) Epa! Quem vai pensar é você! (Meditativos, voltam a caminhar.).MARIA: Isso!JOSE: Isso. MARIA: Eu vou responder, mas antes preciso pedir um favor. JOSE: (Para a platéia.): £h, enjoamento. Começou a enrolação. (Para a Maria.) Desembucha. MARIA: É o seguinte...

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(Saem abraçados.).VOZ DA MARIA: Eu estava levando esse balaio pra Dona Brasilina Gudina de Gurrunfina de Maracutina Xiringabutina. Ela está esperando essa encomenda. Por favor, entrega esse balaio na casa da Dona Brasilina. Só isso. E na volta eu desengancho a bendita pergunta. VOZ DO JOSE: Não vale esconder, nem ficar invisível. Olha lá, seu Deus! VOZ DA MARIA: Meu nome e Maria Pia Serramatutia Catibiribia Fifirififia! VOZ DO JOSE: Muito prazer! E o meu nome e Jose Pe Serramatute Catibiribe Fifirifife. (Cantarolando, Jose entra com o balaio presas as costas.).JOSE: Êh, balaio pesado. Pesado demais! (Caminha encurvado. De repente, uma idéia brilhante desencurva o caminheiro.) Não! Não me digam? que vocês estão pensando isso que eu estou pensando que vocês estão pensando. (Jose sai e, em seguida, retorna com o balaio nas mãos. Ele sente, agora, o peso da curiosidade. Retira cuidadosamente a tampa e conversa com o bonequeiro.).JOSE: ó Chicobóia, segura a tampa. (Jose entrega a tampa para o bonequeiro, olha dentro do balaio e leva um susto.) JOSE: Ui ui ui! (Torna a olhar dentro do balaio e sente outro tremelique.) Ai ai ai! (Torna a bisbilhotar o balaio.) Beleza! (Pega uma delicia imaginária, come e limpa a boca com as mãos.) Hum... Supimpa. (Pensando em voz alta.) Sabe de uma coisa? Pipocou uma idéia aqui na minha cabeça de cabaça. Vou guardar essas delicias na beira da estrada. Depois eu passo por aqui e levo tudo para as minhas andanças. (Jose vai para um canto, vira o balaio de boca para baixo e baté no fundo para não sobrar um farelo sequer. Conversa com o bonequeiro.).JOSE: Ó Chicobóia, cadê a tampa? (Para a platéia.) Com licença. (Jose desce e retorna carregando o balaio nas costas.).JOSE: Deus pediu para entregar o balaio. O balaio eu vou entregar! (Todo pimpão, começa a cantarolar e sai. Para marcar uma “longa passagem de tempo’: a cantoria vai abaixando lentamente.)”.VOZ DO JOSE: Seu Deus! Ai ai ai. Será que ele desapareceu? Ó seu Deus! (De um lado, cautelosa, Maria aparece e desaparece rapidamente. Do outro lado, investigativo, Jose confere a paisagem e desce.).VOZ DO JOSE: Seu Deus! Cadê você? (Maria aparece. Jose entra em cena. Maria tenta escapulir. Jose agarra Deus pela cintura e vem arrastando.).JOSE: Vem cá, seu Deus! Agora, você vai responder aquela pergunta. MARIA: Entregou o balaio? JOSE: Entreguei, sim, senhor. (Para a platéia.) o balaio eu entreguei! (Para a Maria.) Agora e só respostar. MARIA: E como e mesmo a pergunta? JOSE: Por que você fez o mundo assim tão espandongado? MARIA: Espan o que? JOSE: (Para a platéia.) Vou repetir tudo outra vez. Ô enjoamento. (Para a Maria.) Es-pan-don-ga-do. Quer ver? Espia só. (Passa para o outro lado da Maria.) De um lado, tem um tiquitinho de gente que tem tanta coisa que nem sabe o que tem. (Volta posição anterior.) Do outro lado, tem um tarantantão de gente que de tanto não ter nada nem sabe que nada tem. (Maria, pensativa, vai na frente. Jose, meditativo, segue o rastro. Meia-volta! Agora, Maria segue atrás do Jose - ambos meditativos. Maria baté nas costas do Jose.).MARIA: Já respostou? JOSE: Ainda não. Calma. (Desmoronando em si.) Quem vai responder e você! MARIA: E... Bem... O mundo esta assim tão espandongado porque... Porque tem muita gente esvaziando o balaio dos outros!

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(Jose fica sem jeito. Abaixa a cabeça. As mãos tentam esconder o rosto.) MARIA: O que aconteceu? JOSE: Ui ui ui. MARIA: Está sofrendo alguma coisa? JOSE: Sofrendo demais, seu Deus. Eu esvaziei o balaio da Dona Brasilina Gudina de Gurrunfina de Maracutina Xiringabutina! MARIA: Você fez isso?! JOSE: Ai ai ai. MARIA: Chega de sofrimento. Vamos lei recolher tudo e entregar pra Dona Brasilina. JOSE: Então, e por is só que o mundo esta assim tão espandongado?MARIA: Tretou, relou, tem gente que esvazia mil balaios de uma vez só! JOSE: (Observando a platéia.) Agora eu estou vendo!MARIA: Vendo o que? JOSE: (Para a platéia.) Esse mundaréu olhando pra gente. Será que esse pessoal já sabia da resposta? MARIA: Não sei, não, mas pelo jeito... Só especulando. JOSE: (Para a platéia.) Quem desconfiava da resposta, levanta a mão!MARIA: (Para a platéia.) As duas mãos! (Jose e Maria conferem o resultado da votação.).MARIA: Então, to do mundo merece uma salva de palmas! (Jose e Maria puxam uma salva de palmas da platéia e saem aplaudindo também. Serenando as palmas, pipoca atrás da cortina esse restolho de prosa...).VOZ DO JOSE: Tem gente que esvazia mil balaios de uma vez só?! Como e que pode uma coisa dessa, seu Deus? VOZ DA MARIA: Meu nome e Maria Pia Serramatutia Catibiribia Fifirififia! VOZ DO JOSE: Muito prazer! E o meu nome é José Pé Serramatuté Catibiribé Fifirififé.

A centelha que motivou essa peça para teatro de fantoches, mamulengos, briguelos, está escondida no canto "O homem que quis laçar Deus", da obra "Contos Populares do Brasil". Do novidadeiro Silvio Romero. Essa obra foi publicada pela primeira vez em 1885. (Silvio Romero. "Contos Populares do Brasil". 2a edição. São Paulo: Landy Editora, 2002.).

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CATIRIPAPO(PEÇA RADIOFÔNICA)

(Canção "Catiripapo": "Catiripapó/Papocatiri/ Tiripapocá./Pocatiripá/Toda catira/do tipo catiripapo/quando te cantoria/quando cata/é baté-papo.”)

PRIMEIRO QUADRO

CHEGADA

Especula de Rodinha: No ar... Ajudante Marca Barbante: Teco teleco teco.Especula de Rodinha: Catiripapo. Ajudante Marca Barbante: Um programa que e um verdadeiro peteleco. (Um pandeiro repleto de sapituca.).Especula de Rodinha: Os olhos... Fechar. Ajudante Marca Barbante: Profundamente... Respirar.Especula de Rodinha: E uma boa viagemAjudante Marca Barbante: de papo pro ar. (Triscar a vareta na borda da tampa da panela para pescar o som do sino.) Especula: Eu sou a Especula de Rodinha. Ajudante: E eu sou o Ajudante Marca Barbante. Especula: Aviso aos navegantes! Ajudante: Catiripapo e um programa do tipo vai-e-vem.Especula: Quando tira, muito bom. Ajudante: Quando cata, muito bem! (Pandeiro.).Ajudante: Ué. Especula: U e o que? Ajudante: Especula de Rodinha, afinal, o que é catiripapo?Especula: A mesma coisa que peteleco, Ajudante Marca Barbante.Ajudante: Peteleco? E o que e peteleco? Especula: A mesma coisa que piparote. Você já jogou bola de gude?Ajudante: Ontem mesmo eu joguei com o meu tio lei na casa da minha vó.Especula: Pois é. Quando a gente faz assim com o dedo pra dar um teco teleco teco na bola de gude - isso é piparote. Ajudante: Ah... Estendi a roupa no varal! Então, esse tal de catiripapo deve ser parente da sapituca. Especula: Sapituca? E o que e sapituca? Ajudante: A sapituca é parente do saracotico. Especula: E o que e saracotico, Ajudante Marca Barbante?Ajudante: Você já jogou jabolô? Especula: Ontem nos jogamos lei na escola. Ajudante: Pois e. Quando a gente abre os braços para o jabolô sair voando - isso é sapituca. (o pandeiro e seu saracotico.).

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SEGUNDO QUADRO

HISTÓRIA SERRAMATUTÓRIA CATIRIPAPÓRIA

Especula: Este e um programa do tipo catira. Ajudante: Do tipo que tira e cata, do tipo que cata e tira.Especula: Ajudante Marca Barbante, posso rodar uma pergunta?Ajudante: Manda ladeira abaixo, Especula de Rodinha. Especula: o que é o que é? Paralelepípedo para Iê revê relê repito paralelepípedo. Ajudante: Pode repetir? Especula: o que é o que é? Paralelepípedo para lê revê relê repito paralelepípedo... Ajudante: Para! Já sei. E um travalíngua.Especula: Beleza! Merece uma salva de dedos! (Chocalhos, ganzás, maracás.).Ajudante: E agora gudora de gurrunfora de maracutora xiringabutora.Especula: vem aí o primeiro peteleco. Ajudante: HistóriaEspecula: SerramatutoriaAjudante: Catiripapória. (Vinheta do quadro. A vinheta e uma canção relâmpago. A tetra dessa canção é simplesmente o titulo do quadro: "História Serramatutória Catiripapória”.).Narrador: "Folhas Secas". Narradora: Eu estava dando uma aula de matémática e todos os alunos acompanhavam aténtamente. Narrador: Todos? (Barulho de objetos.).Narradora: Quase. Carolina equilibrava o apontador na régua.Narrador: Lucas recolhia as borrachas dos vizinhos e construía um prédio. Narradora: Renata conferia as canetas e os lápis do seu estojovermelhíssimo. Narrador: E Hélder olhava para o pátio.Narradora: o pátio? O que acontecia no pátio? (Bolinha de gude girando no interior de uma tampa de panela).Narrador: Depois do recreio, Dona Natalia varria calmamente as folhas secas e amontoava e guardava tudo dentro de um enorme saco plástico azul. Narradora: Terminado o varre-varre, Dona Natalia amarrou a boca do saco gigante e estacionou aquele murundum de folhas secas perto do portão. Narrador: Hélder observava aténtamente. Narradora: E eu observando a observação de Hélder - e sem descuidar da minha aula de matémática. Narrador: De repente, de rompante, nesse instante de puf-puf, Hélder foi arregalando os olhos e franzindo a testa. Narradora: Qual o motivo do espanto? (Pescar, na tampa de panela, o som do sino.)Narrador: Hélder percebeu, no meio das folhas, alguma coisa se movimentando desesperadamente, com aflição, sufoco, falta de ar.Narradora: Hélder buscava interpretações para a cena, analisava diversas possibilidades, Narrador: mas o contorno do passarinho já se delineava na transparência azul do plástico. Narradora: Isso! Um filhote de passaro caiu do ninho e foi confundido com as folhas secas e foi

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varrido e agora luta pela liberdade. Narrador: "Ele ta preso!" (Silêncio.).Narradora: o grito de Helder interrompeu o final da multiplicação de 15 por 127. Narrador: Todos os alunos olharam para o pátio.Narradora: E todos nos concordamos, sem palavras: Narrador: o bico do passarinho tentava romper aquela estranha pele azul. Narradora: Helder saiu da salaNarrador: e nos fomos atrás. Narradora: E, antes que eu pudesse pronunciar a primeira silaba da palavra "calma", Narrador: o saco plástico simplesmente explodiu,Narradora: as folhas voaram e as crianças pularam de alegria. (Pandeiro serramatuteiro.) Narrador: Alguns alunos dizem que havia do is passarinhos presos.Narradora: Outros alunos viram três passarinhos voando felizes e agradecidos. Narrador: Lucas afirma que era um beija-flor. Renata insiste que era uma cigarra. Narradora: Eu, sinceramente, só vi folhas secas voando. (Bola de gude rodando no interior da tampa de panela.) Narrador: E, para concluir esta inesquecível aula de matémática,Narradora: pegamos vassouras, pás e sacos plásticos,Narrador: e fomos varrer o pátio. (Pandeiro catiripapeiro.)

TERCEIRO QUADRO

P A PE PI PO PUXA VIDA!

Ajudante: Toda catira do tipo Catiripapo Especula: quando tira e cantoria, quando cata é baté-papo. Ajudante: Especula de Rodinha, posso amarrar um desafio? Especula: (Respirando profundamente) Estou pronta para desatar o nó.Ajudante: Vou falar um travalíngua. Quero ver se você repete sem tropeçar. Especula: Pronteco tereco teco. Ajudante: Onpondepê espestapá opô depefeipeitopô dopô rapadipiopô? Especula: O! É a língua do pê! Pode repetir um pouco mais tartarugamente? Ajudante: Onpondepê espestapá opô depefeipeitopô dopo rapadipiopô? Especula: Onde está o defeito no rádio?Ajudante: Muipuitopô bempém! Especula: o quê? O defeito no rádio? Onde está? No meio! Ajudante: No meio?! No meio do que? Especula: Escreve no ar, com o dedo fura-bolo, a palavra "rádio". Viu? Tem cinco letras. A letra do meio e a letra "d" - o "d" feito. Ajudante: Beleza! Merece uma salva de dedos! (Chocalhos, ganzás, maracás)Especula: Catiripapo Papocatiri Ajudante: Tiripapoca Pocatiripa. Especula: E agora nos vamos ver com quantos petelecos se faz um catiripapo. Ajudante: Pá pé pi pó puxa vida! (Vinheta do quadro "Pá pé pi pó puxa vida!'‘)Apresentadora: Queridos ouvintes gudintes de gurrunfintes de maracutintes catiripapintes. Estamos

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aqui, pá pé pi pó puxa vida!, para noticiar o grande encontro de hoje. Epa! Elas! Elas já estão chegando! (Chocalhos.)Apresentadora: As mãos acabam de chegar e são recebidas com muito carinho. Por favor, como vocês se sentem para este encontro? Mão Esquerda: Olha. Estou até tremendo. Mão Direita: Me belisca pra ver se eu estou acordada? Mão Esquerda e Mão Direita: Pinhéu, pinhéu, pinhéu, pinhéu! Brrruuu! Apresentadora: E agora. Pronto. Eles acabam de chegar. (Reco-reco catibiribeco.)Apresentadora: Os pés acabam de chegar e são recebidos com uma salva de pés. Por favor, como vocês se sentem para este encontro?Pé Esquerdo: Uma coisa do outro mundo, uma coisa assim ... Sem pé nem cabeça. Ou seja: a gente põe a cabeça e o pé onde quiser. Pi Direito: Como e que pode? Vivemos no mesmo corpo, mas nos encontramos tão pouco. (Pandeiro fifirififeiro.)Apresentadora: E ai está o grande encontro de hoje: as mãos massageando os pés, os pés massageando as mãos. O mundo inteiro trocando os pés pelas mãos.(Chocalhos.)Ah? Os pés estão querendo dizer alguma coisa? Ah ... E que as mãos estão fazendo cócegas nos pés. (Chocalhos.)Queridos catiripapintes, no próximo programa teremos outro grande encontro aqui no nosso ... Pá pé pi pó puxa vida! (Pandeiro.)

QUARTO QUADRO

UM, DOIS, TRES, QUATRO. ESCUTA SÓ O SEU RETRATO!

Ajudante: Quanto mais a gente puxa, mais a brincadeira esquenta.Especula: Não sei se São dez pras dez ou se São nove e cinqüenta.Ajudante: Especula de Rodinha, abre a mão assim. Isso. O que você está vendo? Especula: Una, duna, tena, caténa, rabo de pena. Cinco dedos.Ajudante: O que você está vendo na palma da mão? Especula: Uns risquinhos. Ajudante: E o desenho da letra "M". Especula: Oh! E mesmo. Ah ... Meu Ajudante Barbante, veja só que marcação. Vejo a Marca do seu nome na palma da minha mão. Ajudante: Beleza! Merecemos uma salva de dedos. (Chocalhos, ganzás, maracás.)Especula: CatiripapoAjudante: Papocatiri Especula: Tiripapoca Ajudante: Pocatiripa. Especula: Vai pipocar o próximo piparote. Ajudante: Um, dois, três, quatro. Especula: Escuta só o seu retrato! (Vinheta do quadro "Um, dois, três, quatro. Escuta só o seu retrato!'')Poeta Um: "Tudobolô".

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Poeta Dois: Tudo vira jabolô. Poeta Um: Já virou Tudobolô. Poeta Dois: Funil Papel CarretelPoeta Um: Pano Cabaça PeneiraPoeta Dois: Lamparina PorcelanaPoeta Um: Toalha Saboneteira Poeta Dois: Coco Lanterna Chuveiro Lata Borracha MadeiraPoeta Um: Laço Garrafa Cortina Cuia Cabide Torneira. Poeta Dois: Tudo vira jabolô! Já virou tudobolô! Poeta Um: Haja tampa de panela, bola de meia, vareta,Poeta Dois: desentupidor de pia, bicicleta, maçaneta! Poeta Um: Tem chapéu de aniversario,Poeta Dois: tem puxador de gaveta,Poeta Um: tem cabeceira de cama,Poeta Dois: tem gravata-borboleta! (Assovios de jabolôs e outros barulhos de brinquedos.)Poeta Três: "Poema para Barbante e Madeira".Poeta Quatro: Quadrante biqueira cante Poeta Três: Topeira picante queira Poeta Quatro: Rompante tonteira Taiti Poeta Três: Primeira cantante teira Poeta Quatro: Quadrante picante rompante cantantePoeta Três: Teira tante queira cante Poeta quatro: Primeira tonteira topeira biqueiraPoeta Três: Cante queira tante teira

"TudoboIô" e "Poema para barbante e madeira" estão presentes na obra "Galeio - antologia poética para adultos e crianças", de Francisco Marques (Chico dos Bonecos). (Editora Peirópolis, Segunda Edição, São Paulo, 2004.)

Poeta quatro: Pulsante fagueira gante Pulseira volante leiraPoeta Três: Farsante bobeira bante Faceira purgante gueira Poeta quatro: Colante ligeira jante Coleira calmante meira Tratante peneira nante Terceira rondante deira Poeta Três: Marcante caveira vante Barreira levante veiraPoeta quatro: Barbante madeira DantePoeta Três: Madeira barbante beira (Ponteados de violão entremeados com percussões na madeira do violão.)

QUINTO QUADRO

DESPEDIDA

Ajudante: Catiripapo. Um programa do tipo ...Especula: Não sei ... Ajudante: Não sabe o quê? Especula: Estou sentindo uma coisa.Ajudante: Um saracotico?

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Especula: Uma coisa mais profunda.Ajudante: Uma sapituca? Especula: Estou sentindo uma pergunta profunda: goiaba na quinta, abacaxi na segunda. Ajudante: Como e que e? Especula: "Como e que e", não. O que é o que é? Uma pergunta da Barra Funda: goiaba na quinta, abacaxi na segunda. Ajudante: (Cantarolando) "Eu subi no pé de manga pra apanhar jabuticaba. o limão estava maduro, só apanhei uma goiaba." (Pensativo) Não tem laranja, nem limão, nem manga, nem mamão?Especula: Só isso. Goiaba na quinta, abacaxi na segunda. Quer ver? Escreve no ar, com o dedo fura-bolo, a palavra "goiaba". Ajudante: Goi-a-ba. Especula: Qual a quinta letra da palavra "goiaba"?Ajudante: Gê, ó, i, a, bê. Bê! Bê! Especula: Pronto. Goiaba, na quinta. Abacaxi, na segunda. Ajudante: Beleza gudeza de gurrunfeza de maracuteza xiringabuteza. (Som de duas bolas de gude girando no interior de uma tampa de panela.)Ajudante: Especula de Rodinha, sabe de uma coisa?, chega de papo.Especula: Também acho, Ajudante Marca Barbante. Vamos catar os trapos e tirar o nosso cavalinho da chuva. Ajudante: Afinal, tudo termina sem acabar e acaba sem terminar.Especula: E a melhor parte ainda vai começar. Ajudante: Daqui pra frente, as mirabolâncias catiripapâncias Especula: continuam com os nossos ouvintes gudintes de gurrunfintes de maracutintes catiripapintes. (Um pandeiro repleto de sapituca.) Ajudante: Catiripapo. Especula: Um programa do tipo vai-e-vem.Ajudante: Quando começa, muito bom.Especula: Quando termina, muito bem! (Reco-reco, pandeiro, chocalhos, violão, tampa de panela.) (Canção "Catiripapo")

GRAVANDO!

Vocês podem interpretar este "Catiripapo" num gravador comum. Depois, num ambiente calmo, acolhedor, com pouca luz, a platéia (olhos guardados ou perdidos) poderá se dedicar a construir cenários. Esta peça pode, também, ser interpretada ao vivo - como se a platéia estivesse assistindo aos atores/locutores e aos musicos/sonoplastas no estúdio de gravação. Neste programa de radio, palavras e vozes são enredadas por silêncios, barulhos, musicas instrumentais e canções. Para tecer esta rede, o "Catiripapo" traz uma chuva de sugestões: pandeiro, chocalho, reco-reco, tampa de panela, bola de gude, jabolô, violão ... Estas mirabolâncias sonoras desejam, também!, driblar a solução fácil, a previsibilidade, a redundância. Por exemplo: se as palavras já disseram que "as crianças pularam de alegria", para que introduzir os gritos festivos da meninada? Neste caso, o saracotico do pandeiro deixa a imaginação do ouvinte livre para desenhar a sua própria cena de alegria. Para um desafiante mergulho nestas "fontes sonoras para o fazer musical", vem ai um belo convite: a obra "Musica na educação infantil - Propostas para a formação integral da criança", de Teca

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Alencar de Brito. (Editora Peirópolis, Segunda Edição, São Paulo, 2003.)

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A MENINA JANAÍNA

(HISTÓRIA COM GESTOS)

CENA I

NARRAÇÃO: Vou contar para vocês uma história gudória de gurrunfória de maracutória xiringabutória. Nesta história somos os atores e as atrizes. Participamos duas vezes: ouvindo as imagens e recriando as palavras com o corpo. Respirando profundamente... A primeira cena do nosso teatro encontra a menina Janaina dormindo. GESTOS: Esticar a perna direita para a frente e inclinar o corpo para trás os braços se transformam em travesseiro.

CENA 2

NARRAÇÃO: Do lado direito da cama da menina Janaina... Estão vendo? Em cima desta mesinha tem um relógio despertador. GESTOS: Braços rente ao corpo. Perna direita apoiada no chão. A perna esquerda, balançando pra lá e pra cá, e o pendulo do relógio. E o barulhinho tic-tac faz o fundo musical.

CENA 3

NARRAÇÃO: São cinco e meia da manha. Ela acorda todo dia as seis e meia. Falta uma hora ainda... Pra dormir, Janaina gosta de escutar aquela canção muito famosa. Como e mesmo? Hãh! "Foi, foi, foi. / Foi só pra você / que eu troquei a letra / da canção de adormecer." Vamos cantar juntos? GESTOS: Viva a cantoria! (Basta encaixar essa letra na melodia do "Boi, boi, boi. / Boi da cara preta ... ")

CENA 4

NARRAçÃO: Seis horas da manha. Janaina Catibiribina continua dormindo. E se ela esta dormindo ... Está de olhos fechados. GESTOS: A mesma cena do sono: zzzzz. Os olhos, cuidado!, estão fechados.

CENA 5

NARRAçÃO: Já são seis e vinte e nove. Falta um minuto. o relógio vai despertar. GESTOS: o pendulo e o tic-tac mais aligeirados.

CENA 6

NARRAÇÃO: Trrriiiiim! GESTOS: Os braços para cima, as mãos abertas e abanando. Tremelique geral! Vamos abaixando e destramelando o "trrriiiiim". Para encontrar essa "musica de despertador", basta vibrar a língua no céu da boca. A roda permanece agachada.

CENA 7

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NARRAçÃO: (Susto.) o que aconteceu? (Caindo na realidade.) Tst tst tst tst tst. A menina Janaina tem o sono pesado. GESTOS: Todos em pé. E outra vez a cena do zzzzz. Orientações para buscar a musica "tst": a gente faz a ponta da língua triscar nos dentes de cima e, ao mesmo tempo, puxa pra dentro o som desse triscado. A tradução desta musica varia de acordo com o numero de triscados. Por exemplo ... "Tst" significa "será o Benedito?". "Tst tst tst" indica que "esse mundo e um buraco sem fundo". "Tst tst tst tst tst" quer dizer " e cada uma que até parece duas".

CENA 8

NARRAÇÃO: E o relógio despertador - como todo bom relógio despertador - vai desmilingüir novamente. GESTOS: Pendulo e tic-tac acelerados.

CENA 9

NARRAÇÃO: Trrriiiiim ... GESTOS: Tartarugamente, a roda vai agachando - as mãos, lei em cima, vão descendo repletas de tremelique. A roda permanece agachada.

CENA 10

NARRAÇÃO: E a menina Janaina ... (Suspense.) Acordou. GESTOS: Um impulso, um galeio, um grande pulo, e todos ficam em pé.

CENA 11

NARRAÇÃO: Ui ui ui! GESTOS: Virar de costas para o centro da roda e batér as mãos na calça do pijama.

CENA 12

NARRAÇÃO: Ai ai ai. Tinha um preguinho na beirada da cama. Quando ela pulou, o preguinho engastalhou na calça do pijama e rasgou um tanto assim. Êh manha complicada! Ô enjoamento! Janaina, que é muito cuidadosa, pensou o seguinte ... GESTOS: Observar a calça rasgada e o danado do preguinho.

CENA 13

NARRAÇÃO: "Hoje a noite, vou vestir o pijama e periga rasgar o resto. Ó! Isso me fez lembrar aquele travalíngua: 'o rato roeu a roupa do Rei de Roma. E a Rainha, de raiva, rasgou o resto'. Sabe de uma coisa? Vou costurar essa calça agora!" Estão vendo aquela mesinha onde esta o relógio despertador? Ela tem três gavetas, não tem? GESTOS: Braços cruzados, mão no queixo, ar pensativo... Olhar para a direita, observar a mesa, conferir as gavetas. Alguns, e claro!, descobrirão que a sua mesinha tem apenas uma gaveta.

CENA 14

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NARRAÇÃo: Abrindo a primeira gaveta ... a que estamos vendo? Então, vamos tirar a agulha que esta fincada no carretel, desenrolar a linha e passar a linha pelo buraquinho da agulha. GESTOS: Basta trazer as imagens dessas palavras para os movimentos dos braços, das mãos e dos dedos. Se você não encontrou uma tesoura na gaveta, pode cortar a linha com os dentes. Se você não conseguiu passar a linha pelo buraco da agulha, experimente o famoso gesto de molhar a ponta da linha nos lábios.

CENA 15

NARRAÇÃo: E a Janaina Catibiribina deu o internacionalmente conhecido "nozinho de costureira". Ela entende do riscado aprendeu com a vó Therezinha. GESTOS: a "nozinho de costureira" nasce, misteriosamente, de alguns movimentos circulares, delicados, com as pontas dos dedos catapiolho e fura-bolo - e com a participação especial do pai-de-todos. (Vocês não tem vontade de aprender esse abracadabrante nozinho? Que tal iniciarmos uma pesquisa com as costureiras da redondeza?)

CENA 16

NARRAÇÃo: Agora tropeçamos num problema técnico. A agulha e a linha são muito pequenas - e a platéia não consegue enxergar. Precisamos aumentar o tamanho desses objetos de cena. Vamos, então, pousar a linha e a agulha no chão. GESTOS: Admiração geral diante do tamanho microscópico dos objetos de cena. Pousar a linha e a agulha no planeta.

CENA 17

NARRAÇÃO: Jogar os braços para o centro da roda, os dedos em chuveirinho. Para aumentar o tamanho da linha e da agulha, precisamos pronunciar as palavras mágicas. Eu falo um pedacinho e vocês repetem - espalhando tremelique com as pontas dos dedos. Respirando profundamente ... GESTOS: Trazer as imagens dessas palavras para a expressão do rosto, para os braços e para os dedos em chuveirinho - ou seja, as mãos caídas e os dedos apontados para a linha e a agulha.

CENA 18

NARRAÇÃO: "Alakazan." GESTOS: A roda repete o "alakazan" em alto e bom som, faz um movimento ondulatório com os braços e espalha o tremelique com os dedos.

CENA 19

NARRAÇÃO: ':Alakazano." / "Pe de pato." / "Pe de pano." / "Aaaaai. Ximiniti." / "Ximinaiti." / "Consertiti." / "Conserraiti." / "Quanto mais olhaiti." GESTOS: Depois de cada pedacinho, a roda repete e... Haja tremelique! No "Pe de pato", levantar o pe direito. No "Pe de pano", levantar o pe esquerdo.

CENA 20

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NARRAÇÃO: "Mais enxergaiti." GESTOS: Depois desse derradeiro pedacinho, levantar os braços e entrelaçar os dedos. Os braços fecham um grande circulo lá em cima, muito alem do murundum da cabeça.

CENA 21

NARRAÇÃo: (Susto.) o que significa isso?! GESTOS: Olhares interrogativos. Olhirridentes. Pipocam algumas interpretações.

CENA 22

NARRAÇÂO: Cada um se transformou numa agulha! E esse e o buraco da agulha. GESTOS: Abaixar o circulo formado pelos braços. Analisar o escandaloso buraquinho da agulha.

CENA 23

NARRAÇÂO: (Ar de decepção.) E eu heim! Ficou muito exagerado. (Ar de suspense.) E a linha ... A linha também aumentou de tamanho. Não! Não me digam? que vocês estão pensando isso que eu estou pensando que vocês estão pensando. GESTOS: Isso mesmo. Pelo buraco gigante da agulha gigante vamos passar ... A linha gigante. Tradução: passar a perna direita dentro do circulo formado pelos braços - os dedos, é claro, permanecem entrelaçados. Cuidado para não desabar!

CENA 24

NARRAÇÃO (Observando.) Isso. Todos nessa posição confortável. (Pensando.) Tinha que aparecer uma coisa complicada. Estava tudo muito fácil. Parecia brincadeira. (Suspense.) E agora ... Momento de alta periculosidade! Trocando de lugar! GESTOS: A linha já atravessou o buraco da agulha, ou seja, os braços estão passando por baixo da perna direita. Todos em pe, espinha ereta, apenas com o pe esquerdo no chão e a perna direita no ar, flexionada. Assim, com a linha na agulha, vamos trocar de lugar com quem esta do outro lado da roda. Conclusão: para pousar o pe direito no chão, precisamos abaixar o corpo. Será uma caminhada no estilo "abaixa-levanta". Cuidado para não trombar as cabeças! Depois desse bafuá, uma verdadeira ismiguça!, a roda está novamente formada - agora, cada um esta numa posição diferente, desfrutando de um outro ponto de vista.

CENA 25

NARRAÇÃO: A menina Janaina, muito cuidadosa, observou, pensou e tropeçou na seguinte conclusão: "Para ficar bem costurado, vou costurar com linha dupla". GESTOS: será o impossível!? Sem destrançar os dedos, passar a perna esquerda pelo buraco da agulha. Cuidado para não desmoronar!

CENA 26

NARRAÇÃO: E a Janaina Catibiribina vai costurar. Enquanto costura, ela se lembra da festa junina e começa a cantar. GESTOS: Com os braços para trás, dedos entrelaçados, a roda vai girando, em zigue-zague, e

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desenrolando uma cantiga repleta de saracotico. Terminada a cantoria, a roda para de girar. CENA 27

NARRAÇÃO: (Apreciando a obra.) Beleza! (Voltando à história.) Além de cuidadosa, Janaina e muito econômica. Ela viu que sobrou um grande pedaço de linha e pensou: ”Jogar fora? Neca de pitibiriba!" Não! Não me digam? que vocês estão pensando isso que eu estou pensando que vocês estão pensando. GESTOS: Sem soltar os dedos, passar de volta as duas pernas pelo buraco da agulha. Assim, o circulo dos braços, que estava nas costas, passou para a frente. Ufa!

CENA 28

NARRAÇÃO: (Pensando.) Simples como beber um copo d'agua. (Susto.) Epa! Tropeçamos, outra vez, num problema técnico. GESTOS: Com os dedos entrelaçados, os braços formando o buraco da agulha, o narrador, inquieto, aponta o queixo na direção da mesinha e sua gaveta escancarada. o que o narrador pretende sugerir? Qual o motivo do desassossego? Vão pipocar muitas interpretações.

CENA 29

NARRAÇÃO: Isso! Como guardar uma agulha desse tamanhão numa gavetinha desse tamaninho? Vamos aumentar a gaveta ou diminuir a agulha? Então, vamos pousar a agulha gigante no chão. (Pensando.) E um abaixa-Ievanta sem fim. Ô enjoamento! (Voltando a história.) Jogar os braços para o centro da roda, os dedos em chuveirinho. Para as palavras mágicas terem o efeito contrario, vamos falar de dois em dois pedacinhos e mais rapidamente - e sempre esparramando os tremeliques. Respirando profundamente ... GESTOS: Trazer para o corpo as imagens das palavras.

CENA 30

NARRAÇÃO: ':Alakazan alakazano." GESTOS: A roda repete mais rapidamente o "alakazan alakazano" e espalha o tremelique.

CENA 31

NARRAÇÃO: "Pe de pato, pe de pano." / “Aaaaai. Ximiniti ximinaiti." / "Consertiti consertaiti." GESTOS: Pedacinhos rápidos e tremeliques.

CENA 32

NARRAC;.ÃO: "Quanto mais olhaiti, menos enxergaiti." GESTOS: Depois destes derradeiros pedacinhos, as mãos se aproximam, os dedos se embaralham, descem, encontram o chão e ... Inacreditável! A agulha retornou ao seu tamanho original.

CENA 33

NARRAÇÃO: Pronto. Vamos guardar? GESTOS: Procurar a mesinha. Ligeira confusão. Alguns se esqueceram de que lado está a mesa.

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Encontraram? Fincar a agulha no carretel de linha e fechar a gaveta. CENA 34

NARRAÇÃO: Finalmente, felizmente, Janaina vai espreguiçar. Ah ... GESTOS: Dois remédios maravilhosos: espreguiçar e bocejar.

CENA 35

NARRAÇÃO: E, agora, o que a menina Janaina vai fazer antes de sair para a escola? Ah! Vai lavar o rosto e despertar o corpo para o dia novo. Escovou os dentes. Resolveu fazer um gargarejo musical. Gróóóó... Alem de cuidadosa e econômica, Janaina e muito vaidosa - fica diante do espelho ensaiando a sua coleção de sorrisos. GESTOS: A narração e lenta - como o próprio ritual do acordar. Assim, vagarosamente, todos podem acompanhar, em detalhes, esse festival de imagens. Nesta cena, e especialmente importante incorporar as sugestões: "ela vai tomar banho", "vai arrumar a cama", "vai pegar as meias que estão no varal", "lembrou-se do sonho e foi correndo escrever na sua caderneta de anotassonhos" ...

CENA 36

NARRAÇÃO: Nisso, a mãe batéu na porta do banheiro: "Ta na hora!" Janaina pegou a mochila e passou na cozinha para comer alguma coisa. A mãe foi logo avisando: "Comer em pe faz mal". GESTOS: Perna esquerda flexionada - como se estivesse sentada numa cadeira invisível. Tornozelo do pe direito apoiado na perna esquerda. Cuidado com o desabamento! Nessa posição confortável, Janaina, tartarugamente, saboreia o seu lanche da manha.

CENA 37

NARRAÇÃO: E a menina Janaina Catibiribina agasalhou a mochila nas costas, deu um gigantesco abraço na mãe e sapecou na estrada, ligeirinha, cantando aquela musica ... Como é mesmo? GESTOS: Todos em pé. Colocar a mochila nas costas, abraçar os dois vizinhos... E a história da "Menina Janaina" termina com a roda girando e cantando ''A arvore da montanha." Na verdade verdadeira, a história termina sem acabar, porque essa canção desenrola um outro mundo de movimentos mirabolantes. Essa musica, claro, claríssimo!, e apenas uma sugestão. o repertorio das "canções com gestos" e enorme - e sempre novidadeiro.

Para mergulhar nestas "canções com gestos", vem ai um belo convite: os cedes "Enrola-bola" e "Ser Criança", de Rubinho do Vale - "um marujo canoeiro, tropeiro lá do alem". "Enrolabola" traz a canção "A arvore da montanha" - e outras abracadabrâncias, como "Salve o sol", "Baté o sino" e o "Desafio de travalínguas", "Ser Criança" traz a canção "Mestre André" - e outros encantamentos de autoria de Rubinho do Vale, como "Trem da História", "Favo de mel" e "Canção das brincadeiras". Para cantatas e surpresas: www.rubinhodovale.com.br

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Papai anuncia aos quatro cantos: - Vamos construir um brinquedo. Impaciente - como todas as crianças de 35 anos -, ele reúne, nessa manhã de sábado, todos os apetrechos necessários. E começamos o industrioso mistério. Que fique bem claro esse "começamos": ele começa a serrar, pregar eu começo a silenciar, interpretar. Aqui esta um cabo de vassoura com a sua estatura tradicional: um metro e vinte centímetros de comprimento. Aqui estão dois pedaços de cabo de vassoura cinqüenta centímetros de comprimento cada um. Numa ponta do cabo de vassoura prendemos um desses pedaços. Nas extremidades desse pedaço, prendemos as rodas. E aqui mesmo, nesse instante!, a caixa de requeijão “Catupiry" se desdobra em duas rodinhas. Na outra ponta do cabo de vassoura, prendemos o outro pedaço. Essa nova travessa e a barra de direção - o nosso guidom. Agora, dois cordões, em xis, unem as pontas do eixo das rodas as pontas da barra de direção. Conclusão: puxando o lado direito do guidom para trás, recolhemos a roda da esquerda. Nasce, assim, uma curva no rumo do coração. Na parte central do cabo de vassoura prendemos uma caixa. E aqui esta o nosso carrinho de carregar miudezas. Durante a construção, acompanho todos os movimentos do papai. Não posso, entretanto, observar o seu rosto - meu brinquedo, inventado aqui mesmo, nesse instante!, e adivinhar os seus olhos. Acompanho a unha infantil do seu de do mindinho. A pele engruvinhada do cotovelo cria novos castelos. E essa cicatriz na batata da perna? As suas palavras sobrevoam: "Este brinquedo ... Alakazan alakazano ... Os meninos ... Bolim bolacho ... Vamos brincar la fora!" La fora? Não. Eu não quero ir. E ele não tem o direito de me obrigar. Pensando bem ... Vou, mas vou porque falta adivinhar alguns detalhes. Já na calçada, meu pai inicia os testes na geringonça. Enquanto isso, a vizinhança se debruça no meu cangote, a vergonha agarra os calcanhares, a zombaria escorre pelo ombro esquerdo, a raiva arranha a barriga, a tristeza entorna no céu da boca. De repente, barulhos de sementes e ponteiros: e o meu brinquedo avisando que já posso olhar no rosto do meu pai. E descubro, olhos nos olhos, que as adivinhas estão cada vez mais desafiantes: papai continua choferando o nosso carrinho, indiferente a tristezas, raivas, zombarias e vergonhas. Agora e a minha vez de testar o maquinário. Toda a respiração se concentra nas rodinhas, nas mãos comandadas pelas rodinhas, toda a respiração nas curvas, nas manobras, no piso da calçada passando como no cinema de caixa de sapatos, nos murunduns do piso da calçada, toda a respiração nos cordões, nos cordões, na engenharia contraditória dos cordões em xis. Papai segue do meu lado. Os seus olhos perseguem as rodinhas. Não posso, entretanto, revelar alegrias - o meu brinquedo, adivinhado aqui mesmo, nesse instante!, e inventar a vontade de crescer.

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FRANCISCO MARQUES (CHICO DOS BONECOS) e poeta, contista, professor e desenrolador de brincadeiras. Nasceu em Belo Horizonte (MG) em 1959 e continuou nascendo em Paraguaçú, Angra dos Reis, São Felix do Araguaia e São Paulo. Sua obra "Palavramiga" recebeu, em 1987, o "Premio Henriqueta Lisboa". Participou da equipe de criação e redação do programa radiofônico "Carretel de Invenções - a cidadania nas ondas do radio" que recebeu o "Premio Criança 1995" da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança. Algumas de suas obras: "Garranchos" (Paulinas) , "A Biblioteca dos Bichos" (Formato), "Histórias Gudórias" (Selo "Palavra Cantada") e "GaIeio" (Peiropolis). Inventa oficinas e espetáculos utilizando brinquedos milenares e planetários - sempre contemporâneos e futuristas. Alguns desses brinquedos foram apresentados, no formato de vinhetas, nos intervalos da programação infantil da TV Cultura: o corrupio gigante, o jabolô de tampa de panela, a menina Jornalina, o jabolô sonoro e a cena dos passarinhos no homem-palco.

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O LIVRO TRANSBORDA, BUSCA OUTROS SUPORTES: CEDÊLEITURAS SILENCIOSAS COM APETRECHOS DE OUVIRIMAGENS

Criação, TEXTOS E VOZ: Francisco Marques Virgula Chico dos Bonecos.CENARIOS:OS PERCUSSIVOS: Estevão Marques (Kalimba, Percussão Bochechal, Bola de Gude na Tampa de Panela, Radiografia, Tampa de Panela, Pandeiro, Tarol, Queixada, Corrupio Gigante, Unhas de Cabra, Xilofone, Vidrinho com Água Tic-tic, Bola de Gude na Pele do Pandeiro, Palmas, Marimbal e Lápis Entrementes.).Gravação, edição, mixagem e masterização realizados na "PANACEA Estação Sonora" por Celso Gelman e Carlos Ranoya

1) A SAPARIA DO MUNDAÚ 10'24 2) COLEÇÃO DE NARIZES 1’443) EMBARULHOS 1’26 4) TIGUDUNS 2'01 5) ESPANTANO 2'44 6) TUDOBOLO 1'02 7) A BICHARADA NOVIDADEIRA 17’008) POEMA PARA BARBANTE E MADEIRA 1'17 9) For, FOI, FOI 1' 43

(MUSICA: Repertório Planetário. LETRA: Francisco Marques.Voz: Janaina Marques. ARRANJOS E PROGRAMAÇÃO DA BASE: Celso Gelman e Carlos Ranoya. ) Tempo total de ouvirimagens: 39'35