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Mostra que sabes mandar!
Eduardo Sá
Regresso, agora, a um tema que, em diversas circunstâncias, já abordei. Mas tenho esperança que, ao
repensá-lo, possa acrescentar alguns pontos que tornem mais claras algumas ideias que, desde há anos,
venho defendendo.
As crianças têm os seus ritmos. É verdade. Por mais que uma fórmula como essa, amiga das palavras dos
pais, possa ser “escorregadia”. Por vezes, ao conversarem acerca dos ritmos dos seus filhos, os pais
avalizam mais os caprichos da pequenada (em relação ao“devagar, devagarinho” com que lidam com o
jantar ou com que se vestem, de manhã, em dias de escola) à boleia duma ideia que acaba por ser
verdade.
Ao falarmos de ritmos, estamos a pôr, em primeiro lugar, o sono, por exemplo. As crianças têm um ritmo
de sono que vem do modo como, ainda quando viviam dentro da barriga da mãe, foi configurado na
relação com ela. E que, depois, durante os primeiros meses de vida, foi (ou não) condicionado por cólicas
repetidas e, também, pela forma ansiosa com que os pais foram lidando com a agitação dum bebé. Seja
como for, as crianças, dormem à noite. Por mais que haja algumas que pareçam desafiar essa banalidade.
Porque é que algumas não o fazem? Porque têm dias muito agitados (quer por aquilo que os pais lhes
solicitam, através dum comboio interminável de tarefas, quer porque o jantar é tão tumultuoso, para
todos, que não há quem não fique de nervos em franja) ou porque os pais e muitos educadores insistem
em vinculá-las a sestas e a um soninho ao fim da tarde, ou antes do jantar, que lhes troca os sonos. Se for
assim, não há como esperar que, mais ou menos à mesma hora de todos os dias, eles desliguem todo
aquele furor com que viveram até irem para a cama, e durmam de forma serena a noite toda. Pouparmos
(com sensatez) nas sestas, proibirmos o sono do final da tarde, e passarmos a ter outra forma de lidar
com o jantar, que não o transforme num ringue de luta livre, são atitudes muito amigas do sono.
Isto é, os ritmos das crianças - relacionados, regra geral, com o sono, com a alimentação, com a atenção
ou com a presença e a ausência dos pais, por exemplo - organizam-se com rotinas. Rotinas não significa
senão que, atendendo à hora de adormecer, às regras de alimentação, ao acordar, o banho ou aquilo que
se faz, mal se chega a casa, é suposto que, quer seja a mãe quer seja o pai a gerirem estes aspetos da vida
duma criança, o façam de forma, tendencialmente, coerente e constante. Não precisa, portanto, de ser
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milimetricamente da mesma forma (o que aliás, é um pressuposto que dá imensas confusões entre os
pais). Mas ganha se houver um mínimo denominador comum de procedimentos que não baralhe uma
criança. As rotinas “arredondam” os ritmos das crianças: não os reprimem mas também não os deixam
entregues a uma “lei” tão naturalista que aquilo que hoje é verdade amanhã pode ser, profundamente,
alterado.
As rotinas ajudam-nas a intuir os tempos (“hoje é dia do pai me vir buscar!”) ou a perceberem que não há
reivindicação estridente que faça com que aquilo que compõe o seu dia a dia seja objeto de grandes
transformações.
Primeira regra, portanto, para que elas cresçam saudáveis: “meia dúzia” de rotinas a funcionar. A hora de
adormecer, o modo como ela fica sozinha a travar-se de razões com o João Pestana, a hora de acordar e o
modo como começa o dia com o pequeno-almoço, a hora em que a vão buscar ao jardim-de-infância ou à
escola, o direito a brincar (mal chega a casa) e o banho e o jantar.
Segunda regra: os pais estão proibidos de negociar, de justificar ou de explicar as regras que entendem
que uma criança deve ter (e que, supostamente, têm tudo a ver com os seus bons exemplos). Porquê?
Porque as crianças lhes tiram, desde sempre, as medidas até à alma. E, portanto, porque elas sabem
muito bem quando é que os pais lhes estão a exigir comportamentos em tudo adequados aos seus bons
exemplos ou, pelo contrário, quando é que eles se estão a esticar, exigindo um conjunto de atitudes que
não têm nada a ver com aquilo que fazem. Por exemplo: faz sentido que o pai exija que uma criança não
se levante da mesa, durante o jantar, enquanto ele, por rotina, não deixa de o fazer, para atender o
telefone? Isto é: se os pais exigirem, em função dos exemplos que dão, fazem muito bem. Não se trata, é
claro, de exigirem com maus modos e de forma carrancuda o que quer que seja. Mas, de forma firme e
serena. Tudo menos fazerem-no a tremelicar da voz ou a pedir, muito devagarinho, que uma criança faça
aquilo que, sensatamente, tem de fazer. E, é claro, sem se explicar, negociar ou justificar porque - ao
fazerem-no como quem tem a obrigação de encher o discurso de alíneas e de demonstrações, a propósito
de tudo e de mais alguma coisa (o que sucede quando os pais tentam fugir às más práticas - demasiado
autoritárias - dos seus próprios pais) - o melhor que conseguem é pôr ruído nos bons exemplos que vão
tendo e exercer a parentalidade tão a medo que, à cautela, uma criança tem nas birras um excelente
controle de qualidade para a autoridade dos pais.
As crianças precisam, portanto, de autoridade. Ou, se preferir, duma lei. Uma lei, repito; não duas e,
muito menos, três. A lei da mãe e a lei do pai têm de ser uma. Eles não precisam ser minuciosamente
iguais em tudo mas têm de ser tendencialmente coerentes naquilo que exigem. E, já agora, sempre que
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há avós junto dos pais e dos filhos, a lei a que as crianças estão vinculadas é sempre à lei dos pais.
Escusado será dizer que os conflitos de competências (entre os pais e os avós ou quando os pais utilizam
aquela forma desesperada, segundo a qual, eles reconhecem que, ora ignoram as asneiras dos filhos ora
os põem de castigo, por exemplo), são os melhores amigos de crianças agitadas e confusas em relação ao
seu papel e às respetivas responsabilidades, porque esse nervoso miudinho é aquilo a que mais
facilmente se chega quando não há uma única lei.
Mas uma lei precisa da assembleia da república e dos tribunais. Ou seja: necessita de quem a defina e de
quem a faça cumprir. Portanto, os pais têm, também, de fazer, por vezes, um papel parecido com o de um
tribunal. Qual é a fórmula? Sempre que “o nariz” dos pais sente que uma criança está a ir para além do
que eles sintam como razoável- sem explicarem, sem negociarem e sem se justificarem... Avisam-na duas
vezes e estão proibidos de a avisarem três! Depois de abrirem para amarelo, ao segundo aviso, estão
autorizados a fazer cumprir aquilo que entendem ser sensato. Nem que, para tanto, tenham de abrir os
olhos, levantar a voz, respirarem para cima duma criança, mostrarem pulso firme quando a colocam no
lugar de onde ela não deve sair ou, no limite, quando lhe dão uma palmada no rabo. (Ninguém está, como
concordarão, a defender que se eduque a estalo! Mas, por vezes, há circunstâncias excecionais em que
uma dor física sinaliza um interdito. E protege! Se for assim, é mais clara e faz menos estragos do que mil
explicações!) Curiosamente, a grande maioria dos pais usa uma palmada mais vezes num filho mais velho
que no mais novo. Não tanto porque o mais novo seja mais atinado; mas porque a firmeza serena dos pais
se tornou mais apurada.
Porque não os castigos, perguntará para si? Porque todos os pais de coração grande têm a cabeça quente.
E porque, mal põem o pé dentro de casa, contam até 100, para não se zangarem. E, às vezes, deixam
passar uma, duas, três e quatro asneiras e zangam-se à quinta, por uma porcariazinha sem sentido, com
juros de mora. E desfiam coimas: vais para o quarto pensar (os brinquedos duma criança estão no quarto,
certo?), e ficas sem isto e sem mais aquilo e, passados 30 minutos, as coimas têm uma revisão em baixa
até que, pouco depois, se dá o perdão da dívida... Ora, excluindo as circunstâncias em que haja asneiras
XXL, os castigos correm o risco de ser tão banais que, às vezes, parecem as dívidas de algumas empresas
públicas: mais 1000 milhões de dívida sobre tudo o resto que já se deve é tanto, e tão improvável de se
saldar, que muitas crianças reagem com uma aparente indiferença. Tal é o défice! A regra é, então: nunca
deixe passar uma asneira, por favor! E avise duas vezes, zangue-se à terceira, poupe nos castigos, não
amue nem faça birra, dê colo, a seguir, e a vida continua... Em via verde!
Mas há um se nisto tudo: as crianças estão proibidíssimas de fazer maldades aos pais! Quer com aquilo
que dizem, quer com o modo que usam para dizer seja o que for, quer com um ou outro esgar (de
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desprezo, por exemplo), quer na forma como desafiam ou, até, como dececionam. Por outras palavras: se
os pais são certinhos com as rotinas e com as regras e se facilitam no modo como, de vez em quando,
deixam passar uma maldade que os filhos lhes façam, estragam tudo. Porque é como se existisse um
Código Civil, lá em casa, e, entretanto, o Código Penal tivesse ido de férias. Estragam tudo, repito. Porque
se falham aqui, as crianças sentem os pais como se eles fossem de gelatina. E esse treme-treme
aconselha-as a pouparem no modo como cumprem as regras, levando-as a reagir numa atmosfera do
género: “o ar é de todos!” Que faz com que, de príncipes e de princesas, passem a pequenos-ditadores
estando a um simples degrau de virem a ser adolescentes tiranos. A regra será, então: sempre que o “seu
nariz” sente dor no modo como o seu filho está a reagir, não avise nem uma vez. Abra, diretamente, para
vermelho! Exija um pedido de desculpas, a seguir. E durma em paz porque, desse modo, está a “formatar”
uma criança espontânea mas bondosa!
Aceite, por fim, um conselho: nunca mais diga que é o colo que estraga uma criança! Abuse no colo, se
entender. Mime, sempre que o seu coração estiver para aí virado. Mas não se esqueça que aquilo que
estraga uma criança são ritmos, rotinas, regras e maldades fora do lugar! Mais nada do que isso. Está,
então, nas suas mãos, em conjunto com o(s) seu(s) filho(s) - dia a dia, sem direito a férias, a fins de
semana ou a greves de zelo - responder com sucesso a um concurso do género... mostra que sabes
mandar!...
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