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Mário E. Viaro (DLCV/FFLCH-USP) Fonética e Fonologia do Português (FLC 0275) 1 O PERCURSO DO SOM À ABSTRAÇÃO Os sons são entidades físicas empregadas para a comunicação interpessoal na maioria dos sistemas linguísticos (outras entidades são o gesto, normalmente de função paralinguística, mas essencial no caso das línguas de sinais empregadas para comunicação com indivíduos surdos, como a Libras, ou do toque, no caso de línguas empregadas por indivíduos surdo- cegos, como o Tadoma) embora não seja a única forma de expressão linguística (que pode envolver outros sentidos, sendo talvez a visão a mais importante de todas alternativas, usada nas escritas e nas artes). O estudo dos sons e de seus resultados em Linguística equivale a: o estudo da produção de um som, posterior à intenção da fala, que envolve o chamado “aparelho fonador” (parte do sistema digestório e do sistema respiratório), cuja descrição minuciosa advém de ciências como a Biologia e a Medicina, por meio de estudos de Morfologia (no sentido biológico do termo e não no sentido linguístico) e de Anatomia. Esse estudo, mais ou menos minucioso, é útil para o conhecimento dos pontos e modos de articulação da Fonética Articulatória em que se baseia o Alfabeto Fonético Internacional, assim como para os conhecimentos de Fonoaudiologia; o estudo do resultado da produção de um som, isto é, a formação das ondas e ruídos que fazem parte da criação de um som, cuja descrição minuciosa advém dos métodos da Física, por meio dos estudos de Acústica, como são os espectrogramas. Desse modo, a parte da Fonética que trabalha com esse aspecto do som se chama Fonética Acústica. O resultado da produção de um som é passível de transcrições menos minuciosas que os espectrogramas da acústica, como os palatogramas, e é a fonte das escritas tradicionais, do próprio Alfabeto Fonético Internacional e do alfabeto Braille (voltado para indivíduos cegos). o estudo do resultado psíquico da onda sonora envolve sentido da audição (pouco estudado, ciência que formaria uma chamada Fonética da Recepção) durante o processo que se inicia nas primeiras fases da aquisição da linguagem pelos bebês, que transforma sons (no ouvidos) em sinais elétricos armazenados biograficamente nos indivíduos pertencentes a uma sociedade na forma de unidades mínimas abstratas da linguagem, conhecidas como fonemas (unidades mentais) de um código de expressão (sistema), isto é, de sua língua. estudo do elemento psíquico na produção de um som não se confunde com a Fonética Articulatória, mas envolve o percurso desde a intenção do falante até a formação da sua expressão na forma de sons específicos seguindo uma estruturação silábica, acoplada a sentidos. Esse estudo sempre se confundiu com a própria ciência linguística, sendo o Gerativismo a primeira linha filosófica da Linguística preocupada na formalização teórica desse processo e não na descrição minuciosa do produto (em que se fundamentam a Gramática e o Estruturalismo). Os dois últimos estudos são partes de uma área distinta da Fonética, na Linguística, conhecida como Fonologia (ou, segundo algumas linhas teóricas, Fonêmica). Já estudamos o primeiro estudo. Vamos detalhar agora o segundo.

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Mário E. Viaro (DLCV/FFLCH-USP) Fonética e Fonologia do Português (FLC 0275)

1

O PERCURSO DO SOM À ABSTRAÇÃO

Os sons são entidades físicas empregadas para a comunicação interpessoal na maioria dos

sistemas linguísticos (outras entidades são o gesto, normalmente de função paralinguística,

mas essencial no caso das línguas de sinais empregadas para comunicação com indivíduos

surdos, como a Libras, ou do toque, no caso de línguas empregadas por indivíduos surdo-

cegos, como o Tadoma) embora não seja a única forma de expressão linguística (que pode

envolver outros sentidos, sendo talvez a visão a mais importante de todas alternativas, usada

nas escritas e nas artes). O estudo dos sons e de seus resultados em Linguística equivale a:

• o estudo da produção de um som, posterior à intenção da fala, que envolve o chamado

“aparelho fonador” (parte do sistema digestório e do sistema respiratório), cuja

descrição minuciosa advém de ciências como a Biologia e a Medicina, por meio de

estudos de Morfologia (no sentido biológico do termo e não no sentido linguístico) e

de Anatomia. Esse estudo, mais ou menos minucioso, é útil para o conhecimento dos

pontos e modos de articulação da Fonética Articulatória em que se baseia o Alfabeto

Fonético Internacional, assim como para os conhecimentos de Fonoaudiologia;

• o estudo do resultado da produção de um som, isto é, a formação das ondas e ruídos

que fazem parte da criação de um som, cuja descrição minuciosa advém dos métodos

da Física, por meio dos estudos de Acústica, como são os espectrogramas. Desse

modo, a parte da Fonética que trabalha com esse aspecto do som se chama Fonética

Acústica. O resultado da produção de um som é passível de transcrições menos

minuciosas que os espectrogramas da acústica, como os palatogramas, e é a fonte das

escritas tradicionais, do próprio Alfabeto Fonético Internacional e do alfabeto Braille

(voltado para indivíduos cegos).

• o estudo do resultado psíquico da onda sonora envolve sentido da audição (pouco

estudado, ciência que formaria uma chamada Fonética da Recepção) durante o

processo que se inicia nas primeiras fases da aquisição da linguagem pelos bebês, que

transforma sons (no ouvidos) em sinais elétricos armazenados biograficamente nos

indivíduos pertencentes a uma sociedade na forma de unidades mínimas abstratas da

linguagem, conhecidas como fonemas (unidades mentais) de um código de expressão

(sistema), isto é, de sua língua.

• estudo do elemento psíquico na produção de um som não se confunde com a Fonética

Articulatória, mas envolve o percurso desde a intenção do falante até a formação da

sua expressão na forma de sons específicos seguindo uma estruturação silábica,

acoplada a sentidos. Esse estudo sempre se confundiu com a própria ciência

linguística, sendo o Gerativismo a primeira linha filosófica da Linguística preocupada

na formalização teórica desse processo e não na descrição minuciosa do produto (em

que se fundamentam a Gramática e o Estruturalismo).

Os dois últimos estudos são partes de uma área distinta da Fonética, na Linguística, conhecida

como Fonologia (ou, segundo algumas linhas teóricas, Fonêmica).

Já estudamos o primeiro estudo. Vamos detalhar agora o segundo.

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TRANSCRIÇÃO AMPLA X TRANSCRIÇÃO ESTRITA

Um grafema é uma representação VISUAL (escrita tradicional) ou TÁTIL (escrita Braille,

por ex.) de entidades AUDITIVAS (“sons”) e será indicado abaixo sempre entre colchetes

uncinados < >.

Uma representação visual na escrita tradicional pode ser uma LETRA, um DÍGRAFO, um

TRÍGRAFO, um SILABOGRAMA (isto é, um elemento de um silabário: por exemplo, um

hiragana ou um katakana em japonês), um LOGOGRAMA (que mescla, em maior ou menor

proporção, também o significado de um signo, por exemplo, um ideograma chinês).

Um alfabeto fonético também é constituído de grafemas, no entanto, devido ao seu caráter

metalinguístico, suas unidades são representadas entre colchetes quadrados [ ]. O uso dos

símbolos utilizados pela Fonética, como vimos, é regulamentado pelo Alfabeto Fonético

Internacional (IPA).

Por outro lado, a fonologia, no sentido adotado por correntes linguísticas como o

Estruturalismo, tem como objeto de estudo entidades ABSTRATAS de um sistema

linguísticos específico, chamadas FONEMAS, que apenas indiretamente têm a ver com sons

e cujo estudo só ocorre por meio de modelos teóricos. Os fonemas são representados

visualmente por meio de barras / / e seus símbolos, ainda que muito parecidos com os do

IPA, são convencionados pela tradição bibliográfica da fonologia e não pelo IPA.

Assim sendo, <a> é uma representação tradicional da letra A, [a] é a representação do IPA

para um som vocálico aberto e central com características acústicas específicas, já /a/ é a

representação convencionada para uma unidade linguística mental básica que se opõe a

outras unidades (como o /i/ ou ou /u/) e que tem determinadas características na expressão,

como, por exemplo, a capacidade de formar centro de sílabas em uma determinada língua.

Uma transcrição fonética, estritamente falando, é a passagem de um som para caracteres IPA.

Assim sendo, é preciso que haja sempre um informante, caso contrário, uma transcrição

fonética não faz sentido. Por razões didáticas ou teóricas, também se convenciona que uma

transcrição fonética, no sentido amplo, também pode ser a passagem de grafemas tradicionais

para caracteres IPA, no entanto, essa prática pode gerar vícios, por exemplo, imaginar que

todo grafema <a> deva ser transcrito como [a], por exemplo. Ora, um grafema segue normas

prescritivas, no entanto, o bom emprego do IPA jamais pode ter esse elemento normativo.

Desta forma, o uso de grafemas tradicionais para representação da oralidade sempre gerou

transcrições mistas, imprecisas ou até mesmo falsas.

Fala-se, portanto, de equivalências parciais entre sistemas de grafemas e a representação do

IPA e não em transcrição fonética de um grafema tradicional para elementos do IPA, uma

vez que, como dito acima, o IPA também é um grafema. Um exercício didático de passagem

da escrita tradicional para a escrita fonética não é, stricto sensu, uma transcrição fonética.

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Além disso, desde a sua criação em 1886, não havia ainda uma clara distinção entre fonética

e fonologia, uma vez que o IPA surgiu como um alfabeto fonético específico para a

transcrição do inglês e como concorrente do Alfabeto de Lepsius (usado desde 1855).

Pesquisas sobre fonologia se concentravam no leste europeu desde 1875, inicialmente no

Círculo de Kazan e, bem mais tarde, no Círculo de Praga, na década de 30 do século XX.

Entre sua criação e a publicação da obra póstuma de Trubetzkoy, ou seja, entre 1886 e 1939,

havia a prática da transcrição por meio do IPA de duas formas, ainda usuais, embora de forma

pouco consciente nos pressupostos teóricos que se seguiram no Estruturalismo e no Pós-

estruturalismo:

• transcrição estreita (ou narrow transcription), que tem a intenção (sem sucesso,

obviamente) de representar TODOS os traços perceptualmente característicos de uma

língua. Por exemplo, um [t] pode ser apicodental, lamino-dental, lamino-alveolar ou

apicoalveolar. Esta diferença articulatória não só é difícil de ser percebida por um

falante do português, mas também varia de forma livre entre os falantes, quando não

ocorre no mesmo falante ou até mesmo numa mesma oração. Uma caracterização dos

dois sons é possível com símbolos do IPA: o [t] é, por definição, apicoalveolar e para

caracterizá-lo como apicodental é preciso usar um diacrítico, no caso [t̺]. No entanto,

é difícil confiarmos nas nossas impressões (pois o próprio desenvolvimento cognitivo

de abstração de nossa mente atrapalha mais do que nossa audição) e tal distinções só

são possíveis por meio do antigo expediente do palatograma ou então por meio de

análises acústicas (espectrogramas e outros tipos de gráfico). Parece razoável,

portanto, que a pessoa que faz uma transcrição precisa por meio desses diacríticos

use-os somente quando tiver certeza e não de uma forma “normativa” porque “sabe”

que os [t] numa determinada língua são apicodentais e não apicoalveolares. Desse

modo, a transcrição estreita é recomendada apenas para análises acústicas.

• transcrição ampla (ou broad transcription) é a mais adequada para quem trabalha

com fonética sem o instrumental da Fonética Acústica, isto é, pelo método de oitiva,

verificando não só a precisão de uma variação recorrente de um som empregado na

expressão de uma língua, mas também quando lidar com unidades maiores (sílabas,

moldes fônicos etc.) ou com vistas à teorização fonológica. Assim sendo, é uma

transcrição mais abstrata do que a transcrição estreita, porém mais adequada a quem

se serve apenas da percepção natural (isto é, da audição) e não de equipamentos de

Acústica. Nesse caso, sabe-se que há variação entre [t] apicoalveolar e [t̺] apicodental,

contudo usa-se a forma graficamente mais simples, isto é, sem o diacrítico, seguindo

o antigo preceito do Alfabeto Fonético Internacional de evitar diacríticos quando

possível. Nessa transcrição, diacríticos são necessários apenas para elementos que

têm valor fonológico, por exemplo, um som [ẽ] só faz sentido numa transcrição ampla

do português, não do espanhol ainda que ocorra eventualmente na fala de algum

indivíduo. Só faria sentido transcrever assim uma pronúncia do espanhol caso haja

necessidade de descrever uma norma específica, uma vez que as normas (no sentido

técnico dessa palavra, tal como utiliza o linguista Coseriu) são instâncias

intermediárias entre a langue e a parole saussurianas. Na langue estariam os fonemas

(com seus traços obrigatórios e distintivos), na parole os sons (com todos os seus

traços não-distintivos, tais como representados pela transcrição estreita) e na norma

estaria aquilo que é obrigatório, porém não-distintivo. Esse uso do termo “norma”

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não se confunde com o termo “norma culta”, que é apenas uma entre as muitas normas

da langue.

No caso da língua portuguesa, alguns elementos dificilmente perceptíveis, que normalmente

causam insegurança na sua transcrição que não seja ampla são:

- Diferenças de tensão nas plosivas e nasais;

- Diferenças de quantidade vocálica;

- Distinção de tons;

- Diferenças nos graus de abertura dentro da área abarcada pelo mesmo fonema

vocálico;

- Ensurdecimento vocálico, de consoantes nasais, laterais, tap/flap e trill;

- Gradações de ensurdecimento;

- Presença de tremulamento e murmúrio;

- Presença de golpes de glote;

- Distinção entre consoantes laringalizadas (com coarticulação glotal, isto, aspiradas

ou ejetivas);

- Distinção entre algumas aberturas vocálicas em sílabas átonas postônicas

- Distinção entre as realizações centrais aberta, semiaberta e semifechada

- Nasalidade das vogais antes de consoante nasal seguida de vogal;

- Presença de consoante nasal após vogal nasal, antes de consoante;

- Distinção entre o ponto de articulação apicodental e apicoalveolar;

- Distinção entre oclusivas palatais e velares;

- Distinção entre o tap alveolar, tap/flap retroflexo, aproximante alveolar e retroflexa;

- Distinção entre palatais e palatalizadas;

- Distinção entre velar, uvular e laringal.

Muitos desses elementos, contudo, são utilizados como elementos distintivos em outras

línguas e sua distinção é normalmente considerada “sutil” ou “difícil” para um falante de

língua portuguesa.

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FONÉTICA ACÚSTICA

INTRODUÇÃO

Os sons individualmente analisados pela Acústica nunca são idênticos, mesmo em duas

realizações seguidas de um mesmo fonema. Desse modo, a chamada transcrição estreita

(narrow transcription) requer conhecimento de Acústica, assim como o manuseio de

aparelhos. A aplicação da Acústica para o fenômeno da fala já é conhecido desde o século

XVII, quando Holder (1669) fez a distinção entre sons surdos e sonoros. Com os princípios

da sintetização da fala, chega-se na segunda metade do século XIX a estudo de ressonância

(Heimholz 1863) e dos formantes (Hermann 1890).

Um som utilizado na comunicação linguística é, do ponto de vista da Física o produto de uma

fonação e corresponde materialmente ao movimento de partículas do ar (de fato, no vácuo,

não existe produção de som) e pode ser estudado pela formalização da Mecânica e da

Dinâmica. A representação desse movimento tem a forma de uma onda e, portanto, tem um

comprimento e uma amplitude.

Pelo desenho, observa-se que, além do comprimento, uma onda tem uma amplitude, que

estão diretamente relacionados com a intensidade de um som, normalmente indicada em

valores em decibeis (dB), como se verá abaixo. O ir e vir de uma onda forma um ciclo. O

número de ciclos por segundo é a frequência de uma onda, medida em hertz (Hz).

Uma onda, contudo, é apenas uma representação bidimensional do movimento

tridimensional das partículas de ar. No mundo ideal, é possível pensar numa onda infinita,

mas como as ondas reais estão associadas à energia mecânica, depara-se com o atrito do

próprio meio aéreo, de modo que não atinge ouvidos a distâncias muito distantes. Esse

fenômeno se chama amortecimento do som. Se não houvesse amortecimento do som,

teoricamente, ouviríamos todos os sons produzidos desde sempre e por toda a eternidade,

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independentemente da distância das suas fontes produtoras. Dificilmente a evolução

desenvolveria órgãos de sentido para um fenômeno com essas características. Chama-se

reverberação ao tempo em que um som leva para decair e tornar-se inaudível. Num material

fibroso, há absorção do som e em material duro, há reflexão do som. Desse modo, ao produzir

um som durante a fonação, a reverberação encontra um conjunto heterogêneo de cartilagens,

ossos, músculos ao longo de um tubo, com idiossincrático formato individual, de modo que

equivale à produção de um som em um instrumento, descontadas essas reverberações

secundárias.

Um aparelho chamado espectrógrafo, hoje substituído por vários programas de computador

disponíveis online, grava o som, analisa as ondas e as representa visualmente por meio de

um espectrograma, do qual se depreendem duração temporal, intensidade e frequência. Uma

solução é marcar a duração temporal no eixo horizontal x e a altura de um som, representada

pela variação da sua frequência, no eixo y, enquanto a intensidade é representada por uma

gradação de cores ou de cinza. É preciso observar que um espectrograma, assim como a

escrita tradicional, a escrita Braille e o IPA, é apenas uma representação visual (embora

muitíssimo mais precisa) de um fenômeno sonoro, mas não é o som em si.

FREQUÊNCIA DA ONDA

Chama-se período o intervalo de tempo gasto na realização de um ciclo, isso é, no ir e vir de

uma onda. No caso de um diapasão (que produz o chamado tom puro), se o período demora

0,01 seg, então em um segundo produzirá 100 ciclos, o que é o mesmo que dizer que sua

frequência é de 100 Hz. Portanto, quanto maior a frequência, menor o comprimento da onda

(representada no gráfico acima como λ), pois em um segundo deverá haver um número maior

de ciclos. A distinção perceptiva entre grave e agudo advém da diferença relativa entre menor

e maior frequência de uma onda, respectivamente. Portanto, a frequência marcada em Hz tem

relação com a percepção auditiva da altura de um som.

Independentemente da intensidade, a audição humana percebe ondas de frequência entre 16

a 20.000 Hz. Abaixo dos 16Hz as ondas são consideradas infrassônicas. Acima dos 20.000

Hz são ondas ultrassônicas. Pessoas idosas não costumam ouvir, em média, sons muito acima

dos 8000 Hz. Um ato de fala oscila entre os 100 e 4000 Hz e é formado, na sua porção

periódica, por feixes de inúmeras ondas formando ondas sinusoidas que configuram os sons

harmônicos (basicamente os sons vocálicos), de silêncios e explosões de diferente duração

(consoantes oclusivas e pausas) e de ruídos, isto é, sons aperiódicos (demais sons

consonantais).

É possível decompormos o conjunto de ondas sinusoidais de um som vocálico (que é obtido

pela livre passagem do ar do pulmão até a boca sem qualquer tipo de constrição), pela Análise

de Fourier em suas frequências componentes. Como dito, uma vogal é um som harmônico,

composto de várias frequências, F0, F1, F2 etc. A frequência F0, gerada nas cordas vocais,

chama-se frequência fundamental: nos casos de indivíduos do sexo masculino, costuma valer

por volta dos 120Hz e, no caso das mulheres, por volta dos 220 Hz. A frequência fundamental

é muito importante, uma vez que uma lesão nas cordas vocais compromete a distinção (do

ouvinte) dos sons produzidos (pelo falante), prejudicando a comunicação: serve-se muitas

vezes do procedimento médico da laringectomia e a instalação de uma eletrolaringe nesses

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casos. Os sons harmônicos, como dito, são feixes de ondas, decomponíveis pela Análise de

Fourier em ondas simples, que constituem os formantes, ou seja, F0 constitui o primeiro

harmônico; F1 seria o segundo; F2 o terceiro e assim por diante. A proporção entre a distância

dos primeiros harmônicos na audição de um feixe de harmônicos é utilizada para o

reconhecimento e distinção de uma vogal. Um som com mesma frequência fundamental

também pode ter os demais harmônicos distintos e isso configura o chamado timbre.

Na decomposição de um som harmônico original obtém-se um conjunto de sons elementares

(isto é, frequências componentes, harmônicos ou parciais) que são frequências naturais da

vibração do trato vocal, uma vez que o aparelho fonador pode ser entendido quase como um

instrumento com tubos de diferentes circunferências equivalendo à laringe, à faringe, às

fossas nasais e ao maior ou menor fechamento da cavidade oral pela língua. Nos

espectogramas os formantes são representados por barras escuras até cerca de 4000-5000 Hz,

por exemplo:

Supondo que tenhamos os seguintes formantes iniciais:

F1 F2 F3

[i] 500 3200 3500

[u] 500 800 3000

[e] 600 2500 3000

[o] 600 800 2500

[ε] 700 2000 2500

[ɔ] 700 1000 2500

[a] 1000 1500 2500

Várias conclusões da Fonética Articulatória podem ser retiradas desses valores:

- Quanto menor o valor de F1, mais fechada a vogal;

- Quanto maior o valor de F1, mais aberta a vogal;

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- Quanto menor a distância entre F1 e F2, mais posterior é a vogal;

- Quanto maior a distância entre F1 e F2, mais anterior é a vogal;

- Quanto menor a distância entre F2 e F3, mais anterior é a vogal;

- Quanto maior a distância entre F2 e F3, mais posterior é a vogal;

Os valores não são absolutos, mas variam entre os falantes e até mesmo no próprio ato de

fala do indivíduo, embora as proporções sejam sempre mantidas.

Num gráfico que espelhe valores médios de uma coleta de dados, semelhantes a esses,

distribuídos de forma sui generis (a saber, o eixo x, em sua porção normalmente usada para

valores negativos, representando os valores da F2 e a porção do eixo y normalmente usada

para valores negativos, representando os valores de F1), teríamos algo como que a base para

a representação abstrata do famoso trapézio das vogais, usado pela Fonética Articulatória e

pelo Alfabeto Fonético Internacional (pautado no formato de uma boca e nas posições da

língua, em que o eixo x equivaleria à porção superior das mandíbula e o valor da vogal mais

aberta à base do trapézio). Nesse gráfico, os valores mais à esquerda são representações das

vogais mais anteriores e os mais à direita, das vogais mais posteriores. Se os valores acústicos

das vogais fossem rigidamente estipuladas, muitos diacríticos usados pelo IPA poderiam ser

utilizados de forma bastante rigorosa (e não relativa):

AMPLITUDE DA ONDA E INTENSIDADE

Além da frequência, um som tem amplitude, que equivale ao deslocamento espacial da onda

ao completar seu ciclo (marcado como y no gráfico acima). A amplitude, do ponto de vista

da percepção, influencia no chamado volume de um som, que decorre de uma grandeza física

chamada intensidade, medida em watt/cm2. No entanto a intensidade é uma grandeza

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envolvida com a pressão com que esse deslocamento que ocorre, a qual é mensurável em

dinas/ cm2. Dina é uma unidade de força em que se imprime velocidade de 1 cm/s durante 1s

numa massa de 1g. Duas pessoas falando a um metro de distância empregam uma intensidade

de 0,2 dinas/cm2 e um grito chega a ser 1.000.000 de vezes mais intenso que um sussurro.

Um ouvido humano chega a ser sensitivo a 1013 unidades de intensidade. Lida-se, portanto,

com valores muito grandes para determinar a intensidade de um som. Por isso, utiliza-se,

para fins práticos, uma unidade mais prática, ainda que não aceita pelo Sistema Internacional

de Unidades: o decibel (observe-se que um decibel é um décimo de um bel, unidade

raramente usada), cujo zero equivale ao valor do patamar de audição humana (0,0002

dinas/cm2, equivalente a 10-16 watt/cm2).

Um decibel é uma unidade que indica a proporção de intensidade em relação a um nível de

referência especificado ou implícito e uma relação em decibéis é igual a dez vezes o

logaritmo de base 10 da razão entre duas quantidades de energia. Por meio da fórmula XdB

= 10 log10 (X/X0) entende-se que X0 é a intensidade de referência e X equivale a X vezes o

valor de referência. Ou seja, um som de 90 dB de intensidade é um som 90 vezes maior que

o patamar da audição humana. Desse modo, o decibel, usado como uma escala logarítmica

da razão de intensidade sonora, se ajusta melhor à intensidade percebida pelo ouvido humano,

pois o aumento do nível de intensidade em decibels corresponde aproximadamente ao

aumento percebido em qualquer intensidade: um humano percebe um aumento de 90 dB para

95 dB como sendo o mesmo que um aumento de 20 dB para 25 dB. A cada 10 dB, no entanto,

dobra-se o volume: um som de 30 dB tem o dobro do volume de 20 dB; um som de 40 dB

tem o dobro do volume 30 dB e assim por diante.

Eis alguns parâmetros de intensidade:

Folhas 10 dB

Tic-tac 20 dB

Conversa a 1m 60 dB

Toque telefone 3m 75 dB

Grito 75 dB

Orquestra 100 dB

Buzina a 1m 120 dB

Limite da dor acima de 120 dB

Metralhadora 130dB

Segundo David Crystal, os sons do inglês têm, em média, a seguinte intensidade:

ɔː ɒ ɑː ʌ ɜː a ʊ 24-29 dB

e iː uː ɪ 22-23 dB

w r j l 20-21 dB

ʃ ŋ m tʃ n 15-19 dB

s z ʒ dʒ 12-13 dB

t g k 11 dB

v ð 10 dB

b d p f 7-8 dB

θ 0 dB

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PAUSAS, EXPLOSÕES E RUÍDOS

Diferentemente dos sons harmônicos, que constituem as vogais, o conjunto dos demais sons

utilizados numa fonação conhecido como consoantes forma um conjunto bastante variado de

fenômenos acústicos. Muitas tonsoantes não são harmônicas: são ruídos e têm gráficos que

revelam aperiodicidade: isso advém da maior ou menor fricção da língua, presente nas

fricativas, mas também em outros modos de articulação. Outras consoantes são formadas por

silêncio resultante da oclusão glotal ou vocal, seguidos, muitas vezes de uma explosão, típico

dos sons plosivos.

Representação de vogais em espectrograma

Representação de uma porção de uma elocução mediante uso de espectrógrafo

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FONÉTICA DA RECEPÇÃO

Na Fonética da Recepção, é importante distinguir os seguintes termos:

• Ouvir: capacidade natural da espécie (com pequenas variações individuais quando

não é algo patológico): não pode ser alterada a não ser mediante aparelhos (cf.

microscópio e telescópio).

• Perceber (ou “escutar”): envolve atenção; pode ser alterada mediante treino de

descondicionamento de certas indiferenças tidas como iguais durante a aquisição da

linguagem.

• Distinguir: transformar o som em algo instrumental (o significante), ou seja, uma das

facetas do signo, intrinsecamente ligada a significados. Não é passivo, mas torna-se

condicionado também.

O gráfico abaixo é obtido pelo método da Audiometria mostra dois limiares: no Limiar da

Audição da espécie humana (muito variável de espécie para espécie de ser vivo), dada a

anatomia de nossos ouvidos e consequências complexas de nossa cognição, a audibilidade

de um varia conforme uma combinação entre intensidade (medida em decibéis) e frequência

(medida em Herz): um som com intensidade de 80 dB é audível em frequências como 20Hz

mas não são audíveis em frequências de 100Hz; um som com intensidade de 10 dB é audível

em frequências de 500Hz mas não entre 500Hz e 10KHz, mas volta a ser audível acima de

10KHz. Sons com intensidade acima de 130dB, audíveis ou não, dependendo da frequência

fazem parte do chamado Limiar da Dor e podem danificar os tímpanos ou alterar o ponto

descendente-ascendente da curva de audição. O limiar da dor se inicia por volta dos 140 dB

(equivalente a 2000 dinas/cm2 ou 10-2 watt/cm2)

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Segundo David Crystal, a palavra inglesa como thorn “espinho” na pronúncia britânica [θɔːn]

tem, no primeiro segmento [θ], a intensidade de 0 dB; no segundo, [ɔː], de 29 dB e no terceiro,

[n], de 15 dB. Como a frequência de [θ] não é zero, esse segmento é audível. De fato, pelo

gráfico, percebe-se que só seria inaudível por volta de 5KHz, mas voltaria a ser audível acima

desse valor. Essa curva é característica da espécie humana e é determinante pela audiometria

na detecção de problemas de surdez.

Abaixo, detalhes anatômicos do órgão vestibulococlear (comumente chamado de orelha) e

do ouvido (que tecnicamente se refere à porção interna do aparelho auditivo). Observe que,

além da membrana timpânica, dispomos de três ossículos (bigorna, estribo e martelo) e de

outros elementos (labirinto, cóclea) e que há interligação com a faringe (por meio da trompa

de Eustáquio) quanto com o cérebro (por meio do nervo auditivo). A conversão do som

recebido na forma de energia mecânica em energia elétrica se dá pelo chamado órgão de

Colti. A partir daí, os estudos descritivos da Fonética cedem espaço para os estudos teóricos

da Fonologia.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Orelha

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ouvido_externo

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ouvido_m%C3%A9dio

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ouvido_interno

https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%93rg%C3%A3o_de_Corti

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ABSTRAÇÃO

Toda abstração remete a uma experiência de vida. Toda abstração está, portanto, em um

cérebro individual. Mesmo as abstrações provenientes de construtos sociais sofrem

reinterpretações individuais.

Mediante a linguagem compartilham-se abstrações, de modo que podemos imaginar que haja

“algo em comum” (supraindividual) na vivência de todos, de onde se depreenderiam

“diferenças individuais” em vários graus de uma sociedade. Abstrações podem ser aceitas ou

então questionadas dentro de uma sociedade.

Um fonema é uma abstração aceita durante a aquisição da linguagem sem questionamento.

Há uma propensão natural na espécie humana para entender dois sons diferentes com

diferença “inaudível” como sendo o mesmo som, contudo a imperceptibilidade de um som é

algo que não remete apenas à audição, mas também à percepção, que julga como iguais sons

que são socialmente indiferentes para o fenômeno da distinção. Dito de outro modo: se algo

não se distingue, pode até mesmo ser percebido mediante atenção, mas no papel instrumental

da linguagem, muitas vezes não o é.

Generalizar é uma forma de abstrair. A generalização conduz a uma postura teórica perante

um problema observado. Toda afirmação remete para uma abstração, cuja existência pode

ser confirmada por meio de exemplos ou refutada por meio de contra-exemplos. Algo como

“na região α do país β, o fonema /δ/ se realiza como [ζ]” é uma generalização muito comum,

tácita como premissa na mente e na postura dos falantes durante o ato de audição e percepção,

mas formalizada em estudos de Fonética e Fonologia à luz de modelos teóricos.

Uma segunda forma de abstrair é hierarquizar. Os paradigmas são baseados em um

hiperônimo, por meio do qual se subordinam alguns fatos linguísticos: sob o hiperônimo

abstrato “animal” rotulam-se hipônimos como cães, gatos, elefantes, pardais, caramujos e

estrelas do mar. Há também paradigmas de paradigmas, que revelam maior grau de abstração,

assim “animal”, antes hiperônimo, também pode ser hipônimo de um hiperônimo mais

abstrato, como “ser vivo” juntamente com plantas, fungos e bactérias.

Há, portanto, paradigmas semânticos e paradigmas morfológicos. Interessa-nos sobretudo a

existência de paradigmas sonoros na nossa mente e eles são de vários tipos: unidades

mínimas, estruturas silábicas, padrões acentuais, relações intersilábicas, relações de limite

vocabular, etc. Segundo o modelo estruturalista, um signo compõe-se de uma estrutura em

que se vinculam unidades dos paradigmas sonoros no significante com unidades dos

paradigmas semânticos e morfológicos no significado. Cumpre lembrar que um signo não é

necessariamente uma palavra, mas pode ser algo menor, intravocabular, como uma parte da

palavra com significado (um morfema), ou então algo maior, intervocabular, como uma lexia,

um sintagma, uma oração ou um texto. Os fonemas são os átomos de nossa expressão verbal.