Movimento de Resistencia Na Africa

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REVISTA DE HISTÓRIA FFLCH-USP 1999 MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA NA ÁFRICA * Leila Leite Hernandez Depto. de História – FFLCH/USP RESUMO: Este artigo recupera a discussão sobre os movimentos de resistência na África em particular entre 1880 e 1914. Construído a partir da análise da historiografia sobre o tema, destaca as ideologias dos movimentos de resistência, ao mesmo tempo em que sugere a importância de reconhecer outras formas de protesto social frente às imposições do sistema colonial. PALAVRAS-CHAVE: África, Historiografia, Sistema Colonial, Resistência, Ideologias. ABSTRACT: This article brings up the discussion about the resistance movements in Africa particularly between 1880 and 1914. Based on the analysis of historiography about the theme, it points out the movement’s ideology at the same time that it suggests the importance of recognizing other ways of social contestation against the colonial system’s impositions. ABSTRACT: This article brings up the discussion about the resistance movements in Africa particularly between 1880 and 1914. Based on the analysis of the historiography about the theme, it points out the movements’ ideology at the same time that it suggests the importance of recognizing other ways of social contestation against the colonial system’s impositions. KEYWORDS: Africa, Historiography, Colonial System, Resistance, Ideologies. O Congresso de Berlim (26 de novembro de l884 a 15 de fevereiro de 1885) passou à história como o encontro político responsável pela divisão do conti- nente africano entre os principais Estados europeus (Grã-Bretanha, França, Portugal, Alemanha e Espa- * Este é o texto da prova escrita do Concurso para efetivação junto ao Departamento de História. Mantive o texto original, com um ou ou- tro acréscimo bibliográfico.

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Este artigo recupera a discussão sobre os movimentos de resistência na África em particular entre 1880 e1914.

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REVISTA DE

HISTÓRIA

FFLCH-USP

1999

MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA NA ÁFRICA*

Leila Leite HernandezDepto. de História – FFLCH/USP

RESUMO: Este artigo recupera a discussão sobre os movimentos de resistência na África em particular entre 1880 e

1914. Construído a partir da análise da historiografia sobre o tema, destaca as ideologias dos movimentos de resistência,

ao mesmo tempo em que sugere a importância de reconhecer outras formas de protesto social frente às imposições do

sistema colonial.

PALAVRAS-CHAVE: África, Historiografia, Sistema Colonial, Resistência, Ideologias.

ABSTRACT: This article brings up the discussion about the resistance movements in Africa particularly between 1880

and 1914. Based on the analysis of historiography about the theme, it points out the movement’s ideology at the same time

that it suggests the importance of recognizing other ways of social contestation against the colonial system’s impositions.

ABSTRACT: This article brings up the discussion about the resistance movements in Africa particularly between 1880

and 1914. Based on the analysis of the historiography about the theme, it points out the movements’ ideology at the same

time that it suggests the importance of recognizing other ways of social contestation against the colonial system’s

impositions.

KEYWORDS: Africa, Historiography, Colonial System, Resistance, Ideologies.

O Congresso de Berlim (26 de novembro de l884a 15 de fevereiro de 1885) passou à história como oencontro político responsável pela divisão do conti-nente africano entre os principais Estados europeus(Grã-Bretanha, França, Portugal, Alemanha e Espa-

* Este é o texto da prova escrita do Concurso para efetivação junto ao

Departamento de História. Mantive o texto original, com um ou ou-

tro acréscimo bibliográfico.

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nha) e a Bélgica, representada por um soberano,Leopoldo II. Pouco se sabe acerca desse acontecimen-to de gravíssimas conseqüências para a África. Quebarganhas teriam sido feitas na mesa de negociações?Como se articularam os interesses econômicos expan-sionistas e, por sua vez, qual o prestígio nacional atri-buído aos países responsáveis pelo imperialismo colo-nial de fins do século XIX?

Mas, sobretudo, permanece a idéia de um prota-gonismo europeu praticamente absoluto, isto é, de queà partilha responsável pela definição das modernasfronteiras do continente africano seguiu-se a conquis-ta, traduzida por inúmeras investidas “pacificadoras”,com consequências “inevitáveis” para a África.

Vale, no entanto, lembrar que a presença européia,requisito básico obrigatório para que a conquista fossereconhecida como efetiva esteve, em graus de intensida-de variável, marcada pela violência, pelo despropósito e,não poucas vezes, pela irracionalidade da dominação. Emnome de uma nobre missão civilizatória foram instaura-dos mecanismos de “desapropriação” da terra, cobrançade impostos e formas de trabalho compulsório, acresci-dos da violência simbólica constitutiva do racismo, ferindoo dinamismo histórico específico dos africanos e vio-lentando as suas cosmogonias.

Quando, entre 1880 e 1914, ao poder de domínioarticulou-se o direito de propriedade sobre as terras aserem conquistadas e a tutela de seus povos, respostasdiversificadas (como confronto, aliança ou submissão)repuseram o protagonismo africano, ao mesmo tempoem que desnudaram a brutalidade da conquista.

Ressaltar a importância de pesquisas capazes derecuperar as experiências históricas sobre as resistên-cias africanas à conquista é o objetivo deste pequenoartigo. Nesse sentido, é essencial lembrar a análisecrítica da historiografia sobre o referido tema, elabo-rada pelo historiador Terence Ranger, a qual se fazem torno de três pontos básicos.

O primeiro deles contesta a idéia corrente até osprimeiros anos de 1980 de que a resistência africanaé um tema de pouca importância, uma vez que osafricanos teriam se resignado à “pacificação” euro-péia. O segundo ponto, por sua vez, refere-se aos estu-dos que apresentavam os movimentos de resistênciacomo desorganizados, movidos por ideologias “irra-cionais”, compostos por “crenças fetichistas” e, emdecorrência, “conservadoras”. Por fim, o terceiroponto diz respeito ao fato de que os movimentos deresistência tinham sido “insignificantes”, já que semconseqüências importantes em seu tempo (RAN-GER, 1991, p. 69-86).

Ranger, especialista dos movimentos de resistên-cia na África, em particular na ocidental, acentua anecessidade de uma soma de esforços para que, comum maior número de cuidadosas pesquisas, torne-sepossível classificar as revoltas com maior rigor. Tam-bém chama a atenção para a importância do resgatede movimentos de resistência de grande envergadurae de grande alcance anteriormente ignorados, os quaisapresentaram um caráter de fenômeno organizado.

Salienta ainda o despropósito das tentativas declassificar as sociedades africanas entre aquelas quepossuem uma organização político-social fortementehierarquizada e poder centralizado, consideradas na-turalmente belicosas”, e aquelas caracterizadas peladebilidade de suas organizações político-sociais ecom poder descentralizado,tidas como “naturalmen-te pacíficas” (THORNTON, 1973, p.113-126).

Contrapondo-se a essas idéias, o referido histo-riador argumenta que a grande maioria das organiza-ções sócio-políticas africanas, em algum momento,tentou encontrar uma base de colaboração com oseuropeus. Por outro lado, também na sua quase totali-dade, os africanos tiveram interesses e/ou valores fun-damentais a defender.

Ao lado desse conjunto de ressalvas, TerenceRanger reforça o resultado das pesquisas históricas eantropológicas sobre a ideologia das iniciativas e re-

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sistências nas Áfricas setentrional, ocidental, central,oriental e meridional, realizadas nas últimas duasdécadas, assinalando que elas nos permitem identifi-car a perda da soberania como a principal razão pro-fana dos referidos movimentos.

Essa perspectiva não só é instigante como a par-tir dela é possível compreender de forma mais ade-quada grande parte dos movimentos de resistência.Exemplo clássico foi o processo de perda da sobera-nia da Tunísia cujo marco foi a Revolta de 1881, comoconseqüência imediata do Tratado de Bardo, pelo qualo governo tunisiano aceitava reorganizar suas finan-ças públicas de forma a garantir o pagamento de suasdívidas, em processo de acelerado crescimento, aospaíses credores europeus, isto é, à Grã-Bretanha,França e Itália, com uma política de extremo arrochoeconômico como parte das diretrizes que lhe foramimpostas para o saneamento das contas públicas.Sufocada a revolta, a Tunísia perdeu a sua soberaniae se tornou, efetivamente, um protetorado francês.

Parece-me primordial, no entanto, considerar queo significado de soberania para a maioria das socieda-des africanas teve limites que excediam o poder polí-tico considerado de forma restrita. Em outras pala-vras, em grande parte das sociedades africanas opoder de mando era supremo mas não exclusivo, ouseja, ele era partilhado entre a organização política ea organização social fundada na religiosidade.

Nesse sentido é possível apresentar alguns exem-plos históricos significativos das iniciativas e resis-tências à partilha, à conquista e à colonização a par-tir dos anos trinta do século XIX.

Exemplo significativo foi o da perda de sobera-nia da Argélia. Ele nos remete ao início do séculoXIX, quando piratas ali abrigados atacavam os por-tos do Mediterrâneo saqueando os navios das mari-nhas mercantes européias. Em 1830, o governo fran-cês invocou esses ataques para ocupar o territórioargelino. Mas, ao promover a sua empreitada, passou aenfrentar uma resistência constante por parte das popu-

lações árabes, zelosas da sua soberania e descontentesnão só com os métodos e políticas executados por fun-cionários europeus, mas por estes não serem alicerçadosnas raízes de um sistema moral santificado como era aadministração islâmica. Um século depois, em 1930,Ferhat ‘Abbas com propriedade considerava:

“a colonização constitui apenas uma empreitada militar e eco-

nômica, posteriormente defendida por um regime administrativo

apropriado; para os argelinos, contudo, é uma verdadeira revolu-

ção que vem transtornar todo um antigo mundo de crenças e idéi-

as, um modo secular de existência. Coloca todo um povo diante de

súbita mudança. Uma nação inteira, sem estar preparada para isso,

vê-se obrigada a se adaptar ou, se não, sucumbir. Tal situação con-

duz necessariamente a um desequilíbrio moral e material, cuja es-

terilidade não está longe da desintegração completa” (apud,

BERQUE, 1970).

Essas observações identificam as razões suficien-tes para dar ensejo a uma resistência constante porparte das populações locais ao governo colonial fran-cês destacando-se, entre os anos de 1834 e 1847, aguerra liderada por Abd-el-Kader, por fim derrotadopor um exército de cerca de cem mil soldados fran-ceses. Aliás, essa resistência prolongada foi uma dasrazões de que se valeu a França como justificativa paraas posteriores conquistas da Tunísia, em 1881, e doMarrocos, em 1911.

É importante acrescentar que os países setentrio-nais, no seu conjunto, talvez tenham sido os que ofe-receram maior resistência à conquista e à ocupaçãoeuropéias. Milhares de sudaneses (sobretudo nas re-voluções de 1881 a 1884 e nos levantes entre os anosde 1900 e 1904), egípcios (quando da revoluçãourabista entre 1860 e 1882) e somalis (entre 1884 e1894) perderam suas vidas em confronto com as tro-pas coloniais britânicas. Eram movidos por um senti-mento patriótico fundido a um sentimento religiosofortemente arraigado. Significa dizer que essas popu-lações lutaram tanto pela defesa do seu territóriocomo de sua fé, uma vez que lhes era inaceitável,

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como islamizadas, serem submissas no plano políti-co a uma potência cristã, no caso, a Grã-Bretanha.

Por sua vez, também em outras regiões da Áfri-ca, o papel das idéias religiosas nos movimentos deresistência foi de tal relevância que colocou aos pes-quisadores a necessidade de ressaltá-lo, reconhecen-do que as doutrinas e os símbolos religiosos apoia-vam-se, por vezes diretamente, nas questões dasoberania e da legitimidade.

Essa idéia merece ser sublinhada ao mesmo tem-po em que é preciso realçar a expressão propriamen-te política contida no papel das idéias religiosas, umavez que o sagrado apresenta-se historicamente articu-lado à própria organização social.

Nesse sentido, importa ressaltar que a reação reli-giosa foi um forte componente nos movimentos deresistência na África, em particular entre 1880 e 1914.Melhor explicando: nos momentos em que a coloni-zação se fez perturbadora, a religião em graus dife-renciados, cristalizou a tomada de consciência, orga-nizou o protesto e se converteu em instrumento deoposição. A violência sofrida, por um lado, e a impo-tência material, de outro, favoreceram o recurso aosagrado como afirmação cultural.

Foi o caso da rebelião de Mamadou Lamine, en-volvendo os soninke do Alto Senegal, entre 1898 e1901. Nela a organização do movimento deu-se emtorno da crença de que por revelação divina os mu-çulmanos, segundo a memória do que o profeta tinhafeito e dito condensada no Suna, estavam proibidosde viver sob uma autoridade não islâmica e que, por-tanto, deveriam se rebelar contra o trabalho forçadonas obras de construção da linha telegráfica e da es-trada de ferro ligando Kayes ao Niger, cujo objetivoera orientar as economias enquanto fontes de maté-rias-primas para exportação, de acordo com os inte-resses europeus.

Ao trabalho extenuante somava-se a precarieda-de das condições de vida, acarretando elevada taxade mortalidade.

Derrotado na cidade de Bakel, símbolo da presen-ça francesa, mas persistindo na luta, Mamadou Lamineadotou a tática de guerrilha e o banditismo, organizan-do um bloqueio e, depois, o assalto à cidade de Touba-Kouta. Mas seu quartel-general foi destruído por umagranada e o catalisador do movimento feito prisionei-ro e executado. Assim, nem o grande número de adep-tos, fanáticos religiosos, conseguiu impedir que o mo-vimento fosse debelado, em nome da ordem e doindiscutível princípio da autoridade. ConformeAngoulvant, governador francês da Costa do Marfim,em 1908: “Da parte dos indígenas, a aceitação de talprincípio deve se traduzir pela deferência na acolhi-da, pelo respeito absoluto aos nossos representantes, se-jam eles quais forem, pelo pagamento integral do im-posto (...) pela boa cooperação dada à construção decaminhos e de estrada, (...) pela observação de nossosconselhos relativos à necessidade do trabalho, pelo re-curso à nossa justiça (...). As manifestações de impaci-ência ou de falta de respeito para com a nossa autorida-de, as faltas deliberadas de boa vontade, têm de serreprimidas sem demora” (apud Seret-Canale, 1971).

Também extremamente significativa foi a Rebe-lião Ashanti na então Costa do Ouro (atual Gana) eque durou dez anos, de 1890 a 1900, em uma encar-niçada luta contra o domínio britânico representadopelo governador Arnold Hodgson.

Essa rebelião é um exemplo modelar da violação demando com reconhecida legitimidade advinda do fatode ser consagrada por investidura ritual. Ela decorreuda deposição de grande número de chefes tradicionaisdas chefias locais, por parte da burocracia colonial bri-tânica, envolvendo, portanto, a violação do caráter sa-grado da realeza, nos planos religioso e cultural.

Seguiu-se a nomeação de outros chefes locais,designados e não tradicionais, os quais careciam delegitimidade perante a população e foram encarrega-dos, inclusive, da cobrança de 4 xelins por cabeça,como indenização pela rebelião de 1887.

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Por fim, o governo britânico exigiu que o seu re-presentante se sentasse no Tamborete de Ouro, sím-bolo da alma ashanti e da sua sobrevivência comonação e, por isso, instrumento de consagração da le-gitimidade dos seus chefes.

A indignação dos ashanti levou praticamente todosos Estados importantes a enfrentar os ingleses em inú-meras batalhas sangrentas debeladas só depois da pri-são e deportação da líder, a rainha de Edweso, NanaYaa Asantewaa e de vários generais ashantis, em 19001.

Outro levante que tem de ser lembrado é o dosMaji-Maji, na então África Oriental Alemã (depoisTanganica e hoje Tanzânia), de julho de 1905 a agos-to de 1907, liderado por Kinjikitile Ngwale. Esseconflito se constituiu no mais grave desafio ao colo-nialismo na África Oriental até 1914.

Nele, a religião e a magia foram utilizados comomeios de revolta contra os primeiros vinte anos de his-tória da colonização alemã, marcados pela crueldade,pela injustiça e pela exploração, quando os autóctonesforam desapossados de suas terras, de seus lares e desua liberdade ao mesmo tempo em que lhes foramimpostos trabalhos forçados e sob más condições, co-branças de impostos excessivos e maus tratos.

A causa imediata do levante foi a introdução dacultura comunitária do algodão, na qual a populaçãoera obrigada a trabalhar vinte e oito dias por ano porum salário tão irrisório que alguns se recusavam arecebê-lo.

É interessante chamar a atenção para a particula-ridade dessa luta. Os maji-maji não eram contra acultura do algodão em si, mas contra todo o tipo decultura imposta porquanto explorava o seu trabalhoe constituía séria ameaça à economia doméstica afri-

cana, uma vez que os obrigava a deixar as suas pró-prias áreas de cultivo em favor daquelas sob domíniodas empresas agrícolas públicas.

Para unir cerca de vinte grupos étnicos diferentese combater os alemães pela liberdade, Kinjikitile re-correu às suas crenças religiosas, atrelando-as aosprincípios de unidade e liberdade de todos os africa-nos. Com essa bandeira de luta os grupos se uniram,acreditando que a guerra era um desígnio divino e queseus ancestrais regressariam à vida terrena para ajudá-los nessa empreitada.

Para ressaltar e dar concretude à unidade das váriasetnias, Kinjikitile promoveu a construção de um enor-me altar ao qual chamou “a casa de Deus” e nele pas-sou a preparar o Maji, isto é, uma água tida como medi-cinal e sagrada com poder de tornar todos os africanosque a bebessem invulneráveis à artilharia européia.

A guerra estalou na última semana de julho de1905 e as primeiras vítimas foram o fundador domovimento e seu auxiliar mais próximo, enforcadosno dia 4 de agosto do mesmo ano.

O pai de Kinjikitile reergueu a bandeira do movi-mento, assumindo o título de Nyanguni, uma das trêsgrandes divindades da região, e continuou a minis-trar o Maji. Mas o movimento acabou sendo brutal-mente suprimido pelas autoridades coloniais alemãs.

Debelado o movimento, as sociedades tradicionaisforam quase totalmente extintas. Entretanto, a ativi-dade dos profetas nessa região prosseguiu ao longodas duas décadas seguintes para se ampliar após a IIGuerra Mundial, culminando com a independêncianos anos 602.

2 A historiografia aponta a importância dos movimentos messiânicos,

proféticos e milenaristas e sua variedade em diversas regiões do conti-

nente africano. Vale registrar o artigo, clássico, de C. COQUERY-

VIDROVITCH (1985, 252-263).

1 O simbolismo referente ao ouro permanece presente na cultura

ashanti até os dias atuais. A respeito, é especialmente sedutora a

análise de Kwame Anthony Appiah em “Velhos deuses, novos

mundos” (APPIAH, 1997, p. 155-192).

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A importância desse movimento foi notória, em pri-meiro lugar, por ter superado a língua e outros particu-larismos tradicionais, alastrando-se por uma área deaproximadamente 26.000 quilômetros quadrados, naregião sul da África Oriental Alemã. Em segundo lugar,esse movimento foi bem mais complexo do que os an-teriores das várias Áfricas, transcendendo as fronteirasétnicas e promovendo transformações fundamentais queatingiram a própria organização tradicional.

Por sua vez, em terceiro lugar, destacou-se por terabalado a burocracia colonial alemã, levando-a ao aban-dono da política comunitária da cultura do algodão. Tam-bém forçou-a a promover algumas reformas no âmbitoda própria estrutura colonial, sobretudo, no recrutamentoe na utilização da mão-de-obra sem, contudo, alterar anatureza do colonialismo fundado na violência, nairracionalidade e no despropósito da dominação.

De toda forma, por sua amplitude e por seus des-dobramentos, essa rebelião é consensualmente reco-nhecida como tendo sido a primeira manifestação do“protonacionalismo” da Tanganica.

Não menos importantes são os movimentos cujosmotivos mais próximos de sua eclosão são de ordemeconômica. Em geral, estiveram presentes nas váriasregiões da África e decorreram, entre outras razões,pela perda de terras e pela cobrança de impostos abu-sivos. Nesse contexto, o exemplo da rebelião pro-vocada pelo imposto da palhota em Serra Leoa, em1898, é paradigmático.

Essa rebelião foi uma reação dos temne e dos mendediante de um conjunto de medidas administrativo-jurí-dicas por parte do domínio britânico, tais como: as queimpunham aos povos a perda de suas terras; as formascompulsórias de trabalho; a abolição do tráfico de es-cravos na região; o desenvolvimento de uma força ar-mada de nativos a serviço do sistema colonial; e a nome-ação de administradores de distrito. Mas foi sobretudoa imposição de uma taxa anual de cinco xelins sobre aspalhotas (habitações) de duas peças (cômodos) e de dezxelins sobre as de maiores dimensões, a causa mais

imediata da rebelião que ficou por isso conhecida como“a rebelião do imposto de palhota”.

Os temne decidiram, por unanimidade, pelo nãopagamento dos impostos. Além disso, contaram como apoio dos mende, somando assim cerca de ¾ do pro-tetorado. Puderam, dessa forma, colher de surpresa aburocracia colonial. Também atacaram e pilharamfeitorias, matando funcionários e soldados britânicosalém de todos os suspeitos, aí incluídos os autóctonessuspeitos de colaborar com a administração colonial.

Com esforços de duas companhias de soldados pro-venientes de Lagos a rebelião foi sufocada deixando, noentanto, uma forte impressão do descontentamento dospovos autóctones em relação ao aparato administrativo-jurídico do sistema colonial. Segundo o depoimento doentão governador britânico de Serra Leoa: “o indígenacomeça a compreender a força que representa, ao ver aimportância que o branco dá aos produtos do seu país eao seu trabalho, de modo que o branco não poderá mais,no futuro, aproveitar-se tanto como antes da sua simpli-cidade e da sua ignorância no mundo” (Apud GUEYEe BOAHEN, 1991, p. 160).

Por razões semelhantes eclodiu a Revolta dosAkamba, no Quênia, em 1911, impulsionada pela lí-der Sistume que se auto identificava como “possuídapelo Espírito”, contra a perda de terras, a tributaçãoexagerada e o trabalho forçado. Mas foi de fato umjovem, Kamba, quem conduziu e liderou o movimen-to, transformando-o em protesto contra o colonia-lismo. Esse movimento apresentou uma particulari-dade, qual seja, a de também serem razões de luta afalta de liberdade e a corrosão cultural, promovidaspela imposição dos padrões da civilização ocidental.

No que se refere particularmente à esfera cultu-ral, cabe registrar que não deu origem a uma ideolo-gia imediata dos movimentos de resistência. Porém,a corrosão e a repressão culturais deram origem aformas de resistência centradas em movimentos dereafirmação cultural nas várias regiões da África.

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Os exemplos são vários e, embora necessitem sermais estudados enquanto fenômenos sociais, já é sa-bido que não podem ser considerados como sem im-portância ou mesmo como marginais ao tema da re-sistência. Um desses fenômenos é, em particular degrande interesse. Refere-se a uma manifestação pre-sente em todo o século XIX, qual seja, a atividade doteatro profissional no velho Império Ohio da Nigéria.Derivava das representações feitas com máscaras paraos funerais dos reis as quais, segundo a crença, pro-tegiam toda a população.

Mas, com a desintegração do império decorrentede razões tanto endógenas (as guerras civis contra osrebeldes do Sul) como exógenas (o ataque dos Peul,povos do Norte), os grupos teatrais se dispersaram emdireção ao sul, ultrapassando as fronteiras do Daomée extinguindo-se, portanto, no local de origem.

Os vencedores mulçumanos proibiram a maioriadas formas teatrais, sobretudo aquelas associadas àsfestas dos antepassados que continham representaçãode figuras humanas.

Esse trabalho do Islão foi completado pelos mis-sionários cristãos que avançando da Costa para oNorte, proibiram os fiéis de participar das represen-tações teatrais. É que estas eram fundadas, desde asua gênese, em temas especificamente tradicionais equalificadas pelos missionários como cultos diabóli-cos, acompanhadas por instrumentos cênicos e mu-sicais, que também foram proibidos.

Esse teatro tornou-se, a partir daí, uma força deresistência à cultura cristã sendo que algumas de suasraízes perduraram, ressurgindo no pós independência,na região meridional da Nigéria.

Esse exemplo de repressão cultural atesta comoas formas de dominação incidiram nas expressões evalores culturais, fossem eles revestidos pelo aspec-to religioso, fossem de características propriamentesociais, forçando a sua reorganização e, por vezes, asua própria recriação (SOYINKA, 1991, p. 549-573).

As hipóteses sugeridas por Ranger para a análiseda historiografia sobre o tema das iniciativas e resis-tências africanas referem-se a fenômenos sociais ca-racterizados pelo confronto aberto, mas são igualmen-te sugestivas para o exame de outros fenômenossociais pouco focalizados por serem consideradosocasionais, de menor extensão e amplitude, além denão terem apresentado desdobramentos. Mas é pos-sível sustentar que o fato de terem sido manifestaçõescontra injustiças, com reivindicações pontuais, nãosignifica que tenham tido pouca importância para oprocesso, ainda que lento, de identificação menosrestrita das causas do descontentamento das popula-ções submetidas pelo colonialismo.

Não obstante as dificuldades de análise, é possí-vel reconhecer a importância de formas de protestosocial cotidiano e a ação do bandido social ocorridasnas áreas predominantemente rurais nas quais as es-truturas coloniais foram limitadamente invasivas.

Quanto à resistência cotidiana, algumas formasmais usadas foram as doenças simuladas, o ritmo len-to de trabalho, as fugas, a sabotagem de equipamen-tos, as queimadas (por exemplo, de entrepostos), osroubos de armazéns das companhias concessionári-as e de negociantes locais, a destruição de meios detransporte e de linhas de comunicação e as fugas parazonas desabitadas criando enclaves autônomos.

De modo geral, a historiografia tem consideradoesses fenômenos sociais como marginais pelo fato desuas reivindicações se apresentarem um tanto indeter-minadas. Porém, recuperá-las permite compreenderas incertezas e os descontentamentos frente à pobre-za e à injustiça social.

Há fortes indícios de que tais manifestações guar-davam relação com o desenvolvimento de forças poli-ciais formadas por africanos recrutados entre merce-nários e seus aliados como métodos administrativosde oposição a quaisquer formas consideradas de per-turbação da ordem. Aliás, os referidos policiais ti-nham a função de intimidar os autóctones e de con-

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trolar os chefes locais, sendo essa razão, em si mes-ma, causadora de incontáveis embates, sobretudo naÁfrica Central, como as agitações contra a ForçaPública no Congo, os Guerras Pretas em Angola, eos Sipais e a Polícia Nativa na Rodésia do Norte.

Por fim, deve-se ressaltar a importância da atua-ção de bandidos sociais, forma arcaica de protestosocial organizado, cujo exemplo significativo foi o deMapondera. Esse bandido social, herói das massasrurais da região meridional de Moçambique, obtevealguns sucessos contra as tropas coloniais portugue-sas e da Rodésia do Sul, de 1892 a 1903. Protegia ostrabalhadores do campo contra os recrutadores demão-de-obra, os coletores de impostos, a exploraçãopelos agentes das companhias e os excessos dos ad-ministradores coloniais.

Mapondera e seus partidários atacavam repetidamenteentrepostos da Companhia da Zambézia e as lojas dosmercadores rurais, símbolos de exploração econômica.

Defendiam, assim, a população dos excessos própri-os da dominação exercida pelos governantes locais eu-ropeus, identificados como responsáveis por sua sujei-ção, submissão e, sobretudo, por sua extrema pobreza.

Deve-se reconhecer que esse é um fenômeno difícilde analisar, em especial, porque a ação de Maponderapassou a integrar o imaginário popular da região, difi-cultando a identificação de como pragmaticamente suatrajetória se modificou e de como ela teve fim.

Apesar das limitações apresentadas por ambas asformas de rebeldia às quais nos referimos, isto é, aresistência cotidiana e a atuação do bandido social,não resta dúvida sobre o seu interesse para os estudio-sos de História da África, em particular, do períodocolonial. Essas reações de enfrentamento são impor-tantes enquanto expressões de descontentamentos einquietações traduzidas em não resignação, contra-pondo-se à idéia corrente de passividade e até mes-mo de uma certa apatia frente às imposições do sis-tema colonial.

Em segundo lugar, e essa observação vale em par-ticular para o bandido social, a rebeldia abre possibili-dades para se identificar e compreender as caracterís-ticas próprias da organização de grupos sociaisdefinidos por seu tradicionalismo e conservadorismo,verificando-se em que medida essas característicasforam responsáveis pela ineficiência e debilidade po-líticas impeditivas de transformar as insatisfações emrevoltas políticas mais eficazes.

O que procuramos abordar aqui, tomando como re-ferência as análises de Ranger, foram algumas das vári-as facetas que o tema das lutas de resistência oferece,registrando repetidamente a escassez de pesquisas so-bre os fenômenos sociais apontados e, portanto, a ne-cessidade de serem estudados em maior profundidade,afastando preconceitos e pré-noções, por vezes advindosda própria falta de conhecimento sobre o tema.

Mas algumas outras considerações precisam serfeitas. A primeira refere-se à discussão sobre a natu-reza da resistência, tornando mais explícita e detalha-da a relação entre as ideologias e os movimentos soci-ais, compreendendo os fenômenos contestatórios comoproduto de experiências e circunstâncias concretas.

Essa perspectiva permite afirmar que nem todosos movimentos registrados nesse período foram con-tra o branco colonizador. Significa dizer que existi-ram, por exemplo, agitações sociais que não surgiramdos sentimentos populares despertados por ameaçasexternas, mas de ações radicais e inovadoras volta-das para remover descontentamentos provocados portransformações internas, ou mesmo, pelo anseio deacelerar o ritmo das mudanças em curso.

É necessário compreender que as sociedades afri-canas pré-coloniais eram extremamente dinâmicas,apresentando uma história pontilhada por convulsõessociais. Como destacou Coquery-Vidrovitch: “na ver-dade, essas sociedades supostamente estáveis rarasvezes desfrutaram do encantador equilíbrio que se pre-sume ter sido rompido pelo impacto do colonialismo”(COQUERY, 1976, p. 94).

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Apesar dos obstáculos, investigações cuidadosasnas quais o campo pesquisado fosse circunscrito apequenos limites poderiam dar conta dessa questãopartindo da possível identificação de uma série departicularidades, dando ensejo para que se produzis-se um material bastante esclarecedor.

A segunda consideração, por sua vez, diz respei-to à extensão dos movimentos. É possível sustentarque ela depende de experiências e circunstâncias con-cretas e, mais especificamente, do grau de particu-larismo étnico das populações envolvidas. No peque-no leque dos movimentos aqui examinados há fortesindícios de que quando um grupo étnico-cultural com-bateu sozinho, pelo vulto do seu exército e por seupotencial de resistência, a extensão do movimentoacabou sendo geralmente limitada.

Já a última consideração é sobre os desdobramen-tos suscitados pelos movimentos de resistência. Con-vém, entretanto, começar por algumas distinções so-

bre o próprio termo desdobramento pois, a nosso ver,é preciso ter em mente dois tipos distintos de com-preensão. O primeiro, refere-se às respostas aos mo-vimentos de resistência, isto é, se estes indicam ounão, mudanças nos mecanismos administrativo-jurí-dicos próprios da estrutura de dominação colonial.

O segundo, por sua vez, diz respeito à possibili-dade de pensar o tema dos desdobramentos conside-rando-o no sentido da continuidade e, nesse caso,reconhecendo a necessidade de uma investigaçãoorientada para identificar se o movimento focaliza-do foi retomado, absorvido ou transformado em ou-tros politicamente mais organizados.

Dessa maneira, enfrentando alguns problemasparticularmente difíceis para o historiador, será pos-sível conhecer um pouco mais acerca de uma Áfricaque nos desafia, a começar, por ser um vasto e com-plexo mosaico de heterogeneidades.

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