Monteiro_1997_ajuda mútua e reabilitação

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A ajuda-mútua é um dos mais significativos movimentos sociais contemporâneos e simulta- neamente um processo de ajuda interpessoal em grande expansão na actualidade. Como movimento social, assenta no respeito pela diversidade das pessoas, acredita nas capa- cidades individuais e da comunidade, na volun- tariedade dos não-profissionais, pretende o forta- lecimento das suas potencialidades e identifica ou cria os recursos para apoiar as pessoas em necessidade (Rappaport, 1990). Como sistema de ajuda, distingue-se da gene- ralidade dos grupos de suporte facilitados pelos profissionais. Estas organizações têm uma raiz voluntária embora também não se confundam com a ajuda natural que acontece diariamente na comunidade. Os grupos de ajuda-mútua são um fenómeno social distinto. O processo de ajuda- -mútua concretiza-se através da acção dos gru- pos de parceiros que partilham uma situação de vida através da qual se identificam e fundamen- ta-se na vivência subjectiva dos problemas de cada um dos membros, isto é, no conhecimento da experiência (Borkman, 1991). É a partir deste conteúdo que cada grupo constrói a sua própria filosofia e o seu próprio programa de ajuda. As pessoas, reunidas nestas pequenas organizações locais, são capazes de desenvolver uma variedade de interacções e apoios adequados às necessidades e às circuns- tâncias específicas. Este facto, resulta na grande diversidade de grupos para o mesmo tipo de problema, tanto a nível da estrutura organizativa como dos seus conteúdos programáticos. Neste processo utilizam a partilha como metodologia e o conhecimento da experiência como estratégia de intervenção. O paradigma da experiência, tem vindo a constituir-se como o factor mais representativo da cultura mutual. Esta característica permite identificar a origem do conhecimento (expe- riência dos membros vs treino profissional) e distinguir e facilitar a classificação dos grupos. A nível teórico, a ajuda-mútua corresponde à dimensão de participação e «empowerment» dos individuos e das comunidades. Na abordagem comunitária, os problemas e as dificuldades das pessoas são vistos como situa- ções de desajustamento ou desequilíbrio em relação a uma situação – problema e analisados contextualmente. A resolução dessas dificuldades passa por uma mudança não só nos indivíduos mas tam- bém nos contextos. Ou seja, parte daquilo que se define como problema, deve-se ao facto de os recursos, o suporte, as técnicas e os métodos se- 449 Análise Psicológica (1997), 3 (XV): 449-452 Ajuda-mútua e reabilitação (*) FÁTIMA JORGE MONTEIRO (**) (*) Comunicação apresentada na 1.ª Conferência «Reabilitação e Comunidade», ISPA, Lisboa, Junho de 1996. (**) Associação para o Estudo e Integração Psicos- social.

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Ajuda mútua e reabilitação

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A ajuda-mútua é um dos mais significativosmovimentos sociais contemporâneos e simulta-neamente um processo de ajuda interpessoal emgrande expansão na actualidade.

Como movimento social, assenta no respeitopela diversidade das pessoas, acredita nas capa-cidades individuais e da comunidade, na volun-tariedade dos não-profissionais, pretende o forta-lecimento das suas potencialidades e identificaou cria os recursos para apoiar as pessoas emnecessidade (Rappaport, 1990).

Como sistema de ajuda, distingue-se da gene-ralidade dos grupos de suporte facilitados pelosprofissionais. Estas organizações têm uma raizvoluntária embora também não se confundamcom a ajuda natural que acontece diariamente nacomunidade. Os grupos de ajuda-mútua são umfenómeno social distinto. O processo de ajuda--mútua concretiza-se através da acção dos gru-pos de parceiros que partilham uma situação devida através da qual se identificam e fundamen-ta-se na vivência subjectiva dos problemas decada um dos membros, isto é, no conhecimentoda experiência (Borkman, 1991).

É a partir deste conteúdo que cada grupo

constrói a sua própria filosofia e o seu próprioprograma de ajuda. As pessoas, reunidas nestaspequenas organizações locais, são capazes dedesenvolver uma variedade de interacções eapoios adequados às necessidades e às circuns-tâncias específicas. Este facto, resulta na grandediversidade de grupos para o mesmo tipo deproblema, tanto a nível da estrutura organizativacomo dos seus conteúdos programáticos. Nesteprocesso utilizam a partilha como metodologia eo conhecimento da experiência como estratégiade intervenção.

O paradigma da experiência, tem vindo aconstituir-se como o factor mais representativoda cultura mutual. Esta característica permiteidentificar a origem do conhecimento (expe-riência dos membros vs treino profissional) edistinguir e facilitar a classificação dos grupos.

A nível teórico, a ajuda-mútua corresponde àdimensão de participação e «empowerment» dosindividuos e das comunidades.

Na abordagem comunitária, os problemas e asdificuldades das pessoas são vistos como situa-ções de desajustamento ou desequilíbrio emrelação a uma situação – problema e analisadoscontextualmente.

A resolução dessas dificuldades passa poruma mudança não só nos indivíduos mas tam-bém nos contextos. Ou seja, parte daquilo que sedefine como problema, deve-se ao facto de osrecursos, o suporte, as técnicas e os métodos se-

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Análise Psicológica (1997), 3 (XV): 449-452

Ajuda-mútua e reabilitação (*)

FÁTIMA JORGE MONTEIRO (**)

(*) Comunicação apresentada na 1.ª Conferência«Reabilitação e Comunidade», ISPA, Lisboa, Junhode 1996.

(**) Associação para o Estudo e Integração Psicos-social.

rem escassos, estarem desenquadrados ou mes-mo inexistentes.... A novidade, consiste em faci-litar e melhorar a adaptação pessoa-situaçãoatravés da mudança no contexto. Esta visão eabordagem ao problema possibilita a acção, abreperspectivas à recuperação e à reabilitação, aoretirar do indivíduo a culpa ou a responsabili-dade exclusiva pelo problema. Os grupos deajuda-mútua são exemplos desta mudança que seintroduz, ou que simplesmente, se manifesta noseio do activismo comunitário.

Ao nível do indivíduo, tornam possível umprocesso de desenvolvimento pessoal que é pro-porcionado pela participação numa organizaçãocomunitária. Os participantes dos grupos bene-ficiam da transformação do seu estatudo de «ví-timas sem esperança» em cidadãos capazes(Kieffer, 1984).

Através do seu envolvimento e colaboração,os indivíduos, adquirem e mantêm progressiva-mente um conjunto de competências, ou seja,uma participação competente.

Para a reabilitação, são fundamentais todas asformas de ajuda que melhorem o poder indivi-dual e social dos individuos. Os programas quetêm grande impacto nos resultados são os pro-gramas criadores e fortalecedores de competên-cias, facilitadores da sua utilização e generaliza-ção a diversos ambientes e mobilizadores de re-cursos (Unger, 1990).

A ajuda-mútua expande a recuperação aliandoos mecanismos de «empowerment» à tecnologiada reabilitação porque os grupos «constroem»sobre as potencialidades de cada membro econvertem os problemas e as necessidades emoportunidades.

RELAÇÃO DE AJUDA

O movimento da ajuda-mútua implica tam-bém alterações significativas na «relação de aju-da». Estas alterações revelam-se no aumentodas oportunidades de apoio disponíveis na comu-nidade e no aumento da qualidade da relação(Riessman, 1990).

No contexto de suporte e companheirismoque proporciona, os membros dos gruposreadquirem o equilíbrio de que necessitam atra-vés de um relacionamento de igualdade e proxi-

midade. Este novo tipo de relação estabelece onivelamento entre prestador e receptor de ajuda.

Este facto, permite a valorização das capaci-dades, o desenvolvimento da auto-estima, con-fiança e autonomia individual, a diminuição dodesequilíbrio relacional no processo de ajuda e aanulação da estigmatização do pedir e receberajuda porque é universalmente recebida. A qua-lidade da relação manifesta-se, pois, na compre-ensão do problema, a qual deriva da experiênciaautêntica das situações.

O suporte permanente e de longo prazo que édisponibilizado pela ajuda-mútua, contribui parao aumento da quantidade de oportunidades deajuda e também para a utilização mais racionaldos serviços profissionais. Utilizando os gruposcomo recurso, os profissionais, podem apoiarmais pessoas, beneficiando das vantagens derecuperação que encerram (Riessman, 1990).

RESULTADOS DA INVESTIGAÇÃO

Em resultado da crescente criação, utilizaçãoe colaboração entre os profissionais e os mem-bros dos grupos de ajuda-mútua, surgiu o inte-resse académico em estudar o funcionamentodestas organizações e o seu impacto na vida daspessoas que os frequentam e lideram.

Nos últimos 10 anos têm-se realizado diversasinvestigações com o objectivo de melhorar oconhecimento sobre a eficácia da participaçãonestas organizações de ajuda-mútua através dacomparação com não-frequentadores e dos rela-tórios de benefícios obtidos.

Na revisão realizada por Medvene (1990), ainvestigação feita com grupos para pessoas comproblemas de saúde graves ou crónicos, mulhe-res mastectomizadas apresentavam melhores res-postas de adaptação, menos distúrbios do humor,sobrevivência mais prolongada (1 ano e meio,em média). No caso de pessoas com dificuldadesrespiratórias crónicas, o número de hospitaliza-ções era menor no grupo de frequentadores (20%vs 64% hospitalizações) e nas hospitalizaçõesdos frequentadores o número médio de dias de-cresceu, em média, de 5 dias para menos de umdia 0.8. Os participantes de um grupo de pessoascolostomizadas revelavam maior aceitação dasmudanças drásticas que resultaram da cirurgia emaior aceitação dos seus estomas.

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No conjunto de investigações realizadas comos grupos relacionados com acontecimentosstressantes e mudanças de vida, os pais decrianças prematuras classificavam-se a si pró-prios como mais competentes em relação àsnecessidades dos seus filhos do que os pais dogrupo de comparação. Um grupo de pais em lutoexperimentava significativamente maior fortale-cimento e recuperação mais rápida.

Os estudos feitos com os grupos no âmbito dasaúde mental revelaram que pessoas com pro-blemas psiquiátricos graves ou crónicos tinhamhospitalizações por períodos mais curtos depoisde frequentarem o grupo (49 dias vs 134 dias dehospitalização dos não-fequentadores) requeren-do, portanto, apenas um terço dos dias de hospi-talização. Descrevem também menos tensão edepressão e referem a diminuição dos níveis deutilização de psicoterapia e medicamentos.

Os pais e familiares das pessoas com pro-blemas psiquiátricos associam à participação nogrupo a mudança nas suas perspectivas sobre ascausas da doença, a diminuição dos sentimentosde culpa, o maior acesso a informação, a dimi-nuição dos conflitos, a obtenção de estratégiaspara lidar com a situação.

Rappaport (1985) concluiu também que,comparando os membros mais recentes com osmembros mais antigos no grupo, estes apresen-tavam uma rede social mais vasta, taxas maisaltas de manutenção dos empregos e níveis maisbaixos de psicopatologia.

No seu recente estudo, Chamberlim e colegas(1996) ao relacionar a participação no grupocom a qualidade de vida dos membros, 78,4%dos participantes relataram os efeitos positivosda ajuda-mútua sobre a sua satisfação de vida e72,1% relacionou os efeitos directamente com ossucessos conseguidos. 92% dos inquiridos rela-ciona o grupo com o aumento da auto-estima,para 89,4% das pessoas, possibilitou o reconhe-cimento respectivas capacidades.

Quanto à estabilidade habitacional, financeirae social, 77% dos participantes confirmaram oefeito positivo ou muito positivo da participaçãono grupo.

Em relação à participação comunitária, 90%dos membros identificou pelo menos umaactividade e 40% indicou que participava em 5ou mais actividades comunitárias.

Os membros do grupo de ajuda-mútua do

Centro Comunitário de Doentes Mentais, ava-liam (63,3% que o grupo é eficaz quanto às es-tratégias de ajuda que proporciona). Os partici-pantes identificam também que a exposição e re-solução de problemas são os objectivos prin-cipais e, simultâneamente, o modo de funciona-mento do grupo. As mudanças mais significati-vas na vida das pessoas, proporcionadas pelaparticipação, foram: a concretização de amizades(«menor isolamento», «comunicação»), o au-mento de actividade (ritmos diários, ocupação eutilidade), o aumento de competências («ajudar apensar», «viver melhor com os problemas»),projectos de vida, alterações positivas na suasaúde mental («menos deprimido», «menosinternamentos», «estabilidade»).

Tendo em consideração as vantagens de re-cuperação enunciadas, os profissionais de ajudapodem ter um papel significativo facilitando aparticipação em organizações de ajuda-mútuainformando os seus clientes sobre os gruposque existem ou aprendendo sobre ajuda-mútua eajudando-os a criar os seus próprios grupos.

CARACTERÍSTICAS DA AJUDA-MÚTUA

PARTILHACONHECIMENTO DA EXPERI NCIA

COMPANHEIRISMOFLEXIBILIDADE

ESPONTANEIDADEHETEROGENEIDADE

PARTICIPAÇÃO VOLUNTÁRIA E FLUIDASUPORTE CONTINUADO E PERMANENTE

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Unger, K. (1990). Reabilitação psiquiátrica. Filosofia,princípios e investigação. Análise Psicológica, 8(2), 163-169.

RESUMO

A ajuda-mútua é um dos movimentos mais signifi-cativos da actualidade. O contexto de suporte, o com-panheirismo que proporcionam permite, aos membrosque os frequentam, readquirir o equilíbrio de que ne-cessitam através de um relacionamento de igualdade eproximidade.

Palavras-chave: Ajuda-mútua, Suporte, Empower-ment, Participação comunitária.

ABSTRACT

The self-help mutual aid is a significant socialmovement. Self-help groups develop a context wheresupport meets the members needs through friendshipand on egalitarian relationships.

Key words: Self-help, Support, Empowerment,Community participation.

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