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PrólogoUMA SEMANA ANTES

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Há duas luzes acesas, uma no seu próprio escritório, que fica no último andar da casa, e a outra no segundo andar, na suíte da ama da sua filha.

Claudia, a mulher que trouxe há dez anos da Roménia para tomar conta da filha, pode estar acordada às quatro horas da ma‑drugada desde que pelo menos às sete e meia esteja pronta a de‑sempenhar as suas funções. Mas a única pessoa que pode acender as luzes no seu escritório é ele, Mircea Drekke. E Mircea Drekke encontra‑se no lado de fora, na estrada que atravessa a sua pro‑priedade e que conduz à sua própria casa, ao lado do seu motoris‑ta, no carro que os trouxe de um negócio insatisfatório em Lisboa.

Portanto, há um intruso no escritório, e o facto de a única jane‑la com outra luz acesa ser a da suíte de Claudia sugere que a ama da filha pode ser essa pessoa.

— Vai mais devagar, Alex — diz Drekke ao motorista. A voz pa‑rece ter a mesma tranquilidade de sempre e o corpo nem se mexe, mas Alex vê‑lhe a cólera a despontar nos gestos contidos. — Apaga as luzes — ordena, retirando a Walther do esconderijo sob o ban‑co do passageiro.

Alex desliga os faróis do carro. A casa destaca‑se melhor na es‑curidão da noite. As luzes baças da iluminação pública da estra‑da principal e das instalações pecuárias, à esquerda, não chegam à casa. O pinhal muito denso e as vinhas quase nem se veem. Os

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focos de luz que delimitam o perímetro em torno da casa ilumi‑nam o exterior mas não o edifício. Foram concebidos para que da casa se possa ver quem se aproxima e não para que a casa seja vis‑ta por quem se aproxime.

O carro para no fim da estrada, a cerca de trinta metros dos fo‑cos de luz, e Alex desliga o motor. Drekke sai do carro e observa a casa. Alex faz o mesmo.

— Há alguém no escritório, senhor Drekke?As luzes continuam acesas nas duas divisões. Os dois guardas,

que têm os aposentos no rés do chão, não se aperceberam dos movi‑mentos nos andares de cima ou não os consideraram significativos.

Drekke não os censurará por isso. Toda a gente pensa que o pe‑rigo vem de fora e ele costuma monitorizar regularmente os com‑portamentos dos seus empregados, depois de os contratar. Claudia, a ama, foi sempre considerada limpa nas avaliações de risco que lhe foram feitas e a sua lealdade nunca teve de ser posta à prova em situações no exterior.

— Há um intruso — responde Drekke. — E pode ser a Claudia.Silencia a preocupação que sente quanto à segurança da filha

e pega no telemóvel. Depois acorda Bogdan, o guarda mais velho, conta‑lhe o que se passa e diz‑lhe para se aprontarem sem fazerem barulho e para controlarem as portas da frente e das traseiras. De‑pois volta‑se para Alex.

— Deixamos aqui o carro. Entras pelas traseiras e eu pela frente. Eu sigo para o escritório e tu para o quarto da Claudia. O Bogdan e o Lionel servem de apoio. Sem tiros. Sem perturbações. Cabe‑te assegurar a segurança da minha filha. Vamos!

Os dois homens atravessam rapidamente o terreno em redor da casa, empunhando as armas. Alex é o operacional em quem Drekke mais confia. Alto e magro, foi segurança e antes disso militar, está em excelente forma física e já demonstrou o seu valor numa situação de confronto. Drekke nunca se esqueceu da formação militar que teve e nunca deixou de se manter em forma. Com cinquenta anos, conse‑gue rivalizar em muitas coisas com o seu motorista e guarda‑costas.

Bogdan, o homem que o acompanha há mais tempo, abre‑lhe a porta da frente. É de origem cigana e um combatente feroz. Em‑

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punha uma pequena pistola‑metralhadora. Já trancou o elevador e vão utilizar as escadas. Alex acaba de entrar pela porta ao lado da cozinha e prepara‑se para subir as escadas das traseiras com o outro guarda português, Lionel.

Os passos dos quatro homens, apressados mas cuidadosos, mal se ouvem nos degraus. Mas, apesar de todos os cuidados, o som chega ao último andar.

Drekke ouve as vozes — um homem e uma mulher — e depois os seus movimentos agitados, quando chegam ao corredor do se‑gundo andar. Alex é despachado para a porta do quarto da filha e Lionel fica junto às escadas enquanto o dono da casa sobe as esca‑das, seguido por Bogdan.

A porta do escritório ainda se encontra aberta e o homem e a mulher parecem paralisados ao verem‑no: Claudia, a ama, e um empregado recente da quinta, que se apresentou como sendo por‑tuguês e com o nome de Chico, mas de cujo sotaque Drekke sem‑pre desconfiou.

Claudia não tem, e nunca teve, movimentos rápidos. Engordou nos dez anos em que tem estado ao seu serviço e gosta mais de obedecer do que de tomar a iniciativa. Fica imóvel, lívida, quase transparente na sua camisa de noite cor‑de‑rosa. Nem um robe vestiu para o trair.

Chico é mais decidido e revela um desembaraço profissional: carrega contra Drekke, esmurrando‑o no queixo e desviando‑lhe a mão que empunha a pistola, para depois empurrar Bogdan, a quem a pistola‑metralhadora não serve para nada no espaço apertado da escada, descendo a correr para o segundo andar enquanto Lionel hesita, apontando‑lhe a pistola para depois lhe bloquear a passagem.

Mas Chico furta‑se ao seu avanço e não desce as escadas para o piso térreo, correndo para a janela que — só agora o veem — ficou aberta no corredor do segundo andar. E é por aí que se atira, em‑batendo no chão com um ruído abafado e com um gemido, sem se levantar logo.

— Alex! — grita Drekke, empurrando Claudia para os braços de Bogdan. — Imobiliza‑o! Um só tiro!

Chico põe‑se em pé com dificuldade, a coxear. Fica parado por instantes, bem iluminado pelas luzes do perímetro. Alex faz ponta‑

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ria e dispara. O outro homem cai, com um grito. Tenta levantar‑se mas já não consegue. Mexe‑se, ainda. Mas não conseguirá ir longe.

Drekke regressa ao escritório, olhando de relance para Clau‑dia, que ficou imóvel no momento em que Bogdan lhe encostou à cara o cano da metralhadora, e detendo‑se à porta, apreensivo com o que irá ver.

Dois armários que não costumam estar fechados à chave fica‑ram abertos. Os papéis que contêm são pouco importantes. O co‑fre de parede mantém‑se fechado. E o computador está ligado. Foi nele que se concentraram os dois intrusos.

Um deles enviara um e‑mail meia hora antes, diretamente da sua conta de correio eletrónico, contendo duas coisas preocupan‑tes. Uma é a password de Drekke, que este não altera há anos, e que um deles, possivelmente Claudia, conseguira obter. Uma parte significativa da sua vida encontra‑se nessa caixa de correio. Vai ter de alterar a password e esvaziar todo o seu conteúdo. A meia hora que passou deve ter sido suficiente para alguns dos seus segredos aí guardados terem deixado de ser segredos. A outra é a fotogra‑fia de uma mulher que parece o Homem Vitruviano e que nunca devia ter sido tirada.

O pior, apesar de tudo, talvez nem seja isso. Será antes a iden‑tidade de quem recebeu o e‑mail.

Do lado de fora chegam‑lhe o choro de Claudia, a voz ríspida de Bogdan que a manda calar‑se e o grito de alerta de Alex.

Drekke sai rapidamente, fechando a porta do escritório.— Levem‑na e ao Chico para o sepulcro — diz a Bogdan. — Já

lá vou ter.Alex espera‑o no patamar do segundo andar, à porta do quarto

da filha, que olha para ele com olhos ainda estremunhados. Deve ter acordado nesse instante.

— Pai — diz a rapariga, com um sorriso a iluminar‑lhe os olhos cla‑ros muito abertos. — O que se passa? — O português dela é perfeito.

— Nada, nada — diz Drekke. Dá‑lhe um beijo nos cabelos lou‑ros e encaminha‑a para o quarto, afagando‑a e fechando a porta atrás de si. — Fui eu que cheguei mais cedo. Volta para a cama. Está tudo bem, Flor.

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01(QUINTA‑FEIrA)

«A sombra de Lenine acompanha‑nos!É sem dúvida um bom presságio!»

Sorin Popescu

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Gabriel Ponte vai à varanda que dá para a parte da frente da casa e de onde vê o portão, que se mantém fechado como habitualmen‑te. O pequeno jipe ficou estacionado no pátio de entrada, no lado direito. Estará lá debaixo? Nunca aconteceu. Vai depois à varanda que dá para a parte de trás da casa, e de onde vê o mar e a Lagoa de Óbidos e o rochedo imponente a que chamam Gronho, e examina o terreno — o caminho empedrado até ao jardim, a zona de relva em torno da piscina, a piscina, os arbustos ao fundo. O muro deli‑mita o conjunto das traseiras e não, também não a vê aí.

— Luisinha! — grita.Mas não tem resposta.— Luisinha! — chama, de novo, convicto de que até os verane‑

antes que enchem a praia da Foz do Arelho, lá em baixo, o conse‑guirão ouvir. O muro veda por completo o terreno e isola a casa, e foi pensado assim para evitar que os filhos, ainda muito novos, pudessem ter a tentação de se aventurarem no exterior. Não tem nenhuma abertura por onde ela se possa ter esgueirado mas tem zonas de arbustos mais densos.

Gabriel volta para dentro de casa. Desce mais uma vez ao piso tér‑reo, procura novamente no átrio e na cozinha, por debaixo das esca‑das, na casa de banho, vai espreitar debaixo do jipe e volta a subir ao

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primeiro andar. Antes de ir inspecionar outra vez o quarto dele, os outros dois quartos e a casa de banho, detém‑se na sala a olhar para o pequeno objeto castanho na carpete que ocupa o centro da sala. Mais um «descuido» da jovem Luisinha na sua caminhada difícil para a compreensão do que é viver em sociedade com um ser humano. Tem de apanhar a porcaria, claro, mas também tem de encontrá‑la.

A Luisinha escondeu‑se, decerto por saber o que a esperaria — ser levada até ao local da asneira e apanhar uma palmada no rabo. Ou duas, dependendo da consistência da matéria e do grau de difi‑culdade que ele sentir ao limpá‑la. Se se escondeu é porque já sabe que fez asneira. Gabriel garante a si próprio que já é um progresso. Depois vai à casa de banho buscar papel higiénico e, quando sai, ao olhar distraidamente para o quarto, avista‑a. A pequena cade‑la foi deitar‑se na cama dele, onde se habituou a dormir durante a noite, enrolada sobre si própria, e observa‑o de olhos entreaber‑tos com as orelhas compridas caídas para os dois lados da cabeça.

Totalmente preta, de um preto reluzente, a Luisinha até se con‑funde com as sombras da casa e quase não faz barulho ao andar. Pode ter passado por ele para se ir refugiar no local que talvez con‑sidere ser o mais seguro, e Gabriel nem reparou. A cauda pequena abana ligeiramente, como se lhe enviasse uma mensagem de paz. Ou um pedido de desculpas.

Gabriel respira fundo, controla‑se, substitui a irritação pelo alí‑vio de a encontrar, e fica a olhar para ela. Talvez embevecido, sen‑tindo‑se um anjo protetor com a missão de a salvaguardar de todas as coisas más do mundo. É um sentimento que só se permite ter quando está sozinho com ela, o que ainda continua a acontecer na maior parte do tempo.

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Mircea Drekke dá por terminada a fase do mais recente proces‑so de reorganizacao da sua vida. Durante uma semana examinara todas as ligações online, falara várias vezes com os seus interlo‑cutores, obrigara os seus homens a um trabalho exaustivo nas pocilgas e nas cocheiras e fizera obras, que andara a adiar tempo

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demais. Há coisas que ainda podem ser descobertas mas há ou‑tras que nunca o serão.

São onze horas da manhã. Em Bucareste são treze. O dia ficou mais quente. As coisas estão em marcha.

Levanta‑se da secretária e, à janela do escritório voltada a norte, passa mentalmente em revista todos os seus passos. Não lhe pare‑ce que tenha falhado alguma coisa. Mas errar é humano e ele sou‑be sempre, felizmente, corrigir os erros cometidos. Um dos seus mentores disse‑lhe uma vez que errar é humano mas que insistir no erro já é obra do Diabo. Nessa altura, Drekke ainda acreditava num Deus e num Diabo capazes de interferir nas vidas humanas. No que agora acredita é na capacidade que tem de ser ele próprio a interferir nas vidas humanas e sempre de acordo com os seus propósitos e para cumprimento dos seus objetivos.

Ao longe vê o carro a aproximar‑se. Alex foi buscar o advogado e chega precisamente à hora marcada.

Drekke tira do cofre um envelope com dinheiro e depois desce. A casa está fresca e sossegada. Flor foi para a escola e só voltará ao final da tarde. Dentro de duas semanas entra de férias e os dois, pai e filha, irão fazer a habitual viagem pelo estrangeiro que fazem todos os anos no verão.

A conversa com o advogado, na pequena sala de reuniões do rés‑do‑chão, é rápida. Por vontade do seu visitante seria mais prolon‑gada mas Drekke não o acha necessário. Ainda assim, oferece‑lhe um café. Fica tudo combinado e, agora, quanto menos falarem melhor. Já lhe terá dado confiança demais ao trazê‑lo a sua casa mas era necessá‑rio mostrar‑lhe quem tem o poder e a glória que o poder proporciona.

Despede‑se do visitante com um aperto de mão e um sorriso cortês. Alex transporta‑o de regresso à cidade. Alex passará a ser o mensageiro de Drekke e a sombra que vai sempre recordar ao ad‑vogado quem é que manda.

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O homem e a mulher parecem turistas normais. Ele, mais ve‑lho, tem o cabelo todo grisalho e um ar alegre e descontraído e ela

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mantém o cabelo louro preso numa boina que pôs antes de saírem do avião. Tem movimentos ágeis, quase felinos. Os rostos de am‑bos mostram um tom bronzeado de quem foi várias vezes à praia recentemente. Conversam animadamente enquanto passam pelo controlo reservado aos passageiros dos outros países da União Eu‑ropeia mas os olhos nunca descansam, saltando de um lado para o outro, sempre vigilantes.

Na zona de recolha das bagagens, ficam de costas para a pare‑de a examinar as pessoas que os rodeiam, a seguirem os seus mo‑vimentos, enquanto as malas e os sacos de viagem deslizam pelas passadeiras à espera dos seus proprietários.

Os dois recém‑chegados trazem apenas uma mala, como se fossem um casal normal, e cada um deles um pequeno saco de viagem como bagagem de mão. A mala fica para o fim de toda a bagagem despejada do avião em que chegaram. Fazem de conta que a conversa que mantêm é tão animada que nem se lembram dela. Quando a vão buscar, perscrutam novamente os rostos, o ves‑tuário e as atitudes das pessoas que os rodeiam.

Saem com a mala num carrinho. A bagagem não é pesada mas o carrinho permite‑lhes andar mais devagar, para observarem me‑lhor o ambiente e as pessoas, e serve também de barreira proteto‑ra se houver algum problema.

O grande salão do aeroporto está cheio de gente. Mais perto da saída dos passageiros encontram‑se algumas pessoas com pa‑péis com nomes. Uma dessas pessoas é um homem gordo, de meia‑idade e rosto suado, com uma gravata pendurada do colari‑nho desapertado e de casaco dobrado no braço. A camisa é bege ou já foi branca. O papel que segura tem apenas a palavra Lupei, escrita em maiúsculas. É para ele que o homem e a mulher se encaminham. O homem do papel fita‑os e pisca os olhos. Não houve troca de fotografias no contacto que estabeleceram mas só podem ser eles.

— Mr. Lupei? — pergunta o homem, guardando o papel. — I am Valdemar. — Estende a mão direita para o homem, num ges‑to nervoso.

É a mulher que lhe aperta a mão, com um ligeiro sorriso.

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— Eu sou Lupei — diz, num português quase perfeito e com uma sonoridade vagamente brasileira. — Liliana Lupei. Este é o se‑nhor Sorin Popescu. O senhor Popescu não fala português, embora perceba um pouco a língua — acrescenta, olhando depois para o seu companheiro de viagem. — Mr. Popescu does not speak Por‑tuguese, although he understands a little.

Valdemar arqueia as sobrancelhas e aperta a mão do homem, apressando‑se a sorrir‑lhe.

— Doutor José Valdemar — diz o português. — At your service. O carro aguarda‑nos, senhora Lupei — acrescenta.

A mulher diz qualquer coisa, em romeno, ao seu companhei‑ro, e depois volta‑se para Valdemar, olhando‑o de alto a baixo, an‑tes de replicar:

— Vamos, então.Enquanto se dirigem para o estacionamento, Liliana Lupei per‑

gunta‑lhe:— Você é mesmo advogado?— Sim, nas Caldas da Rainha. Eu enviei a minha documenta‑

ção ao senhor Lupei… Não… ao senhor Popescu, não é? Desculpe. — Valdemar hesita. — Como tratei de tudo com ele e o nome que ficou foi o seu…

Liliana abana a cabeça.— Não tem importância — replica. — Somos ambos cidadãos

livres da Roménia mas o nome Popescu desperta muitas atenções, como ele lhe explicou. — Valdemar, no entanto, não se lembra de nenhuma dessas explicações. — Eu tenho menos fãs.

Valdemar olha para as mãos dela e depois para Popescu. A mu‑lher tem um anel de ouro, com uma pedra preciosa, no dedo ane‑lar da mão direita e mais nenhum ornamento.

— Não, não somos casados, senhor Valdemar, se é essa a sua dúvida. Somos apenas parceiros neste assunto que nos trouxe cá.

— Está bem, está bem. — Valdemar, corado, até acelera o passo. Liliana diz qualquer coisa a Popescu e o homem ri‑se.

— Como ficou combinado, seguimos já para o nosso destino — diz o advogado. — O carro é aquele. Aluguei‑o de acordo com as suas especificações. Não ficou barato…

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— Quando chegarmos ao hotel, faremos a segunda transferên‑cia bancária que combinámos, relativa às suas despesas com a nos‑sa chegada — assegura Liliana.

O carro que os aguarda é um SUV grande, azul‑escuro.— Também contratei um motorista, de acordo com as suas in‑

dicações.»Garantiram‑me que é a pessoa indicada para o serviço e ficará

convosco durante toda a vossa estadia.A porta do lado do motorista abre‑se e do interior sai um ho‑

mem alto e de ombros largos. Veste inteiramente de preto, com um casaco de linhas muito simples sobre uma t‑shirt.

Os dois viajantes observam‑lhe a figura e os movimentos e de‑pois entreolham‑se. É uma sombra vagamente ameaçadora, de poucos movimentos.

— Também terá funções de segurança, como pediram — diz Valdemar, limpando o rosto suado com o lenço. — Só ontem é que tive a confirmação e não consegui obter um… um currículo, para vos enviar.

O homem destaca‑se do carro e aproxima‑se deles. Os olhos são verdes e o rosto é feito de linhas direitas que terminam num queixo quadrado. Tem uma pequena malha de cicatrizes junto ao olho direito.

— É russo — acrescenta Valdemar—, mas vive em Portugal há vários anos.

Liliana murmura algumas palavras a Popescu, que olha para o motorista.

— Russo, hã? — pergunta‑lhe diretamente Popescu, já em russo.— De Moscovo — responde o homem, também em russo, cur‑

vando muito ligeiramente a cabeça.— E trabalhou em quê?— Fui soldado — responde o homem, com um encolher de

ombros.— Como se chama? — Popescu franze o sobrolho.— Ulianov.Popescu e Liliana entreolham‑se. Um motorista e guarda‑costas

moscovita com o nome de família de Lenine, o fundador do Estado soviético, é pelo menos uma curiosidade.

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— A sombra de Lenine acompanha‑nos! — exclama Popescu, em romeno. — É sem dúvida um bom presságio! — E ri‑se, acom‑panhado por Liliana. — Let’s go, Mr. Valdemar!

O russo estende as duas mãos enormes e pega na mala e depois nos dois sacos de viagem.

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O portão abre‑se lentamente e Gabriel entra também devagar, parando o pequeno jipe mesmo à porta de casa. Desliga o motor e ouve os latidos. Talvez de medo, de irritação ou de angústia. Ou de protesto. Abre a porta e Luisinha sai disparada, ficando parada no pátio, a olhar para o jipe e para ele, de boca aberta e língua de fora, a abanar a causa. Esperava‑o e não queria estar sozinha. Nin‑guém quer, claro. Gabriel examina a cozinha — e limpa a pequena poça amarelada, insultando repetidamente a cadela em voz baixa — depois sai e, mesmo antes de descarregar as compras do su‑permercado, dirige‑se à Luisinha. Sente‑se irritado, mas a irritação pouco tempo dura, quando a encara. Luisinha olha‑o diretamente nos olhos. Já leu que todos os cães conseguem reproduzir essa ca‑pacidade que parecia ser humana.

Quando ela o fita dessa maneira, Gabriel tem dificuldade em repreendê‑la. Talvez pela limpidez do olhar, talvez pela recordação da morte da Filó (que ele se censura sempre por não ter consegui‑do impedir), talvez pela impressão que ainda lhe causa o que sou‑be da infância do pequeno animal.

Disseram‑lhe que fazia parte de uma ninhada abandonada que ti‑vera a sorte de ser recolhida por uma família com bons sentimentos e muito espaço. Segundo a informação da veterinária, é de raça cocker e as suas caraterísticas incluem um temperamento muito animado, uma grande sociabilidade e feições muito harmoniosas. De momen‑to, ainda não o são por completo porque o focinho parece grande de‑mais e a Luisinha, em certas posições, tem de inclinar um pouco a cabeça para baixo como se tentasse evitar o obstáculo visual do nariz.

Filó, uma cadela de maiores dimensões que devia ser arraçada de labrador, aparecera‑lhe uma vez ao portão, e Gabriel acolhera‑a e de‑

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ra‑lhe o nome de uma pessoa que nunca mais pensara voltar a encon‑trar. À sua nova companheira dera o nome de uma prima com quem brincara muitas vezes em criança e que morrera prematuramente.

A Luisinha da sua infância nunca iria protestar por ter servido para batizar a nova Luisinha. É uma homenagem, em certa medida.

Depois de lhe fazer festas, leva as compras para dentro e come‑ça a arrumá‑las. Há mais de oito anos que não fazia compras para tanta gente. Quando ele e Patrícia ainda estavam casados, iam em regra os dois ao supermercado fazer as compras da casa. Mas de‑pois o casamento chegara ao fim e a solidão da sua vida de inspe‑tor da Polícia Judiciária reformado (por invalidez) nunca voltou a exigir‑lhe uma tarefa dessa magnitude.

Até este momento, quando alguns telefonemas aleatoriamente feitos o empurraram para o que há de ter sido uma das decisões mais difíceis da sua vida: convidar sete pessoas para um almoço em sua casa — Patrícia, a sua ex‑mulher, e o novo marido dela (Ni‑colau); os filhos que teve com Patrícia (Diogo e Vasco); a filha de Nicolau (Rosa); Filomena (a mulher por quem se apaixonara e que o levara a afastar‑se de Patrícia) e o seu filho Tiago. Já recebera Fi‑lomena e Tiago. E Diogo e Vasco também. Mas todos ao mesmo tempo é que ainda não.

A ideia foi aceite pelas várias partes com diferentes graus de entusiasmo e Gabriel começou a encarar a sua tarefa como peni‑tência em sinal de arrependimento dos seus pecados.

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— Estou de férias! Ou seja, não estou. Mas olha que é como me sinto! — E Patrícia deixa‑se cair no sofá, num movimento vagaroso quase em câmara lenta, amparando a barriga de oito meses com uma mão enquanto atenua a descida com a outra.

Nicolau tinha‑a apanhado na Polícia Judiciária para irem depois buscar os três filhos ao colégio, chegando a casa num ambiente de certo modo festivo.

A gravidez não é de risco mas Patrícia, Nicolau (que é médico) e a ginecologista haviam concluído que seria melhor ela ficar já

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em casa. Depois de meses extenuantes, Patrícia fora até a primei‑ra a sugeri‑lo.

Durante os próximos meses não haverá mais crimes na vida dela, nem mais investigações. É uma pausa merecida, depois de ter atingido um novo estatuto com a demissão do anterior dire‑tor nacional da PJ, por envolvimento numa associação criminosa.

— E suponho que não te apetece fazer o jantar, pois não? — pergunta Nicolau, pragmático, ainda à porta da sala.

Não, pensa Patrícia. Mas Nicolau tem sido o cozinheiro de tur‑no nos últimos meses. E há que compensá‑lo.

— Não, hoje trato eu disso — responde Patrícia, com um sus‑piro. — Daqui a cinco minutos avanço.

— O cozinheiro agradece a folga! — exclama Nicolau.Patrícia fica sozinha na sala. Faltam dois dias para o almoço para

o qual Gabriel os convidou e a vontade de ir é cada vez mais ténue. O ex‑marido já mantém um contacto regular com os dois filhos, apesar da distância de cem quilómetros que os separa, e Diogo e Vasco até já foram passar um fim de semana a casa dele, na Foz do Arelho. Mas uma coisa é irem os filhos e outra é irem também ela, Nicolau e Rosa.

Patrícia nunca se livrou por inteiro dos ciúmes que sente re‑lativamente a Filomena e acredita que Nicolau e Gabriel também devem sentir ciúmes entre si, e por causa dela. Nicolau já lhe dis‑se que não tem. É natural, pensa Patrícia, porque ele é que ganhou o prémio — ela. Quanto a Gabriel, o culpado da separação, deve ter um peso demasiado grande na consciência para dizer o que quer que seja sobre o assunto.

A presença de Filomena sugere que ela e Gabriel voltaram a dar‑se, o que também pode contribuir para equilibrar as coisas, mas Patrícia ainda não se sente à vontade na presença da jornalis‑ta. E menos à vontade se sente para o dizer. Não quer dar parte de fraca. Uma pessoa como ela nunca o pode fazer.

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Seguindo sempre as indicações de José Valdemar, o motorista leva Sorin Popescu e Liliana Lupei pela estrada interior que con‑

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duz ao local que lhes mostrou num mapa. Mas da estrada veem apenas o caminho não asfaltado que desaparece por detrás de uma cortina de pinheiros. É suficientemente largo para nele caberem camiões mas não é por isso que não avançam. Por enquanto estão só a fazer o reconhecimento do terreno.

O SUV fica parado por alguns minutos na berma da estrada e os dois viajantes conversam em voz baixa na sua língua natal. O motorista só se mexe para retirar uma pequena garrafa de água do compartimento frigorífico entre os dois assentos da frente e levá‑la à boca.

Os óculos escuros não deixam José Valdemar ver‑lhe os olhos. O advogado falara só com ele por telefone, num primeiro contacto, e os pormenores do custo do serviço haviam sido ajustados poste‑riormente por e‑mail: cinco dias para andar a transportar o casal e o compromisso de garantir a sua segurança no caso de serem alvo de qualquer tentativa de assalto. O colega que lhe indicara o russo garantira‑lhe que ele era mais do que capaz para o serviço e com‑pletamente discreto.

E tem sido. Apesar da sua altura e da dimensão quase assusta‑dora do tronco, dos braços e da cabeça, Ulianov parece nem existir. Só fala, num português pausado e rigoroso, para pedir instruções sobre o que vai fazer. Sendo ele próprio um homem discreto e pouco exuberante, fora das salas de tribunal e das conversas com os seus clientes, Valdemar gosta da frase «O calado é o melhor», e também prefere sempre os homens de poucas falas.

— Senhor Valdemar — diz‑lhe Liliana, do banco de trás. — Po‑demos passar à fase seguinte.Valdemar acena afirmativamente com a cabeça e transmite as indicações ao motorista. Já passaram o dia em viagem, de Lisboa para Caldas da Rainha e depois no interior do concelho, e sente‑se cansado, a precisar de uma bebida fresca.

Ulianov faz inversão de marcha e percorre de novo a mesma estrada, sem pressas, numa velocidade de passeio, por entre zonas de pinheiros e de eucaliptos até chegar a um cruzamento com uma igreja. Viajam mais dois ou três quilómetros até a uma via rápida e sobem em direção ao oceano Atlântico para voltar à esquerda, se‑guir ao longo da costa e da parte norte da praia da Foz do Arelho e

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Morte nas Trevas

voltar à esquerda, sempre a subir, até avistarem um portão. É onde Valdemar o manda parar o SUV.

Por cima do portão avistam uma varanda e o telhado da casa. As traseiras dão para uma encosta onde se encontram outras ca‑sas e que desce em direção à praia. Sobem mais um pouco e veem melhor a varanda da frente e, ao fundo, parte da extensão da Lagoa de Óbidos e um rochedo feio e sombrio. Mas não veem ninguém.

— É aqui que ele mora — diz Valdemar, abrindo a janela e vol‑tando‑se para os dois viajantes. Ao fundo ouve‑se um cão a ladrar, com um som esganiçado. — Não sei é se está em casa. Querem ir bater‑lhe à porta?

Sorin Popescu diz qualquer coisa em romeno, que Liliana es‑cuta atentamente antes de perguntar a Valdemar:

— Já falou com ele?— Não, senhora Lupei. Foi tudo muito em cima da hora.— O que é que o faz pensar que ele nos ajudará?— Ele foi inspetor da polícia criminal, da Polícia Judiciária. Era

um dos melhores. Reformou‑se por qualquer problema interno. Tem pouco que fazer e talvez precise do dinheiro. — Valdemar en‑colhe os ombros. — E penso que será sensível à vossa causa.

— E se ele não quiser?Nenhuma das alternativas é boa. E Valdemar limita‑se a respon‑

der, com mais convicção do que realmente sente:— Há de querer.— Tem nome?— Chama‑se Gabriel Ponte.Liliana repete o nome a Popescu, acompanhando‑o de algumas

palavras em romeno. Popescu encolhe os ombros e volta outra vez as suas atenções para o mar.

— Amanhã vimos bater‑lhe à porta — anuncia Liliana.

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