Mudança Conceitual, Transformação Social, e a Filosofia ...

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Mudança Conceitual, Transformação Social, e a Filosofia Política da Modernidade* José Eisenberg (UFMG) * Trabalho apresentado no XXII Encontro Anual da ANPOCS em Caxambu, 27 a 31 de Outubro de 1998.

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Mudança Conceitual, Transformação Social, e a Filosofia

Política da Modernidade*

José Eisenberg (UFMG)

* Trabalho apresentado no XXII Encontro Anual da ANPOCS em

Caxambu, 27 a 31 de Outubro de 1998.

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“A fé na cultura moderna era triste: era saber que amanhã ia ser em todo o essencial igual a hoje, que o progresso consistia só em avançar com todos os sempres sobre um caminho idêntico ao que já estava sob nossos pés. Um caminho assim é a bem dizer uma prisão que, elástica, se alarga sem nos libertar.” (J. Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas)

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1) Linguagem, Mudança Conceitual e Transformação Social

O objetivo deste trabalho é fazer uma análise sintética

da filosofia política da modernidade para mostrar como a

transformação social é um processo histórico propulsionado

não somente por subjetividades (sejam elas coletivas ou

individuais), mas também por conceitos que periodicamente

renovam as formas de justificação e legitimação das

instituições políticas. Mostrarei que, se vivemos uma crise

da modernidade, esta crise é fundamentalmente uma crise

lingüística, isto é, uma crise originária no esgotamento das

linguagens da filosofia política moderna. Presos a

dicotomias conceituais tais como Público e Privado, Estado e

Sociedade Civil, e Estado e Mercado, tornamo-nos incapazes

de gerar discursos inovadores que produzam novas maneiras de

instaurar, legitimar e justificar as instituições políticas.

Nas últimas três décadas, uma nova metodologia para o

estudo da história da filosofia política desenvolveu-se ao

redor da expressão "as linguagens da teoria política.”

Inaugurada por Quentin Skinner e J.G.A. Pocock, esta

metodologia se tornou um modo difundido de analisar tratados

de teoria política no contexto histórico no qual eles foram

escritos, e em relação às práticas retóricas das quais eles

emergem.1

Os significados dos argumentos apresentados nestes

tratados, argumentam Skinner e Pocock, não podem ser

interpretados sem levar em conta o desempenho que estes

argumentos requerem. Por um lado, textos de teoria política

são escritos em um certo momento da vida do autor, e assim a

intenção do autor é parte necessária desta interpretação.

1 Cf. a extensa lista de publicações da série da Cambridge University Press entitulada ‘Ideas in Context.’

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Por outro lado, não se pode interpretar aqueles significados

sem referência à posição social que o autor ocupa em relação

a sua audiência, e sem referência às linguagens da teoria

política com as quais o autor e sua audiência interpretam os

eventos históricos de seu tempo. Este historicismo da

metodologia proposta por Skinner e Pocock produz um

contextualismo baseado na dimensão performativa de teorias e

conceitos políticos, conduzindo a uma valiosa ênfase nas

conexões entre as linguagens (ou idiomas) da política que

constituem o contexto do autor, e as mudanças conceituais

que ele realiza na sua obra.

Skinner e Pocock fundamentam sua metodologia na

filosofia da linguagem wittgensteiniana proposta por J.L.

Austin nos meados deste século. De acordo com Austin, a

validade de toda assertiva (speech-act) depende não somente

dos significados contidos na própria locução, resultado de

uma articulação entre a semântica e a sintaxe da proposição

proferida, mas também de significados implícitos que estão

para além da proposição proferida. Assim, por exemplo, a

validade (e, consequentemente, o significado) da sentença

“Eu ordeno que você não saia daqui”, depende não somente do

significado da oração coordenada “Eu ordeno” e do

significado da oração subordinada “que você não saia daqui”,

mas também da posição social relativa dos interlocutores,

que confere (ou não) autoridade àquele que ordena para

proferir tal comando. Ou seja, quando um filho profere esta

assertiva para seu pai, ela tem validade e significado

diferentes de quando um pai a profere ao seu filho.

Portanto, concluem Skinner e Pocock, entender a validade e

significado de filosofias políticas requer mais do que uma

simples interpretação hermenêutica dos textos; tal

compreensão requer também uma análise do contexto social e

lingüístico no qual o texto foi produzido.

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Autores trabalhando sob este novo paradigma têm

freqüentemente apontado para a importância de se analisar a

constituição política da linguagem, e dado uma ênfase

historicista à importância da transformação social para a

consumação de mudanças conceituais na filosofia política. Ou

seja, estes autores têm buscado uma contextualização da

filosofia política nos processos históricos das quais elas

emergem, inserindo a biografia de filósofos e o momento da

produção de seus tratados no palco dos conflitos políticos

de sua época.2 Como aponta James Farr (1989), o enfoque

metodológico prescrito por Skinner e Pocock exige, no

entanto, que olhemos também para a constituição lingüística

da política, isto é, para como as linguagens da filosofia

política e as mudanças conceituais nelas impetradas

estruturaram as práticas justificatórias necessariamente

articuladas às instituições políticas. Em suma, se a

linguagem é historicamente condicionada, a história também é

linguisticamente condicionada.3

Em particular, a compreensão de mudanças conceituais

requer um mapeamento de como as substituições e/ou

transformações de conceitos contidas em textos de filosofia

política foram produzidas. Em geral, tais mudanças ocorrem

no seio de práticas discursivas que antecedem a sua aparição

em textos teóricos:

...Mudança conceitual [conceptual change] deve ser entendida como um dos possíveis resultados criativos do processo pelo qual atores políticos buscam solucionar os problemas que eles enfrentam ao tentar entender e transformar o mundo ao seu redor... Teorias, por outro lado, devem ser entendidas como tentativas intencionais e racionais de resolver problemas práticos e

2 Ver Skinner 1969, Pocock 1971. 3 Ver Kosseleck 1989, p.649.

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especulativos gerados pela interação entre convicções, ações e práticas políticas.4

Assim, geralmente são atores políticos, e não teóricos, que

mudam conceitos quando agem em determinados contextos

institucionais. Estes atores precisam explicar por que eles

escolheram proceder de uma maneira ou de outra e, neste

processo, justificam por que escolheram se afastar de certas

teorias políticas, e as razões que os levaram a adaptar tais

teorias aos problemas práticos que enfrentam. Se queremos

interpretar teorias como práticas discursivas, portanto,

temos que compreender a conexão entre elas e as práticas

discursivas onde mudanças conceituais geralmente acontecem,

isto é, práticas de justificação.5

Esta diferenciação entre a produção de pensamento

político sistemático, e as práticas de justificação que

precedem esforços filosóficos de sistematização não implica

em ignorar os momentos criativo de teóricos, que

freqüentemente inovam o pensamento político em seus

tratados. Ela exige, porém, que busquemos respostas para

perguntas sobre a gênese destas mudanças conceituais nas

práticas de justificação que permeiam a vida das

instituições políticas.

As unidades de significado que compõem tanto o todo de

uma teoria quanto as práticas de justificação são motivos

4 Farr 1989, p.33. O termo “mudança conceitual” é mais abrangente e adequado que o termo “transformação conceitual” já que frequentemente mudanças conceituais resultam de processos de substituição de um conceito por outro, sem que incorra sobre estes nenhum tipo de transformação. Assim, mudança conceitual abrange tanto transformações conceituais (i.e., mudança interna na semântica de um conceito), quanto substituições (i.e., a simples substituição de um conceito por outro). 5 Para uma interpretação diferente mas convergente deste conceito de justificação, veja Habermas 1993, cap.1.

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atribuídos por atores para suas ações políticas. São raras

as ocasiões nas quais atores políticos podem escolher

permanecer calados após agirem, e não apresentar os motivos

que os levaram a determinadas escolhas. Às vezes, estas

justificações assumem a forma de desculpas (escusas) para

interesses; outras vezes, elas assumem a forma de máximas

morais derivadas de visão de mundo. O que sempre separa ação

política de outras formas de ação social, no entanto‚ é o

imperativo de justificação. Justificação pode então ser

definida como a assertiva que todo ator político tem que

proferir para atribuir motivos para suas ações políticas

e/ou decisões institucionais, especialmente quando estes

motivos representam um distanciamento ou uma modificação dos

modos de justificação estabelecidos pelas teorias políticas

vigentes num determinado contexto.

Esta necessidade da justificação é a razão central pela

qual a interpretação da transformação social exige uma

compreensão de mudanças conceituais. A fundação, reprodução

e transformação de instituições políticas sempre exige

práticas de justificação, e as mudanças conceituais que

permeiam estas práticas não são somente um resultado do

processo de transformação social, mas são freqüentemente sua

causa. As linguagens da filosofia política também são

agentes da transformação social.

2) As Linguagens da Filosofia Política da Modernidade

De acordo com Anthony Pagden (1987), três linguagens

fundamentais pontuam a filosofia política no começo da

modernidade. A primeira destas linguagens surge com o

aristotelismo da escola tomista que ficou conhecida como a

seconda scholastica, e é a referência para o desenvolvimento

de boa parte do pensamento jurídico de Grotius a Pufendorf.

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Partindo da linguagem do direito natural de S.Tomás de

Aquino, este aristotelismo foi o pilar da doutrina jurídica

do estado moderno, tornando-se o principal alvo teórico dos

humanistas do século XVI e dos contratualistas dos dois

séculos subsequentes.

A crítica a esta doutrina jurídica estava fundamentada

em uma segunda linguagem centrada em uma recuperação do

republicanismo clássico. Inspirados pelas obras de

moralistas e historiadores romanos tais como Lívio, Sêneca,

e Cícero, filósofos dos mais diversos de Maquiavel a

Rousseau trocam a preocupação dos jusnaturalistas com a

ordenação racional das leis por um enfoque no problema da

prática da política. Colocando os conceitos de virtude e

liberdade no centro da reflexão, estes autores escolhem como

eixos para a filosofia política o problema da ação política

dos governantes e o problema dos mecanismos de legitimação

daquela ação junto à sociedade.

A terceira linguagem da filosofia política da

modernidade é a linguagem da economia política. Fundamentada

na justificação da sociedade mercantil emergente, esta

linguagem produz uma interpretação funcionalista do estado,

na qual o seu principal objetivo é a reprodução e manutenção

do sistema de produção vigente através de um sistema de

administração racional da vida social. Para Mandeville e

Adam Smith, entre outros, a sociedade civil é a esfera da

articulação de interesses privados, não das virtudes

cívicas, e ao estado cabe garantir o funcionamento de sua

principal instituição: o mercado.

Por fim, Pagden lista uma quarta linguagem, mais

epistemológica do que propriamente política, que permeia as

outras três.6 Uma das características fundamentais de boa

6 Pagden lista quatro linguagens, mas a última destas linguagens – a da ciência da política – na verdade é um

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parte do pensamento político moderno é a compreensão de a

filosofia política é de certa forma um empreendimento

“científico”. Ora interpretada como um sistema dedutivo, ora

como uma ciência moral (phronesis), as linguagens da

filosofia política moderna se libertam das correntes da

justificação moralista de origem teológica-jurídica. Por um

lado, a linguagem do direito natural vai se positivizando, e

o procedimento ganha prioridade ontológica sobre a

substância da graça e vontade divina. Por outro, a

linguagem do republicanismo clássico fundamenta as virtudes

e a legitimidade do exercício da autoridade na razão e na

vontade geral da comunidade, buscando assim um fundamento

moral na nova antropologia empírica do homem natural

derivada dos encontros do novo mundo. Por fim, a linguagem

da economia política, ao reduzir a ação política à

articulação de interesses privados, recusa qualquer

moralização da política que não estivesse fundada na

moralidade natural do mercado.

Acima de tudo, foi esta convergência epistemológica das

diversas linguagens da filosofia política moderna que

permitiu o intenso diálogo entre elas e os diversos

sincretismos teóricos que pontuaram aquele diálogo. Percebe-

se, portanto, que apesar das diferentes apropriações que os

“primeiros modernos” fazem das linguagens da filosofia

política medieval e antiga, as principais mudanças

conceituais introduzidas pela filosofia política da

modernidade resultaram de um processo convergente de

secularização daquelas linguagens.7

traço epistemológico comum às outras três. O estatuto epistemológico desta quarta linguagem nos induz a pensar que a lista de Pagden deveria se reduzir às três linguagens discutidas acima. 7 Os principais autores a traçarem este movimento conceitual de secularização são Schmitt (1985) e Blumenberg (1983).

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Mas a convergência entre estas linguagens não se reduz

a esta semelhança epistemológica e à dinâmica de

secularização a ela associada. Uma análise das linguagens do

aristotelismo tomista, do republicanismo clássico e da

economia política mostra que elas também contém mecanismos

de justificação convergentes. Apesar de terem sido aplicadas

diferentemente nos contextos histórico-linguísticos em que

foram utilizadas, estas linguagens têm como eixo pares

conceituais – público/privado, estado/sociedade civil,

estado/mercado – que expressam relações análogas.

Em primeiro lugar, estes pares reproduzem um mesmo

“imperativo da representação”, em que a participação na vida

da comunidade depende da pessoa se re-presentar perante os

outros membros da comunidade como persona através de

artifícios retórico-jurídicos formalizados por instituições.

Dessa maneira, este imperativo da representação impõe sobre

as pessoas que elas separem o ‘eu’ das práticas cotidianas

no mundo da vida (persona naturalis), do indivíduo das

práticas institucionalizadas que integram a vida da

comunidade política (persona moralis); isto é, o imperativo

da representação implica em uma separação radical entre as

práticas discursivas que constituem a vida cotidiana dos

homens e as práticas institucionalizadas que constituem a

sua vida ética.8

Em segundo lugar, estes pares conceituais dividem

aquele universo das práticas institucionalizadas em duas

esferas complementares que esgotam a vida da comunidade

política. Na primeira esfera, as pessoas se representam como

indivíduos (persona moralis simplex) articulando e

8 Cf. Castoriadis 1991, p.144ff. Veja também O. Gierke (1958) para uma análise do desenvolvimento do conceito de persona ficta na teoria da corporações da Idade Média.

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adjudicando interesses e virtudes; na segunda, as pessoas

criam uma representação coletiva de suas concepções do

problema da autoridade política, e produzem uma pessoa moral

coletiva (persona moralis composita), ou seja, um soberano.

Esta divisão da vida ética dos homens em duas esferas, que

já havia perturbado Rousseau, Hegel e Marx, manifesta-se de

diferentes formas nos pares conceituais mencionados acima.

Em todos eles, no entanto, a divisão entre a esfera da

representação de interesses e virtudes, e a esfera da

produção de uma representação coletiva esgota o universo das

práticas institucionalizadas que constituem a vida política

da comunidade e a vida ética de seus membros.9

A primeira versão destes pares conceituais modernos

surge com a linguagem do aristotelismo tomista que serve de

base para boa parte do jusnaturalismo moderno. Inspirada na

dicotomia entre polis e oikos da doutrina aristotélica, esta

linguagem empresta do direito romano os conceitos de público

e privado (publicus/privatus). Todas as teorias modernas do

direito natural (seconda scholastica seiscentista,

Montesquieu, e especialmente os juristas protestantes de

Grotius a Pufendorf) estão baseadas em uma separação radical

entre as coisas que fazem parte da vida privada das pessoas,

e aquelas que são comuns a elas (res publica). Para as

coisas privadas, há o direito privado, governando as

relações entre os homens livres; para as coisas públicas, há

o direito público, preocupado fundamentalmente com as

relações entre governantes e súditos. O imperativo da

representação, nesse contexto, implica na utilização de uma

categoria fundamental do direito privado (o conceito de

9 Os termos persona moralis simplex e persona moralis composita foram utilizados pela primeira vez por Pufendorf. Quando Rousseau descreve o soberano como “corpo moral e coletivo”, ele tinha em mente precisamente esta distinção jusnaturalista.

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dominium) como alicerce para a construção da persona do

súdito (definido como proprietário de seus direitos

individuais) e da persona da autoridade política (definida

como dominium politicum).

A linguagem do republicanismo clássico que permeia o

contratualismo moderno, por outro lado, funda um novo par

conceitual, estado/sociedade civil, cujo objetivo

fundamental é legitimar a autoridade política (isto é, o

estado) na articulação formal dos interesses daqueles que

compõem a sociedade civil. Enquanto que na linguagem do

aristotelismo tomista o imperativo da representação implica

em um transporte do conceito de dominium do direito privado

para o direito público, no contratualismo este imperativo

implica na conversão do conceito mercantil do contrato em um

instrumento de legitimação da sociedade civil e do estado.

Através de uma operação que simula o contrato comercial do

direito privado, os membros da sociedade civil são definidos

pelos direitos naturais que elas transferem (ou não) a um

soberano em troca da garantia de paz e estabilidade, assim

como pelos direitos civis a eles concedidos pelo estado.

Assim, na linguagem do republicanismo clássico, a

persona moralis do cidadão substitue a persona moralis do

súdito do aristotelismo tomista, e a persona moralis

composita da autoridade política se converte em um resultado

da negociação contratual entre os cidadãos. No aristotelismo

tomista, a persona da autoridade política também é

legitimada pelo consentimento dos súditos, mas as obrigações

do rei e dos súditos não são limitadas por este fato; já na

formulação do republicanismo clássico, o consentimento dos

cidadãos é fator fundante e ao mesmo tempo limitante da

persona da autoridade política.

Por fim, a linguagem da economia política cria o par

conceitual estado/mercado, através do qual a persona moralis

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do cidadão é substituída pela persona moralis do

proprietário, e a esfera de suas interações é limitada à

articulação de interesses. Dessa maneira, a instituição do

mercado, originária na alta idade média, ascende no período

moderno à posição de organizador das virtudes públicas, e a

persona da autoridade política é reduzida às funções de

garantia de sua reprodução. Ao contrapor o mercado ao

estado, portanto, a economia política minimiza a importância

do problema da fundação e da limitação da autoridade

política pelo consentimento humano, e reduz a sua existência

às funções reguladoras e mantenedoras que garantem a

reprodução do mercado.

Vale lembrar que a convergência entre estas linguagens

da filosofia política moderna ao redor do imperativo da

representação e de seus pares respectivos não nos permite

ignorar as importantes diferenças entre seus aparatos

conceituais. Afinal, os pares conceituais que definem estas

linguagens ocupam campos semânticos significativamente

distintos. A convergência entre as linguagens argumentada

acima não se estabelece nesse nível semântico; ela é uma

convergência na operação sintática dos conceitos. Como

demonstrado, eles têm funções semelhantes, definidas pelo

imperativo da representação, que implica na separação da

pessoa do mundo da vida (persona naturalis) do indivíduo

moral que se representa nas interações políticas da

sociedade (persona moralis simplex). Nas teorias modernas

da legitimidade, é o consentimento daquelas pessoas que

conseguem se representar como indíviduos morais que dá

origem à autoridade política (persona moralis composita).

Vale lembrar também que as linguagens da filosofia

política moderna não atribuem a todas as pessoas a condição

de persona moralis, vide por exemplo a exclusão dos escravos

e das mulheres deste universo. Ao lidar somente com as

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pessoas que se representam (i.e., aqueles que adquirem a

condição de persona moralis), estas linguagens negligenciam

a pessoa da vida cotidiana (persona naturalis) em prol de

suas representações em práticas discursivas

institucionalizadas. As pessoas de que falam estas

linguagens – o indivíduo moral – são possuidoras de direitos

naturais, de propriedade, e de direitos políticos; mas sua

condição de possuidoras de alguma coisa, na medida em que

depende da sanção da autoridade política para ser legítima e

reconhecida enquanto tal, permanece descolada da condição

humana propriamente dita, e do mundo da vida no qual esta

condição se converte em experiência.

É esta convergência das linguagens da filosofia

política moderna que nos permite falar da “filosofia

política da modernidade” no singular. Como vimos, o que

caracteriza a filosofia política da modernidade é uma

separação entre a vida cotidiana dos homens (o que Husserl

e, depois Habermas, designaram como “mundo da vida” -

lebenswelt), e a forma com que estes se representam nas

relações sociais mediadas por instituições. O problema que

se coloca, consequentemente, em vista dos objetivos

estabelecidos no começo deste artigo, é verificar se há

algum movimento de mudança conceitual a partir do século

dezenove que justifique argumentos sobre o fim da

modernidade? Existe algum projeto da filosofia política da

modernidade que supere a unidade lingüística que a permeia?

Marx, em uma frase do Dezoito Brumário tornada célebre pelo

título de um livro de Marshall Berman, preconizou que “tudo

que é sólido desmancha no ar.” Como veremos nas duas sessões

a seguir, no entanto, o que é sólido nem sempre desmancha no

ar.

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3) O Governo Representativo e a Síntese das Linguagens da

Filosofia Política no Século XIX

A virada para o século dezenove é um período de

tentativas de síntese das linguagens da filosofia política

moderna. No idealismo alemão de Kant a Hegel, vemos uma

síntese do jusnaturalismo e do republicanismo clássico que

busca universalizar a representação dos homens em persona

moralis, fundando a moral na razão natural, e ao mesmo tempo

fundando o estado numa moral universal resultante desta

razão. Tanto para Kant quanto para Hegel, é somente na

medida em que todos os homens representam-se na forma de

persona moralis que se torna possível deduzir um conjunto

mínimo de interesses e de virtudes universalizáveis. Desta

solução deontológica para o imperativo da representação,

surge um liberalismo emancipado das categorias da economia

política, e que funda a legitimidade do estado (persona

moralis composita) na moralidade universalizante do

procedimento formal, no caso do imperativo categórico

kantiano, ou numa razão de estado fundada na vida ética dos

cidadãos (Sittlichkeit), no caso da dialética hegeliana.

Marx, por outro lado, historiciza a interpretação do

imperativo da representação na linguagem da economia

política. Ele critica aquela linguagem por definir um

produto específico e contingente da modernidade e do avanço

da sociedade de mercado – o proprietário – como sendo o

indivíduo moral universal. Para Marx, a linguagem do

republicanismo clássico, da maneira como havia sido

apropriada pelos contratualistas, apenas justifica a

formação da autoridade segundo o modelo da economia

política, dando a ela uma ilusória impressão de

universalidade.

Através desta síntese crítica das linguagens do

republicanismo clássico e da economia política, Marx busca

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definir um projeto de emancipação humana baseado na

superação do homem enquanto cidadão e na recuperação do

homem enquanto homem, que na linguagem marxista ainda guarda

semelhanças com o indivíduo moral da linguagem da economia

política, já que também situa-se no horizonte de uma

moralidade do trabalho. Interessante notar, portanto, que

enquanto que as sínteses das linguagens da filosofia

política moderna em Kant e Hegel buscam converter o

indivíduo moral do republicanismo clássico (o cidadão) na

categoria central para uma reconstrução do jusnaturalismo, a

síntese de Marx quer transformá-lo na categoria central de

uma reconstrução crítica da economia política.

Sob o ponto de vista do “imperativo da representação”,

o evento mais significativo do século dezenove é a

emergência do governo representativo como solução prática

para a institucionalização efetiva da autoridade política

enquanto persona moralis composita. Enquanto que a

universalização do indivíduo moral na Europa foi um processo

de transformação social gradual que só é concluído no começo

deste século com a extensão do voto feminino, uma

operacionalização formal do imperativo da representação para

a constituição da autoridade política é formulada ainda no

século dezenove. Stuart Mill, por exemplo, argumenta que o

ideal é quando todos os indivíduos morais participam da

administração, mas a impossibilidade prática desta solução

para nações grandes implica que o governo representativo é a

melhor maneira de organizar o poder.

É importante lembrar que não é o avanço da democracia

que caracteriza este movimento de mudança conceitual no

século dezenove. Assim como a universalização do indivíduo

moral, o avanço da democracia foi o resultado de

transformações sociais que têm raízes em lutas sociais

concretas de ampliação da esfera de representação dos

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indivíduos morais. Afinal, a democracia já era um regime

conhecido desde o começo da modernidade; na tipologia

clássica das formas de governo, o governo de muitos sempre

foi considerado uma opção em contraste como o governo de

poucos ou de um só. Na medida em que ao longo do período

moderno apenas uma parcela das pessoas representa-se como

persona moralis, a escolha da melhor forma de governo esteve

sempre vinculada a critérios de eficácia administrativa, e

não argumentos morais. A democracia representativa passa a

ser um imperativo formal na formação da autoridade política

(persona moralis composita) somente depois da

universalização do indivíduo moral no começo deste século, e

das mudanças conceituais que levam a consolidação do governo

representativo.

Com o advento do governo representativo no século

dezenove, surge a necessidade de redefinir o indivíduo moral

do republicanismo clássico, já que a possibilidade do

exercício da cidadania depende da pessoa do mundo da vida

estar preparada para o exercício do voto. Como resposta a

este problema, surge no final do século dezenove aquilo que

ficou conhecido como o liberalismo social inglês, por um

lado, e por outro, a social democracia. Inspirados por

Stuart Mill, liberais ingleses tais como Hobhouse e T.H.

Green já demonstram uma preocupação com a lógica interna do

imperativo da representação: para que a pessoa do mundo da

vida se represente como indivíduo moral, é necessário que

ela tenha condições materiais mínimas para o exercício da

liberdade qua cidadania. Concomitantemente, o advento do

governo representativo tem um efeito semelhante sobre o

marxismo, ainda que inverso. O avanço da social democracia

no final do século dezenove está diretamente vinculada a uma

crescente confiança nos círculos marxistas na possibilidade

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do proletariado chegar ao poder através dos mecanismos

institucionais de representação política.

Neste contexto, as teorias do welfare state do século

vinte aparecem como uma grande síntese das linguagens do

republicanismo clássico e da economia política que acomoda,

ao mesmo tempo, tanto liberais quanto marxistas. As relações

sociais ancoradas na estrutura de classe são juridificadas e

a autoridade política, enquanto persona moralis composita,

apesar de ainda interpretada como resultado da articulação

dos indivíduos morais, passa a ter funções na administração

do mundo da vida.10

4) A Reemergência da Sociedade Civil: As Linguagens da

Filosofia Política Contemporânea e a Crise da Modernidade

A conseqüência mais imediata da consolidação do governo

representativo e do welfare state é o estabelecimento de uma

hegemonia ao redor do par conceitual proveniente da economia

política - Estado/mercado. Sustentada por uma justificação

schumpeteriana baseada na convergência teórica entre os

mecanismos competitivos de formação da vontade geral no

sistema partidário, e os mecanismos competitivos de alocação

de recursos no mercado, a democracia representativa se torna

o veículo de articulação dos interesses privados dos agentes

do mercado, relegando para um segundo plano, portanto, a

10 Esta ampliação das obrigações da autoridade política para com a organização do mundo da vida e com as condições materiais para o exercício da cidadania é o objeto da crítica de Weber (1978) na Sociologia do Direito, segundo o qual esta ampliação levou a uma excessiva juridificação e invasão de reivindicações substantivas na esfera do direito público. Para ele, este processo implica em uma crescente perda de legitimidade do procedimento formal.

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articulação e representação das virtudes que caracteriza o

conceito de cidadania derivado do republicanismo clássico.

Logo após a segunda guerra, as teorias da democracia

encontram-se imersas em um paradigma pluralista que advoga o

valor normativo da democracia como processo institucional de

formação da persona moralis composita, mas que reduz este

processo à articulação dos interesses de persona moralis

simplex definidos nos termos estabelecidos pela linguagem da

economia política. De acordo com aquele paradigma, uma

sociedade mercantil, complexa e plural, em que a dinâmica

fundamental da política está voltada para a acomodação de

interesses divergentes, requer os mecanismos formais da

democracia representativa para a produção de consensos.

Verifica-se, portanto, uma importante rearticulação da

filosofia política da modernidade neste século. Alterados

pelos movimentos de síntese do século dezenove, os pares

conceituais público/privado, estado/sociedade civil e

estado/mercado ganham novas conotações. Em primeiro lugar,

ocorre um desmantelamento das fronteiras entre público e

privado que definiam a linguagem do aristotelismo tomista. O

conceito jurídico de público perde o seu sentido mais

imediato na medida em que inúmeras demandas tradicionalmente

vinculadas ao direito privado passam a ser objeto da

gerência da autoridade política sob o welfare state.11 Em

segundo lugar, na medida em que se universaliza o imperativo

da representação e toda pessoa passa a ter um indivíduo

moral correspondente, o conceito de sociedade civil do

republicanismo clássico, definido como a esfera da

articulação das virtudes e dos interesses do cidadão, torna-

se efetivamente a esfera da articulação dos interesses das

pessoas que habitam o mundo da vida. Estas mudanças

conceituais associadas aos termos “público” e “sociedade

11 Habermas 1989.

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civil” são, sem dúvida, as mudanças conceituais mais

importantes nas linguagens da filosofia política deste

século.

Partindo de uma crítica da razão funcionalista, e tendo

como referência os trabalhos de Habermas, um grupo de

intelectuais vem buscando reconstruir estes conceitos de

sociedade civil e de esfera pública com o objetivo de

substituir o par conceitual estado/mercado, por uma tríade –

estado/sociedade civil/mercado – que permita compreender a

proliferação contemporânea de persona moralis composita para

além do estado. De acordo com estes autores, entre os quais

destacam-se Andrew Arato e Jean Cohen, estas novas

instituições políticas recuperam uma dimensão da vida social

relacionada ao exercício da cidadania, cujas funções de

integração social e racionalização do mundo da vida não

podem ser exercidas plenamente nem pelas instituições do

estado nem pelo mercado. Dessa maneira, argumentam Arato e

Cohen (1989), o conceito de sociedade civil deve ser

reconstruído para designar o nível institucional do mundo da

vida:

este conceito incluiria todas as formas institucionais e associativas que requerem interação comunicativa para a sua reprodução e que se apoiam primordialmente em processos de integração social para coordenar ações dentro de seus limites.12

Ou, como define Habermas (1996), a sociedade civil é um

complexo institucional composto de “conexões não-

governamentais e não-econômicas e associações voluntárias

que ancoram as estruturas comunicativas da esfera

pública.”13

12 Arato e Cohen 1989, p.429. 13 Habermas 1996, p.366.

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Na construção de uma crítica ao par conceitual

estado/mercado que emerge como hegemônico nas linguagens da

filosofia política deste século, Habermas e seus seguidores

propõem que substituamos aquele par pela tríade

estado/mercado/sociedade civil para abarcarmos

analiticamente aquelas instituições sociais que não estão

vinculadas ao estado e/ou ao mercado, isto é, outras

personae moralis compositae que não o estado. A inspiração

tocquevilleana deste conceito de sociedade civil é evidente.

Assim como Tocqueville, aqueles que hoje defendem a

importância de se valorizar as instituições e associações

voluntárias da esfera pública têm em mente a produção de

mecanismos que permitam proteger comunidades dos perigos do

despotismo. É precisamente por este motivo que as transições

democráticas da história recente de países da América Latina

e da Europa Oriental e Austral são utilizadas para por estes

autores como evidência empírica para a necessidade normativa

de se valorizar este novo conceito de sociedade civil. A

reemergência da sociedade civil é um fator determinante na

democratização daqueles países.14

Este projeto habermasiano está associado, portanto, a

um esforço de complementar as instituições da democracia

representativa com mecanismos institucionalizados de

participação política. Ao mesmo tempo em que o welfare state

juridifica conflitos sociais provenientes do mercado, ele

sepulta os espaços de articulação da virtudes em nome de um

império dos interesses privados representados através dos

mecanismos institucionais da democracia representativa. A

intersubjetividade e as funções de racionalização do mundo

da vida associados ao conceito de sociedade civil buscam,

14 Para uma discussão das transições democráticas na América Latina sob o ponto de vista da teoria habermasiana da reemergência da sociedade civil, veja Avritzer (1996).

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nesse contexto, recriar uma esfera de articulação das

virtudes nos termos do republicanismo clássico, sendo que,

nesta teoria habermasiana, o bem comum é fragmentado em

múltiplos bens parciais. Daí deriva o caráter dual das

instituições da sociedade civil. Por um lado, elas visam

produzir novas demandas nas instituições do mercado e do

estado, funcionando como um instrumento para influenciar a

dinâmica da representação dos interesses destas

instituições. Por outro lado, ela são auto-referenciadas na

constituição de intersubjetividades, buscando recuperar um

conceito de cidadania centrado na participação política.15

Como apontam Arato e Cohen, a consumação do primeiro

objetivo requer uma estrutura básica e mínima de direitos

fundamentais que garantam e estabilizem as instituições da

sociedade civil. Estes direitos caem em três campos:

reprodução cultural (liberdades de pensamento, expressão,

imprensa, e comunicação em geral), integração social

(liberdade de associação e assembléia), e socialização

(proteção da privacidade, intimidade, e inviolabilidade da

pessoa). A consumação do segundo objetivo, por sua vez,

pressupõe um pluralismo de formas de vida que tem a

capacidade e a vitalidade para constantemente renovar as

identidades instituídas na sociedade civil, e reproduzir por

conseguinte, sua autonomia perante o estado e o mercado.16

Mas, como reconhecem até mesmo aqueles que propõem esta

expansão da vida política para além do mercado e do estado,

a capacidade das instituições da sociedade civil de

assegurar estes dois objetivos é limitada. Do ponto de vista

da intervenção nas outras esferas da vida social, as

instituições da sociedade civil podem no máximo influenciar,

15 Habermas 1996, p.369ff. 16 Arato e Cohen 1989, p.441.

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nunca de fato de apoderar, dos processos decisórios dos

agentes do estado ou do mercado. Como estas instituições

nunca adquirem poder político ou poder econômico

propriamente ditos, sua ação social é mais efetiva no que

tange a transformação das próprias identidade que as

constituem. É precisamente este caráter autoreferencial do

poder das instituições da sociedade civil que levou Arato e

Cohen a definirem os projetos delas como utopias auto-

limitadas.17

O horizonte normativo sobre o qual Habermas e seus

seguidores sobrepõem a teoria da reemergência da sociedade

civil consiste de uma reconstrução wittgensteiniana dos

conceitos kantianos do “reino dos fins” e do “imperativo

categórico.” Para Kant, o reino dos fins é aquela situação

ideal na qual o imperativo categórico é aceito

universalmente. A construção habermasiana da situação ideal

do discurso simula o reino dos fins kantiano na medida em

que também propõe esta situação como uma

transcendentalização dos requisitos necessários para um

consenso racional.

Existe, evidentemente, uma diferença crucial entre

estes dois modelos, que consiste no fato de que, no

imperativo categórico de Kant, as condições para a validade

de leis morais e sua conversão em máximas éticas dependem de

um esforço de universalização de um indivíduo que se reduz a

examinar isoladamente se outros indivíduos racionalmente

desejariam as mesmas leis. Já no modelo habermasiano, as

condições para a universalização da validade de leis morais

depende de um diálogo efetivo entre os indivíduos, isto é,

da experiência intersubjetiva concreta. Para Kant, máximas

éticas são produzidas em um esforço especulativo da razão

17 idem.

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prática movida por intenções; para Habermas, estas máximas

são produzidas em um esforço pragmático da razão prática

engajada em ação comunicativa. Logo, Habermas opera uma

separação da vida ética do “eu” moral e da vida moral do

“eu” espontâneo que é análoga à separação entre legalidade e

moralidade em Kant. O horizonte da situação ideal de

discurso, que garante que as pessoas ajam comunicativamente,

e não estrategicamente, performa o mesmo papel que o

horizonte do reinos dos fins exerce no sentido de garantir a

universalidade e generalidade formais das leis do estado.18

Mas quem são os indivíduos da ação comunicativa? Quem

são os indivíduos morais (persona moralis simplex) da teoria

habermasiana? Habermas busca uma definição dos agentes

sociais de sua teoria da ação comunicativa na psicologia

social de G.H. Mead.19 De acordo com Mead, este indivíduo

moral é constituído intersubjetivamente; a individuação

ocorre através da socialização. Nas interações sociais, o

“eu” espontâneo (I) funda o “eu” moral (me) quando ele

percebe em contextos comunicativos o significado que os

outros atribuem às suas ações. Como aponta Bernstein (1995),

esta distinção é reminescente da clivagem entre amour-de-soi

e amour-propre em Rousseau. O primeiro termo designa a auto-

estima natural da pessoa, e antecede assim qualquer

interação social; já o segundo termo equivale ao “eu” moral

de Mead, mediado pela sociabilidade e contendo, portanto, os

significados moralizados atribuídos à individualidade pelo

coletivo.

A concepção habermasiana das instituições da sociedade

civil como racionalizações do mundo da vida requer,

consequentemente, um duplo movimento na construção de

18 Cf. Thomas McCarthy 1992. 19 Habermas 1992.

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intersubjetividades. Por um lado, quando o “eu” espontâneo

se projeta comunicativamente no coletivo em formação, ele

forma o seu “eu” moral; por outro lado, o “eu” moral

constituído dessa maneira identifica as normas do coletivo

instituído como sendo normas autoimpostas, já que aquele

“eu” moral resultou do próprio processo de instituição do

coletivo. Eis como surge o princípio de identidade coletiva

que opera nas instituições da sociedade civil.

Podemos identificar três problemas quando analisamos as

mudanças conceituais perpetradas pelos teóricos da

reemergência da sociedade civil. Primeiro, a recuperação da

linguagem do republicanismo clássico através da tríade

conceitual estado/mercado/sociedade civil engendra somente

uma proliferação de personae moralis compositae para além do

estado. Neste modelo tripartite, na medida em que as

instituições da sociedade civil buscam influenciar a

dinâmica do poder na esfera do estado ou do mercado, elas

precisam se representar como articulações de interesses, e

não das virtudes que definem sua identidade intersubjetiva.

Por conseguinte, ao abdicar de uma concepção unificada do

bem comum em favor de utopias auto-limitadas e, portanto,

fragmentadas, estas instituições em última instância

reproduzem o modelo implícito na linguagem da economia

política, na qual a articulação dos interesses é o fator

constitutivo das personae moralis compositae. Elas não

superam, consequentemente, o modelo pluralista de democracia

que resultou do império daquela linguagem.

Segundo, como apontou Sousa Santos (1995), na versão do

discurso dominante, a reemergência da sociedade civil

resulta apenas em um “reajustamento estrutural” das funções

do welfare state, no qual a juridificação das questões do

mundo da vida e a intervenção do estado em sua gerência é

parcialmente substituída por um intervencionismo bicéfalo,

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mais autoritário face aos subalternos, e mais diligente no

atendimento das exigências dos dominantes. Mesmo que o

núcleo genuíno desta reemergência da sociedade civil tenha

em mente a reafirmação de valores de autogoverno e de

utopias auto-limitadas, esse núcleo tende a ser omitido no

discurso dominante.20

Finalmente, da mesma maneira com que as pessoas se

representam como indivíduos morais para formar o estado na

linguagens da filosofia política moderna, na linguagem da

teoria da ação comunicativa, as pessoas se representam como

indivíduos morais para formar as instituições da sociedade

civil. Esta persistência do imperativo da representação na

teoria habermasiana fica evidente quando posta a luz do

referencial kantiano que a orienta. O fato de que os

indivíduos morais são constituídos intersubjetivamente não

contorna o imperativo da representação porque participação,

definida desta maneira, não constitui nada mais do que

representação, não no sentido de governo representativo, ao

qual o termo evidentemente se opõe, mas no sentido dado ao

termo no “imperativo da representação”: participar é somente

se representar. A teoria habermasiana ainda depende de um

momento artificial no qual o “eu” espontâneo (persona

naturalis) converte-se em um “eu” moral (persona moralis

simplex), e é somente este último quem participa da formação

e reprodução das instituições da sociedade civil.

5) Conclusão

O imperativo da representação opera de diversas formas

nos momentos da história das linguagens da filosofia

política moderna discutidos até aqui: funda uma nova teoria

20 Sousa Santos 1995, p.124.

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da legitimação pelo consentimento na linguagem do

aristotelismo tomista do começo da era moderna, causa uma

expansão do universo daqueles que se representam como

indivíduos morais na linguagem do republicanismo clássico

que permeia o contratualismo, restringe a esfera

representada à um mercado de articulação dos interesses na

linguagem da economia política e, por fim, permite a

universalização do indivíduo moral nas grandes sínteses do

século dezenove.

O principal desafio da filosofia política contemporânea

consiste em encontrar uma alternativa ao império da

articulação de interesses sob os instrumentos da democracia

representativa, tal qual definida na reinterpretação

schumpeteriana da linguagem da economia política. A solução

lingüística para esta crise proposta pelos teóricos da

reemergência da sociedade civil – a transformação do par

conceitual estado/mercado em uma tríade estado/sociedade

civil/mercado – defende uma ampliação dos mecanismos

institucionais de participação política. No entanto, na

medida em que a relação das instituições da sociedade civil

para com o Estado permanecem definidas em termos de

articulação de interesses, permanecemos sob o império da

linguagem da economia política e da síntese schumpeteriana

que a sustenta hoje em dia. As instituições da sociedade

civil não resolvem o problema da reconstrução de uma esfera

de articulacão das virtudes. Ou seja, o imperativo da

representação sobrevive até mesmo na teoria habermasiana.

A contribuição que espero que este trabalho tenha feito

é ilustrar a importância de voltarmos nossa atenção para as

linguagens da filosofia política que justificam as práticas

políticas de agentes sociais se desejamos compreender

processos de transformação social. Se vivemos uma crise da

modernidade, esta crise é fundamentalmente uma crise

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lingüística, resultado de um esgotamento das linguagens da

filosofia política moderna. Em particular, esta crise é

resultado da perenidade daquilo que chamei de “o imperativo

da representação”, um elemento comum à sintaxe de todas

aquelas linguagens e aos pares conceituais que as sustentam.

Como notou Ortega y Gasset, o caminho da modernidade é

como uma prisão elástica, que se alarga sem nos libertar.

Por mais que muitos tentem nos persuadir de que a

modernidade está próxima de seu fim, na medida em que

continuamos presos às linguagens de sua filosofia política,

e ao imperativo da representação que as permeia, continuamos

vivendo a modernidade. Ainda não aprendemos nenhuma nova

maneira de fazer política que não seja nos representando

como persona moralis simplex, isto é, como indivíduos, e

construindo persona moralis composita, isto é, corpos morais

e coletivos que nos representem e que nos permitam exercer

nossa autonomia. Nesse sentido, a crise da modernidade é uma

crise lingüística que cristaliza o quão elástica é esta

prisão em que nos acostumamos a viver. Seremos modernos

enquanto falarmos as linguagens da filosofia política

moderna. E só aprenderemos a falar novas linguagens quando

entendermos que a transformação social é um processo

histórico propulsionado não somente por subjetividades, mas

também por conceitos que periodicamente renovam as formas de

justificação e legitimação das instituições políticas.

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