MORELLO, Uma Política Pública e Participativa

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Gragoatá Niterói, n. 32, p. 31-41, 1. sem. 2012 Uma política pública e participativa para as línguas brasileiras: sobre a regulamentação e a implementação do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL) Rosângela Morello (IPOL) Resumo Este texto aborda a primeira política linguísti- ca brasileira pública de abrangência nacional, instituída pelo Decreto federal no. 7.387, de 09 de dezembro de 2010: o Inventário Nacional da Diversidade Linguística Brasileira (INDL). Tra- zendo um histórico dos trabalhos que precederam ao Decreto, discutiremos na sequência, algumas prerrogativas para sua regulamentação e imple- mentação, em especial, a que prevê a participação das comunidades linguísticas no processo. Palavras-chave: línguas brasileiras; inventário; diversidade linguística; política linguística; gestão de línguas.

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Reflete sobre as políticas linguísticas no Brasil e América Latina.

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    Uma poltica pblica e participativa para as lnguas brasileiras: sobre a regulamentao e a implementao

    do Inventrio Nacional da Diversidade Lingustica (INDL)

    Rosngela Morello (IPOL)

    ResumoEste texto aborda a primeira poltica lingusti-ca brasileira pblica de abrangncia nacional, instituda pelo Decreto federal no. 7.387, de 09 de dezembro de 2010: o Inventrio Nacional da Diversidade Lingustica Brasileira (INDL). Tra-zendo um histrico dos trabalhos que precederam ao Decreto, discutiremos na sequncia, algumas prerrogativas para sua regulamentao e imple-mentao, em especial, a que prev a participao das comunidades lingusticas no processo.

    Palavras-chave: lnguas brasileiras; inventrio; diversidade lingustica; poltica lingustica; gesto de lnguas.

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    1. A poltica lingustica do Inventrio Nacional da Diversi-dade Lingustica (INDL) alguns precedentes

    Antes de iniciarmos a discusso propriamente prevista para este texto, merece destaque o fato de, neste momento, ser necessrio qualificar uma poltica lingustica no Brasil. Nada mais salutar em nossa histria! Aps um longo perodo de si-lenciamento e de interdio de lnguas em prol de um Estado Nacional alicerado sobre a lngua Portuguesa como nica lngua oficialmente reconhecida e promovida, chegamos a um momento de afirmao e promoo da diversidade lingustica, com polticas de reconhecimento das lnguas brasileiras e de fortalecimento de sua presena em variados mbitos sociais. A oficializao na-cional da lngua brasileira de sinais (LIBRAS), a cooficializao de lnguas por municpios1, a implementao de programas de educao escolar bilngues e a oferta de cursos universitrios contemplando formao em linguas indgenas, de sinais e de imigrao so alguns exemplos desse novo modo de entendimen-to das lnguas no Brasil. Justamente dessa vivacidade emerge a demanda, muito positiva, de um planejamento qualificado das aes visando a fortalecer as distintas comunidades lingusticas. Neste quadro inserimos nossas consideraes sobre o INDL no intuito de contribuir para o debate sobre sua gesto.

    Ao menos dois trajetos se entrecruzam na histria do decreto federal 7.387/2010 que criou o Inventrio Nacional da Diversidade Lingustica Brasileira (doravante INDL).

    Em um deles esto os movimentos mundiais em defesa das minorias que vicejaram a partir do final da dcada de 1940 e cujo marco a Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948). Ao longo de mais de seis dcadas, tais movimentos geraram acordos e declaraes fundamentais para que se estabelecessem direitos culturais e lingusticos na modernidade. Entre os mais importantes documentos encontraremos, em ordem cronolgica : a Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948); o Pacto In-ternacional dos Direitos Civis e Polticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (1966); a Declarao sobre os Direitos de pessoas pertencentes a Minorias Nacionais ou tnicas, Religiosas e Lingusticas (1992); a Carta Europeia sobre as Lnguas Regionais ou Minoritrias (1992); a Declarao da Cpu-la do Conselho da Europa sobre as Minorias Nacionais (1993); a Conveno-Marco para a Proteo das Minorias Nacionais (1994); e a Declarao Universal para a Promoo da Diversidade Cultu-ral Unesco (2005).

    Em 1996, em Barcelona, vem a pblico a Declarao Univer-sal dos Direitos Lingusticos. Apoiada no conjunto de documentos que a precedem e enquadrando os direitos lingusticos no mbito dos direitos humanos, em especial no que a Declarao de 1948, em seu artigo segundo, a todos assegura todos os direitos e

    1 Sobre o atual quadro de linguas cooficiais no Brasil so 9 linguas em 12 municpios - ver Poltica de Cooficializa-o de Lnguas no Brasil (MORELLO, 2012).

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    liberdades sem distino de raa, cor, sexo, lngua, religio, opi-nio poltica, origem nacional ou social, posio socioeconmica, nascimento ou qualquer outra condio (2003, p. 8), a Declarao dos Direitos Lingusticos afirma ter surgido das comunidades lingusticas e no dos Estados [...] e tem como finalidade propiciar a organizao de um marco poltico da diversidade lingustica baseado na convivncia, no respeito e no benefcio recprocos (idem, p. 23). Entre as formulaes consolidadas por esta Decla-rao, uma delas pode ser considerada fundadora desse marco poltico: a que diz respeito compreenso de comunidade lingus-tica. Retomaremos mais adiante esta formulao para reafirmar as aberturas que oferece a uma gesto democrtica e participativa das lnguas no Brasil.

    Em outro trajeto encontraremos o conjunto dos esforos e iniciativas de comunidades lingusticas brasileiras para se fazer ouvir pelo Estado naquilo que lhes foi historicamente negado pela tradio monolinguista: o reconhecimento de suas lnguas como um bem social, fundamental para a plena formulao de seus conhecimentos e expanso de suas formas de vida e trabalho.

    A Constituio da Replblica Federativa do Brasil de 1988, que reconheceu aos indgenas o direito lngua, cultura e edu-cao prprios e assim definiu um importante marco jurdico em prol dessas comunidades, silenciou, no entanto, sobre todas as demais lnguas brasileiras faladas por imigrantes, negros, sur-dos, ou fronteirios. Somente mais de uma dcada mais tarde, a questo das lnguas voltar ao debate poltico.

    Em 2002, assistiremos a primeira poltica de cooficializao de lnguas indgenas em nvel municipal, em So Gabriel da Cachoeira, Amazonas. Com ela, abria-se precedente para outras iniciativas, fazendo com que chegssemos a 2012 com 9 lnguas cooficiais em 12 municpios, sendo 5 indgenas e 4 de imigrao.

    Em 2004, teremos importante ao institucional em prol do reconhecimento das lnguas brasileiras em nvel nacional, por meio de uma petio encaminhada pelo IPOL2 Comisso de Educao e Cultura do Congresso Nacional e que desembocaria no decreto 7.387/2010. O referido documento solicitava a abertura de um Livro de Registro para as Lnguas Brasileiras como bem imaterial, ao modo do que o Ministrio da Cultura j realizava com bens imateriais como os saberes, as celebraes, as formas de expresso e os lugares3. O pedido foi encaminhado ao Insti-tuto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN) pelo ento presidente da Comisso de Educao e Cultura, deputado Carlos Abicalil. Aps os trmites interinstitucionais, realizou-se em Braslia, em maro de 2006, um seminrio legislativo para a discusso sobre a relevncia social dessa poltica. Este seminrio contemplou depoimentos de falantes de outras lnguas que no o portugus e ao final, instalou um grupo interinstitucional e in-terministerial - o Grupo de Trabalho da Diversidade Lingustica

    2 O IPOL Instituto de Investigao e Desen-volvimento em Pol-t ica Lingustica atua no campo das politicas lingusticas e dos direi-tos lingusticos desde 1999, tendo, ao longo desses anos, proposto e executado censos e diagnsticos lingusti-cos no Brasil e demais pases do Mercosul e assessorado progamas de educao bi ou pluti-lingues. Participou das aes que originaram a primeira proposta de cooficializao das lnguas indgenas no Brasil, em So Gabriel da Cachoeira, Amazo-nas, da cooficializao do Pomerano em Santa Maria de Jetib, Esprito Santo e do Hunsrkis-ch, em Antnio Carlos, Santa Catarina. Teve importante papel gestor nas aes que culmina-ram no Decreto n. 7.387, sendo responsvel pela execuo do projeto pi-loto Inventrio da Lngua Indgena Guarani Mbya. Este texto resulta, de fato, de todo o trabalho em equipe feito no IPOL, da qual fao parte desde 2004, e a qual muito agradeo.3 Confere documento disponvel em www.ipol.org.br.

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    do Brasil (doravante GTDL) - para dar continuidade aos trabalhos, definindo critrios e procedimentos para o registro das lnguas brasileiras.

    Vale ressaltar que o pedido de abertura de um livro de re-gistro especfico para as lnguas deu voz a muitas comunidades lingusticas invisibilizadas na histria de constituio da nao brasileira e, ao mesmo tempo, trouxe especificidade a demandas j efetivadas ao IPHAN, como a dos falantes do talian solicitando reconhecimento do patrimnio cultural ligado a essa sua lngua. De acordo com o relatrio do GTDL (2007), de fato o reconhe-cimento de lnguas como patrimnio havia se constitudo em uma preocupao da comisso e do grupo de trabalho criados em 1998 pelo Ministrio da Cultura para estabelecer as polticas do patrimnio imaterial. No entanto, dvidas relacionadas a as-pectos conceituais e tcnicos sobre o registro e o reconhecimento de lnguas levaram a um adiamento da deciso. Deixou-se, por isso, em aberto, a possibilidade de criao de novos livros. este campo de dilogo que reativado em 2004 e 2006.

    Com base na origem histrica e cultural e na natureza se-mitica das lnguas, o GTDL estabeleceu categorias histrico-so-ciolgicas para as lnguas brasileiras, propondo que cada uma fundamentasse aes necessrias ao inventrio: i) indgenas; ii) imigrao; iii) comunidades afro-brasileiras; iv) sinais; v) crioulas e; vi) lngua portuguesa e suas variaes dialetais (Relatrio de atividades do Grupo de Trabalho da Diversidade Lingustica do Brasil, 2007). Props ainda que no grupo das lnguas indgenas se dis-tinguissem as aes necessrias a duas situaes: a das lnguas ameaadas e prximas extino e a das lnguas de grande po-pulao e extenso territorial.

    Acionadas pelo GTDL como base para a implementao da poltica do INDL, estas categorias de lnguas foram indicadas como ncoras para ajustes metodolgicos e administrativo-finan-ceiros, os quais seriam estabelecidos a partir de projetos pilotos. Um requisito geral foi estabelecido para que qualquer lngua tomasse parte do inventrio: ter relevncia para a memria e identidade dos grupos que compem a sociedade brasileira, ser veculo de transmisso cultural e falada no territrio nacional h pelo menos trs geraes (ou 75 anos) (2007, pag. 11). Em suas consideraes sobre a implementao da poltica de Inventrio, diz o GTDL (2007, p. 14):

    O Inventrio permitir ao Estado e sociedade em geral o conhe-cimento e a divulgao da diversidade lingustica do pas e seu reconhecimento como patrimnio cultural. Esse reconhecimento e a nomeao das lnguas inventariadas como referncias culturais brasileiras constituiro atos de efeitos positivos para a formulao e implantao de polticas pblicas, para a valorizao da diversidade lingustica, para o aprendizado dessas lnguas pelas novas geraes e para o desenvolvimento do seu uso em novos contextos.

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    Alm de especificaes sobre as lnguas a serem inventaria-das, o relatrio do GTDL trouxe ainda uma refinada anlise das condies para a regulamentao e a implementao do INDL, entre as quais est o Decreto publicado em 2010. So aspectos dessas condies que abordaremos a seguir, articulando-os a uma breve discusso sobre a constituio de sentidos para co-munidade lingustica no Brasil e sua repercusso no mbito da representao poltica.

    2. Inventrio: documentao, registro e gesto de lnguas com participao social

    Defendendo a poltica do Inventrio como etapa indis-pensvel para o conhecimento e a disseminao de dados sobre a diversidade lingustica brasileira e tambm como um ins-trumento de reconhecimento e salvaguarda das lnguas como patrimnio cultural (2007: 10), o GTDL indicou os passos para sua regulamentao e implementao. O Decreto 7.387, como dissemos, parte das recomendaes. Alm dele, foi indicada a criao de uma Comisso Tcnica para ser responsvel pela organizao institucional, gesto e financiamento do programa. Nas discusses sobre a criao do Livro de Registro das Lnguas, de acordo com o relatrio, buscou-se um entendimento sobre a atribuio do carter de brasileiras a todas as lnguas faladas no Brasil, mas este no foi consensuado, fazendo com que a abertura do livro fosse postergada. Considerou-se, ainda, que a abertura do Livro seria uma consequncia da implantao da poltica do inventrio, inclusive porque dele poderia derivar os critrios para se consolidar o carter seletivo do Registro como poltica de salvaguarda destinada, em especial, s lnguas em risco de extino.

    Por outro lado, o GTDL encaminhou ainda duas propostas: a de criao de um Sistema de Documentao e Informao com os dados sistematizados pelo INDL e outros j existentes e a de que a poltica do INDL fosse integrada, constituindo um compromisso no mbito governamental, e que sua execuo contasse com a participao das comunidades lingusticas e fosse compartilhada com a sociedade (2007, p. 14 e 15). A essas aes, o GTDL articulou a necessidade de um escopo e uma metodologia de modo a garantir qualidade e comparabilidade das informaes diante da diversi-dade das situaes a serem descritas. Ao estar relacionada com distintas situaes histricas das lnguas e suas especificidades semiolgicas, a metodologia adquire, ela tambm, ao longo do tex-to do relatrio, qualificaes que escapam a uma composio ho-mognea de critrios universalmente vlidos. Dessa compreenso derivou sua implementao em projetos piloto realizados entre

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    2008 e 2010, com o objetivo de torn-la funcional e representativa de cada uma das seis categorias de lnguas propostas.

    Em seu conjunto, as aes recomendadas pelo GTDL, aqui apresentadas de forma sinttica, constituem importantes parme-tros para o estabelecimento da poltica do INDL. Ao Decreto 7.387, de 2010, segue-se agora o desafio muito especfico de avanar na sua regulamentao e implementao.

    O empenho do IPHAN, no momento atual, para institucio-nalizar um regulamento interno visando garantir um domnio tcnico e administrativo para essa poltica evidencia sua conti-nuidade e relevncia. Uma apurada discusso sobre a especifici-dade metodolgica do trabalho de inventariar lnguas bem como das possibilidades de se contemplar suas variadas formas e situaes histricas tem tido igualmente lugar. Entra em cena, neste caso, a necessidade de se garantir o foco poltico do inventrio: o de ser instrumento de conhecimento e gesto da realidade lingustica brasileira e no apenas de arquivamento de lnguas.

    Seguindo a linha de aes propostas pelo GTDL, e consi-derando as inciativas j em andamento, verificamos que a conso-lidao da poltica do INDL como poltica pblica de gesto das lnguas pelo Estado brasileiro passa por uma apropriao social de seus sentidos e procedimentos, uma vez que em variados pontos do processo de discusso repercutido no relatrio, reivin-dica-se que haja uma participao das comunidades lingusticas e da sociedade em geral. No entanto, igualmente se reconhece o desconhecimento que reina no pas sobre a situao das lnguas e suas distintas demandas. Esse desconhecimento especialmente marcante em relao a lnguas de base oral, de comunidades rurais ou alijadas de centros urbanos, como o caso de muitas comuni-dades falantes de lnguas de imigrao, de origem afro ou crioulas, sem falar nas variedades do portugus profundo, estigmatizadas por todo tipo de marca que as distingam do almejado padro.

    3. Comunidades lingusticas: a busca por reconhecimento e representao

    A questo que ento se coloca que a histria de silencia-mento e interdio que submeteu inmeros brasileiros a uma situao de marginalidade lingustica (e tambm identitria), com profundos efeitos sociais ligados negao de suas lnguas (pelos prprios falantes e por seus outros), afeta fortemente sua capacidade de se fazer representar nos mbitos nacionais institu-cionalizados de gesto das polticas que lhes dizem respeito. Desse modo, a demanda por participao das comunidades lingusticas formulada pelo GTDL enfrenta o desafio de no se ter ainda, no Brasil, essa representatividade fortemente instalada, exceto, talvez, para as lnguas indgenas e de sinais, com estatutos jurdicos de-finidos e com presena reconhecida em instituies de pesquisa.

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    Uma poltica pblica e participativa para as lnguas brasileiras: sobre a regulamentao e a implementao do

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    A contradio que se instala nesse espao da representa-tividade advinda das condies histricas que determinaram diferentes formas de participao poltica para as diferentes par-celas da sociedade brasileira tem se constitudo, de fato, em um motor dos movimentos sociais no Brasil. A proposio de Fruns Permanentes para alavancar propostas para polticas pblicas, como o que acaba de ser criado para as lnguas de imigrao, a flexibilizao nos assentos de comisses e colegiados institudos pelo Governo para acolher representantes da sociedade civil e suas instituies, a abertura cada vez mais bem estruturada, de iniciativas que fomentam a participao de amplos setores sociais na formulao de solues para questes de ordem cultural, t-cnica/tecnolgica ou econmica so alguns dos mecanismos que marcam o enfrentamento de tal contradio.

    Se esta contradio perpassa todas as frentes polticas, no campo da gesto das lnguas, seu enfrentamento requer aes que possam promover, primordialmente, uma ressignificao do tecido simblico sobre o qual se instala a prpria ideia de identi-dade e comunidade lingustica.

    O iderio nacional constitutivo do Estado brasileiro estabe-leceu uma identidade comum a todos os brasileiros, tendo por suporte a lngua portuguesa. Ser cidado brasileiro e ser falante da lngua portuguesa foram fatos que ideologicamente coincidiram at recente data. Ressaltemos que somente com a constituio de 1998 a cidadania brasileira foi reconhecida a indgenas brasilei-ros. Essa extraordinria reversibilidade entre identidade brasileira/lngua portuguesa, corolrio do monolinguismo, desqualificou imaginariamente todas as demais possibilidades de representao identitria ancorada em outras lnguas, no Brasil. Mais do que isso, qualquer indcio de composio mais ou menos organizada de agrupamentos linguisticamente coesos passou a ser interpre-tado como fator de ameaa ao estado nacional ou como distrbio ao pleno desenvolvimento social dos grupos4. Falar uma outra lngua ou a lngua de sua comunidade se revestiu de valores ne-gativos para os falantes. Fonte de muitos tipos de excluso, essa carga simblica se transvestiu historicamente em conceitos ou preconceitos sobre o desempenho lingustico de cada um. E cada um passou a sentir-se responsvel pela lngua diferente que fala e pela deciso de transferi-la aos seus, juntamente com os sentidos de ser dela um falante, no Brasil.

    Essa condio histrica e ideolgica se repercute nos dias de hoje sob a forma de desafios. Para as comunidades lingusticas, de modo geral, e para as falantes de lnguas de imigrao, afro-bra-sileiras ou crioulos, de modo particular, porque carecem de qual-quer instrumento de reconhecimento em nvel nacional, coloca-se a necessidade de criarem canais para agirem e se representarem frente aos poderes constitudos. Os processos de cooficializao de lnguas por municpios possuem esse carter. Em nvel nacio-

    4 Na histria do Brasil colnia e depois, como Estado independente, teremos leis que proibi-ro os usos de lnguas que no a portugue-sa, com penas que iam de torturas e prises e mortes, passando pelo extermnio sumrio de grupos inteiros. H far-ta bibliografia sobre esse assunto.

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    nal, o prprio INDL faz demandas por participao de todas as comunidades, em todas as suas faces, cabendo a elas exigir uma forma e um espao de representao plena nesse processo.

    Para o Estado, coloca-se o desafio de mobilizar os agentes polticos e as aparelhagens administrativas para dar voz s comu-nidades lingusticas. As inciativas, nesse sentido, so de natureza ao mesmo tempo ideolgica e tcnico-administrativa, uma vez que incidem sobre uma compreenso muito peculiar do prprio senti-do de inventrio e de patrimnio, e implica em uma posio nova para o Estado: a de institucionalizar uma poltica pblica brasileira de gesto de lnguas. Esta poltica implica uma formulao clara de uma base de dados sobre as lnguas, com diretrizes e critrios de acessibilidade voltados ao fomento de polticas lingusticas, possibilitando que elas sejam articuladas entre si e planejadas a mdio e longo prazo. Implica igualmente o fomento de espaos abertos ao debate com as comunidades sobre suas demandas no campo das polticas lingusticas.

    A Declarao Universal dos Direitos Lingusticos (2003) oferece importantes parmetros para esse novo entendimento sobre as comunidades lingusticas e seus papis nos dias de hoje. Na de-finio proposta nesta Declarao, a concepo de comunidade lingustica sugere uma territorialidade geogrfica e simblica para a lngua, uma vez que engloba seu espao de uso e circulao e a autoidentificao do falante com ela. De acordo com a Declarao:

    Ttulo Preliminar

    Conceitos

    Artigo I

    Esta Declarao entende por comunidade lingustica toda a socieda-de humana que, assentada historicamente em um espao territorial determinado, reconhecido ou no, se autoidentifica como povo e desenvolve uma lngua comum como meio de comunicao natural e coeso cultural entre seus membros. A denominao lngua prpria de um territrio faz referncia ao idioma da comunidade historicamente estabelecida neste espao (p. 23 e 24).

    Ttulo Primeiro

    Princpios gerais

    Artigo 8

    Todas as comunidades lingusticas tm direito a organizar e gerir os recursos prprios, com a finalidade de assegurar o uso de sua lngua em todas as funes sociais (p. 28).

    Todas as comunidades lingsticas tm direito a dispor dos meios necessrios para assegurar a transmisso e a continuidade de futuro de sua lngua (p. 28).

    Ao reunir, pela identidade lingustica, grupos e pessoas dis-persos pelo territrio, essa concepo de comunidade lingustica

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    propicia a constituio ou o fortalecimento de vnculos do falante com uma memria e uma histria, independentemente de onde ele esteja ou de ser ele falante da lngua a que se filia.

    Desta perspectiva, a poltica do inventrio pode abordar uma lngua e seus usos de modo amplo, englobando o autore-conhecimento do falante como parte dela, validado por seus pares. Com essa ao, o INDL permite que se reafirmem vnculos iden-titrios, alavanca importantssima para produzir e disponibilizar novos sentidos, agora positivos, para o fato de se falar outra lngua ou pertencer a uma distinta comunidade lingustica no Brasil.

    A presena de mais de 200 lnguas no Brasil de hoje se-jam elas indgenas, de imigrao, crioulas, afro-brasileiras ou de sinais embora em nmero infinitamente menor do que as cerca de 1.500 existente h quinhentos anos5, so a expresso de uma diversidade lingustica que resistiu e que agora est disponvel para que o cidado brasileiro possa com ela se identificar e nela investir simbolicamente, culturalmente, economicamente.

    O INDL, articulado, claro, a outras aes como a da coo-ficializao de lnguas, pode, assim, iluminar a configurao de um novo quadro para a promoo das lnguas brasileiras, agindo na direo da consolidao social e poltica dessa noo lnguas brasileiras como espao de negociao e de fortalecimento das diversas comunidades lingusticas.

    4. Consideraes para fechar este texto e manter o debateAo colocar em discusso as diretrizes de um programa

    que conduzisse ao reconhecimento e registro das lnguas como patrimnio imaterial MORELLO e OLIVEIRA (2006), afirmaram sua relevncia como um espao de atuao poltica do Estado Brasileiro, em conjunto com as sociedades civis, e defenderam a criao do livro de registro das lnguas como um instrumento que contemplaria ao menos, trs linhas de atuao poltica: a promoo do direito s lnguas; a instalao de polticas de registro e circu-lao das lnguas e; a elaborao de equipamentos - instrumentos e dispositivos articulados s polticas lingusticas.

    Estas trs linhas de atuao reverberam, de fato, nas questes que aqui colocamos. Passados seis anos, constatamos que se o Decreto 7.387 representa enorme vitria da sociedade brasileira na garantia dos direitos lingusticos para suas mais de 220 comuni-dades, ele tambm trouxe para a agenda poltica e administrativa a necessidade de uma ordenao que permita a gesto das lnguas por aqueles que as falam, cuidando para no se reproduzir antigas prticas que excluem da aparelhagem do Estado, das instncias gestoras e deliberativas, aqueles que historicamente estiveram alijados delas. Concebido como um programa que pudesse ser ao mesmo tempo de reconhecimento, conhecimento e gesto de lnguas, o INDL instaura, de fato, a possibilidade de participao

    5 Estimativa apresen-tada por Aryon Rodri-gues (1986).

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    social como um ganho poltico sem precedentes na histria das lnguas no Brasil. E nisso est sua maior qualidade e seu maior desafio.

    AbstractThis paper addresses the first Brazilian public language policy nationwide, established by fede-ral decree 7387, issued on December 09, 2010: the Inventory of Brazilian Linguistic Diversity (INDL). First, it is presented a history of works that preceded the decree. Some prerogatives for its regulation and implementation will then be discussed, in particular, providing for the parti-cipation of language communities in the process.

    Keywords: Brazilian languages; inventory; linguistic diversity; language policy; language management .

    REFERNCIAS

    BALDI, Csar Augusto. Justia federal: racismo, terras e direitos humanos. Workshop no seminrio repensando o acesso justia no brasil, Observatrio da Justia Brasileira, Belo Horizonte, 29 nov. a 4 dez. 2010. Disponvel em:http://democraciaejustica.org/cienciapolitica3/sites/default/files/justicafederalracismoterrasedireitoshumanoscesarbaldi 2010.pdf. Acesso em: 16 jun. 2010.BRASIL. Decreto 7.387, de 09 de dezembro de 2010. Disponvel em www.planalto.gov.br/ccivil03/_Ato2007.../Decreto/D7387.htm. Acesso em: 15 mai. 2012.MORELLO, Rosngela. A poltica de cooficializao de lnguas no Brasil. Revista Internacional do Instituto da Lngua Portuguesa, no. 1, 2011 (no prelo).______. SEIFFERT, Ana Paula (orgs.). Inventrio da Lngua Guarani Mbya. Florianpolis: IPOL; Editora Garapuvu, 2011.MORELLO, Rosngela; OLIVEIRA, Gilvan Mller de. Uma poltica patrimonial e de registro para as lnguas brasileiras. Patrimnio - Revista eletrnica do IPHAN, Campinas, n. 6, jan./fev. 2007. Dis-ponvel em: http://www.labjor.unicamp.br/patrimonio/materia.php?id=211. Acesso em: 16 jun. 2010.OLIVEIRA, Gilvan Mller de. O lugar das lnguas: a Amrica do Sul e os mercados lingusticos na Nova Economia. Synergies, Brsil, n. esp. 1, p. 21-30, 2010.______. ndios urbanos, lnguas urbanas: consideraes pol-tico-lingusticas sobre a urbanizao dos povos indgenas. In:

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    Uma poltica pblica e participativa para as lnguas brasileiras: sobre a regulamentao e a implementao do

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