Mouriscas
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Mouriscas
A iconografia e a literatura coeva apontam á mourisca não um único padrão
coreográfico, mas variadas pantominas com pontos em comum: das quais emergem três
tipos de corografia: um mais antigo, símbolo as lutas medievais entre mouros e cristãos,
visto pela primeira vez no casamento de Petronila de Aragão e Ramon Berenguer IV da
Catalunha em 1150. Possui um grande impacto e previvência em áreas geográficas
invadidas por exércitos estrangeiros ( Península Ibérica e Itálica). Inclui uma batalha
fingida e simbólica entre o bem e o mal na forma de uma coreografia massiva cujos
participantes imitam dois exércitos, ou num tipo mais dançavel onde duas linhas se
confrontam entrelaçando-se ou movendo-se frontalmente. Géneros confirmados por D.
Rafael de Bluteau1 e pela etnografia2; A mourisca linear com variante de círculos ou
padrões livres, considerada por Rebelo Bonito a mourisca do “sudeste europeu, coreada
por homens em número impar, uns enfarruscam o rosto, outros vestem –se de mulheres,
velam-se e falam voz de falsete e todos têm guizos nas pernas”3. A dança consistia em
enérgicos movimentos em torno de uma figura central, colocando o ênfase coreográfico
na performance individual. Estas mouriscas tendem a tornar-se depreciativas para os
mouros, sendo mimadas exclusivamente por cristãos, contrariando a excelência
coreográfica e musical dos valores mouros4; A mourisca solo, para um máximo de três
elementos, associada ao teatro profissional.
As danças em estudo parecem reter elementos dos dois primeiros tipos de
mouriscas: a organizada pela câmara de Guimarães em 1613 incluía um rei enfeitado
com coroa, espada e ceptro que encabeçava uma corte de vinte dignatários5, a mourisca
da procissão do Porto de 1621 composta por quarenta homens chefiados por um rei
mouro auxiliado por um alfaqui6 e a de Penafiel, vista em 1657, constava de vinte e
quatro homens e um rei mouro todos muito bem aparatados com barretes vermelhos e
canas verdes acompanhados por um tambor e bandeira, todas elas prevêem um número
par de elementos, que sugere um coralismo de dupla fila típico da mourisca marcial e a
presença de um exercito deduzido das insígnias reais. Contudo a ausência de referências
dos regimentos relativas a um rei e respectivo exército inimigo inclina-nos a visualizar
1 BLUTEAU (1759)2 Cf.: Diário do Norte, 15-8-1952; O Primeiro de Janeiro, 12-6-1951; Douro Litoral, I, n.º2, pags. 22 e ss.3 BONITO (1958)4 SASPORTES, s.d.5 Lv. 4 das vereações, fl 43v., in GUIMARÂES, (1903)6 COUTO ( s/d)
esta invenção como uma mourisca linear, organizada em torno de uma figura central,
( certamente o rei ) até porque só este tipo de dança permite a progressão de um grupo
de um sítio para o outro. Os preceitos envolvidos no primeiro tipo de mourisca – a luta
armada, a colocação e movimentação das figuras, a técnica significações dos passos –
além de nos levar a não ter demasiado em conta o número par de figuras envolvidas,
conferem ao resultado uma unidade de acção, tempo e lugar compatível apenas com
uma forma teatral ou dramatizada onde executantes e público são estacionários, algo
impossível quando existe um tempo processional que não pode ser detido.
Podemos, por isso, supor que nenhuma daquelas mouriscas simboliza uma luta
entre o bem e o mal no enfoque cristão, nem tão pouco um ritual sazonal7, mas antes,
na procissão do Porto e Penafiel uma coreografia profana volvida ao divino, onde o
figadal inimigo árabe, representado por cristãos, segue complacente a charola
participando de uma forma prostativa, para regozijo popular, na festa processional.
No caso portuense, a presença do alfaqui sublinha a participação
institucionalizada ( não bélica ) da lei e religião muçulmana. O “canto que dão os
confeiteiros o qual será de seis vozes que cantem toadas ao antigo com seus alaúdes e
pandeiros” dada no fim da mourisca, inclui instrumentos moçarabes trazidos para a
Península Ibérica: o pandeiro conhecido vários milénios antes de Cristo no Egipto é
largamente referido pelas fontes maçares no séc. XII. Apresentaria no séc. XVII uma
forma quadrada guarnecida com “sendas”, peles adelgaçadas em forma de pergaminho
e, no interior, cordas e guizos que o fazem ressoar. È bastante utilizado como
instrumento rítmico para acompanhar o canto e dança nos dias festivos; O alaúde,
resultante de modificações feitas no ou do médio oriente8, não terá tido grande aceitação
no meio musical peninsular, devido á sua conotação com o invasor, sendo preterido á
vihuela e posteriormente á guitarra barroca. O que nos leva a pensar duma espécie de
revivalismo de uma das matrizes culturais que que formam a mestiçagem cultural da
música portuguesa anterior á expansão – a matriz árabe9
Na dança de Penafiel o espírito luxuoso e extravagante dessa matriz é
materializado pelo uso de barretes vermelhos e canas verdes, pratica repetida nas
mouriscas da procissão do Corpus Christi de Braga no séc. XVI10. A presença do tambor
explica-se pela sua conotação mística e por fazer dançar, a ausência de outros
7 BONITO (1958)8 The New Grove Dictionnary of Musical Instruments, vol. III, pág. 6889 NERY (1991)10 Lv. dos acordos e vreações, in Bracara Augusta, Vol. XXX, n.º 59,62, pp. 418-470.
instrumentos colocava-o como único instrumento a abrir a comitiva, daí pensar-mos que
seria de grandes dimensões, seguindo a tradição medieval de utilizar membrafones de
maiores dimensões dos andores processionais do que na música popular.
Ambas invenções representam um dos mais exóticos sinais de paganismo de
toda o cortejo: a recusa da encenação de uma luta evangelizadora entre cristãos e infiéis,
por motivos já referidos, dá lugar a uma dança certamente improvisada e
desorganizada11 que incorpora uma profusão de elementos mouriscos no encalço do
Corpo de Cristo, numa lógica que por agora nos escapa. Submissão? Adoração
voluntária? Espírito religioso de síntese?
A mourisca vimaranense de 1613 sugere, pelos elementos ostentados pelo rei -
coroa, ceptro e espada – uma simbologia cristã idêntica á mourisca vista no dia de S.
João em Pedrogão - pequeno por Rodney Gallop onde sete homens exoticamente
ornados encabeçados por um rei guarnecido com uma espada, escudo, coroa e manto
real entravam na igreja, inclinando-se perante a estátua do santo e executando, depois,
uma dança lenta. Mouriscas que conservam o espírito mourisco apenas no nome e no
caracter exótico da invenção, transfigurando o caracter bélico mas retendo a intenção
evangelizadora.
A presença deste tipo de pantominas, mais mouriscas ou mais cristãs, justifica –
se pela extrema popularidade que esta dança gozaria12 e pela impossibilidade, já
11 A reformação das danças do corpus de Penafiel feita em 1705 diz-nos que “dançará este rei entre os ditos vinte e quatro homens e por seu sinal se começará a dançar ao som do atambor com muita ordem e não saltando para que sendo necessário tomaram dois ensaios; e no meio da dança irá um homem além dos vinte e quatro com uma bandeira e dançara com tal ordem que não descomponha a dança” In.SOEIRO(1993) . Imposições que sugerem uma desordem anterior que se pretende evitar.12 Recorde-se que D. Manuel tinha músicos mouriscos que tangiam e tocavam com alaúdes e pandeiros, in GOÌS,( 1949). E que existiam muitos mestres da dança mourisca em Lisboa no antigo regime, existiriam para além de catorze escolas publicas, outros mestre que ensinam as pessoas nobres em suas casas. in SASPORTES (s/d)
Trombetas e charamelas
Em Guimarães, as charamelas eram três e estavam obrigadas a tocar, tal como as
encamisadas em todas as festas da câmara.? No Porto seguiam, em 1621, ao lado dos
apóstolos, acompanhados pelas trombetas, podem, desde 1538, vestir seda?.
Estes instrumentos aparecem sempre relacionados com ocasiões espaventosas e
pomposas. D. Manuel todos os domingos e dias santos jantava e ceava ao som “de
charamelas, sacabuxas, cornetas, harpas, tambores e rabecas e nas festas principais
referida, de mimar uma batalha num tempo, espaço e lugar processional, daí a inclusão
dos elementos originais de forma separada. O seu significado poder-se-á enquadrar num
crescendo de paganismo á medida que nos afastámos da charola. O seu simbolismo no
gosto pelo exótico e na memória popular demudada
pela mentalidade barroca.
com atabales e trombetas” que também acompanhavam “el-rei muitas vezes pela cidade
enquanto caminhava”. Nas vésperas de Natal havia festa solene, e o monarca “
consoava publicamente com (...) trombetas, atabales e charamelas e enquanto
consoava dava de consoar a todos os senhores, fidalgos, cavaleiros e escudeiros que
entravam na sala”?. D. Caetano de Sousa relata que no dia do casamento de D. João IV
a vila de Elvas estava “toda iluminada entre os repiques dos sinos e salvas de artilharia
do castelo, descargas de mosqueteiros, trombetas, atabales, clarins e vivas do povo
com diferentes danças (...) Por parte de S. João de Canaval veio uma encamisada que
fazia a sua entrada pela porta de s. Agostinho. Trazia uma trombeta bastarda e logo os
atabeleiros, quatro trombetas, um termo de charamelas, todas bem montadas e um
grande número de danças e folias entre dois carros triunfantes hum de charamelas e
outro de música”.?
A organologia antiga esclarece que as trombetas são um aerofono de metal com
boquilha semi - esférica e secção cilíndrica, possuem um pavilhão e canal mais largo e
cónico do que as trompas, produzindo sons mais agudos do que elas. No séc. XV, ao
mesmo tempo que surgem as trombetas em –S, incorpora-se o costume oriental de abrir
os cortejos com trombetas e atabales. Acabam, depois, por surgir corporações de
trombeteiros municipais, postos ao serviço da música heráldica e artística. Os
trombeteiros ao estarem especializados num registo, devido ás limitações do seu
instrumento, nunca perdem a condição inferior ganha na época medieval á custa da
exclusividade de toques bélicos e sinais marciais. O seu timbre possante será sempre
associado a prenúncios originalmente bíblicos, como acontece no apocalipse: aos “sete
anjos que estavam diante de Deus foram dadas sete trombetas (...) e os sete anjos que
tinham as sete trombetas preparam-se para tocar”(Apc.8)?, e mais tarde transportados
para o quotidiano cortesão.
As charamelas pertencem á família do instrumentos de madeira de palheta dupla
de forma cónica, o que lhe confere um timbre mais possante e anasalado de que a flauta
de cana. Tinctoris atribui-lhe, em finais de séc. XV seis a oito furos, sendo mais
completa, ao nível da tessitura, do que a trombeta. Os charameleiros foram também
postos ao serviço municípios, ficando “obrigados a ir em todas as procissões da cidade
e estarem sempre prestes a tanger todas as vezes que a cidade os mandasse”?. Em
conjunto com as trombetas equilibram-se timbres poderosos e complexidade melódica.
Na procissão de 1621 seguem á frente dos apóstolos, de S. Sebastião e da
custódia, anunciando a chegada do redentor.