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Música para pessoas com deficiência visual: desenvolvendo a memória musical. Rafael Moreira Vanazzi de Souza [email protected] Este texto trata da experiência de aulas de música com deficientes visuais, cuja qual revelou que o desenvolvimento da memória musical é uma habilidade importante para esses alunos. Sendo assim, o foco aqui é dado na memória musical. A leitura das partituras em braille não pode ser realizada ao mesmo tempo em que o leitor toca algum instrumento devido a sua natureza tátil. Outros fatores particulares dessa grafia também dificultam a leitura a primeira vista como o redimensionamento das unidades de tempo de compasso, pois essas não possuem a mesma proporção espacial que encontramos nas partituras em tinta. As particularidades da musicografia braille exigem uma capacidade de memória maior do que é exigida para um músico leitor de partituras em tinta. O embasamento do desenvolvimento da memória musical nessas aulas tem como orientação o método musical de Maurice Martenot. Palavra-chave: musicografia braille; deficiente visual; inclusão 1.Musicografia braille O trabalho de um músico profissional com visão normal (vidente 1 ) geralmente envolve leituras a primeira vista e a execução instrumental de forma paralela com a leitura da respectiva peça na partitura. Essa última permite com que esse músico consiga tocar uma peça sem tê-la ainda memorizado. Com leituras a primeira vista, podemos reunir músicos experientes com nenhum ensaio prévio e ter uma peça sendo executada sem grandes dificuldades ou com um bom resultado musical com pouco tempo de preparo. Em oposição, devido a natureza da musicografia braille ser lida com a ponta dos dedos, entre outros fatores da própria grafia 2 , o músico com deficiência visual (d.v.) não pode fazer uma leitura a primeira vista de forma eficiente. Nesse sentido é impossível ele seguir a sua execução no instrumento musical lendo uma partitura em braille. Tendo em vista essa diferença, optei por desenvolver a capacidade de memorização do aluno com d.v. Escolha feita a partir das dificuldades dos alunos em 1 No contexto da acessibilidade para pessoas com deficiência visual, as pessoas com visão normal são chamadas de videntes. 2 Esse assunto é escasso em pesquisas realizadas, não cabendo a esse texto aborda-lo.

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Música para pessoas com deficiência visual: desenvolvendo a memória

musical.

Rafael Moreira Vanazzi de Souza

[email protected]

Este texto trata da experiência de aulas de música com deficientes visuais, cuja qual

revelou que o desenvolvimento da memória musical é uma habilidade importante para

esses alunos. Sendo assim, o foco aqui é dado na memória musical. A leitura das

partituras em braille não pode ser realizada ao mesmo tempo em que o leitor toca algum

instrumento devido a sua natureza tátil. Outros fatores particulares dessa grafia também

dificultam a leitura a primeira vista como o redimensionamento das unidades de tempo

de compasso, pois essas não possuem a mesma proporção espacial que encontramos nas

partituras em tinta. As particularidades da musicografia braille exigem uma capacidade

de memória maior do que é exigida para um músico leitor de partituras em tinta. O

embasamento do desenvolvimento da memória musical nessas aulas tem como

orientação o método musical de Maurice Martenot.

Palavra-chave: musicografia braille; deficiente visual; inclusão

1.Musicografia braille

O trabalho de um músico profissional com visão normal (vidente1) geralmente

envolve leituras a primeira vista e a execução instrumental de forma paralela com a

leitura da respectiva peça na partitura. Essa última permite com que esse músico consiga

tocar uma peça sem tê-la ainda memorizado. Com leituras a primeira vista, podemos

reunir músicos experientes com nenhum ensaio prévio e ter uma peça sendo executada

sem grandes dificuldades ou com um bom resultado musical com pouco tempo de

preparo.

Em oposição, devido a natureza da musicografia braille ser lida com a ponta dos

dedos, entre outros fatores da própria grafia2, o músico com deficiência visual (d.v.) não

pode fazer uma leitura a primeira vista de forma eficiente. Nesse sentido é impossível

ele seguir a sua execução no instrumento musical lendo uma partitura em braille.

Tendo em vista essa diferença, optei por desenvolver a capacidade de

memorização do aluno com d.v. Escolha feita a partir das dificuldades dos alunos em

1 No contexto da acessibilidade para pessoas com deficiência visual, as pessoas com visão normal são

chamadas de videntes. 2 Esse assunto é escasso em pesquisas realizadas, não cabendo a esse texto aborda-lo.

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sala de aula durante o processo de musicalização. Era nítida a dificuldade deles em

montar as informações escritas de forma correta, seja num solfejo rítmico, melódico ou

com algum instrumento musical, para aqueles que já o tocavam.

Devido às diferenças consideráveis entre as duas grafias musicais aqui citadas, a

memória musical desses alunos precisa ser trabalhada em sala de aula com mais ênfase

do que seria para um aluno vidente. Essas diferenças refletem não só na forma como

músicos profissionais utilizam a partitura, mas também nos materiais didáticos

desenvolvidos para aulas de música para videntes.

Geralmente, os professores são formados para lecionarem aos alunos

que aprendem a ler em tinta, e por isso, a metodologia de trabalho por

eles adotada se baseia nas especificidades desse código. Os livros

didático-musicais são também estruturados de acordo com as

características peculiares da escrita musical utilizada por quem vê.

(Bonilha, 2007, p. 5)

Para iniciar essas aulas fiz o planejamento a partir da minha experiência musical

e da forma como aprendi música em conservatório. Nessas aulas não utilizei nenhum

material didático desenvolvido com a experiência de outros professores, pois a literatura

disponível e informação sobre o assunto são escassas.

Os educadores musicais são, muitas vezes, desprovidos de todas as

informações acerca da notação musical em Braille. Assim, quando

recebem, pela primeira vez, um aluno com deficiência visual eles se

sentem desorientados e não sabem a quem recorrer. Some-se a isso o

fato de que, ao longo da formação acadêmica, esses professores

raramente ouvem falar sobre o modo como pessoas cegas lêem

Música, e, por isso, eles muitas vezes nem têm idéia da existência da

Musicografia Braille. (Bonilha, 2007, p.74)

2.Memória musical

O músico francês Maurice Martenot, mais conhecido pela invenção do

instrumento musical chamado Ondas Martenot, é também autor de um método de

musica. Nele, o autor considera fundamental o desenvolvimento das capacidades de

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atenção, de concentração e de memória, bem como o estado de receptividade por parte

do aluno.

Problemas de atenção, concentração e memória são comuns entre alunos com

d.v. A falta do contato visual é um fator que dificulta manter o interesse do grupo

focado no assunto da aula. Conversas sobre assuntos fora da sala, sons externos,

ambiente, são circunstâncias que invariavelmente dispersam a atenção dos alunos. Isso

também acontece em uma sala com alunos videntes, no entanto, essas influências são

significativamente maiores para esses alunos especiais.

Ao procurar trabalhar a memória nas aulas, como conseqüência a atenção e

concentração foram também desenvolvidas. Os alunos demonstraram adotar uma

postura mais atenta às explicações e exemplos, assim como maior concentração no que

liam e melhora da memória. Dessa forma decoravam trechos melódicos com cada vez

maior rapidez.

O meio utilizado para esse desenvolvimento foi o solfejo. Ele pode ser

considerado uma atividade prática atrelada com a teórica, e por isso, tem ligação com a

própria grafia musical.

Somando a essa situação, senti dificuldades na minha própria capacidade de

memorização musical. Fato que percebi ser uma conseqüência de minha formação

musical como músico leitor de partituras em tinta. Logo, se eu tinha como objetivo

desenvolver nos alunos a memória musical, eu já deveria no mínimo tê-la desenvolvida

também em mim.

Para que o professor possa desempenhar sua função com eficiência é

necessário que tenha desenvolvido os aspectos da prática musical:

ouvido interno, os conhecimentos técnicos musicais e instrumentais e

também a autoconfiança (Fialho e Araldi, 2010, s/p).

Dessa forma, o processo de musicalização estendeu-se dos alunos para o

professor, gerando um ambiente de grande interesse nas aulas e nas atividades

realizadas. Nesse contexto novos exercícios e maneiras de abordar o solfejo foram

desenvolvidas, mais condizentes com o universo da grafia musical em braille.

3.Solfejos

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Primeiramente apresentei solfejos rítmicos e melódicos simples, fazendo uma

pequena variação a cada novo exercício e sempre com um aumento de dificuldade3.

Sendo assim a assimilação de um solfejo é útil para a leitura do seguinte, que embora

seja um pouco mais complexo, possui fragmentos musicais já internalizados no solfejo

anterior.

Atividades musicais práticas são fundamentais para o ensino musical.

Elas despertam o sentido rítmico e melódico, sem que estes sejam

necessariamente conscientes em um primeiro momento, pois a

compreensão dos elementos vivenciados se dá ao longo do processo

de aprendizagem (Fialho e Araldi, 2010, s/p)

A medida que apareciam novas figuras rítmicas e variações, diferentes

posicionamentos das pausas, novas notas musicais, intervalos diferentes, a compreensão

musical se tornava mais clara e a sua memorização mais veloz.

Dessa forma o uso do solfejo pode ser freqüente nas aulas, pois à medida que

vão aumentando sua complexidade, trazem para a sala de aula novos tópicos na leitura

das partituras. Contribuindo assim na assimilação da teoria a partir da prática.

Para o solfejo ter esse resultado didático, a seguinte seqüência pareceu ser mais

adequada: ler as notas do solfejo; observar uma relação entre os seus compassos; cantar

acompanhando na partitura e depois cantar de cor.

As notas são lidas associadas ao seu compasso correspondente, que são sempre

numerados, e quando necessário, à unidade de tempo a que pertencem. Isso contribuiu

para a comunicação em sala, apreensão dos conceitos musicais e memorização dos

exercícios.

Observar a relação dos compassos entre si é importante para proporcionar a

percepção de que as notas musicais fazem parte de um mesmo fraseado. Segundo

Martenot, essa percepção favorece o desenvolvimento do senso de um fraseado musical

mais orgânico.

Estimular a expressão da energia vital por meio do ritmo, isto é,

entender as células melódicas ou rítmicas como uma seqüência dotada

de fluxo e refluxo, que possua um impulso e que gere movimento.

Dessa forma, as células trabalhadas não são vistas somente como um

aglomerado de sons de variadas durações, mas sim com um sentido

musical (Fialho e Araldi, 2010, s/p).

3 O que julgo ser simples ou difícil, se tratando de solfejos, aqui variam de acordo com as facilidades e

dificuldades de cada turma.

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Com os solfejos temos como objetivo fazer com que o aluno consiga ler,

memorizar o trecho e cantá-lo sem ajuda do professor em nenhuma das etapas.

4.CONCLUSAO

Independente se for solfejos ou outras atividades escolhidas pelo professor de

alunos com d.v., a memória musical é habilidade importante para ser trabalhada. Além

disso, na minha experiência pessoal, o solfejo se mostrou ferramenta importante para

aulas tendo alunos de musicografia braille em nível avançado, fazendo uso da voz ou de

instrumentos musicais.

De todo modo, atividades específicas para a musicografia braille precisam ser

elaboradas de forma diferente da que encontramos em materiais didático-musicais para

videntes. Principalmente se a intenção do professor é usar partituras em braille. Pois, de

acordo com F. Bonilha, a maioria dos músicos videntes teve sua educação musical

baseada em livros fundamentados na grafia musical em tinta, ou seja, praticamente toda

a educação musical que temos contato atualmente é estruturada nessa grafia.

O método musical de M. Martenot traz conceitos pedagógico-musicais

interessantes para esse estudo, podendo servir de base para a elaboração de materiais

focando a memória através do solfejo. “A audição interior está no centro dos exercícios

de solfejo. O desenvolvimento desta desde o início do aprendizado musical contribuirá

para o aprimoramento da memória auditiva” (Martenot (1970, 1979 [1957]).

A audição interior deve ser desenvolvida sempre a partir do silêncio

para que a criança não somente se predisponha à audição de

manifestações exteriores da música, mas compreenda e sinta que o

domínio dos sons é invisível. A busca do silêncio antes ou depois de

cada atividade, seja ela vocal ou instrumental, permite atenuar a

agitação exterior. Assim, cabe ao professor criar o hábito dessa

sensação de tranqüilidade para que os exercícios sejam melhores

aproveitados uma vez que o repouso reforça a concentração.

(Martenot (1970, 1979 [1957])

Partindo dessa observação, o uso de silêncio antecedendo a leitura dos solfejos é

benéfico para aumentar a concentração do aluno. Ferramenta ainda a ser mais explorada

em benefício da didática musical.

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Dessa forma temos uma teia de habilidades musicais sendo desenvolvidas em

sala de aula. Devido ao uso de material didático condizente com seu universo gráfico-

musical, é formado músicos com d.v. possuindo uma independência musical mais

acentuada.

Bibliografia

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