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MÁRIO DE ANDRADE E A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NO BRASIL: O ANTEPROJETO DE 1936 EM PERSPECTIVA Diomedes de Oliveira Neto Doutorando em História pela UFRPE [email protected] A presente comunicação se propõe a tecer problematizações sobre o documento do anteprojeto para a criação de um Serviço de Proteção do Patrimônio Nacional, elaborado por Mário de Andrade em 1936, a pedido do Ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema durante o Estado Novo varguista. Considerado um documento que abarcava a possibilidade de se preservar uma diversidade de bens culturais, pretendemos verificar as possíveis contribuições do anteprojeto para um alargamento das práticas e discursos de preservação do patrimônio no Brasil, destacando nosso interesse específico para com os bens culturais arquitetônicos produzidos entre finais do século XIX e nas três primeiras décadas do século XX. Para tanto realizamos uma breve revisão historiográfica de escritos sobre o anteprojeto nos textos de Maria Cecília Londres Fonseca e Márcia Chuva, seguindo de uma análise na perspectiva da História Cultural diante do documento do anteprojeto, problematizado em paralelo com alguns escritos de Mário sobre suas visões e impressões sobre a arquitetura brasileira, tomados a partir de suas viagens pelo Norte e Nordeste do Brasil ainda na década de 1920. Palavras-chave: arquitetura; patrimônio cultural; Mário de Andrade Introdução A trajetória das políticas federais de preservação do patrimônio no Brasil tem como um dos marcos de referência a criação em 1937, em pleno período do Estado Novo varguista, de uma instituição de preservação chamada de Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), que junto com a construção do Decreto-lei n. 25, legitimaria de forma jurídica as práticas de preservação do patrimônio considerado histórico e artístico em âmbito federal. No entanto, é importante ressaltar que antes mesmo desse marco temporal, tão propagado na historiografia tradicional do patrimônio no Brasil, outras mobilizações, projetos, agentes e até instituições se dispuseram a firmar discursos e práticas direcionadas a uma seleção, preservação, restauração e divulgação de um patrimônio brasileiro que se pretendia nacional.

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MÁRIO DE ANDRADE E A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO

ARQUITETÔNICO NO BRASIL: O ANTEPROJETO DE 1936 EM

PERSPECTIVA

Diomedes de Oliveira Neto

Doutorando em História pela UFRPE

[email protected]

A presente comunicação se propõe a tecer problematizações sobre o documento do

anteprojeto para a criação de um Serviço de Proteção do Patrimônio Nacional,

elaborado por Mário de Andrade em 1936, a pedido do Ministro da Educação e Saúde

Gustavo Capanema durante o Estado Novo varguista. Considerado um documento que

abarcava a possibilidade de se preservar uma diversidade de bens culturais, pretendemos

verificar as possíveis contribuições do anteprojeto para um alargamento das práticas e

discursos de preservação do patrimônio no Brasil, destacando nosso interesse específico

para com os bens culturais arquitetônicos produzidos entre finais do século XIX e nas

três primeiras décadas do século XX. Para tanto realizamos uma breve revisão

historiográfica de escritos sobre o anteprojeto nos textos de Maria Cecília Londres

Fonseca e Márcia Chuva, seguindo de uma análise na perspectiva da História Cultural

diante do documento do anteprojeto, problematizado em paralelo com alguns escritos de

Mário sobre suas visões e impressões sobre a arquitetura brasileira, tomados a partir de

suas viagens pelo Norte e Nordeste do Brasil ainda na década de 1920.

Palavras-chave: arquitetura; patrimônio cultural; Mário de Andrade

Introdução

A trajetória das políticas federais de preservação do patrimônio no Brasil tem

como um dos marcos de referência a criação em 1937, em pleno período do Estado

Novo varguista, de uma instituição de preservação chamada de Serviço do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), que junto com a construção do Decreto-lei n.

25, legitimaria de forma jurídica as práticas de preservação do patrimônio considerado

histórico e artístico em âmbito federal.

No entanto, é importante ressaltar que antes mesmo desse marco temporal, tão

propagado na historiografia tradicional do patrimônio no Brasil, outras mobilizações,

projetos, agentes e até instituições se dispuseram a firmar discursos e práticas

direcionadas a uma seleção, preservação, restauração e divulgação de um patrimônio

brasileiro que se pretendia nacional.

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Em alguns circuitos cariocas, paulistas e mineiros, durante as décadas de 1920 e

1930, artistas e intelectuais sintonizados com a emergência de movimentos modernistas

internacionais, se dispuseram a construir um movimento estético modernista “à

brasileira”, sendo a semana de Arte Moderna de 1922 um dos marcos dessas

mobilizações.

Com propostas de se romper com uma tradição, no intuito de estabelecer outras

possibilidades estéticas, os modernistas brasileiros (incluindo-se os arquitetos)

buscaram definir primeiramente qual seria essa tradição nacional (NATAL, 2013), que

deveria ser superada e ao mesmo tempo tomada como referência para que novas

expressões artísticas e arquitetônicas se tornassem possíveis. Foi diante dessas propostas

modernistas, em movimentos entre tradição e modernidade, que a arquitetura colonial

brasileira foi considerada como o reduto dessa tradição nacional, devendo, pois, não

apenas ser preservada, como também orientar os novos fazeres arquitetônicos

modernos.1

A criação do SPHAN em 1937 seria resultado de uma vitória do projeto dos

intelectuais modernistas, arregimentado pelo ministro de Vargas, Gustavo Capanema,

junto a Rodrigo Mello Franco de Andrade e seus colegas intelectuais mineiros, cariocas

e paulistas. Dentre esses sujeitos, estava a figura do intelectual e literato Mário de

Andrade, que teria confeccionado ainda em 1936, a pedido de Rodrigo Mello e

Capanema, um anteprojeto direcionado à criação de uma instituição federal de

preservação do patrimônio, contendo diretrizes e encaminhamentos possíveis para a

organização e atuação de um órgão desse porte.

Apesar de ser considerado um documento referência para a criação do SPHAN

em 1937, o anteprojeto de Mário não teria sido de todo aproveitado por Rodrigo no

processo de criação da instituição. Alguns trabalhos historiográficos se propõem a

perceber quais pontos do anteprojeto de Mário teriam sido absorvidos pela instituição

em criação, e quais aspectos foram desconsiderados, ou apenas retomados de alguma

forma, décadas mais tarde pelo órgão federal de preservação.

1 Em relação a essa proposta dos arquitetos modernistas em se buscar definir uma narrativa de tradição

para a arquitetura brasileira, destacamos a tese de doutorado em História de NATAL (2013) que se

propõe a analisar como se deu essa invenção e naturalização do patrimônio arquitetônico brasileiro.

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No entanto, percebemos que ainda são muitas as possibilidades de análise acerca

do anteprojeto de Mário de Andrade, então considerado um documento de destaque nos

debates e construções em torno das propostas de preservação do patrimônio no Brasil. A

própria historiografia que se debruçou sobre o anteprojeto merece considerações, no

sentido de se vislumbrar outros caminhos de pesquisa em torno desse documento

exaustivamente mencionado, mas por vezes pouco problematizado de forma mais

aprofundada.

Alguns questionamentos ainda se colocam possíveis, como por exemplo, se o

anteprojeto de Mário estaria totalmente alinhado com as propostas e narrativas

modernistas; ou quais seriam os limites, possibilidades e contribuições efetivas de seu

anteprojeto para as futuras práticas de preservação do chamado patrimônio imaterial; ou

quais seriam as possíveis contribuições do anteprojeto para uma preservação da

diversidade da arquitetura brasileira?

O objetivo deste artigo, portanto, é realizar um breve debate historiográfico

sobre duas obras que se dispuseram a analisar o anteprojeto de Mário de Andrade,

visando perceber as narrativas e discursos construídos por essa historiografia em torno

desse documento, e de como essas operações podem ter contribuído na construção de

representações e lugares comuns passíveis de serem problematizados. A partir dessas

considerações, analisando também o próprio anteprojeto junto a alguns escritos de

Mário sobre arquitetura brasileira, pretende-se perceber como o anteprojeto,

considerado um documento que abarcava uma diversidade de bens culturais a serem

preservados, poderia ter contribuído para um alargamento da preservação do patrimônio

arquitetônico brasileiro, que havia sido então restringida nas práticas pelo SPHAN

apenas à arquitetura colonial.

A sociologia do patrimônio na obra de Maria Cecília Londres Fonseca: uma das

primeiras análises do anteprojeto de Mário de Andrade.

Fruto de seu trabalho de doutoramento em sociologia na Universidade de

Brasília, a obra O patrimônio em Processo da socióloga Maria Cecília Londres Fonseca,

é atualmente considerada uma das primeiras pesquisas que se dispuseram a

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problematizar e desnaturalizar os discursos e práticas de preservação, empreendidos

pelo órgão federal ao longo do século XX no Brasil (FONSECA, 1997). Por seu lugar

de destaque e de certo pioneirismo na historiografia do patrimônio, a obra de Fonseca

foi a primeira a ser elencada para nossas análises.

Suas análises acerca do anteprojeto de Mário de Andrade aparecem no terceiro

capítulo, dedicado aos primeiros momentos da organização do SPHAN durante a gestão

de Rodrigo Mello Franco de Andrade. Neste momento de sua pesquisa, a autora destaca

o protagonismo de Mário de Andrade nos discursos e práticas de preservação do

patrimônio nacional, sintonizando as preocupações do literato junto aos outros

intelectuais modernistas, que buscavam então definir uma tradição brasileira. No

entanto, devemos considerar os limites dessas sintonias de Mário com estes outros

intelectuais e mesmo as diferentes propostas em jogo de se definir essa pretensa

“tradição brasileira”. Partindo dessas considerações, não é possível analisar Mário de

Andrade e o arquiteto modernista Lúcio Costa sob uma mesma perspectiva, por

exemplo.

Como já mencionado, o anteprojeto de Mário de Andrade aparece ainda nos

momentos anteriores à institucionalização do SPHAN, e Fonseca o apresenta como

sendo um documento bastante abrangente, se comparado ao que fora institucionalizado

pelo órgão federal de preservação em 1937. Esse discurso de abrangência presente no

anteprojeto, acerca das conceituações e práticas de preservação do patrimônio, fora

largamente propagado pela historiografia do patrimônio, porém, por vezes sem intentar

compreender quais eram os limites e as possibilidades de abrangência a esse patrimônio

propostas por Mário de Andrade na década de 1930.

Fonseca defende que Mário de Andrade apresenta uma visão mais abrangente

para o conceito de patrimônio e de arte, calcado, segundo a autora, numa aproximação a

um conceito antropológico de cultura (diferente de como se definia arte, por exemplo,

na perspectiva dos arquitetos modernistas brasileiros). Para estes modernistas, a noção

de arte (e principalmente de arquitetura) estava associada a um ideal universal, supra-

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histórico, que prezava muito mais pela beleza ideal e por uma razão construtiva que

ultrapassava estilos e historicidades.2

Diante dessa perspectiva da definição de arte trazida por Mário de Andrade em

seu anteprojeto, poderíamos vislumbrar possibilidades para a preservação de uma maior

diversidade de acervos arquitetônicos produzidos no Brasil ao longo dos séculos

(incluindo-se as arquiteturas dos séculos XIX e início do século XX, então desprezadas

pelos modernistas em favor de uma preservação quase exclusiva da arquitetura

colonial).

No entanto, Fonseca nos apresenta que o anteprojeto estabelecia um recuo

cronológico para a preservação: só seriam considerados bens que tivessem origem do

ano de 1900 para os séculos anteriores (ou seja, produções arquitetônicas do século XX

estariam de fora desse processo). Segundo a autora, Mário parecia conferir uma

prioridade ao valor histórico (pautado numa noção de ancianidade) em relação ao valor

artístico (que apesar de considerar uma proximidade antropológica, deveria ser

atravessado pelo valor de antiguidade).

Apesar das muitas diferenças discursivas que já percebemos em torno das

noções de patrimônio e dos valores de arte e de história, entre o anteprojeto de Mário de

Andrade e as atuações modernistas do SPHAN, Fonseca conclui surpreendentemente

afirmando que não havia muitas contradições entre as propostas do intelectual paulista e

os posicionamentos do órgão federal de preservação. A principal diferença, apontada

pela socióloga, residia no aspecto jurídico e na questão da propriedade privada dos bens

culturais, que havia sido desconsiderada no anteprojeto, mas fora priorizada no decreto-

lei do tombamento pelo SPHAN.

Apesar de conferir um destaque quase inédito ao anteprojeto de Mário de

Andrade em sua pesquisa, a análise de Fonseca ainda se apresenta bastante limitada,

sobretudo no que diz respeito aos aspectos conceituais de patrimônio, ao valor artístico

e histórico em jogo e à pretensa diversidade cultural proposta no documento. Caberiam

também análises comparativas mais aprofundadas entre o anteprojeto e o decreto-lei do

2 Sobre a influência desses ideais estéticos nas narrativas dos modernistas brasileiros, nas suas produções

historiográficas e nos consequentes discursos e práticas de preservação do patrimônio no Brasil, com

destaque para a atuação de arquitetos como Lúcio Costa e Paulo Santos ver o trabalho de PUPPI (1998).

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SPHAN, o que poderiam evidenciar os limites e mesmo as diversidades das propostas

modernistas no Brasil, sendo bastante distintas entre figuras como Mário de Andrade e

Lúcio Costa. A obra da historiadora Márcia Chuva, publicada em 2009, parece ter

sinalizado algumas dessas possibilidades de análise.

O anteprojeto de Mário de Andrade sob a perspectiva da História Cultural: as

análises da historiadora Márcia Chuva.

A obra da historiadora Márcia Chuva, intitulada Os arquitetos da Memória,

também se revela como um trabalho historiográfico de destaque na área de estudos

sobre patrimônio. (CHUVA, 2009). A partir de uma perspectiva da História Cultural3, a

pesquisadora se dispõe a analisar os momentos iniciais de atuação da instituição

SPHAN, percebendo a formação de um campo relativamente autônomo de preservação

do patrimônio no Brasil, tecido a partir de relações entre as práticas cotidianas do órgão

federal de preservação e os discursos e representações produzidos nessas relações.

O anteprojeto de Mário de Andrade, apresentado também como um documento

base para a criação do SPHAN, será analisado de maneira mais complexa pela

historiadora, se comparado às pesquisas de Fonseca. Márcia Chuva está preocupada em

mapear os discursos modernistas, presentes nas práticas de preservação do patrimônio, e

em perceber as discrepâncias conceituais existentes entre o modernista Mário de

Andrade e modernistas como Lúcio Costa e Rodrigo Mello Franco de Andrade, por

exemplo. Ao perceber o triunfo do projeto modernista de Lúcio Costa no SPHAN,

declara que:

Neste projeto hegemônico, a inserção no concerto das nações se daria não

tanto pelo conhecimento e valorização de diferentes manifestações culturais

como identificadoras da “brasilidade”, como almejava Mário de Andrade

(refletidos em seu anteprojeto), mas, principalmente, pela identificação de

uma arte brasileira que pudesse se enquadrar na classificação tradicional da

história da arte no mundo ocidental. (CHUVA, 2009, p. 107, grifo nosso)

Chuva conclui, portanto, que o projeto modernista do SPHAN não estava

interessado numa historicidade da arte ou dos bens culturais a serem patrimonializados,

3 Chuva se dispõe a realizar uma espécie de História das Representações da preservação do patrimônio no

Brasil, na esteira teórico-metodológica proposta pelo historiador Roger Chartier (1988).

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nem tampouco numa diversidade desses bens (que poderia facilmente ser percebida na

pluralidade de expressões das culturas materiais ou imateriais em todo o território

nacional). Os modernistas em torno de Lúcio Costa estavam interessados num valor

artístico de ordem universal, a guiar as escolhas e práticas de preservação de uma

arquitetura considerada tradicional, materializada nas expressões do período colonial.

Essa análise da historiadora permite nos revelar as contradições conceituais presentes

entre diferentes projetos modernistas então em disputa naquele momento, trazendo

também conseqüências para as escolhas, preservações e exclusões das arquiteturas

brasileiras nos processos de patrimonialização.

Ao analisar o anteprojeto de Mário de Andrade, Márcia Chuva traz um trecho

presente no documento em questão, que busca definir o que o intelectual paulista

compreendia como arte: “Arte é uma palavra geral, que (...) significa a habilidade com

que o engenho humano se utiliza da ciência, das coisas e dos fatos” (ANDRADE, 1936

apud CHUVA, 2009, p. 143). Tal afirmação parece ilustrar uma percepção de arte mais

próxima de uma perspectiva antropológica, de se considerar a historicidade dos bens

artísticos, das relações simbólicas envolvidas, diferente das concepções universalistas e

formalistas defendidas pelos arquitetos modernistas.

Chuva pretende comparar o anteprojeto de Mário de Andrade ao Decreto-lei do

SPHAN, a fim de problematizar e analisar o processo de construção de uma doxa4

específica da preservação do patrimônio no Brasil. Para tanto, a autora se valeu da

noção de intertextualidade, presente na Análise do Discurso, a fim de perceber as

relações discursivas presentes não apenas entre os dois textos em questão (o anteprojeto

e o decreto-lei), mas também com os diversos projetos de preservação do patrimônio

que circularam na década de 1920 no Congresso Nacional.

4 Este conceito é tomado de empréstimo da teoria social do campo construída pelo sociólogo Pierre

Bourdieu. (LAHIRE, 2017). Márcia Chuva acredita que o Patrimônio se constitui como uma espécie de

campo (tal como o campo político, o campo jurídico, o campo acadêmico, o campo artístico, etc.),

relativamente autônomo, dotado de determinadas percepções e práticas partilhadas entre seus agentes

internos, e conduzidas de acordo com o lugar ocupado por esses agentes dentro do campo, então em

constantes disputas e conflitos. Portanto, ao considerar o patrimônio como um campo, nossa interlocutora

evidencia as disputas internas na década de 1930 entre os diferentes projetos modernistas, de Lúcio Costa

ou Mário de Andrade, postos em embates no sentido de se definir uma determinada “doxa” da

preservação do patrimônio.

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Ao comparar todos estes textos, a historiadora concluiu que o anteprojeto de

Mário de Andrade fora o que melhor trouxe concepções embasadas de cultura e de arte

(diferente dos projetos da década de 1920 que deixavam em aberto essas discussões).

No entanto, apesar da complexidade presente no anteprojeto, essas concepções não

seriam de todo absorvidas pelo decreto-lei de 1937, evidenciando suas limitações e

mesmo conflitos diante das propostas dos modernistas do SPHAN.

A respeito do anteprojeto, Chuva o considera mais como uma espécie de ensaio

em aberto, um texto informal, contendo debates e problematizações que não dariam

conta de configurá-lo como um documento mais direto, dotado de instrumentos legais

para práticas de preservação. A própria proposta de Mário de Andrade (pautada numa

espécie de unidade a se definir na diversidade cultural), diferia do projeto modernista de

construção de uma identidade nacional mais homogênea, livre de desvios, pouco aberta

às diferenças e à diversidade, inclusive no que dizia respeito nas considerações sobre os

acervos arquitetônicos.

O texto de Mário, tal como nos apresenta Chuva, se configura sob uma proposta

de classificar todos bens a serem patrimonializados como “obras de arte patrimonial”,

ou seja, todos os bens classificáveis são atravessados por uma espécie de valor artístico,

valor este que se distribui de acordo com a produção da obra: de arte pura, ou aplicada,

popular ou erudita, nacional ou estrangeira. Dessa atribuição de valor, desdobram-se as

categorias: arte arqueológica, arte ameríndia, arte popular, arte histórica, arte erudita

nacional, arte erudita estrangeira, artes aplicadas nacionais, artes aplicadas estrangeiras.

Cada um desses critérios, segundo a autora, são definidos por Mário, que se

dispõe, inclusive, a apresentar possíveis exemplos de bens a serem tipificados como tal.

Apesar dessa diversidade de categorias presentes, Chuva parece não problematizar em

detalhes cada uma dessas categorias, nem despertar atenções para uma possibilidade

dessa diversidade envolver possibilidades de preservação de outros acervos

arquitetônicos para além das referências coloniais.

Sobre a categoria de “arte histórica”, Chuva aponta que tal classificação serviria

para contemplar bens que remetessem a fatos e acontecimentos do passado, e que

porventura não dispusessem de valores considerados exclusivamente como artísticos. A

autora relaciona as semelhanças dessa categoria com o posterior Livro de Tombo

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Histórico adotado pelo Decreto-lei, que visava preservar bens que fossem dotados

apenas de um considerado valor histórico. A respeito das outras categorias de arte

patrimonial presentes no anteprojeto, Chuva chega a destacar alguns critérios de

classificação, mas não apresenta as possibilidades e limites de alcance desses critérios

conferidos a um bem patrimonializável.

A conhecida forma de classificação do tombamento no Brasil, de inscrever os

bens preservados nos chamados Livros de Tombo, é uma herança do anteprojeto de

Mário de Andrade, que previa não apenas a existência de 4 Livros do tombo, mas que

também cada um desses livros deveria estar associado a um museu específico que

possuiria o papel de direcionar as práticas de salvaguarda desses patrimônios

classificados. Porém, Chuva ressalta que diferente das hierarquias presentes nas formas

de valoração e classificação do tombamento pelo SPHAN (onde o livro de tombo de

Belas Artes se sobrepunha ao livro Histórico), a proposta de Mário de Andrade não

apresentava uma hierarquia entre essas classificações e entre os livros de tombo.

Em relação à formação do corpo técnico da instituição de preservação, Mário de

Andrade defendia a atuação de profissionais de diversas áreas afins, a serem distribuídas

na sede da instituição e nas representações previstas para cada Estado da federação.

Esses profissionais deveriam partilhar todos os processos de atividades referentes à

organização, conservação, defesa e divulgação do patrimônio, como bem apresenta o

anteprojeto. No entanto, sabe-se que na prática, houve uma quase exclusividade de

atuação técnica por parte dos arquitetos modernistas envolvidos com a

institucionalização do SPHAN.

Ao comparar o anteprojeto de Mário de Andrade com o Decreto-lei do

tombamento legitimado pelo SPHAN, Chuva termina também por evidenciar as

diferenças entre um documento que apresentava mais um caráter acadêmico e quase

desinteressado de preservação (o anteprojeto de Andrade) e uma legislação de

tombamento construída e atravessada por determinadas relações de poder entre seus

agentes. Apesar do discurso dos modernistas do SPHAN prezar pela pretensão de uma

política de preservação marcada exclusivamente pelo rigor técnico de seus profissionais,

percebemos que as práticas de tombamento, por exemplo, se efetivam com base em

determinados interesses em jogo.

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O anteprojeto sob outras análises: possibilidades para a preservação da

diversidade arquitetônica?

As análises do anteprojeto de Mário de Andrade conduzidas por Fonseca e

Chuva demonstram as complexidades de questões presentes e possíveis neste

documento, considerado um dos marcos fundadores das políticas de preservação em

âmbito federal no Brasil. No entanto, as pesquisadoras deixam em aberto muitas

possibilidades para pesquisas mais aprofundadas, como em relação a análises mais

demoradas sobre as construções das categorias de classificação previstas no documento,

os debates em torno das noções de valor artístico e valor histórico, além de se

vislumbrar até que o ponto o anteprojeto poderia contribuir para uma maior diversidade

na preservação do patrimônio arquitetônico no Brasil.

A proposta desse tópico em nosso artigo, portanto, é analisar mais diretamente o

documento do anteprojeto, pensando suas possibilidades para uma preservação da

diversidade arquitetônica produzida no Brasil, para além do que fora consagrado e

escolhido pelos intelectuais modernistas e técnicos à frente do órgão federal de

patrimônio pós 1937. Paralelo a essa análise, nos debruçaremos também em alguns

escritos de Mário sobre arquitetura brasileira ainda na década de 1920, a fim de

perceber como suas impressões puderam contribuir na definição do lugar da

preservação da arquitetura no futuro anteprojeto.

Antes de problematizarmos o lugar da preservação da arquitetura brasileira no

anteprojeto confeccionado por Mário de Andrade, pretendemos aqui perceber algumas

de suas impressões e importância conferidas à arquitetura a partir das viagens

empreendidas pelo intelectual: uma à Ouro Preto ainda em 1919, e outras duas

realizadas para as regiões Norte e Nordeste entre os anos de 1927 a 1929.

A primeira viagem, quando Mário se encontra com as arquiteturas coloniais das

cidades mineiras, rende em 1920 a publicação na Revista do Brasil de uma série de

crônicas com suas impressões acerta da arquitetura religiosa no Brasil. Esses textos se

revelam como importantes documentos acerca das interpretações do intelectual a

respeito do que se produzia de arte religiosa no Brasil naquele momento, então marcado

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pela forte expressão das arquiteturas ecléticas e historicistas que prezavam pelo uso de

formas e soluções construtivas inspiradas em arquiteturas do passado europeu (do

greco-romano, ao gótico, passando por reinvenções barrocas, bizantinas, românicas,

dentre outras referências), contrapondo-se essas arquiteturas àquelas produzidas nos

passados coloniais. Sobre essas duas temporalidades observadas e contrapostas (passado

colonial e presente eclético/historicista), considerando suas construções religiosas,

Mário se revela categórico ao afirmar:

A arte religiosa vai-se exaurindo a pouco e pouco, para chegar aos tempos

modernos, inerme, cadáver (...) Se pelo estudo da iconografia se poderão

caracterizar o espírito, os sentimentos, a consciência religiosa das épocas

diversas; hoje, que se levantam: (...) o gótico de inúmeros templos ianques, e

mais particularmente entre nós o rococó –românico –bizantino, quiçá

secessionista, da igreja de Belo Horizonte, o gótico de N.S.da Conceição de

Botafogo (...) o gótico flamejante da nossa catedral (SP) (...) que divisar

senão uma parva desorientação. Há ainda artistas cristãos, não há mais arte

cristã, com normas exatas, com diretriz firme e determinada (ANDRADE,

1993, p. 42-43).

Neste trecho, Mário parece se aproximar das perspectivas dos arquitetos e

intelectuais modernistas naquele momento, que denunciavam as arquiteturas

historicistas, acusadas de se valerem de formas de outros tempos e culturas, estranhas

nas terras e experiências brasileiras. Na ânsia modernista pela busca e definição de uma

tradição brasileira, que garantiria a base e os direcionamentos para os projetos modernos

de uma cultura e sociedade nacionais, estes intelectuais encontraram nas arquiteturas

coloniais (sobretudo mineiras), o lócus de possibilidades de se definir uma espécie de

patrimônio nacional.

Mário de Andrade parece corroborar com esses ideais modernistas, ao definir o

barroco mineiro como dotado de “proporção dum verdadeiro estilo, equiparando-se, sob

o ponto de vista histórico, ao egípcio, ao grego, ao gótico. E é para nós um motivo de

orgulho bem fundado que isso se tenha dado no Brasil.” (ANDRADE, 1993, p. 80).

Neste sentido, a arquitetura colonial brasileira ganhou status de estilo artístico, a figurar

entre os outros estilos, nos manuais de uma História ocidental da arte.

Tais impressões modernistas de Mário acompanharam também suas viagens ao

Norte e Nordeste do Brasil entre os anos de 1927 a 1929. As críticas aos historicismos

na arquitetura são constantes, presentes em seus escritos sobre as suas consideradas

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viagens de “descobertas” de um Brasil a ser desvendado. Presentes nas paisagens

urbanas das diversas capitais brasileiras, essas arquiteturas de fins do século 19 e início

do século 20 não passam despercebidas do intelectual, que na maioria das vezes não

poupa esforços para criticá-las. No entanto, pode-se perceber que em alguns cenários,

tais arquiteturas poderiam apresentar alguma importância (de ordem social ou

simbólica) no conjunto das percepções de Andrade.

Ao visitar Belém do Pará, por exemplo, uma cidade marcada por projetos e

edificações do século 19, Mário analisa alguns de seus exemplares arquitetônicos

historicistas: “O Teatro da Paz é bom. Nazaré (a catedral) é admirável no seu luxo,

embora não seja nada brasileira. Em todo caso, antes ela que a catedral gótica pavorosa

que estão construindo em São Paulo” (Andrade, 2015, p. 398). Aqui, parece que outros

valores, para além do artístico acadêmico podem ser considerados e conferidos a essas

arquiteturas acusadas de estrangeiras ou estranhas ao Brasil.

São esses valores, próximo a sentidos simbólico-culturais, que acompanham a

categoria de arte patrimonial apresentada por Mário de Andrade em seu anteprojeto de

1936 para a criação de um Serviço de Proteção do Patrimônio Nacional. (ANDRADE,

1981). Para além de um mero papel de proposta legislativa, o texto de Mário se

apresenta também como um espaço de discussões conceituais do que poderia ser

tomado ou não, diante da diversidade de bens culturais no cenário brasileiro, como

patrimônio nacional.

Sua proposta de considerar oito categorias diferentes a contemplar a diversidade

e as especificidades da cultura brasileira, possibilitaria contemplar não apenas a

arquitetura colonial, (como fora de fato escolhido e conduzida a sua preservação quase

exclusiva, pelos arquitetos modernistas nas primeiras décadas de funcionamento do

órgão federal de preservação), mas também as expressões acadêmicas das escolas

brasileiras de belas artes no século XIX e as produções arquitetônicas ecléticas do início

do século XX.

Nesse sentido, podemos considerar as categorias propostas por Mário,

(sobretudos as de arte histórica, arte erudita estrangeira e artes aplicadas

estrangeiras), como possíveis a contemplar outras arquiteturas que não a arte colonial.

As categorias estrangeiras, que pela suas propostas já se dispunham a preservar obras de

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arte e artistas não brasileiros presentes e atuantes no Brasil; e a categoria de arte

histórica, compreendendo aqui o “histórico” como um valor associado aos fatos,

personagens e acontecimentos de um passado nacional. Destacamos que no texto de

cada uma dessas categorias, Mário se dispôs também a enunciar exemplos de possíveis

bens que poderiam ser preservados sob a acunha da categoria em questão.

A respeito da categoria de arte histórica, por exemplo, Mário apresenta o prédio

da Ilha Fiscal no Rio de Janeiro como um possível monumento a ser preservado. Não

tanto pelos seus aspectos artísticos (trata-se de uma construção neogótica de fins do

século XIX), mas pelo seu valor histórico de ter sediado o último baile da monarquia

brasileira. Ainda sobre o valor histórico, o literato também defende que se preservem

exemplares de cada uma das escolas e estilos que se fizeram produzir no país (não

descartando assim as expressões ecléticas e historicistas).

Um aspecto importante a ser percebido no anteprojeto de Mário de Andrade é a

inexistência de uma hierarquia entre os valores patrimoniais (históricos ou artísticos).

Todos os bens preservados deveriam ser protegidos com as mesmas garantias e

prerrogativas, assumindo o status único de arte patrimonial. “Arte” aqui compreendida

numa proximidade do sentido de “cultura” (como já revelaram as análises de Chuva).

Assim, sob a ótica do anteprojeto, um bem de arquitetura eclética preservado sob uma

categoria de “histórico”, não possuiria menos valor que uma igreja do século 18

preservada como “arte nacional”.

Tal ausência de hierarquias de valores deveria ser posteriormente prezada pelo

decreto-lei do tombamento de 1937. No entanto, como bem analisou a historiadora

Márcia Chuva (2009) ao se debruçar sobre as práticas cotidianas da instituição SPHAN,

tal hierarquia e diferenciação de valores foram praticadas entre os arquitetos

modernistas que conduziram o órgão ao longo das décadas no século 20.

Na lógica modernista de atribuição de valores, o valor artístico, conferido quase

que exclusivamente aos bens coloniais (com destaque às construções religiosas

mineiras, cariocas, baianas e pernambucanas), ganharia maior importância que o valor

histórico (este muitas vezes aplicado como de forma compensatória, em regiões que não

apresentassem arquiteturas coloniais de maior expressão). No meio dessas práticas e

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atribuições de valores, as arquiteturas historicistas (ecléticas) ficariam de fora dessas

seleções e recortes.

Sobre as escolhas e valorações que compõem os discursos e práticas em torno da

preservação do patrimônio cultural, é necessário estar atento às diferenças, aos desvios e

conflitos existentes entre as legislações, (suas normas e diretrizes) e as práticas

cotidianas daqueles que conduzem as políticas preservacionistas. No caso brasileiro, por

exemplo, documentos como o anteprojeto, e mesmo o posterior decreto-lei do

tombamento, não hierarquizaram em seus escritos valores e escolhas daquilo que

deveria ou não ser preservado enquanto patrimônio (sejam bens arquitetônicos ou não).

As contradições e conflitos emergiam, sobretudo nas práticas institucionais, nas

tomadas de posição dos técnicos, nas rotinas e valores que se construíam e se

reafirmavam no dia-a-dia.

Daí a importância do pesquisador interessado no objeto do patrimônio cultural

investigar não apenas os documentos oficiais e regimentos das instituições de

preservação, mas também perscrutar as práticas rotineiras, as decisões cotidianas, os

relatórios, correspondências, trocas de bilhetes e visitas de campo. São nessas ações que

emergem muitas das contradições do fenômeno-patrimônio, tão caras aos objetivos da

pesquisa histórica.

No caso do anteprojeto de Mário (e até mesmo do decreto-lei de 1937), as

possibilidades para a preservação dos bens arquitetônicos em sua diversidade eram

amplas, porém, estas devem também ser investigadas em paralelo com as práticas

institucionais, evidenciando-se os conflitos, as dissonâncias, os alinhamentos e

conflitos, entre aquilo que se escreve e se firma e o que se pratica e rotiniza. Sobre esses

aspectos, a socióloga Nathalie Heinich (2009) teceu importantes considerações em não

se deixar de evidenciar os abismos, as diferenças e desvios presentes entre as normas e

as práticas. Para tanto, Heinich apresenta uma espécie de sociologia dos valores, cuja

construção, definições e limites dos mesmos se definiriam nas rotinas institucionais.

Conclusão

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Após esta breve problematização, tanto de trabalhos historiográficos que se

dispuseram a analisar o anteprojeto de Mário de Andrade, quanto do próprio documento

em si, percebemos que algumas imagens e representações do anteprojeto foram sendo

construídas e reproduzidas ao longo das pesquisas.

Uma das principais imagens diz respeito à proposta de diversidade de bens

patrimoniais a serem preservados e contemplados pelo projeto de Mário, incluindo-se aí

não apenas bens de natureza material como também os bens imateriais, aproximando as

noções de cultura e patrimônio de uma perspectiva antropológica. No entanto, deve-se

ter o cuidado ao operacionalizar com esses conceitos e problematizações, evitando-se

cair numa espécie de anacronismo, já que noções como de “cultura imaterial” e mesmo

os debates antropológicos mais recentes, ainda eram limitados nos círculos intelectuais

no Brasil em tempos de Mário de Andrade.

Já em relação às possíveis contribuições do anteprojeto para com a preservação

de uma pretensa diversidade arquitetônica na época de definições das políticas de

patrimônio no Brasil (então temática de maior interesse em nossas pesquisas),

percebemos que nenhum desses trabalhos historiográficos se dispusera a problematizar

esse aspecto, sinalizando, pois, ainda a necessidade de uma análise crítica direta na

fonte documental, sobretudo nas categorias de bens patrimoniais propostas por Mário.

Para uma compreensão mais apurada dessas categorias, visando perceber as

possibilidades para uma preservação do patrimônio arquitetônico, foi necessário

verificar e analisar também as impressões de Mário de Andrade em relação a essa

diversidade arquitetônica, tanto as arquiteturas de tempos coloniais, quanto às

produções recentes dos séculos 19 e 20. Além de se evidenciar e problematizar de que

forma o intelectual construía e operacionalizava os valores artístico e histórico, quais

correntes teóricas o orientariam, e como as mesmas se fizeram percebidas na redação do

anteprojeto e nas correspondências e relações de Mário de Andrade com Rodrigo Mello

Franco de Andrade e os arquitetos modernistas posteriormente arregimentados pelo

SPHAN.

Não se esgotam, pois, as possibilidades de pesquisas e problematizações para

com o anteprojeto de Mário de Andrade, inclusive no campo da História. Cabem,

portanto, novas análises historiográficas que se disponham a superar determinados

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lugares comuns estabelecidos pela historiografia clássica do patrimônio, confrontando o

anteprojeto com outros textos, discursos e propostas da época, além de revelar o lugar

de Mário de Andrade e suas relações com outros agentes dentro das mobilizações para a

construção de uma política do patrimônio. A escrita dessas histórias, portanto, se

apresentam em suas infinitas possibilidades.

Referências

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_________________. Cartas de Trabalho: Correspondência com Rodrigo Mello

Franco de Andrade (1936-1945). Brasília: Sphan/Pró Memória, 1981.

_________________. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015.

CHARTIER, Roger. História Cultural – Entre Práticas e Representações. Algés:

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CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória: a construção do Patrimônio Histórico

e Artístico Nacional no Brasil (anos 1930 e 1940). Rio de Janeiro: Editora UFRJ,

2009.

FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo: trajetória da política

federal de preservação no Brasil. 2ª Edição. Rio de Janeiro: UFRJ/MinC-IPHAN,

1997

HEINICH, Nathalie. La fabrique du patrimoine: De la cathédrale à la petite

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LAHIRE, Bernard. CAMPO (Verbete). In: CATANI, Afrânio Mendes [et al].

Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 64-66.

NATAL, Caion Meneguello. Da casa de barro ao palácio de concreto: a invenção do

patrimônio arquitetônico no Brasil. (1914-1951). Campinas: Unicamp, 2013. Tese de

Doutorado em História.

PUPPI, Marcelo. Por uma História não moderna da Arquitetura Brasileira. Rio de

Janeiro: Pontes, 1998.