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MÃOS AO ALTO Texto de Paulo Goulart

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MÃOS

AO

ALTO Texto de Paulo Goulart

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PERSONAGENS

MULHER

EMPREGADA

TIA

MARIDO

BRANCO

PRETO

PRIMEIRO ATO

Living de uma casa. Hall de entrada. Saídas para os

interiores dos quartos. Copa e jardim de inverno. Mulher

elegantemente vestida, cruza a cena em direção à copa.

Empregada saindo da copa em direção dos quartos.

MULHER - Tia Reni está reclamando seu chá. E não

esqueça, nada de açúcar.

EMPREGADA - Sim senhora... Uma com açúcar... Outra

sem açúcar. Uma come carne, outra num

come. Gente fina tem o que comê... e vive

passando fome.

TIA (Vinda do jardim, vai até o bar e se serve de licor) -

Vai ser hoje, ou nunca. Aos meus nenéns.

(Sorve um gole).

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MULHER (Vinda da copa) - Dina já está trazendo o seu

chazinho. Ah... Meu Deus. Nove horas e a

Bia não chega. Como é que estou?

TIA - Linda. Maravilhosa... (Outro tom) Só que eu acho

que você, devia pensar melhor...

MULHER (Cortando) - As crianças ligaram do Guarujá,

voltam domingo à noite. Você devia ter

ido com elas.

TIA - Elas estão muito bem, com o lado árabe da família,

esfiha, kibe, tabule, tio, tia, praia, areia,

calor... Muito obrigado, minha querida...

Eu estou otimamente bem, aqui... Depois,

você iria ficar sozinha.

MULHER - Eu sei muito bem o que estou fazendo, minha

querida. Pela primeira vez, eu sei.

TIA - Mulher separada do marido, quando dá o primeiro

passo...

MULHER - Ah!... Meu Deus. Vamos começar tudo de

novo? (Indo ao telefone) Eu estou viva,

tia. Viva. E não se preocupe, eu sei cuidar

de mim.

EMPREGADA (Entrando) - Seu chazinho sem açúcar,

Dona Reni...

TIA - Ah... Meu chazinho. Deixe aí.

MULHER - Ocupado. Sempre ocupado. A Bia não larga

esse telefone.

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EMPREGADA - Dona Flora, será que eu podia dá uma

saidinha de meia hora? Sabe, minha tia

tá doente, e eu queria ir na casa dela...

TIA - Pode ir... Eu fico muito bem sozinha.

MULHER - Nada disso... Já dispensei os caseiros, que

também estão com uma "tia doente". Você

vai ficar fazendo companhia pra Reni.

Que programão! Mas em compensação eu

deixo você ver o Chacrinha na televisão.

No lugar do sambão, televisão... No lugar

do Amauri, a Reni. Verifique se as portas

e janelas estão bem fechadas. Você não

me saia daqui. Nada de rua, ouviu?

TIA - Nada de rua, ouviu?

EMPREGADA - Sim senhora... Mas que a minha tia tá

doente, tá. A senhora num acredita. Mas

ela tá muito doente, e se acontecê alguma

coisa cum ela a senhora é que é culpada.

(Sai).

MULHER - Está vendo o que você faz? Chantagem...

Todos nesta casa, fazem chantagem... Os

empregados... meus filhos... meu marido.

Todos. Será que eu nasci em lugar

errado? Eu só quero aquilo que eu acho

que é certo.

TIA - O que é certo pra você, pode não ser pro outro.

MULHER - Eu sei... Eu sei. Você está assim, só porque eu

vou sair com o Reinaldo, não é? Mas eu

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tenho esse direito. Não estou escondendo

nada de ninguém. Eu sou o que sou.

Assumo aquilo que faço.

TIA - Eu te conheço muito bem, minha filha. Você é uma

criatura, que tem tudo pra ser feliz. Mas

não é. Sabe por quê? Essa sua teimosia.

Quando põe uma coisa na cabeça, você

radicaliza. Fica burra. É isso que você é:

uma burra.

MULHER - Você está a fim de estragar a minha noite,

não é? Mas não vai conseguir. Eu não

vou deixar. Vou sair, me divertir. Nada

neste mundo vai mudar o que eu quero.

Hoje será uma noite decisiva para mim.

Será que você não entende, que eu posso

amar outro homem e que outro homem

possa me amar, como eu sou?

TIA - Claro que pode. O amor pode tudo. É justamente

por isso que você deve pensar no Rafy.

MULHER - Não me fale nesse nome, tia. Me dá alergia.

Fico toda empolada.

TIA - Não sei porque essa frescura de alergia. Vocês

viveram quinze anos muito bem. Se

amaram, tiveram seus filhos, se

ajudaram... E agora, que vocês têm tudo,

que poderiam gozar a vida e ser felizes...

Estão com alergia mútua. Vocês estão é

com alergia de cuca. Põe essa cabeça no

lugar.

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MULHER (Hesita) - Eu já disse que sei o que quero. E

não é mais o Rafy.

TIA - Você tem mesmo certeza que não quer mais o

Rafy? Vocês estão apenas separados.

MULHER - Há nove meses e dezoito dias. Quanto tempo

perdido. Eu já devia ter feito isso há

muito mais tempo. (Indo pro telefone) A

Bia já deveria ter chegado.

TIA - Bia e Geraldo, Flora e Dr. Reinaldo. Os dois

casaizinhos, na Paulicéia Desvairada.

Somando todos dá quase duzentos anos.

Vai fundir o motor do carro.

MULHER (Desligando o telefone) - Não responde...

Devem estar chegando.

TIA - É... devem estar chegando. Você está nervosa, não

é minha filha? Sabe o que é isso? É a

dúvida. Vou ou não vou? Dou ou não

dou? Você sabe como o Rafy é ciumento.

MULHER - Chega de falar no Rafy, tia. Chega. Você

sabe tão bem quanto eu, que o nosso

relacionamento atingiu o limite máximo

que eu podia suportar. Seus números, seus

remédios, suas manias. Aquele ciúme

doentio, aquele servilismo da mulher

árabe. Eu não agüento mais. Me sufoca.

TIA - É... amor com sufoco, não dá.

MULHER - Você sabe que nós estávamos nos sufocando.

Nos separamos por isso. Eu precisava de

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um tempo... Precisava conhecer outras

pessoas. Reciclar minha vida, meus

valores... E foi tão bom conhecer o

Reinaldo. Ele é tão diferente... Tão

simples... Tão humano.

TIA (Insinua) - Mas... vocês... Já?

MULHER - Ora, tia... pra mim isso não é o fundamental.

TIA - Só é... Tem que ser na vertical e na horizontal.

Senão, não dá certo.

MULHER - Não... Não acho. Pra mim, o horizontal é

apenas uma extensão da vertical.

TIA - E já houve essa extensão?

MULHER - Não... Ainda não.

TIA - Está marcado pra hoje, não está?

MULHER - Não... Nós vamos sair para jantar, depois,

possivelmente, uma boate e nada mais.

TIA - Nada mais?

MULHER - Nada mais.

TIA - E você não acha que esse Dr. Reinaldo tá meio

velho, não? Tem mais de sessenta, não

tem? Tá mais pra lá do que pra cá. Se

você está querendo mesmo fazer novas

experiências, escolhe gente mais jovem,

minha querida. Troque o seu carro usado

por uma máquina nova.

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MULHER - Você é impossível, Tia Reni. Mas eu te amo

muito, sabe? (Toque de campainha da

rua) São eles.

TIA - É... pode ser.

EMPREGADA (Entrando) - Eu atendo... Eu atendo. É

pra mim... Deve ser o Amauri.

MULHER - Eu estou bem? Deseje-me sorte, Tia Reni.

TIA - Boa sorte, doçura...

MARIDO (Entrando possesso) - Onde a senhora pensa

que vai?

MULHER - Rafy?

TIA - Meu querido... Que surpresa!

MARIDO - Onde a senhora pensa que vai?

MULHER - Onde eu quiser. Com licença?

MARIDO - Licença, coisa nenhuma.

TIA - Meu sobrinho nem me deu um beijo. Vem aqui.

Vem.

MARIDO - Essa mulher tá ficando louca. Só porque está

separada, pensa que tem dezoito anos?

Que pode fazer tudo o que dá na cabeça?

Num pode, está me ouvindo? Num pode.

Eu num deixa. Ai... Meu cabeça. Está

estourando de dor de cabeça.

TIA - Menina. Não fica parada aí. Traga água pro Dr.

Rafy. Você e suas homeopatias... Vai

tomar tudo isso? Piorou, hein?

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MARIDO - Ah... Se você soubesse o que tem sido a minha

vida. Eu está mal... muito mal. Doente.

Cansada. Está ouvindo, Flora? Eu me

matando de trabalho e você aí, se

divertindo. Você pensa que eu num sei?

Eu sabe tudo. Toda seu vida. Tudo. Eu

nem tem mais casa... Nem mulher... Nem

filhos... Onde está Rafynha? Onde está

Munira? Na Guarujá. E você? Onde você

pensa que vai? Pra rua... Passear cum

outra. Eu sabe tudo... Mas, no meu

cabeça, ninguém põe chifre. Ninguém.

Ninguém.

MULHER - Eu não estou disposta, a ouvir insultos. Com

licença?

MARIDO - No meu cabeça ninguém põe chifre, ouviu?

Senta... Eu mandou você sentá... Senta.

TIA - Venha cá, minha filha... Sente. Se ele mandou

sentar, nós sentamos. (Pequena pausa).

EMPREGADA - Prontinho, aqui a sua água, Dr. Rafy.

MARIDO - Gelada? Água gelada? Você sabe que eu num

toma água gelada. Num sabe mais?

EMPREGADA - Desculpe... Eu esqueci... Vou buscar

outra.

MARIDO - Água tem que ser natural, que nem Deus

fez... Tudo na vida tem que ser natural.

Que nem eu. Eu é como eu é.

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MULHER - Não... Você não é como era... Você piorou

muito. Cada dia que passa, você fica pior.

MARIDO - Olha quem fala? Como se ela fosse o mulher

perfeita. Ela sabe tudo. Eu nada. Eu só

sabe ganhar dinheiro. Eu ganha... Ela

gasta. Eu sabe ganhar e ela pensa que

sabe gastar. Mas num sabe. Num sabe...

está me ouvindo? Eu dá casa, roupa,

comida, dinheiro. Tudo eu dá pra você. E

o que é que eu recebe em troca? Água

gelada, pontapé no bunda e chifre no

cabeça.

EMPREGADA - Prontinho... Dr. Rafy... Água natural,

do jeito que o senhor gosta. (Campainha

da porta) É pra mim. (Tropeça e derruba

água em cima de Rafy).

MARIDO - Menina estabanada... Num vê onde pisa?

EMPREGADA - Desculpa... Doutor, desculpa... Eu

enxugo.

TIA - Venha trocar essa camisa, Rafy.

MARIDO - Vai atender essa porta, menina... Eu vai

trocar de camisa... água, ni corpo quente,

dá resfriado...

TIA - Venha comigo, Rafy... Ainda tem roupa sua aqui...

E, depois, você não pode se resfriar.

MULHER (Para a Empregada que ficou recolhendo o

copo) - Avise a Bia, que não posso mais

sair. (Campainha da porta).

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EMPREGADA - Sim, senhora... Mas deve ser o Amauri.

MULHER - Vai logo, menina... Mas como é que o Rafy

foi me aparecer a esta hora. (Falando pra

fora) Então? Quem é?

EMPREGADA (Fora) - É pra mim... É o Amauri... Eu já

tô entrando, Dona Flora.

MULHER - Não é possível, já deveriam estar aqui. (Indo

pro telefone) Iam pra casa da Bia, depois

viriam pra cá. (Falando baixinho) Alô...

Alô... Bia? Saiu? Há quanto tempo? (Rafy

voltando com Reni. Flora desliga o

telefone rapidamente, mas Rafy vê).

MARIDO - Telefonando pra quem? Pra aquela outra

perdida? É essa Bia que está botando

coisa no seu cabeça. Troca de homem que

nem eu troca de camisa. Traz água pra

eu tomá homopatia.

TIA - Eu vou buscar água pra você, Rafy.

MULHER - Tia Reni...

TIA - Não me peça para ficar, minha querida... (Sai

para a copa. Pausa).

MARIDO - Então, meu mulherzinha, estava pensando

em sair? Beleza. Toda bonita, perfumada.

Quem está esperando você?

MULHER - Ninguém... E não adianta ficar com

ameaças... Eu não tenho mais medo de

você.

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MARIDO - Flora, num tem mais medo? Flora num tem

mais é vergonha... Vergonha... Sabe o que

é isso? Ah? Relatório... Relatório. (Mostra

envelope) Tudo sobre você... Está tudo aí...

Eu botou detetive atrás de você... Uma

semana. Num precisou mais que uma

semana. Eu sabe tudo. Meu mulher está

visitando muito essa médica, Dr.

Reinaldo. Está esperando por ele, não é?

Como pode você fazer isso comigo? Cala a

boca. Num responde... Eu num merece

isso que você está fazendo. Eu sempre deu

tudo pra você... Tudo. Só num dá uma

coisa. Liberdade. Você casou com eu...

Tem dois filhos, com eu... Tem que

agüentar eu, até o fim. Eu agüenta você,

você agüenta eu... Separada ou junto...

Tem que agüentar. Nem que eu precisa

amarrar você no pé da mesa. Você hoje

num sai de casa.

MULHER - Não me faça perder o respeito que ainda

temos um pelo outro.

MARIDO - Respeito?... Teu respeito está aqui... (Tira um

revólver 22) Mete uma bala ni você... e

outra nesse Dr. Reinaldo.

MULHER (Apavorada) - Pelo amor de Deus, Rafy... Eu

juro que não houve nada entre nós...

Somos apenas bons amigos.

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MARIDO - Eu num quero que meu mulher tem amigo.

Eu está esperando ele... Quando chegar

aqui, vai ver com quem vai sair.

MULHER - Você está louco, Rafy... Guarde esse

revólver... Não faça uma besteira...

(Chamando) Tia Reni...

MARIDO - Besteira ia fazer você... Eu mostra pra você,

pra ele, pra todo o mundo quem é o

homem dessa casa... Eu queria que ele

entrasse agora aqui... Dava um tiro na

cara dele.

TIA (Entrando) - Rafy... Rafy... Vira isso pra lá... Trouxe

um calmante pra você... Não é

homeopatia... mas é ótimo... Vamos

trocar? Ah... (Chamando) Oswaldina...

Traz, traz um copo de água natural pro

Dr. Rafy.

MARIDO (Ainda com revólver) - Olha pra ela, Reni...

Fica com essa cara de quem sabe tudo...

Com esse ar de superioridade... Como se

eu que tivesse fazendo coisa errada...

Cala a boca... E num fica me olhando

assim... que eu dá um tiro ni você.

EMPREGADA - Prontinho... Água pro Dr. Rafy... Ai

meu Deus.

TIA - Não é nada, não, menina... Vamos, Rafy... Tome

isso...

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MARIDO - Não... Eu só toma homopatia. Está no meu

paletó... Vai buscar...

EMPREGADA - Sim, senhor... Qual delas que é?

MARIDO - É o vidro número... 3 o 7 e o 15... Não... Não...

deixa eu vai buscar. Você é muito

estabanada... Eu vai... E vocês ficam

sabendo de uma vez pra sempre... Quem é

o dono dessa casa... Quem é o homem

aqui... Eu... Eu é o único que pode falar

alto aqui. Num esquece. (Rafy sai para o

quarto, como machão).

MULHER - O que é que eu faço? Bia e Reinaldo, estão

chegando... Vai ser o maior escândalo.

TIA (Calma) - É... Rafy está indo além do que eu

imaginava.

MULHER - Vai lá tia, conversa com ele e tire aquele

revólver.

EMPREGADA - Num vai tirá não... Home da raça dele,

quando tem ciúme, é fogo. (Campainha da

porta).

MULHER - São eles... Oswaldina... Avisa que meu

marido está aqui... Que eu não posso sair.

EMPREGADA (Saindo) - Sim, senhora.

TIA (Intrigada) - Não podem ser eles...

MULHER - Só podem ser eles.

TIA - É que eu...

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MULHER - Você o quê?

TIA - Nada... Nada... Então, o Rafy já sabe do seu caso

com o Dr. Reinaldo?

MULHER - Não é um caso. É uma amizade sincera.

Minha vontade é ir lá fora, embarcar

nesse carro e sumir.

TIA - Agora, minha querida, você tem que enfrentar...

Talvez seja até bom... Quem sabe esta

noite você define, de uma vez por todas a

sua vida com o Rafy.

MULHER - Por que a Oswaldina está demorando tanto?

(Indo até a saída para os quartos) Ainda

bem que o Rafy foi ao banheiro. Deus

está nesta casa. (Entram dois assaltantes,

trazendo a Empregada como escudo. Um

é preto, outro branco).

PRETO - É um assalto...

BRANCO - Assalto... Nada de gritaria.

PRETO - Vocês duas pra cá.

BRANCO - Vocês duas pra cá. (Tudo muito rápido.

Situação de pânico. Empregada lívida,

perdeu a voz. Olhos esbugalhados. Não

emite som nenhum. Só mais tarde irá

gritar).

PRETO - Vê se num tem mais ninguém na casa. Eu

güento as pontas aqui.

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BRANCO - Deixa comigo. (Sai em direção dos quartos

onde está Rafy. As mulheres se olham,

esperando o pior).

TIA - Será que eu...

PRETO (Ríspido) - Fecha a matraca, coroa.

TIA - Mas é que...

PRETO - Cala a boca, porra. (Pausa. O Preto acua as

mulheres num canto da cena e examina o

ambiente com cautela).

BRANCO (Fora) - Ah... Ah... Tá aqui no quarto... No

quarto do casal, dentro do guarda-roupa.

PRETO - Que é que tu achô aí?

BRANCO - O barrigudinho... Tá escondido. No guarda-

roupa. (Entrando) Num disse que ia sê

sopa... Só tem as muié... E já descolei o

cofre... Tá escondidinho no guarda-

roupa...

PRETO - Então vamo trabaiá. (Descontração dos

assaltantes e apreensão das vítimas.

Começa a operação assalto) Se oceis

colaborá direitinho, ninguém se machuca.

Voceis faz a parte de voceis, que nós faz

a nossa. Jogo rápido... Nóis só qué as jóia,

o dinheiro e mais umas coisinhas aí.

BRANCO - Num te falei que ia sê moleza... Lá no quarto

tem cofre e muito mais.

PRETO - Nóis já chegamo lá.

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TIA (Controlando-se) - Posso falar? Vocês podem levar

tudo... Mas sejam rápidos...

MULHER - Sim... Rápidos... Daqui a pouco vai chegar

gente.

BRANCO - Num fica nervosa, gostosa. Nóis sabemo o

que temo que fazê.

PRETO - A chave do carro que tá aí fora... Onde qui tá?

EMPREGADA (Só agora consegue gritar) - Aiiii!

(Branco avança pra ela).

TIA - Não machuque a menina. (A Empregada continua

gritando. Branco dá-lhe um tapa. A

Empregada emudece) Remédio eficiente o

seu: rápido e rasteiro.

BRANCO - FEBEM, Dona... Uma dose de FEBEM por

dia, ninguém chia. Escreveu, num leu,

pau comeu.

PRETO - Tá falando muito, Branco. A chave do carro,

vovó? Onde tá?

BRANCO (Para Flora) - É... Onde tá a chave, gostosa?

MULHER - Do Galaxie? Eu não sei... Só tenho a chave do

meu...

TIA (Interferindo) - Estava comigo. Eu é que estava com

ele... Agora a chave... Onde eu deixei a

chave? Aqui em casa um usa o carro do

outro. Eu não entreguei pra você?

MULHER (Não entendendo) - Não, pra mim, não... Eu só

guio carro pequeno.

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TIA - Ah... Sim... Claro... Onde eu deixei essa chave?

BRANCO - Na bolsa?

TIA - Não.

PRETO - No quarto?

TIA e MULHER (Assustadas) - Não.

PRETO - Tá no quarto.

BRANCO (Pegando Flora) - Vamo lá buscá.

PRETO - Pega umas malas... Tem muita coisa aqui, pra

gente levá.

BRANCO - Vem comigo, gostosa. Vamo pegá a chave, as

mala.

TIA - Não está no quarto.

BRANCO - Vem, gostosa... Que ainda temo que abri

aquele cofre... Depois, ocê abre as perna,

que nóis vamo dá um tempo na cama.

PRETO - Nada disso... Oh, meu. Primeiro o serviço. Nada

de fodeção.

TIA (Alto) - Ah... Lembrei.

PRETO - Da chave?

TIA - Da gasolina... O Galaxie está sem gasolina. Mas o

tanque do Volks está cheio.

MULHER - Tem razão... Leva o meu Volks, é melhor... O

tanque está cheio e a chave está aqui. É

só procurar... Onde está a chave?

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TIA - Onde está?

MULHER - Onde está? Oswaldina, onde eu deixei a

chave do carro?

EMPREGADA (Arregala os olhos e grita) - Aiiii.

TIA - Lá vem FEBEM... Cala a boca... Levanta daí e fala.

EMPREGADA (Fio de voz) - Eu não posso levantar.

TIA - Onde está essa chave? Vamos procurar na bolsa.

MULHER - Não está... Eu mudei de bolsa. (Nervosa)

Mas eu acho. Deve estar aqui... Vamos

procurar, tia. Daqui a pouco chega

gente... E seria muito desagradável nos

encontrarem nessa situação. Aliás, já

deveriam ter chegado. Vocês precisam

acreditar em mim. Daqui a pouco chega

gente.

PRETO - Para de falá, e vê se encontra logo essa chave.

BRANCO (Para Flora) - Vamo adiantá o serviço... Vamo

procurá no quarto. Vem comigo, gostosa.

(Mulher corre, para se esconder do

Branco. Tia intervém. Se estabelece

pequena confusão, de modo que o grupo

fique no extremo oposto da entrada dos

quartos, por onde deverá surgir Rafy,

revólver em punho. Não se sabe, se ele

vai enfrentar os ladrões ou fugir.

Empregada vê Rafy e grita).

EMPREGADA - Aiiii.

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MARIDO (Surpreendido pelo grito, ergue os braços) -

Num atira... Num atira. Eu me entrega...

(Movimentação geral. Preto parte pra

cima de Rafy. Toma o revólver dele).

PRETO (Agarrando-o pelo paletó) - O que é que tu ia

fazê, oh... meu... Ia atirá em nóis ou fugi?

MARIDO - Não... Não... Ni uma coisa, ni outra.

BRANCO - Onde é que tu tava escondido?

MARIDO - No guarda-roupa. Pertinho do cofre.

BRANCO - Como é que eu num vi?

PRETO - Vistoria de merda, que ocê feiz, hein? Trabalhá,

com amador, dá nisso. (Empurra Rafy

para o grupo das mulheres).

MARIDO (Entre dentes, para a Empregada) - Que tinha

que gritá, você?

TIA - Você esteve ótimo, Rafy. Parecia John Wayne.

MARIDO (Para a Empregada) - Burra... Num tinha que

gritá. Burra. Burra.

TIA - Calma, Rafy... Calma.

BRANCO - Chega de bochicho. (Grita) Cala a boca.

PRETO - Vê se num grita ocê também!

BRANCO - Ocê qué que a gente faiz o serviço a seco. Dá

nisso. Eu num sei trabaiá sem baseado.

PRETO - Fecha o bico. (Pequena pausa. Momento de

tensão) Bão... Agora que chegô o dono da

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casa, vai sê mais faci. Ocê é o dono da

casa, num é?

MARIDO - É... Eu é o dono da casa.

PRETO - O macho? O home da casa?

MARIDO - É... o macho. O homem da casa.

PRETO - Então o meu considerado aí vai colaborá cum a

gente, num vai? Onde tá a chave do

carro?

MARIDO - Está aqui... Eu estava ouvindo tudo... quando

pediram a chave: eu veio entregar ela.

PRETO - E o berro aqui, era o quê? Chavero?

MARIDO - Não... Não... Isso é assunto nosso. Entre eu e

ela.

PRETO - Ocêis já tão que nem nóis? Na base do berro?

BRANCO - Deixa a gostosa comigo. Eu senti, que ela

tava a perigo. Que nem nóis na FEBEM.

Na base da mão. Tá em jejum, num é

gostosa? Deixa comigo que eu vô apagá

essa brasa.

MARIDO (Negociando e defendendo a Mulher. Para

Preto) - Você é o chefe, num é? Eu faz

acordo. Pega tudo o que quiser... Ah? Tá

aqui, meu carteira, meu relógio, meu

anel... Tudo o que é meu, pode levá.

Pronto, tá tudo aí. Pode levar. Eu num

tem mais nada.

PRETO - Mais nada?

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MARIDO - Nada... Hoje é sábado... Num adianta fazê

cheque. Banco está fechada. Vão tê que

levar o que está aqui... Leva tudo... Eu só

pédi uma coisa. (Outro tom) Num toca no

meu mulher.

PRETO - Nóis num tâmo atraiz de muié. Querêmo é

grana. Ocêis pensa que nóis, bandido,

quando vê muié, qué logo comê!... Num é

nada disso, não... Tem uns bunda mole,

que apronta mesmo. Tudo na base da

droga (intencional para Branco). E nóis

que leva a fama, né Branco? Vê se

manera, tá bem?... E ocê, turquinho...

num vem com grupo... Isso aí é só o

aperitivo... O filé, tá lá em cima, no cofre.

Vamo lá abrir ele, pegá as jóia e tudo o

que tivé valô. E num tente me engrupi,

que aí ocê se fode... Ocê e a sua muié, vão

comigo... Ocê Branco, fica aqui com a

coroa e com a mina e manera, viu? Vê se

num apronta. (Saem os três em direção

dos quartos).

TIA (Que esteve o tempo todo observando Branco) -

Vocês são bem distintos, não?

BRANCO - Tá me gozando, Dona?

TIA - Não estou, não... Eu quis dizer que vocês são

distintos, diferentes. Ele é mais velho...

Você é moço... Ele é preto... Você é

branco... Você é mais... fogoso... Deve ser

a juventude, não?

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BRANCO - Eu peguei FEBEM... Ele, detenção.

TIA (Batendo papo) - É? E como se conheceram?

BRANCO - Malandro sempre saca malandro.

TIA - Vocês trabalham juntos há muito tempo? (Branco

não responde. Passa a mão na boca, louco

para dar uma fumadinha) Posso tomar

um licorzinho? Você quer?

BRANCO - Tô quereno é outra coisa.

TIA - Fique à vontade. Eu vou de licorzinho. (Preto,

Marido e Mulher entram, carregando

duas malas vazias).

PRETO - Vai enchendo essas mala. Põe essas duas pra

trabaiá. Nada de moleza. Agora, vamo

abri aquele cofre. Vamo... Vamo...

(Voltam para os quartos).

BRANCO - Bão... Vamo escolhê o que nóis vai levá...

Pega uma mala aí... Ocê pega a outra.

EMPREGADA - Eu não posso me levantá.

BRANCO - Dexa de onda e levanta daí.

EMPREGADA - Mas eu não posso.

BRANCO - Ocê vai vê, se pode ou num pode. (Avança em

direção dela, que rapidamente se levanta

e corre de maneira cômica).

TIA - Posso propor uma coisa?

BRANCO - O que é?

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TIA - Antes de encher as malas, o meu considerado, não

gostaria de queimar o seu fuminho?

Enquanto isso, ela vai à cozinha trocar a

calcinha, e eu vou tomar o meu

licorzinho.

BRANCO - Oh... Coroa... Essa é boa... Vai... Vai pra

cozinha e tira a calcinha.

TIA - Vai menina... Vai... (Empregada sai lentamente,

como se fosse fugir. Branco fica na porta

com visão para os dois lados, de olho na

Empregada. Tia toma o seu licor. Branco

acende o seu cigarro).

BRANCO - Não... Não... Num vai se escondê... Fica aí,

que eu quero te vê.

EMPREGADA (Fora) - Mas eu só tiro a calcinha, se eu

ficá sozinha.

BRANCO - Então, vai ficá molhadinha.

TIA - Eu vou aí... te dar uma mãozinha.

BRANCO - Fica aí... Coroa... que eu tô numa boa. Como é

que é? Vai tirá ou num vai? Agora tô

loco pra vê!

TIA - Pra quê?

BRANCO - Tô afim de comê.

EMPREGADA (Fora) - Ai... Ai... Ai... Ai.

TIA (Entrando no jogo, como se fora repentista) - Você

vai se enrascá.

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BRANCO (Aceitando o desafio) - Quem sai na chuva, é

pra se molhá.

TIA - Você vai se encharcá.

BRANCO - Tanto se me dá. O que eu quero é gozá.

EMPREGADA (Fora) - Ai... Ai... Ai... Ai.

TIA - Ganhou... Um a zero pra você... Sabe que você é um

poeta, rapaz? Um repentista puro.

BRANCO - Manda outra.

TIA (Pensando ardilosamente) - Adivinhação... O que

é?... O que é? Tem perna pra corrê... Todo

mundo pode vê... É só se escafedê?

BRANCO (Sério) - Escafedê? Deixa eu vê. (Sorri) Preciso

de um fuminho. Pra pensá mais um

pouquinho.

TIA (Insinuando para que a Empregada fuja) - Vai

devagarinho... pezinho por pezinho... Vai

achar o caminho... e tudo vai dar

certinho.

EMPREGADA (Entrando) - O que é escafedê?

TIA (Nervosa) - É correr... Escapar... Se mandar...

Entendeu?

BRANCO - Qual é? Num vem cum essas palavra difíci,

não. Qué jogá, vamo jogá limpo.

TIA - Realmente, escafeder é difícil... Muito difícil.

BRANCO - Tem que sê coisa fáci... assim na base do: o

pavão, tem o coringão, no coração.

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TIA (Sorri) - Claro... É por isso que vive de ilusão.

BRANCO - Nóis é o cão: se num ganha no pé, nóis ganha

na mão.

TIA - É só armar confusão que, pro povão, tá tudo bão.

BRANCO - Deixa de sê fulera... Senão, vai marcá

bobera.

TIA - Eu não sou rameira... mas te passo uma rasteira.

BRANCO - A bala do meu revólver não tem açúcar.

TIA - Quem chupar... Vai se engasgar.

BRANCO - O cano da minha espingarda não tem

torneira.

TIA - Então vê se não faz besteira.

BRANCO - Oh... Coroa... Ocê é das minhas... Dá um tapa

aí.

TIA (Dando um tapa nas costas dele) - Dou...

BRANCO - Não... Não é aí... é aqui. Dá um tapinha, ocê

vai vê qui barato.

TIA - Eu sempre tive vontade de experimentar isso. Não

nestas circunstâncias. Em todo o caso,

vamos lá.

BRANCO - Puxa mais forte... Assim... Olha...

TIA - Pode deixar que eu chego lá.

BRANCO - Você também, mina. Você também tem que

entrá. (Encosta o revólver nela) Vai

fumá... e sem gritá. (Empregada fuma e

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ri. Começa a ser criado um clima de festa

de embalo) E a calcinha? Já tirô a

calcinha?

EMPREGADA - Ainda não...

BRANCO - Mas vai tirá... Dá mais uma fumadinha... e

depois tira a calcinha. Vamo vê... Um...

dois... três... Tirou.

EMPREGADA - Até que tá legal...

BRANCO - Ocê ainda num viu nada, mina... Tia... Põe

uma música aí, que eu vou dançá com a

Maria sem calça.

EMPREGADA - Sem calça e descalça...

BRANCO - Vamo botá pra quebrá.

EMPREGADA - Uma música da pesada... (A Empregada

coloca música no toca-fitas. Os dois

dançam. A Tia está lúcida, sem perder

sua dignidade, até interessada na nova

experiência. Serve-se de mais licor.

Branco assumindo sua liderança. Preto,

vindo dos quartos acompanhado do

Marido e da Mulher, traz uma caixa de

jóias. O Marido, outra caixa daquelas de

cofre, onde são guardados papéis,

dinheiro ou documentos. A Mulher traz

uma estola de pele).

PRETO (Desligando o som, louco de raiva) - Tu tá pirado,

diabo? Qué enchê a cavera de fumo,

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enche. Mas não aqui. Panaca. Burro. Qué

estragá tudo? Qué estragá tudo? Qué?

BRANCO - Num grita comigo, que eu num sô moleque.

Num grita comigo.

EMPREGADA - Ah... Vamo dançá... Agora eu quero

dançá.

PRETO - Chega de bagunça... E ocê, Branco... fica na

tua... que eu fico na minha... Mas quem

dá as órde aqui sô eu. Tá entendido?

MULHER (Pegando copo com água) - O que é que ele fez

com você, Oswaldina? Tome um pouco de

água. Tome.

EMPREGADA - Eu num quero água... Agora eu tô

quereno é ele... (Referindo-se ao Branco)

A água é do seu marido... Eu num vô com

a cara dele... Eu trouxe água e o senhor

num tomou... Então vai tomar agora.

(Joga o copo de água no rosto dele).

MARIDO - Oh... Sua... (Preto dá um toco no pescoço de

Oswaldina, que cai no sofá).

PRETO - Todo mundo quieto, porra.

TIA - Na FEBEM é tapa. Na detenção, pescoção.

PRETO - Se alguém apronta mais alguma, eu prendo no

banheiro.

MULHER - Será que ela está bem?

PRETO - Só desmaiada, daqui a cinco minuto acorda e

nem sabe o que aconteceu.

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TIA - Então... Vamos trabalhar. O que nós vamos levar?

Quadros? Pratarias?

MULHER - Tia... O que a senhora está fazendo?

TIA - Deixa de ser boba, menina. Não está vendo que

agora estou enturmada?

MARIDO - Tia Reni, eu acho que...

TIA - Rafy... Coitadinho, está todo molhadinho. Você não

pode se molhar... Vou buscar uma toalha

pra você. (Sai em direção dos quartos.

Branco vai atrás).

PRETO - Essa tua tia é meio matusquela, hein?

MARIDO - Ela está doente... Num diz coisa com coisa...

Está ficando esclerosada.

PRETO - Abre essa caixa aí.

MARIDO - Eu já disse que num tem nada... É só papel...

PRETO - Abre.

MARIDO (Abre a caixa, tomando cuidado de esconder o

fundo dela) - Olha aí. É só papel...

Documentos. Coisa que só tem valor pra

mim.

PRETO (Desconfiado) - Ah... Abre a outra... A de jóia.

MARIDO - Já vai... Já vai... Pronto. Está vendo? Eu

ajuda o senhor a escolher... Eu sabe o que

é bom... Eu mostra... Beleza de colar...

Compro no México... Vale uma fortuna...

Pode levar. Esse coisa rara... Esse outro

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aqui, porcaria. Num vale nada. Este obra

de arte. Esse aqui, bijuteria... Este

também... Tudo misturado. Eu separa o

que tem de bom. (Tudo é feito

rapidamente, como se fora um vendedor,

e procura esconder as jóias de mais valor.

Há uma considerável quantidade de

jóias. Algumas, ele joga em baixo do sofá.

Outras esconde no bolso, etc.) Este beleza.

Este droga. Este droga... este também.

PRETO - Para. Para de falá. Tu tá quereno levá uma

bolacha, num tá? Bota tudo aí dentro

outra veiz... Esse também... O outro que

ocê escondeu... Tudo aí dentro. Tá

quereno me fazê de besta? Num apronta,

que eu faço, ocê dançá, um tango com

uma perna só. Tu tá pensando que eu sô o

quê?

TIA (Entrando acompanhada de Branco. Mais

embalada, na base da esclerosada) -

Toalha pra você, Rafy. Bem... Agora

vamos escolher o que vamos levar. Deixa

comigo. Eu sei as coisas de valor, nesta

casa. Isso fica... Ah, esse vaso é um

horror.

PRETO (Se referindo a Flora) - Num fica aí parada, vai

ajudá ela.

TIA - O que você acha disto aqui? Eu detesto... Você

gosta? Se gostar, pode levar... Tudo é de

vocês... Tudo. Que sensação gostosa, a

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gente poder escolher o que quiser. É

ótimo. Estou adorando. Levamos bebidas

também?

PRETO - Alguma coisa é bom.

TIA - Mas podemos consumir um pouco agora, não

podemos... Esse pra você... Esse pra mim...

Ah... Estou tão contente com a visita de

vocês. Nem imaginam como estou feliz.

Sentem aqui, vamos conversar. Quero

saber a vida de vocês, Tim-Tim por Tim-

Tim.

BRANCO - Essa tia é um barato. Senta aí.

PRETO - Num tô aqui pra batê papo. Ocêis dois aí, acaba

de enchê essas mala. (Marido e Mulher

acabando de encher as malas. A caixa de

jóias e a de documentos ficam de posse do

Preto. Tudo simultâneo ao diálogo da Tia

e Branco).

TIA - E você, meu querido? Me conta a sua vida. Eu

quero saber tudo. Como vai sua carreira?

BRANCO - Num posso me queixá.

TIA - Está contente com o seu trabalho?

BRANCO - No tempo da FEBEM era dureza... agora tô

numa boa... A cana ainda num me

enquadrô.

TIA - E a família? Como vai a sua família?

BRANCO - Família?

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TIA - É... Seu pai? Sua mãe?

BRANCO - Meu pai eu nunca vi.

TIA - Por quê?

BRANCO - Minha mãe era puta.

TIA - Puta?

BRANCO - Eu sou filho de puta.

TIA - Ah... Sei... Sei... O que foi feito dela?

BRANCO - Morreu, quando eu tinha deiz ano. Mas eu

ainda me lembro dela... Era bonita...

Faturava uma nota. Até que a gente

vivia bem. Mas, aí, um outro filho da

puta que explorava ela começô a me

enchê o saco. Era cacete, todo o dia.

TIA - E a sua mãe?

BRANCO - Sabe como é. Mãe é mãe... e puta é puta. É

uma dureza...

TIA - Deve ser... Mas aí, o que aconteceu...

BRANCO - O cara continuava explorando ela e me

baixando o cacete... Minha mãe nem

sabia, porque mãe-puta num tem tempo

de vê as sacanage que os outro faz pra

nóis, que é filho da puta. Até que um

dia... peguei ele de jeito e dei umas furada

nele. Foi um salseiro... Baixou a cana... e

num deu outra. FEBEM. Foi lá que eu

aprendi o que é a vida.

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PRETO - Cala esse bico... Tá falando demais.

TIA - Ih... Esse teu sócio é tão sério.

BRANCO - Num é meu sócio, não... Qué dizê... Esse é o

primeiro serviço que fazemo junto.

PRETO - Fecha a matraca... Senão vai levá porrada, seu

burro.

TIA - Eu fico fascinada com essas estórias. Aí você foi

pra FEBEM? Pode falar, que eu te dou

cobertura... Somos dois, contra um.

BRANCO (Contra-gosto) - É.

TIA - E sua mãe morreu, enquanto você estava lá?

BRANCO - Foi o que me disseram, Dona.

EMPREGADA (Acordando no sofá, sem saber o que

houve) - Ai... Meu pescoço... ai... ai... Onde

estou? O que eu tenho que fazê? O que

aconteceu? (Olhando) Ah... Ah... Ah...

Assalto... Assalto... Estamos sendo

assaltados... (Ameaça gritar).

BRANCO (Avançando pra ela) - Aprendeu, hein?

PRETO - Vamo dá no pé... Pega a Tereza e amarra eles.

BRANCO - Ela também? (Referindo-se a Reni).

PRETO - Claro... Eles tem de ficá amarrado, mordaçado,

e nóis se manda no carro dele.

MARIDO - Eu pode pedir um favor? Deixa meu caixa

de documentos... Ah? Tudo o que tem aí

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só tem valor pra eu... Deixa meu caixa de

documentos? Ah?

PRETO - Eu devia levá, procê deixá de sê muquirana.

Mas procê num dizê que nóis num é

legal... Toma... Fica cum ela. (No que

atira a caixa, ela se abre e, do fundo,

caem diversas notas verdes; dólares,

dinheiro estrangeiro, letras de câmbio,

enfim, papéis de valores, a melhor parte

do assalto) Turquinho, filho da puta...

MARIDO (Rápido) - O que é isso? O que é isso, Flora?

Onde você arranjou esse dinheiro? Você

tinha tudo isso? Eu num sabia? Eu num

sabia.

PRETO - Tu é muito vivo... Tá quereno salvá a pele...

Mas pra cima de mim num cola.

MARIDO - Eu juro... Eu juro que num sabia que tinha

todo esse dinheiro aí dentro. Fala pra

eles, Flora. Fala...

MULHER (Que não entendeu o jogo) - Eu... Eu...

PRETO - Teu marido tá quereno te entrutá.

MARIDO (Se esforçando para que ela entenda) - Fala

pra eles... Que foi outro que te deu esse

dinheiro... Eu nem sabia... Eu é marido

traído. Eu não sabia.

PRETO - Tu é mesmo filho da puta, hein, turquinho?

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BRANCO (Sádico) - Vamo fazê uma roda de fogo cum

ele?

PRETO - É... Ele tá mereceno uma roda de fogo.

MARIDO - Que vai fazer cum eu? Num faz nada cum

eu... Eu já deu tudo o que tinha... Tudo...

As jóias eu compro pra ela... dinheiro...

anel... E leva isso também... Pode levar...

Num é meu... é dela... (Representando o

marido traído, quase chora) Leva tudo...

Eu foi enganado. Eu sabia... sabia que

tinha outro na seu vida... Outro que te

dava dinheiro... Outro que ocupava meu

lugar... Sabe o que você é? Adúltera... Isso

que você é.

TIA (Que percebe tudo) - Você está exagerando, Rafy.

EMPREGADA - Num tá não, Dona Reni... Tá

mostrando que é.

MULHER - Isso mesmo... Está mostrando quem é... Chega

de mentiras... Eu não quero mais saber de

você... Do seu dinheiro... de nada... Vocês,

me ajudaram a tomar a decisão... Eu não

quero mais saber de você, Rafy.

MARIDO - Num liga, pra ela... Ela está se aproveitando

da situação. Há um ano que a gente está

separado...

BRANCO - Eu num disse que a gostosa tava a perigo?

MULHER - Sempre estive. Meu casamento foi um erro...

Um erro de quinze anos.

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MARIDO - Num diz bestera, mulher.

MULHER - Quer saber de uma coisa? Pega seu dinheiro

e enfia... enfia...

PRETO - No cu.

MULHER - Pega a tua vida e enfia...

PRETO - No cu.

MULHER - Enfia tudo dentro de você. Porque você

sozinho se basta... Eu não quero mais

saber de você.

PRETO - Tô doido pra botá ele na roda de fogo.

MARIDO - Espera... Espera... Todo mundo contra eu?

Ninguém vê meu lado? O que eu lutou? O

que eu fez? E tudo sozinho, com meu suor,

com meu cabeça... E tudo pra quem?...

Pra quem? Pra você... Pra nossos filhos.

PRETO - E procê... né, turquinho?... Mais procê.

EMPREGADA - Mais pra ele mesmo. Trabalho aqui há

dois ano. Eu posso dizê da diferença. Toca

ele na roda de fogo.

BRANCO - Ocê sabe o que é roda de fogo?

EMPREGADA - Deve ser gozado, né?

PRETO - É gozado... mas é fogo. Aí pro meio, turquinho...

Agora ocê vai dançá.

BRANCO - Vamo lá, turquinho... Vamo vê se ocê é bom

de pé.

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TIA - Vocês não vão machucá-lo, não é?

MULHER - Não façam nada, por favor.

MARIDO - Está pensando que eu tem medo. Eu nem tem

medo... Mas pra fazer roda de fogo com

eu, que vai ganhar com isso? Vamos

conversar, é conversando que a gente se

entende... Vamo fazê roda de papo, ah?

Melhor... Faz roda de jogo... Isso, roda de

jogo... O jogo que quiser, eu topo... Eu

paga dois por um.

PRETO - Num tem mais nada pra pagá... Ou tem? Se ocê

tivé escondendo mais alguma coisa de

nóis, vai sê pió.

MARIDO - Eu faz nota promissória... E no cartera,

ainda tem cartão SOS. Vai lá e saca.

PRETO - Aquele que enfia e sai dinheiro? É uma boa...

Então, ocê vai com nóis. Nóis só vai te

sortá, depois que gastá o cartão. Jogá pra

quê?

MARIDO - Eu vai jogá meu roda... Se eu ganhar, num

entra no roda de fogo... Combinado?

PRETO - Tá legal... Branco, prepara a mesa.

MARIDO - Que vai ser? Pôquer? Pif-paf? Escopa? 21?

Sete e meio?

PRETO - Queda de braço.

MARIDO - O quê?

PRETO - Isso mesmo... Queda de braço.

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MARIDO - Mas isso num é jogo.

PRETO - Quem disse que num é? Vai sê queda de braço.

Senta aí... Fui campeão na Detenção.

Vamo vê se ocê é bom de braço, que nem

é de prosa. (Todos cercam os dois. Para

surpresa geral, Rafy é bom de braço).

BRANCO - Num é que o turquinho é bom de braço?

PRETO - Tá suano, turquinho?... Nada de truque... Jogo

limpo.

TIA - Não deixa ele virar o teu pulso, Rafy... Força...

MULHER - Segura, Rafy... Segura...

PRETO (Falando lento, entre dentes) - Depois que ocê

perdê, vai subi nessa mesa... Vai tirá a

roupa... peça por peça... Vai ficá só de

cueca. Pra cada peça, nóis tira uma bala

do revólver... Vai ficá só uma bala... Aí

ocê vai dançá... Pezinho pra cá... pezinho

pra lá... Vai cantá e dançá. Agora, força,

Força. (Preto derruba Rafy. Expectativa

geral).

BRANCO - Põe ele na roda...

MULHER - Não. Não façam isso...

PRETO - Vamo atirá duas veiz... Uma pra Deus... outra

pro diabo... Se ocê escapá... Tá perdoado.

MULHER - Pelo amor de Deus... Não façam isso. Vocês

já têm tudo o que querem. Vão embora.

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PRETO - O que se perde, na queda de braço, tem que sê

pago. Ele perdeu, tem que pagá.

MULHER - Isso não faz sentido. Matar uma pessoa só

porque perdeu uma queda de braço?

PRETO - Quem falô em matá?

BRANCO - Nóis atira é no pé.

MULHER - Isso é uma crueldade... Eu é que sou

culpada... Eu não devia ter dito o que

disse. Não façam isso com ele.

TIA - Eu estou vendo que é um código de honra... Mas a

gente podia dar um jeitinho, não podia?

PRETO - Não... A senhora disse tudo. É uma questão de

honra... Sobe... Vamo... Sobe. (Rafy

começa a subir na mesa) E vamo

tirando... Primeira bala... O paletó...

Segunda... a camisa... Tercera... a calça...

Quarta... o sapato... Quinta... As meia... Só

ficô a cueca... Tá aqui... Agora roda...

Roda...

BRANCO - Roda... Roda... e canta... Canta, Turquinho...

(Rafy começa a cantar uma música

ritmada... Vai cantando... O tambor do

revólver girando).

PRETO - Agora... ocê vai dançá... Dança... Turquinho...

Dança...

BRANCO - Roda... Roda... (Preto fecha o tambor do

revólver. Aponta para os pés de Rafy,

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que pula de pé em pé como se estivesse

desviando de um tiro. Música cantada

por ele funde com música de sonoplastia,

aumentando cada vez mais e Rafy

dançando alucinadamente, à medida que

o pano vai se fechando para o final do

Primeiro Ato).

FIM DO PRIMEIRO ATO

SEGUNDO ATO

Ao abrir o pano, mesmo clima de onde terminou. Música

de sonoplastia funde com som de campainha da rua...

Vai baixando o som... Campainha cada vez mais forte.

Para tudo. Batidas na porta de entrada.

BIA (Voz fora, distante) - Tia Reni... É a Bia... Está me

ouvindo? (Pausa, tensão) Tia Reni... Abre

a porta... O que está acontecendo aí?

Abre a porta... Sou eu... Bia.

(Rapidamente Preto segura a Tia e

encosta o cano do revólver em sua

cabeça).

PRETO (Baixo) - Despache ela... Diz que tá tudo bem e

despache ela.

TIA - Oh... Bia... Você chegou em má hora... Já estou de

camisola.

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BIA - Está tudo bem?

TIA - Está... Está...

BIA - A Oswaldina está aí com você?

TIA - Está... Está.

BIA - Você não precisa de nada?

TIA - Nada... Nada...

BIA - Então eu já vou indo... Diz pra Flora que o

Reinaldo ficou muito triste com o

desencontro. E que estima as melhoras do

Rafynho.

TIA - Digo... Digo...

BIA - Já que você não quer mesmo abrir essa porta, eu

vou embora... Durma bem... Tchau. Bye.

Bye.

TIA - Tchau... Tchau. Bye, bye. (Movimento coletivo).

PRETO - Todo mundo quieto.

TIA - Eu fiz a minha parte direitinho, não fiz?

PRETO - Pega tudo aí, que nóis vai se mandá.

BRANCO - E num vamo acabá o que nóis começô?

PRETO - Pintô gente no pedaço. Vamo se mandá.

MULHER - Graça a Deus.

PRETO - Mas vamo levá ele de refém...

MARIDO - Pra que levá eu?

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BRANCO - Procê continuá a dançá.

PRETO - Amarra as duas na cadeira... Bunda cum

bunda...

TIA (Dando uma de esclerosada) - Deixa que eu

amarro... Eu estou integrada na turma e

tenho que fazer alguma coisa, não tenho?

PRETO (Ríspido) - Amarra as duas. A coroa cum ela.

TIA - Eu me recuso...

BRANCO - Vem tia... Eu num queria te amarrá... Mas

num tem outro jeito.

PRETO - Ocê vai fechando as mala. (Referindo-se à

Empregada. Rafy começa a vestir as

calças) Tu vai é assim...

MARIDO - Assim como?

PRETO - De cuecas. Nóis ainda temo que acertá nossas

conta.

MARIDO - Sem camisa eu num vai. Eu num pode andar

sem camisa...

PRETO - Num reclama... Num me enche o saco... que tu

vai é em pelo...

MARIDO - Pelada? Nunca... Eu num pode... Num pode

tomá vento... Fica resfriada... Mamãe

criou eu assim... Com camisa de baixo...

Num pode tomá vento.

PRETO - Se ocê num pará de falá... Nóis te leva pro

Embu.

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BRANCO - Te mete chumbo no...

MARIDO - Eu vai... Eu vai...

TIA - Não vai... Eu é que vou em seu lugar.

MARIDO - Tá ficando louca, Reni? Eu é que vai.

TIA (Meio esclerosada) - Eu já disse que vou... Não

discuta comigo... Eu sou a matriarca da

família... Sou eu quem decide... Quero

viver a aventura desta noite... Envolta

nas sombras... Vivendo os perigos, numa

corrida louca... Perseguida pelos desígnios

da vida ou da morte... Eu nasci assim...

Vou morrer assim.

MARIDO - Eu é que vai... Lugar de mulher é no casa...

Isso é assunto de homem. Num discute

mais... Acabou. Com camisa ou sem

camisa. Eu é que vai.

MULHER - Deixa ao menos ele vestir uma camisa?

PRETO - Você é que vai, turquinho. Eu quero distância

dessa louca... Veste logo essa camisa e

vem comigo. Vamo dá uma geral na casa.

Ainda tem umas coisinha aí pra levá...

Ocê também vem, pra ajudá carregá...

Amarra as duas... Branco. (Saem para os

quartos, Preto, Rafy e a Empregada.

Pausa).

BRANCO - Coroa... Ocê é um barato... Tava quereno... í

cum a gente?... É uma barra.

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TIA (Virando o jogo para o Branco. Não se sabe se ela

diz a verdade ou não) - Nasci, para viver

perigosamente.

BRANCO - Por mim, eu te levava.

TIA - Como é o seu nome?

BRANCO (Hesitante) - José.

TIA - José? José... Bonito nome... você é muito parecido

com uma pessoa que eu amei... Muito. Os

mesmos olhos... O mesmo cabelo. A mesma

boca.

BRANCO - Ele era legal?

TIA - Muito... Muito legal. Era jovem e forte, assim como

você. Achava que a vida devia ser vivida

intensamente, a cada dia, a cada hora, a

cada minuto.

BRANCO - Que nem eu.

TIA - Detestava dormir... Era tanta energia... Tanta

vontade de viver que só dormia, quando

não agüentava mais...

BRANCO - Que nem eu...

TIA - Tempos maravilhosos, em que estivemos juntos...

Uma só cabeça... Um só corpo... Um só

vida.

MULHER (Enternecida, emocionada) - Eu nunca soube

desse seu amor...

TIA - Ele foi meu... Só meu. Meu grande amor.

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BRANCO - Num existe amor.

TIA - Tudo é amor. As pessoas, os objetos, a alegria, a

dor... Tudo é amor. (Olha fixo para

Branco. Branco, fascinado, olhando-a

com muito amor) Me dá um beijo.

(Branco, lentamente, se aproxima e a

beija como filho, depois como homem,

como gente - beijo na boca) Isso é amor...

(Pausa. Clima bonito. Branco se aninha

no colo de Reni. Telefone toca. Branco

pula. Não sabe o que fazer. Telefone

continua tocando. Preto volta com Rafy e

a Empregada. Ela vem carregada de

roupas, chapéu na cabeça).

PRETO - Dexa tocá...

TIA - Deve ser a Bia... (Preto deixa tocar).

PRETO - Dexa... tocá...

TIA - Eu estou dizendo que deve ser a Bia... Será que ela

desconfiou de alguma coisa?... Posso

atender?

PRETO - Atende... Faz voz de sono... E diz que tá tudo

em orde.

TIA (Atendendo) - Alô... Alô... É Reni. Ah... É você?

PRETO - Quem é?

TIA - Munira... Filhinha deles... Tudo bem, Munira... O

que você quer?

MULHER - Munira... Aconteceu alguma coisa?

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TIA - Não... Tudo bem... Quer falar com você...

MARIDO - Ela pode falar?

PRETO - Fala rápido.

MULHER (Nervosa) - Oh... Meu Deus... Eu não posso.

MARIDO - Fica calma... Eu pode falar ni lugar dela?

PRETO - Acaba cum isso logo de uma veiz...

MARIDO (No telefone) - Alô... filhinha... Papai... é papai,

veio conversar um pouquinho com

mamãe... Está tudo em paz... Está... Está...

Eu num está brigando cum mamãe... Por

que mamãe num fala? Ela vai falar. Vai

dizer alô pra você... (Para Preto) Só vai

dizer alô.

MULHER (Controlando-se) - Alô, filhinha... Está tudo

bem... Papai e mamãe estão conversando

calmamente, sem problemas. O que? Sim...

Sim... Tudo vai terminar bem... se Deus

quiser. Volta amanhã, sim... Outro pra

você. (Desliga. Começa a chorar).

MARIDO - Num chora... Tudo vai acabar bem, eu sei.

PRETO - Vamo pará cum isso... Branco, amarra as muié

e taca esparadrapo nas boca dela.

BRANCO (Olha para a tia, sem saber o que fazer) - Eu

vô amarrá as duas primeiro.

MARIDO - Olha... Num dá pra nóis fazer composição?

Eu promete, não chama a polícia... Eu

num chama. Nós fica aqui quietinho,

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deixa vocês ir embora. Vocês leva tudo e

deixa nós.

PRETO - Tu tá pensando que eu sô otário? É só virá as

costa, qui ocê sai gritando qui nem louco.

MARIDO - Eu jura que num grita.

PRETO - Ocê vai cum nóis... Ainda tem o cartão pra tirá

dinheiro... Quero vê como isso funciona.

Cartão SOS. Vamo vê se ele vem socorrê

nóis.

MARIDO - Está bem... Está bem. Eu vai. Mas num faz

nada com Mulher, está bem? Eu está

vendo que o senhor é um ladrão direito.

Que faz tudo organizado. Eu gosta de

gente organizado.

PRETO - E nóis é mesmo. Tudo organizado. Tem muito

amador aí, que bagunça o coreto. Eu não.

Eu sou um profissional. (Branco terminou

de colar os esparadrapos. Fica olhando

para a Tia) Já acabou? Agora ela.

BRANCO - Ela não.

PRETO - Como não? Tem que amarrá e mordaçá.

BRANCO - Ela não... Ela não.

PRETO - Deixa de sê besta. Tô mandando, amarra, tem

que amarrá.

BRANCO - Ninguém amarra ela.

PRETO - Tô dando uma órde, tem que obedecê. Tá

querendo levá umas porrada, moleque?

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BRANCO - Eu num sô moleque.

PRETO - Amarra.

BRANCO - Num amarro. (Telefone toca).

PRETO - Tô dizendo que nóis temo que se mandá e ocê

fica aí enchendo saco.

TIA - Atendo ou não atendo?

PRETO - Deixa tocá...

TIA - Agora deve ser a Bia.

PRETO - Deixa tocá.

MARIDO - Eu acha melhor atender...

PRETO - Deixa tocá...

TIA - Olha, eu atendo e despisto a Bia... Ela é muito

burra. Se eu não atender ela vai

desconfiar de alguma coisa. Ela é burra,

mas não é tapada... Fofoqueira como

ninguém... Depois...

PRETO - Atende logo de uma veiz... E despacha ela.

TIA - Alô... Alô... Bia... Não, minha querida... Não me

acordou, não... Você sabe que eu não

durmo cedo. Estava vendo televisão. Um

filme chatíssimo... sobre guerra...

PRETO - Despacha logo, saco.

TIA - O quê? Como se chama? É... Are been roubed

(Estamos Sendo Assaltados)... Entendeu?

Desculpe, mas tenho que desligar. Meu

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dia hoje foi muito cansativo... Ah, o autor

é: Help... Help. Boa noite. (Desliga).

PRETO - Que é que tava falando em língua estrangêra?

TIA - O nome de um livro, que ela está querendo

comprar: Are been roubed.

PRETO - Se ocê tá aprontando alguma, vai levá porrada.

BRANCO - Se encostá a mão nela... Vai tê comigo.

PRETO - Ocê num viu que ela dedou nóis? Vai levá

porrada.

BRANCO - Num encosta nela.

PRETO - Qual é garotão? Ficou amarrado na coroa?

Resolveu dá uma de bãozinho?

BRANCO - Ela é minha amiga... Me tratou como gente.

PRETO - E eu vô te tratá do jeito que ocê tá acostumado:

na porrada.

BRANCO - Vem... Vem... Que eu te apago. (Preto avança.

Branco aponta o revólver pra ele, e

segura Rafy como escudo. Preto faz o

mesmo com Reni. Frases soltas).

TIA - Cuidado.

MARIDO - Me solta.

PRETO - Eu te pego.

BRANCO - Eu te apago, criolo.

MULHER - Não atirem... Pelo amor de Deus... Não

atirem...

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EMPREGADA - Ai... Ai... Ai... Ai.

MARIDO - Espera... Espera... Eu dá a solução... Eu tem

solução... Quer ouvir? Ah? Eu amarra Tia

Reni... está bem? Eu amarra Tia Reni...

Você amarra eu... Pronto. Ninguém

briga. Ninguém sai ferido... Está bom?

Daqui a pouco chega gente. Toca telefone.

Ah?... Quando sócio começa a brigar o

melhor é separar. E num precisa levá eu

cum vocês... Só vai atrapalhar... Então?

Pode amarrar ela?

PRETO - Pode... Amarra logo de uma veiz... E vamo se

mandá.

TIA - Por favor, meu rapaz... Eu quero ficar amarrada...

Eu lhe peço. É melhor para todos nós.

BRANCO - Tá bom... Se a senhora pede. Tá bom.

MARIDO - E eu? Eu também fica amarrada, num fica?

Assim vocês têm tempo de fugir e tudo

acaba bem.

PRETO - Vamo amarrá eles e dá no pé. (Em duas

cadeiras separadas são amarrados Reni e

Rafy. Preto termina primeiro e coloca

esparadrapo na boca de Reni) Lá fora

nóis acerta nossa diferença... Vô encostá

o carro aqui perto... Vamo carregá o que

pudé. (Branco também coloca

esparadrapo na boca de Rafy. Volta-se

para a Tia e tira o seu esparadrapo).

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BRANCO - Eu quero dizê... que nunca vô esquecê de

você.

TIA - Cuide-se, meu rapaz. Quem sabe um dia, você

encontre o seu caminho.

BRANCO - Antes de i... eu tinha uma coisa pra pedi.

TIA (Suave e fazendo o jogo das palavras) - Se eu puder

atender... Com muito prazer.

BRANCO (Com um sorriso, quase garoto) - Eu tô cum

desejo... de te dá mais um beijo.

TIA - Com muita alegria... te dou um beijo de tia.

BRANCO - Adeus, tia... Até um dia. (Dá um beijo suave,

que vai ficando mais forte) Adeus, tia...

Até um dia. (Entra Preto. Ação rápida.

Carregam tudo o que podem. Desligam

telefone, enfim tomam todas as

providências nestes casos).

PRETO (Ameaçador) - Se um de ocêis dedá nóis... Um

dia... eu volto aqui. Volto aqui e acabo

cum um... Acabo cum um. (Percebe que a

Tia está sem esparadrapo. Coloca de novo

nela. Ao sair apaga a luz. Silêncio. Surge

Branco devagar e tira o esparadrapo da

boca da Tia. Sorri e sai correndo.

Gemidos coletivos).

TIA - Calma... Calma... Deus queira que a Bia tenha

entendido o meu recado. (Música.

Passagem de tempo. Quase um balé das

cadeiras e seus ocupantes. Grunhidos.

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Gemidos. Deve-se sentir o passar das

horas. Luz voltando com o amanhecer.

Rafy está se libertando de suas amarras).

MARIDO (Exausto) - Consegui... Pronto... Eu consegui...

Eu livra você... Espera... Espera... (Vai

desamarrando Tia e Flora. Empregada

não. Estão exaustos. Tensos. Cada um, de

acordo com seu temperamento, vai

botando pra fora o que sente).

TIA - Graças a Deus. (Mulher levanta, vai falar, olha

tudo e desmaia).

MARIDO - Flora... Que tem você? (A Empregada fica

gemendo, amarrada, enquanto Rafy leva

Flora para o sofá) Num fica assim

Flora... O pior já passou... Que tem ela,

Reni? Está desmaiada?

TIA - Não deve ser nada... Traga um pouco de água... (A

Empregada geme).

MARIDO - Já vai... Eu vai buscar água... Já solta você...

TIA (Chamando) - Flora... Flora... Acorde... (A

Empregada geme).

MARIDO (Voltando) - Pronto... Dá água pra ela... Eu já

solta você... Pronto... Pronto... Já vai ficar

livre...

EMPREGADA (Quando se vê livre, ataca Rafy) - Por

que o senhor fez isso comigo? Eu também

sou gente... Desgraçado... Eu te mato...

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Desgraçado. Desgraçado... Eu sou gente...

Num sou animal.

TIA (Que estava tentando dar água para Flora, levanta

e joga água no rosto da Empregada) -

Toma... Um pouco de água fria, acalma.

(A Empregada com o susto, para de

gritar, olha para um, para outro e vai se

sentando, choramingando baixinho).

MARIDO - Que noite... Que noite... Como é que ela está?

Ainda desmaiada? Flora... Acorda... É

eu... Rafy.

TIA - Vou buscar um pouco de amônia... E uma boa dose

de calmante pra cada um. (Sai em

direção dos quartos).

MARIDO - Flora... Florinha... Num fica assim... Fala

cum eu... Fala. E você aí para de chorar.

(A Empregada chora mais alto)

Florinha... fala cum eu... Eu mandou

parar de chorar... (A Empregada chora

altíssimo) Quer chorar... Vai chorar lá na

cozinha... E vê se chora mais baixo. (A

Empregada sai, chorando cada vez mais

alto, em direção da cozinha) Ai... Deus...

Eu está tonta... e sem calça. Eu ainda está

sem calça... Onde está meu calça? Onde

está? (Encontra, começa a vestir) Roda de

fogo... Nunca mais vai esquecer isso...

Roda de fogo...

TIA - Dá pra ela cheirar...

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MARIDO - Me dá aqui...

TIA - Oswaldina? Onde está a Oswaldina?

MARIDO - Foi chorar lá na cozinha...

TIA (Indo em direção da cozinha e saindo) - Oswaldina,

menina... Me ajude a procurar os

calmantes... Está uma bagunça nos

quartos, não acho nada.

MARIDO - Cheira, Florinha... Cheira... Num acorda... Ai

Deus. Ela num acorda? Precisa chamar

um médico... Num tem telefone...

Levaram carro... Ai, Deus. (Flora

acordando).

MULHER - O que aconteceu?

MARIDO - Acordou... Graças a Deus, acordou.

MULHER (Em sobressalto) - Onde estão eles? Polícia...

Chama a Polícia! Eles não estão mais

aqui? Então? Tia Reni? Eles levaram a

Tia Reni?

MARIDO - Não. Não... Tia Reni está aqui... Fica calma...

Fica calma.

MULHER - Chama a Polícia, Rafy. Chama a Polícia... Eu

estou com medo. Não me deixe sozinha.

Eu não posso ficar sozinha.

MARIDO - Eu está aqui, Flora... Fica calma... Se

controla.

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MULHER - Eu quero me controlar e não consigo... Está

vendo? Meu queixo não para de tremer...

Está vendo? (Riso descontrolado).

MARIDO - Eu também está assim... meio

descontrolada...

MULHER - Me abrace, Rafy... Me abrace forte.

MARIDO - Sim... Sim... Forte... Bem forte.

TIA (Entrando) - Água com açúcar... Só tem água com

açúcar... Eles levaram tudo... até meus

remédios... Pra você... Pra você e pra

mim... Tim-Tim. (Bebem, se olham, olham

para a sala).

MARIDO - Que noite...

MULHER - Uma noite é uma vida.

MARIDO - Que noite.

MULHER - Que noite.

TIA - Que noite... maravilhosa... não acharam?

MARIDO - Eu num se importa com o que perdeu esta

noite.

TIA - Quem perdeu? Vocês ganharam... Não acham que

ganharam?

MULHER - Não sei... Eu ainda não sei.

MARIDO - Eu nem vai chamar Polícia... Polícia, pra

quê?

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TIA - Isso mesmo... Polícia pra quê? Esse é um assunto

doméstico-familiar. Não mete Polícia

nisso... Que tal um licorzinho, hein?

MARIDO -Eu precisa falar pra vocês que depois do que

nós passou esta noite, eu é outro homem.

MULHER - Eu também, nunca mais serei a mesma.

TIA - Tim-Tim. Tim-Tim.

MULHER - Eu ainda estou muito nervosa... Quero me

acalmar e não consigo. Tudo está tão

confuso. É como se eles ainda estivessem

por aqui. Eu não quero mais ficar nesta

casa, Rafy...

TIA - Isso passa... Calma... Toma mais um pouquinho de

água com açúcar.

MULHER - Eu ainda estou vendo aqueles dois ali.

MARIDO - Onde? Onde?

MULHER - Ali... Aqui... Em toda a parte... A casa está

impregnada... Eu sinto até o cheiro deles.

Que sensação horrível... Eu pensei que

fosse morrer.

MARIDO - Eu também... Quando eles estavam aqui... é

como se eu estava sendo julgado... e

condenado pra morrer.

TIA - Que exagero...

MARIDO -Meu vida passou inteira no meu cabeça... Aí,

eu vi que a vida num vale nada. Que

tudo pode acabar de uma hora pra outra.

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Que entra ladrão, no seu casa... E muda

tudo... O que é seu... Num é mais seu...

Nem casa, nem mulher, nada... Nada... É

como um revolução.

MULHER - Revolução?

MARIDO - Isto mesmo... Revolução. Onde ninguém tem

mais direito... O direito é de quem tem

arma... Quem manda é quem tem

revólver. É quem tem poder. Ganha quem

é mais forte... Quem tem a arma...

TIA - Nem sempre, Rafy. Nem sempre.

MULHER - Eu preciso fazer alguma coisa, senão eu vou

explodir...

TIA - Quebra esse copo.

MULHER (Atirando o copo no chão) - Que raiva... O

culpado de tudo é você.

MARIDO - Eu?

MULHER - Você sim... Ditador... Fascista... Quem

sempre usou revólver nesta casa, foi

você... Você nunca passou de um ditador

doméstico. De um machista... De um

torturador.

TIA - Agora você também está exagerando.

MARIDO - Deixa ela falar... Que mais? Pode falar... Eu

deixa.

MULHER - Ditador... Unha de fome... Egoísta...

(Enfraquecendo) Machista... Jogador...

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Comedor de alho... kibe... tabule... Eu

detesto comida árabe. Como é que fui me

casar com você? Seu... Seu... Barrigudo...

Peludo... Macaco... Isso que você é... Um

macaco.

MARIDO - Acabou? Está mais calma?

MULHER - Ditador.

TIA - Flora, você não acha que, agora, a gente pode ir

consertando o que se estragou?

MARIDO - Não... Não é consertando... É mudando...

Mudando. Depois desta noite eu mudou...

Não está vendo que eu mudou?

MULHER - Será?

MARIDO - E você também tem que mudar.

MULHER - Eu?

MARIDO - Você, sim... Num percebe que houve um

revolução na casa? Que a partir de hoje,

de agora, eu vai renunciar? Eu num quer

mais ser ditador de nada... Isso que eu

aprendeu esta noite...

TIA - Bravos... Rafy.

MARIDO - Agora, nós vai viver numa democracia... De

hoje em diante, nesta casa, cada um vai

fazer o que acha que deve fazer. A

democracia começa é dentro da casa da

gente. Isso eu aprendeu... A democracia

começa é na casa.

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TIA - Viva a democracia familiar.

MARIDO - Eu está falando coisa séria... Eu, nesta casa,

era quem? O poder. O ditador. Você era

quem? A oposição... Nóis dois briga...

Briga... E você põe pano quente... e num

resolve nada. Quinze anos, nóis viveu

assim... Agora chega. Acabou. (A

Empregada entrando com malinha na

mão).

EMPREGADA - Eu vim avisá que tô indo embora.

TIA - Pra onde?

EMPREGADA - Pra casa da minha tia.

TIA - A esta hora? Deixa de bobagem, menina... Leva as

suas coisas de volta... Amanhã você está

mais calma e nós conversamos.

EMPREGADA - Não senhora... Eu quero saí.

TIA - Bobagem, menina... Logo agora, que vamos

começar a viver numa democracia?

MARIDO - Isso mesmo, Oswaldina... Eu pédi. Fica, está

bem? Flora, pega a mala dela... Ela vai

ficar...

MULHER - Se ela quiser ficar.

MARIDO - Como se ela quiser? Eu estou mandando ela

ficar... Ela fica.

MULHER - Se ela quiser ficar...

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MARIDO - Ah... Sim. Se ela quiser ficar... Eu ainda não

estou acostumado... Eu pédi. Ah? Vai lá

dentro, prepara um cafezinho, que nóis

vai começar vida nova.

MULHER - Vida nova.

EMPREGADA - É verdade mesmo, Dona Reni?

TIA - Não está vendo?... Fica... Vamos fazer mais uma

experiência.

EMPREGADA - O senhor também vai ficar?

MARIDO - Eu?... Não sei... não depende de mim...

EMPREGADA - Fica, Dona Flora?

MULHER - Não sei, não depende só de mim.

TIA - Que tal se fizéssemos uma experiência... gradual?

Anistia também deve começar pela casa,

vocês não acham?

MARIDO - Eu acha.

TIA - Então?

EMPREGADA - Se é assim, eu fico.

TIA - Rafy?

MARIDO - Eu fica.

TIA - Flora?

MULHER - Se ele quiser ficar...

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TIA - Unanimidade de votos... Ficamos todos. Agora vai

preparar um cafezinho, pra todos nós...

Vai... Vai... (Empregada sai).

MARIDO - Agora que eu estou pensando melhor. Vocês

num acha que eu devia chamar a

Polícia?

MULHER - Polícia?

TIA - Não, amanhã a gente fala sobre isso... (Espanto)

Bia!

MULHER - O que tem a Bia?

TIA - Será que ela não entendeu o meu recado? Eu fui

bem clara, não? Are been roubed...

Estamos sendo assaltados... Help... Help...

Ela é meio burrinha, não?

MULHER - Vai ver ela interpretou de outra forma.

MARIDO (Ciuminho) - Pensou que era recado do Dr.

Reinaldo?

TIA - Olha a anistia, Rafy.

MARIDO - Desculpa... Eu ainda num está acostumada...

MULHER - Rafy... Eu estou com a minha cabeça

estourando... Procura nas suas

homeopatias e vê se tem alguma coisa

pra dor de cabeça.

MARIDO - Tem... Tem... Tem homeopatia que é ótima

pra enxaqueca... Eu vai buscar pra

você... (Sai).

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MULHER - Posso te perguntar uma coisa?

TIA - O que?

MULHER - Por que beijou aquele rapaz?

TIA - Por quê? Por amor.

MULHER - Eu não consigo entender...

TIA - Nem pode.

MULHER - Ele é parecido com outra pessoa que você

amou?

TIA - Todos os jovens são parecidos.

MULHER - Mas ele existiu, não existiu?

TIA - Aqui dentro, existiu. (Sirene de Polícia. Vozerio.

Batidas na porta).

VOZ (Fora) - É a Polícia... A casa está cercada... Saia de

mãos pra cima...

VOZ DE BIA - A Polícia está aqui...

VOZ 2 - É a Polícia... Se resisti nóis atira...

MARIDO (Vindo, apavorado) - Num atira... Num

atira... (Todos apavorados. Clima de

assalto. Todos falando ao mesmo tempo).

TODOS - Não atirem. Não atirem... (Em meio à confusão,

a casa é assaltada, nos mesmos moldes do

assalto dos ladrões com os mesmos atores,

que, representaram os papéis de Branco e

Preto, agora vestidos de policiais).

FIM