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Filosofia daCiência

Universidade Federal de Mato Grosso

SILAS BORGES MONTEIRO (ORG.)

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Filosofia da Ciên-cia

Filosofia da Ciência

Organização: Silas Borges Monteiro

Universidade Federal de Mato Grosso

Instituto de Educação

Departamento de Psicologia

Curso de Psicologia

Disciplina: Filosofia da Ciência

Professor: Silas Borges Monteiro

Lattes: http://lattes.cnpq.br/1235153651563231 site: http://about.me/silasmonteiro 

Este material é uma compilação de textos para fins de uso no ensino. Eles

foram retirados de livros e textos publicados. As fontes são informadas.

1a. edição: outubro de 2014

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2a. edição: janeiro de 2016

Guia de leitura. Um material

Com estes pontos, pretendo indicar passos de leitura que você pode fazer

com os textos que lê. Este passo-a-passo, se for seguido, deve ser registrado

e arquivado como material de estudo.

1. Enumere os parágrafos do texto.2. Leia o texto completo, sem interrupções ou registros.

3. Leia pela segunda vez, marcando palavras ou ideias que você não

conhece ou não compreende.

4. Com auxílio de um dicionário, indique sua compreensão das pala-

vras, expressões ou sentenças que você não entendeu para que

possam servir de auxílio em seu estudo do texto.

5. Sublinhe todas as sentenças que você julga que são centrais no

texto.

6. Transcreva as frases em forma de paráfrase, obedecendo o núme-

ro de parágrafos. Se o texto tiver 10 parágrafos, reescreva 10 pa-

rágrafos.

7. A partir destes parágrafos, faça um resumo do texto com no máxi-

mo 200 palavras.

8. No parágrafo seguinte, diga o que você aprendeu e qual o efeito

disso no seu pensamento, com 100 palavras.

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Guia de leitura. Estudo e tal

1. Tudo começa e termina no texto, por isso, a leitura dele é funda-mental. Lutar com o texto é crucial. Por isso, o primeiro ato de lei-

tura é o texto. Cuide-se ao ler. Desconfie que você entendeu o

que está escrito; desconfie que você não entendeu o que está es-

crito. Pois bem, ao ler atentamente, não pense que você tirará

ideias importantes: um livro não é uma caixa de realejo, composto

de frases fortes que nos dão sabedoria. Um livro é um discurso.Ele oferece ideias, desenvolve argumentos, tenta comunicar um

estado interno, um pensamento. Todo texto tem um objetivo. Ele

nem sempre é indicado com notas, setas e cores. A arte de ler filo-

sofia é esforçar-se por apreender este objetivo, mesmo que ele

não seja evidente. Mesmo errando, faça o exercício e se pergunte:

qual o objetivo deste texto? Que ideia ele quer entregar?

2. Usar próteses ajuda. As mais comuns são as biografias e os co-

mentadores. Comece pelas biografias. Mas não procure nelas os

dramas psicológicos do contexto de elaboração: procure por in-

terlocutores. Os dramas ajudam, o contexto histórico ajuda, mas,

o crucial são os interlocutores. Filosofia é feita de diálogo: procu-

re pelos debatedores. Recorra aos comentadores depois de bri-

gar muito com o texto. Um filósofo não muda de tema e de adver-

sário ou herói a cada semana. Ao escrever, um filósofo dispara

uma ideia que vai testada, ampliada, revista ao longo de um tem-

po, até que ela não satisfaça mais a curiosidade do filósofo. Nova-

mente, a biografia pode ajudar a encontrar estes temas/períodos

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dos escritos de um filósofo. Preste atenção se não há outros livros

sendo escritos no mesmo período: quais temas, estilos, pathos

são postos em movimento.3. Por fim, visite os comentadores. Veja no que vocês concordam, e

no que não. Veja se o comentário te alerta para algo que lhe te-

nha escapado: uma informação relevante, uma leitura feita por

outros, a revisão das abordagens, e tal.

Uma (in)disciplina

Aqui você encontrará um conjunto de textos que serão fundamentais no es-

tudo da disciplina Filosofia da Ciência. Eles foram coletados, fundamental-

mente, do site português Crítica na rede, mantido por Desidério Murcho. A

partir do texto original, fui rescrevendo os capítulos, adaptando-os aos inte-

resses da disciplina, ao modo como tenho trabalho na UFMT. Também usei

como material de base o utilíssimo Dicionário básico de filosofia de Hilton Ja-

piassu e Danilo Marcondes, ambos da Universidade Federal do Rio de Janei-

ro. Dele vieram, principalmente, o apoio biográfico dos filósofos.

Bom estudo

Silas Borges Monteiro

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Introdução: afinal, de que se trataesse conteúdo?

Quando alguém começa o estudo da filosofia pode ter a impressão de que

tomará contato com um conteúdo muito distante de seu cotidiano. Afinal, te-

mos a sensação de a filosofia é uma disciplina reservada a poucas pessoas,

geralmente desinteressadas dos problemas comuns. Esta é uma caricatura

antiga. Na antiguidade se falava de filósofos que caiam em poços por anda-

rem observando os céus, despreocupados com os assuntos cotidianos.

O que pretendo com este conteúdo é oferecer um conjunto de informa-

ções, vinda de textos de filósofos profissionais, que colaborem a conhecer in-

trodutoriamente o campo e, neste caso, compreender as bases do pensa-

mento científico. Como Filosofia da Ciência, esta disciplina pretende proble-

matizar a ciência, oferecer os principais debates do campo e dar instrumen-

tos conceituais para outros conteúdos acadêmicos.

Diretrizes para Autores

Normas para publicação de originais

A Revista de Educação Pública - ISSN 0104-5962 - E-2238-2097 - é um

periódico científico quadrimestral articulado ao Programa de Pós-Graduação

em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

Aceita artigos, predominantemente, resultantes de pesquisa em educa-

ção, bem como ensaios e resenhas que privilegiem obras de relevância na

área. Os ensaios destinam-se somente às questões teóricas e metodológicas

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relevantes às seções. Estudos sobre o estado da arte acerca de temáticas vol-

tadas ao campo educativo também são aceitos.

Os trabalhos recebidos para publicação são submetidos à seleção préviado editor científico da seção a que se destina o texto. As seções estão cir-

cunscritas às seguintes temáticas: Cultura Escolar e Formação de Professores;

Educação, Poder e Cidadania; Educação e Psicologia; Educação Ambiental;

História da Educação; Educação em Ciências e Matemática.

A publicação de um artigo ou ensaio implica automaticamente a cessão

integral dos direitos autorais à Revista de Educação Pública.A exatidão das ideias e opiniões expressas nos trabalhos são de exclusiva

responsabilidade dos autores.

O autor deve indicar, quando for o caso, a existência de conflitos de inte-

resse.

ResenhaResenhas de livros devem conter 4 (quatro) páginas e respeitar as seguintes

especificações técnicas: dados bibliográficos completos da publicação rese-

nhada no início do texto. Informações no texto ou referências que possam

identificar o(s) autor(es) devem ser suprimidas e enviadas separadamente via

documento suplementar. Uma vez aceito o trabalho, tais dados voltarão para

o texto na revisão final. Comunicações de pesquisa e outros textos, com a

mesma quantidade de páginas serão publicados por decisão do Conselho

Científico. Resenhas, informes ou comunicações, com revisões textuais de-

vem conter título em inglês, ou francês ou em língua de origem.

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 Artigo

Os procedimentos para análise e aprovação dos manuscritos centram-se em

critérios como:a) Máximo de quatro autores por artigo, sendo um deles necessariamen-

te com título de doutor. Cada autor deverá aguardar um intervalo de dois

anos para nova publicação.

b) A Introdução deve indicar sinteticamente antecedentes, propósito, re-

levância, pesquisas anteriores, conceitos e categorias utilizadas;

c) Originalidade (grau de ineditismo ou de contribuição teórico-metodo-

lógica para a seção a que se destina o manuscrito);

d) Material e método (critérios de escolha e procedimentos de coleta e

análise de dados);

e) Resultados (apresentar descrição clara dos dados e sua interpretação à

luz dos conceitos e categorias);

f) Conclusão (exposição dos principais resultados obtidos e sua relação

com os objetivos e limites);

g) A correção formal do texto (a concisão e a objetividade da redação; o

mérito intrínseco dos argumentos; a coerência lógica do texto em sua totali-

dade);

h) O potencial do trabalho deve efetivamente expandir o conhecimento

existente;

i) A pertinência, diversidade e atualidade das referências bibliográficas e

cumprimento das normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas –

ABNT;

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 j) Conjunto de ideias abordadas, relativamente à extensão do texto e

exaustividade da bibliografia pertinente é fundamental ao desenvolvimento

do tema;l) Como instrumento de intercâmbio a Revista prioriza mais de 70% de

seu espaço para a divulgação de resultados de pesquisa externos à UFMT.

São aceitos também artigos em idiomas de origem dos colaboradores.

m) Os artigos, incondicionalmente inéditos e resultantes de pesquisas

empíricas devem ser submetidos à REVISTA DE EDUCAÇÃO PÚBLICA so-

mente mediante cadastro realizado por meio deste mesmo endereço eletrô-nico:

<http://periodicoscientificos.ufmt.br/index.php/educacaopublica/about/

submissions#authorGuidelines>

O Conselho Científico tem autonomia para decidir sobre publicação de

artigos de convidados externos de alta relevância para as linhas de pesquisa

do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT.

1)  Para submissão, devem ser observados os se-guintes critérios:

a) Título do artigo (conciso contendo no máximo 15 palavras). Utilizar maiús-

culas somente na primeira letra, nomes próprios ou siglas. Título em Inglês

entram logo após o título em português.

b) Resumo, em português, contendo até 100 palavras; digitado entreli-

nhas simples, ressaltando objetivo, método e conclusões. Resumo em língua

estrangeira também deverá ser entregue, preferencialmente em inglês (abs-

tract);

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c) Palavras-chave (até quatro palavras) devem ser esclarecedoras e repre-

sentativas do conteúdo. Tratando-se de resumo em língua estrangeira deve-

rão ser encaminhados o keywords, ou equivalente na língua escolhida;d)  Informações no texto ou referências que possam identificar o(s) au-

tor(es) devem ser suprimidas do texto e enviadas separadamente via docu-

mento suplementar. Uma vez aceito o trabalho, tais dados voltarão para o

texto na revisão final.

Marcas de identificação do autor no texto, impossibilitarão o manuscrito

de seguir para o trâmite de avaliação.

Formatação

Para a formatação do texto utilizar o processador o formato Word for Win-

dows.

a) Digitar todo o texto na fonte Times New Roman, tamanho 12, com es-

paçamento entre linhas 1,5 cm, inclusive nos parágrafos, margens superior/esquerda 3,0 cm; margem direita/inferior 2,0 cm; papel A4.

b) Em caso de ênfase ou destaque no corpo do texto usar apenas itálico.

c) Para as citações diretas com mais de três linhas, usar fonte 10, obser-

vando-se um recuo de 4 cm da margem esquerda. Utilizar 1 (um) espaço an-

tes e depois de citação.

As citações devem obedecer a NBR 10520 (2002) da ABNT, indicadas no

texto pelo sistema de chamada autor-data. As citações diretas (transcrições

textuais de parte da obra do autor consultado), de até três linhas, devem es-

tar contidas entre aspas duplas indicadas por chamadas assim: (FREIRE,

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1974, p. 57). As citações indiretas (texto baseado na obra do autor consulta-

do) devem indicar apenas o autor e o ano da obra.

d) As ilustrações e tabelas deverão ser enviadas no corpo do texto, clara-mente identificadas (Ilustração 1, Tabela 1, Quadro 1, etc.). No caso de foto-

grafias, somente aceitas em preto e branco, é necessário o nome do fotógra-

fo e autorização para publicação, assim como a autorização das pessoas foto-

grafadas. Tais informações devem ser anexadas ao arquivo.

As tabelas, figuras, fotos, ilustrações e diagramas a serem inseridos no

corpo do texto deverão conter:

- Tamanho equivalente a mancha da página (12x18);

- Qualidade de impressão (300 dpi);

- Guardar legibilidade e definição.

Os artigos devem conter no mínimo 10 e máximo de 20 páginas. Necessaria-

mente deverão ter passado por revisão textual.

Referências 

As Referências, digitadas em ordem alfabética no final do texto, devem se-

guir a NBR 6023 (2002). Eis alguns casos mais comuns:

1. LIVRO:

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1974. 150 p. (Série Ecumenismo e Humanismo).

1. EVENTO:

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OLIVEIRA, G. M. S. Desenvolvimento cognitivo de adultos em educação a dis-

tância. In: Seminário Educação 2003. Anais... Cuiabá: UNEMAT, 2003, p.

22-24.

1. ARTIGO EM PERIÓDICO:

GADOTTI, M. A eco-pedagogia como pedagogia apropriada ao processo da

Carta da Terra. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 12, n. 21, p. 11-24,

 jan./jun. 2003.

1. DOCUMENTO COM AUTORIA DE ENTIDADE:

MATO GROSSO. Presidência da Província. Relatório: 1852. Cuiabá, 20 mar.

1853. Manuscrito. 26 p. In: APMT, caixa 1852.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO. Relatório: 2003, Cuiabá,

2004. 96 p.

1. CAPÍTULO DE LIVRO:

FARIA FILHO, L. M. O processo de escolarização em Minas: questões teórico-

metodológicas e perspectivas de análise. In: VEIGA, C. G.; FONSECA, T. N. L.

(Org.). História e Historiografia da Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autên-

tica, 2003. p. 77-97.

1. ARTIGO E/OU MATÉRIA DE REVISTA, BOLETIM E OUTROS EMMEIO ELETRÔNICO:

CHARLOT, Bernard. A produção e o acesso ao conhecimento: abordagem

antropológica, social e histórica. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 14,

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n. 25, jan./jun. 2005. Disponível em: <http://www.ie.ufmt.br/revista>. Acesso

em: 10 nov. 2006.

As notas explicativas, restritas ao mínimo, deverão ser apresentadas norodapé.

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Parte I: Para iníciode conversa

 A mesa de cabeceira

Gregório Duvivier

Folha de S.Paulo 

26 de outubro de 2015

Essa é a história de Pedro. Um homem que virou uma mesa de cabeceira.

Quando Pedro viu Marta, deixou de enxergá-la. Ver Marta coincidiu com

o momento de não conseguir mais vê-la. Deixou de ver rugas ou verrugas.Deixou de ver cravos, e narinas, e cutículas, e partículas de suor.

Via a pele pura, "diáfana", ele pensou, e então percebeu que pensava em

palavras que ele nunca soube o significado. "Diá-fa-na." E as palavras eram

sons. E Marta é uma palavra boa de se escrever no vapor do espelho, pen-

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sou, e escreveu.

Marta já não era um ser humano com um sangue e veias e um intestinogrosso. Via uma nuvem com cabelos. Diáfanos. E os cabelos não eram feitos

de cabelos. Eram feitos de algum material que ainda havia de ser inventado,

que quando venta voa, e quando chove não gruda no rosto, e quando mer-

gulha no mar não perde o volume, igual ao cabelo da pequena sereia, ele

pensou. E quando pensou isso pensou que talvez já não estivesse pensando

as coisas muito bem. E fez uma música sobre isso.

Deixou de saber de horários e datas e cálculos e siglas e chamava CPF

de UFRJ e RG de PM, afinal de contas eram só letras, e qual a importância das

letras se nenhuma dessas serve pra escrever Marta, e afinal de contas tam-

bém se esqueceu das contas, afinal de contas eram só contas, e deixou de

pagá-las.

Como deixou de ouvir palavras, as palavras deixaram de chegar. Olhava

para o copo e já não vinha a palavra copo. Ele então pedia um recipiente

onde pudesse colocar um pouco de... E já não lhe vinha a palavra água. E en-

tão ele ria. E aí veio a pior fase, a fase do riso de qualquer coisa. Quando não

sabia o que dizer, quando sabia, mas não dizia, quando queria chorar de tan-

to rir, quando já não queria nada, Pedro ria, sem saber do que é que ria, ou o

que queria.

Queria parar de rir de tudo, mas ria de tudo o que ouvia. Resolveu parar

de ouvir. O que era grave para um músico. Então parou de tocar. O que era

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ainda mais grave para um músico, e ainda mais agudo. E já não ouvia Marta,

que era a única coisa que precisava ouvir. Mas ao menos já não ria. Sofria.

Mas não ria.

Curvou-se ao lado da cama de Marta, para que ela pudesse pousar as

coisas em suas costas. Às vezes eram coisas quentes. E ele deixou de sentir o

calor na pele. Ou o frio. E os amigos diziam que ele fazia falta. Mas ele estava

ali, debaixo do abajur, em cima do carpete. Ao lado dela, quietinho. E isso

era tão bom. E ele era tão bom nisso.

Para que serve pensar?

Alain de Botton

The School of Life, London, England

22 de junho de 1997

Poucas pessoas são mais entusiásticas do que os filósofos quando se tra-

ta de pensamento. A razão distingue os homens dos animais, argumentava

Aristóteles. Só atingimos a virtude por meio do uso da razão, pensava Platão,

ao passo que, para Tomás de Aquino, a razão está para o homem como Deus

está para o universo. E, como é bem sabido, pouco antes de ser condenado à

morte pelos atenienses empedernidos, Sócrates exprimiu sua crença tenazde que uma vida privada de exame racional não vale a pena ser vivida.

Isso tudo não quer dizer que os filósofos sejam os únicos a pensar. Esta-

mos constantemente envolvidos em processos mentais muito semelhantes

aos que ocupam os filósofos. Tentamos entender, procuramos explicações e

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atribuímos causas. O que é característico dos filósofos é o rigor dos critérios

que empregam antes de aceitar a verdade de qualquer coisa. Quando surgiu

na Grécia antiga, a filosofia opunha-se à fonte tradicional de explicações domundo -a religião popular. Enquanto ditava às pessoas o que deviam crer, a

religião não lhes oferecia razões logicamente fundamentadas para tanto. As

opiniões viviam às custas da confiança -uma forma de escravidão irracional,

ao menos aos olhos dos filósofos, para quem não podia haver pecado maior

do que a crença irrefletida na sabedoria tradicional.

Uma das conseqüências dessa rejeição da sabedoria tradicional é a sen-sação de sabermos muito menos do que imaginávamos saber -ponto de par-

tida da sabedoria filosófica, ao menos na visão de Sócrates, o maior questio-

nador da história da filosofia. Sócrates passou a vida propondo a si mesmo as

questões básicas para as quais seus concidadãos petulantes pensavam já ter

as respostas -questões como "que é a virtude?", "como devemos viver?" e

"que é a sabedoria?".

Mas ele não se contentava em questionar, ele também se interessava em

definir caminhos para chegar a respostas válidas. Se as pessoas em geral

pensam de modo tão confuso, isso ocorria - assim pensava Sócrates - porque

lhes faltava um método lógico de pensar: como não começam a discussão

por um consenso sobre o uso dos termos, o resultado natural é que, confor-

me avançam, caem em contradições e mal-entendidos. Ao passo que o pen-

samento filosófico voltava-se para a construção de argumentos a partir dos

fundamentos mais sólidos e buscava inspiração na geometria.

Admirava-se a geometria por sua capacidade de transitar de uns poucos

axiomas básicos à dedução de verdades mais abrangentes. A lógica filosófica

teve seu pioneiro em Aristóteles, que foi o primeiro a usar letras no domínio

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do pensamento formal -como, por exemplo, na fórmula lógica segundo a

qual, se A é predicado de todo e qualquer B, e B de todo e qualquer C, então

necessariamente A é predicado de todo e qualquer C. A lógica testa a pre-tensão de verdade de enunciados como "todos os europeus são mortais",

decompondo-o em dois enunciados mais simples - "todos os europeus são

seres humanos" e "todos os seres humanos são mortais" - e recompondo a

conclusão - "todos os europeus são mortais"-, que pode não ser surpreen-

dente, mas ao menos ilustra o funcionamento do método filosófico em seu

nível mais básico.Talvez seja melhor definir a filosofia menos a partir dos seus temas do

que a partir do seu método de investigação lógica, do seu modo de pensar:

lógico, silogístico e axiomático. Muitas áreas da ciência que se tornaram disci-

plinas independentes começaram como ramos da filosofia: até o século pas-

sado, os cursos universitários de física eram chamados de "filosofia natural".

Não obstante, no curso de sua longa história, houve cinco áreas em que se

concentrou a atenção dos praticantes da filosofia: epistemologia, ética, teoria

política, estética e filosofia da religião.

Foi provavelmente o primeiro desses ramos que afastou mais pessoas da

filosofia. Esperando um certo número de sugestões úteis sobre como viver,

estudantes de primeiro ano dão de encontro com um curso de epistemolo-

gia, o ramo da filosofia que lida com a teoria do conhecimento. Uma de suas

questões-chave é a fonte de nossos conhecimentos. Os racionalistas (como

Platão e Descartes) argumentam que idéias racionais intrínsecas à mente hu-

mana são as únicas fontes do conhecimento, enquanto os empiristas (Locke e

Hume) afirmam que os sentidos são a fonte primária das nossas idéias e do

nosso conhecimento. Essa ordem de preocupações pode parecer abstrata,

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em especial quando o debate se concentra na natureza da linguagem (a lin-

guagem nos oferece uma imagem correta do mundo?, qual a relação entre

palavras e coisas?), mas a epistemologia permanece como centro vital detoda a empresa filosófica. Pois antes que possamos nos perguntar como de-

vemos viver, a epistemologia cabeça-dura insiste em investigar antes de tudo

como a linguagem nos permite formular tais questões.

É para a ética que devemos nos voltar se quisermos auxílio em nossas

preocupações mais cotidianas. Todas escolas de filosofia na Grécia e na

Roma helenísticas - ou seja, os epicuristas, os céticos e os estóicos - acredita-vam que a filosofia devia tratar dos problemas mais penosos da existência

humana -a morte, o amor, a sexualidade e o ódio. Epicuro dizia ser inútil qual-

quer argumento filosófico que não trate terapeuticamente o sofrimento hu-

mano. Pois, assim como de nada serve a medicina se não expulsar a doença

do corpo, do mesmo modo é inútil a filosofia que não expulsar o sofrimento

da mente.

Diante de alguém preocupado com a morte, o epicurista decerto decom-

poria o problema em suas partes constituintes e argumentaria que só deve-

mos temer o que nos causa dor. Uma vez mortos, não temos que temer a dor

ou o prazer; logo, não há razão lógica para temer a morte. O homem que ver-

dadeiramente compreendeu que não há nada de terrível em cessar de viver

não tem mais nada de terrível a temer -concluía Epicuro. Sendo assim, fala to-

lamente quem diz temer a morte, pois esta não causa dor quando finalmente

sobrevêm; tão-somente sua antevisão pode causar dor.

Examinando os argumentos filosóficos para uma vida conforme à razão,

há que mencionar uma importante contracorrente da filosofia ocidental, que

argumenta contra a razão e exalta a fé ou o instinto. Longe de nos ajudar a re-

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solver problemas, a razão é apontada como causa maior deles. Santo Agosti-

nho escreveu com desdém sobre as teorias com as quais os homens tenta-

ram alcançar a felicidade em meio à miséria desta vida - e aconselhava a sub-missão à vontade divina. E, ao rejeitar as pretensões do Iluminismo, Rousseau

afirmaria que o pensamento corrompe nossos instintos naturais e positivos:

ele imaginou um filósofo que, ao testemunhar da sua janela um assassinato

na rua, não precisaria de muito raciocínio para evitar que sua natureza se

identificasse com a vítima infeliz. Estamos longe da fé socrática numa vida ra-

cional - sendo que a única ironia está em que este chamado a desconfiar dosfilósofos parte de mais um filósofo!

Se o pensamento é a ferramenta básica da filosofia, temos ainda que exa-

minar quais usos os vários filósofos destinam a ela. O que é apenas uma ou-

tra maneira de perguntar: como, afinal, devemos viver? Qual é a boa vida?

Publicado na Folha de São Paulo.

Tradução de Samuel Titan Jr

Filosofia

Anthony Quinton

Universidade de Oxford, Oxford, England

A maioria das definições de filosofia são razoavelmente controversas, emparticular quando são interessantes ou profundas. Esta situação deve-se em

parte ao facto de a filosofia ter alterado de forma radical o seu âmbito no de-

curso da história e de muitas das investigações nela originalmente incluídas

terem sido mais tarde excluídas. Uma definição minimalista mas satisfatória é

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que a filosofia consiste em pensar sobre o pensamento. Isto permite-nos su-

blinhar o carácter de segunda ordem da disciplina e tratá-la como uma refle-

xão sobre géneros particulares de pensamento — formação de crenças e deconhecimento — sobre o mundo ou porções significativas do mundo.

Uma definição mais pormenorizada, mas ainda assim incontroversa e

abrangente, é que a filosofia consiste em pensar racional e criticamente, de

modo mais ou menos sistemático, sobre a natureza do mundo em geral (me-

tafísica ou teoria da existência), da justificação de crenças (epistemologia ou

teoria do conhecimento), e da conduta de vida a adoptar (ética ou teoria dosvalores). Cada um dos três elementos listados possui uma contraparte não fi-

losófica, da qual se distingue pelo seu modo de proceder explicitamente ra-

cional e crítico e pela sua natureza sistemática. Todos nós temos uma concep-

ção geral sobre a natureza do mundo em que vivemos e do lugar que nele

ocupamos. A metafísica interroga-se sobre os pressupostos que sustentam

acriticamente estas concepções recorrendo a um conjunto organizado de

crenças. Ocasionalmente, todos duvidamos e questionamos crenças, não só

as nossas como as alheias, e fazemo-lo com mais ou menos sucesso sem pos-

suirmos uma teoria acerca do que fazemos. O objectivo da epistemologia

consiste em explicitar as regras que determinam a correcta formação de

crenças e argumentar a seu favor. Também orientamos as acções com vista a

objectivos e fins que valorizamos. A ética, ou filosofia moral, no sentido mais

inclusivo, pretende articular, de uma forma racional e sistemática, as regras

ou princípios subjacentes. (Na prática, a ética tem-se restringido aos aspectos

morais da conduta e, em geral, tem tendência para ignorar a maioria das ac-

ções que praticamos em virtude de critérios de eficiência ou prudência,

como se fossem demasiado básicos para justificarem um exame racional.)

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As três partes principais da filosofia estão relacionadas de várias formas.

Para que possamos orientar racionalmente a conduta é necessária uma con-

cepção global do mundo onde esta se desenvolve e de nós próprios en-quanto agentes nele integrados. A metafísica pressupõe a epistemologia

para autenticar as formas especiais de raciocínio a que atribui confiança e

também para assegurar a solidez das assunções que, em algumas variantes,

é levada a fazer acerca da natureza das coisas, por exemplo, que nada pro-

vém do nada, que no mundo e na experiência que dele possuímos existe re-

corrência ou que a mente não se encontra no espaço.Os primeiros filósofos reconhecidos, os pré-socráticos, eram sobretudo

metafísicos preocupados em estabelecer as características essenciais da na-

tureza no seu todo, como na críptica afirmação de Tales: "Tudo é água". Par-

ménides foi o primeiro metafísico cujos argumentos chegaram até nós. Base-

ado nas razões fornecidas pelos famosos paradoxos de Zenão, concluiu que

o mundo estava privado de movimento e ocupava a totalidade do espaço. O

cepticismo dos sofistas desafiou as assunções da moral convencional, facto

que esteve na origem da ética, notavelmente com Sócrates. Platão e Aristóte-

les escreveram penetrantemente sobre metafísica e ética; Platão sobre o co-

nhecimento; Aristóteles sobre lógica (dedutiva), a técnica mais rigorosa para

 justificar crenças; estabeleceu as suas regras de uma forma sistemática e

manteve intacta a sua autoridade durante mais de 2000 anos.

Na Idade Média, ao serviço do cristianismo, a filosofia apoiou-se primei-

ramente na metafísica de Platão, e em seguida na de Aristóteles, com o pro-

pósito de defender crenças religiosas. No Renascimento, a liberdade de es-

peculação metafísica ressurgiu; na sua fase tardia, com Bacon e, de um modo

mais influente com Descartes e Locke, dirigiu-se para a epistemologia com o

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objectivo de ratificar e, tanto quanto possível, acomodar a religião e os novos

desenvolvimentos das ciências naturais. Hume argumentou contra a possibili-

dade da sua compatibilização, bem como da metafísica em geral. Na Europacontinental, Espinosa e Leibniz praticaram uma metafísica dedutiva ao estilo

de Parménides com resultados comparativamente surpreendentes. Kant, for-

mado nesta tradição, afastou-se dela na sequência da leitura de Hume, rejei-

tou a metafísica nas suas variantes tradicionais e atribuiu a ordem do mundo

publicamente observável ao trabalho formativo da mente na experiência. Os

seus herdeiros alemães, tirando partido de algumas inconsistências de Kant,retomaram a metafísica nos moldes pomposos tradicionais. Em Inglaterra, o

empirismo de Locke e Hume prevaleceu, e a epistemologia manter-se-ia

como disciplina filosófica central até meados deste século.

A metafísica dispõe de meios diversos para lidar com um tópico que,

apesar de já formulado, de modo algum é claro: a natureza geral do mundo.

O primeiro consiste em recorrer a demonstrações puramente racionais. Al-

cançamos, então, conclusões admiráveis baseadas no facto de a sua negação

implicar uma auto-contradição. Um exemplo notável é a demonstração onto-

lógica da existência de Deus. Deus é definido como perfeito. Um deus que

existe é mais perfeito que qualquer outra coisa que não exista. Portanto,

Deus existe necessariamente. Adoptando um estilo semelhante, Leibniz de-

monstrou que a realidade, na sua constituição última, é mental; Bradley des-

cobriu contradições escondidas no repertório de noções fundamentais do

senso comum e da ciência (relação, espaço, tempo, pluralidade, o eu, e por aí

adiante), e concluiu que a realidade é uma entidade única, indivisível no teci-

do da experiência, uma unidade espiritual que absorve a personalidade indi-

vidual e a natureza.

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O segundo procedimento metafísico consiste em partir da "aparên-

cia" (da superfície perceptível do mundo), e derivar conclusões a respeito da

realidade última que transcende a aparência. Os argumentos que defendema existência de Deus com base na necessidade de uma primeira causa ou nas

marcas de um desígnio inteligente que descobrimos no mundo da percep-

ção, são exemplos típicos neste domínio. Mais importante ainda para a histó-

ria da filosofia é a teoria das Formas ou universais objectivos de Platão, se-

gundo a qual estes se encontram não no espaço e no tempo mas num mun-

do próprio, que Platão utiliza para explicar o reconhecimento de proprieda-des recorrentes no fluxo contínuo das aparências e ainda para servirem de

objectos das asserções eternamente verdadeiras do conhecimento matemá-

tico.

Hume atacou a metafísica demonstrativa em termos epistemológicos.

Defendeu que os argumentos puramente racionais apenas permitem estabe-

lecer as verdades formais da lógica e da matemática. A negação de um enun-

ciado autocontraditório não é uma verdade factual substancial, mas algo me-

ramente convencional que reflecte o modo como usamos as palavras. Kant

combateu a metafísica transcendente, argumentando que as noções de subs-

tância e causa apenas produzem conhecimento se forem aplicadas à matéria

bruta fornecida pelos sentidos, e não se forem utilizadas para lá dos limites

da experiência. Os positivistas lógicos atacaram a metafísica transcendente

de forma ainda mais veemente, baseados no princípio de verificabilidade,

defendendo que as suas afirmações não têm sentido visto não serem verificá-

veis na experiência.

Kant opôs-se também a um tipo de metafísica caracterizado não tanto

por ir além do mundo das aparências como pelas extrapolações em direcção

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ao infinito que construiu a partir delas, por exemplo, as teses de que o mun-

do é infinitamente grande, que é eterno, composto por partes infinitesimais,

e por aí adiante. Kant formou pares de asserções deste género com as suasnegações e argumentou, num aparente desafio à lógica, que ambos os mem-

bros de cada par são autocontraditórios. Este tipo de metafísica, que se ocu-

pa do quantitativamente inacessível (e não com o qualitativamente inacessí-

vel), está aberta às mesmas objecções.

As teorias sobre o que foi designado por "categorias do ser" encontram-

se entre as sobreviventes do longo combate que opôs a metafísica aos seusdetractores. O dualismo psicofísico, argutamente tratado em Descartes, mas

 já defendido antes e também depois, é talvez o caso mais familiar. Esta forma

de dualismo tem raízes epistemológicas. Uma é a distinção entre dois tipos

de experiência: as sensações e a introspecção. Outra é a alegada infalibilida-

de das crenças acerca de conteúdos mentais em contraste com a falibilidade

das crenças sobre o mundo material objectivo. Os materialistas, como Hob-

bes, argumentaram que a actividade mental é corpórea, ainda que apenas

numa pequena escala. Os idealistas como Berkeley (e, de certo modo, os fe-

nomenistas como Mill) defenderam que os corpos materiais são complexos

de sensações, quer efectivas, quer existentes na mente de Deus ou hipotéti-

cas.

O domínio platónico das ideias alberga um alegada terceira categoria, a

das entidades abstractas, por exemplo, propriedades, relações, classes, nú-

meros e proposições. Os valores foram aí incluídos de maneira a providenci-

ar algo acerca do qual os juízos de valor sejam verdadeiros.

O monismo pode ser nem mental nem físico, mas neutral. Russell, William

James, Mach e, até certo ponto, Hume, pensavam que os corpos e as mentes

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eram formados pelo mesmo tipo de sensações, possíveis e actuais, tal como

as imagens que as copiam. Estas sensações combinam-se para constituir os

corpos; as sensações e as imagens constituem as mentes.Além dos tipos de metafísica consideradas até ao momento, cujo objecti-

vo é construir uma concepção do mundo como um todo, há também uma

metafísica de âmbito mais restrito que procura examinar a detalhada estrutu-

ra do mundo: os indivíduos, as suas propriedades, as relações que mantêm

entre si, os acontecimentos que preenchem a sua história — a mudança, por-

tanto — e também os acontecimentos que constituem as partes mais desinte-ressantes e as mais férteis dessa história; o facto de os indivíduos possuírem

propriedades, e por aí adiante. A doutrina de Aristóteles transformou estes

tópicos num tema de investigação organizada (ainda que as suas categorias

fossem bastante diferentes das mencionadas atrás). Em certa medida, foram

absorvidos pela lógica filosófica uma vez que esses aspectos mais subtis da

estrutura do mundo correspondem às características formais da linguagem

(do pensamento e do discurso), assumidas como distinções básicas da lógica

formal.

A questão fundamental da epistemologia, mas talvez não a mais interes-

sante, é a definição de conhecimento. Platão colocou-a no Teeteto e concluiu

que o conhecimento é algo mais que crença verdadeira, ainda que a inclua. A

ideia de que a justificação constitui o elemento remanescente enfrenta difi-

culdades sérias excepto, como muitos sustentam, se a regressão ao infinito a

que parece dar origem puder ser evitada defendendo, por exemplo, que al-

gumas crenças não são justificadas por outras crenças, mas pela experiência.

Muitos filósofos consideram, no entanto, que este problema tem um interes-

se reduzido uma vez que o próprio conhecimento tem um interesse reduzi-

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do. Tudo quanto importa é a crença racional justificada. Contudo, foi também

sugerido de forma persuasiva que o elemento em falta na definição não de-

verá ser acidental ou que deverá possuir como causa o facto que o torna ver-dadeiro.

Quase toda a epistemologia envolve duas distinções amplas: a primeira

entre o que Leibniz chamou "verdades da razão" e "verdades de facto", a se-

gunda entre o que é conhecido directa ou imediatamente e o que é conheci-

do por inferência. As verdades da razão são verdades necessárias que po-

dem ser descobertas a priori, isto é, sem a dependência dos sentidos e ape-nas pelo pensamento. As verdades de facto são contingentes, baseando-se a

sua justificação na experiência. As duas distinções sobrepõem-se. Algumas

verdades da razão devem ser imediatamente conhecidas para que as restan-

tes possam ser inferidas. As primeiras são consideradas axiomas ou princípi-

os da lógica e da matemática. A perspectiva convencional acerca de verda-

des de facto não imediatas sustenta que estas são realmente inferidas, mas

não com base na lógica dedutiva. Neste caso é necessária a indução, um pro-

cesso que consiste em derivar generalizações irrestritas com base num nú-

mero limitado de instâncias. Peirce e, ainda com maior veemência, Popper,

negaram ou marginalizaram a indução. Deste ponto de vista, os enunciados

gerais são propostos como hipóteses dignas de serem investigadas e, em se-

guida, examinam-se as consequências deles deduzidas; são rejeitados caso

estas se revelem falsas e preservados, com crescente confiança, quanto mai-

or o número de testes a que sobrevivam. Esta concepção está mais próxima

da prática científica que a teoria convencional da indução mas, aparentemen-

te, permite-lhe entrar ainda pela porta do fundo.

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Leibniz pensava que as verdades da razão decorrem do princípio de con-

tradição; no entanto, não avançou o suficiente para concluir, como Hume e a

maioria dos empiristas subsequentes, que por essa razão são analíticas, nosentido de serem meramente verbais e de se limitarem a reiterar no que afir-

mam algo já antes assumido. Kant considerou que o principal problema da fi-

losofia consistia em determinar se existem, e de que modo, crenças em si-

multâneo sintéticas, com conteúdo substancial e a priori, que o pensamento

fosse, por si só, capaz de descobrir. Concluiu que estas crenças existem: são

as crenças da aritmética e da geometria, ou os "pressupostos das ciências na-turais", que afirmam a existência de uma quantidade permanente de matéria

na natureza e que todos os acontecimentos têm uma causa. Foi ainda mais

longe e atribuiu a verdade necessária destas crenças substanciais ao modo

como a mente impõe a ordem no caos da experiência a que está submetida.

Mas não foram muitos os que o seguiram. Mill sustentou que as verdades

matemáticas são na realidade empíricas; Herbert Spencer que as verdades

necessárias não vão além de crenças bem estabelecidas que herdamos dos

nossos antepassados. Recentemente, Quine defendeu que não existe uma

diferença de género entre verdades da razão e verdades de facto, mas ape-

nas no grau de determinação com que aceitamos abandoná-las perante da-

dos recalcitrantes.

A distinção entre conhecimento directo e conhecimento por inferência

foi desafiada em diferentes momentos, incluindo na actualidade, por filóso-

fos que não encontraram saída para o labirinto das crenças. Os defensores

da teoria coerentista do conhecimento seguiram as pisadas dos idealistas he-

gelianos e dos positivista vienenses (até Tarski os ter libertado do labirinto).

Parte das razões que sustentam esta distinção provém de um antigo princípio

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segundo o qual a nossa percepção dos objectos materiais externos não é di-

recta devido à sua característica falibilidade, como revela o apreço que por

vezes exibimos por algumas ilusões, devendo, portanto, ser inferida combase no conhecimento por hipótese infalível que possuímos das nossas im-

pressões sensoriais. Mas, serão estas inferências válidas ou, no mínimo, de-

fensáveis? Caso o não sejam, deveríamos suspender cepticamente as nossas

crenças a respeito do mundo exterior? E, em caso de resposta afirmativa,

qual o género de inferências que temos em vista: para a mesma categoria de

coisas, impressões possíveis e actuais, ou para algo diferente, que transcendea experiência, nomeadamente a matéria? O padrão associado a este proble-

ma, tal como as várias modalidades de soluções possíveis que lhe correspon-

dem, foram considerados recorrentes num grande número de casos. Por

exemplo, os indícios que possuímos para sustentar crenças sobre o passado

encontram-se no presente, em vestígios e memórias; mas, de que modo ul-

trapassar o abismo que dele nos separa, se é que isto é possível? As crenças

acerca das outras mentes são baseadas no comportamento dos corpos que

observamos e naquilo que nos dizem. Uma solução até agora não menciona-

da consiste em negar que estejamos confinados ao tipo de indícios especifi-

cados. Isto parece bastante atraente no caso da percepção uma vez que im-

plica que percepcionamos os objectos materiais directamente, ainda que

não de modo infalível, e no caso das crenças sobre o passado, que as nossas

memórias constituem realmente essas crenças, não sendo, portanto, apenas

um indício em que se sustentam; no caso das mentes alheias, contudo, al-

gum tipo de telepatia seria indispensável para o efeito. A importância central

destes três géneros de crenças dificilmente exige ser sublinhado, não apenas

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para a ciência, a história ou a psicologia, como para a nossa vida cognitiva

considerada como um todo.

Uma característica curiosa acerca da epistemologia é a reduzida atençãoprestada à fonte da grande maioria das nossas crenças, nomeadamente, o

testemunho alheio: pais, professores, manuais didácticos, enciclopédias. Há

aqui um problema interessante. Se dependemos deles quanto aos princípios

que utilizamos para testar o carácter fidedigno do que nos dizem, como po-

deremos alguma vez alcançar uma verdadeira autonomia cognitiva e intelec-

tual?A lógica, que, como foi dito atrás, constitui o mais poderoso e coercivo

instrumento de justificação de crenças, nunca foi considerada parte da epis-

temologia. A organização sistemática de que foi alvo teve lugar ainda antes

de a epistemologia ser identificada como uma disciplina filosófica por direito

próprio. Começou, e em parte permaneceu, como um corpo ordenado de re-

gras de inferência aplicáveis a todos os géneros de pensamento e de discur-

so. Desde Aristóteles até meados do século XIX manteve-se em larga medida

adormecida. Desde então, sofreu um amplo desenvolvimento e incluiu a lógi-

ca aristotélica com algumas alterações, tornando-se numa certa perspectiva

um ramo da matemática. Os seus elementos foram desde sempre considera-

dos um preâmbulo ao estudo da filosofia, algo que ainda hoje se verifica.

Não constitui exactamente uma parte da filosofia, ainda que a reflexão crítica

sobre as suas assunções, designada por lógica filosófica, o seja de modo in-

questionável.

Há um número bastante vasto e, de facto, indeterminado, de disciplinas

filosóficas especializadas; filosofias da mente, linguagem, matemática, das ci-

ências (da natureza e sociais), da história, religião, direito, educação, e até do

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desporto e do sexo. Sempre que um campo de investigação particular, como

é caso da ciência e da história, tem em vista o conhecimento, a filosofia cor-

respondente é de natureza epistemológica. A metafísica da natureza é umaideia destinada a deixar de fora os cientistas, ainda que o problema da reali-

dade de certas entidades teóricas como as partículas elementares possa ser

incluído nela. A metafísica ou filosofia especulativa da história, que se reduz à

elaboração de esquemas e padrões gerais (cíclicos ou progressivos) da totali-

dade dos acontecimentos históricos é considerada com suspeição. O funda-

mento racional para esta suspeição é um tópico que pertence à crítica e epis-temologia da história.

A filosofia da mente, tal como actualmente é praticada, teve início com o

problema epistemológico que consiste em determinar como é possível saber

o que se passa nas mentes alheias. Transformou-se, contudo, em metafísica.

O velho problema da identidade pessoal pode ser colocado de duas manei-

ras: "Como sabemos que uma pessoa actualmente existente é a mesma pes-

soa que existiu num momento anterior?" ou "O que significa para uma pes-

soa actualmente existente ser idêntica à pessoa que existiu antes?". Se o pro-

blema da identidade pessoal não é simplesmente irresolúvel, ambas as per-

guntas devem receber a mesma resposta.

Considera-se frequentemente que a filosofia da ciência envolve tópicos

importantes para o pensamento pré-científico. Um deles refere-se à natureza

da causalidade e ao modo de distinguir uma conexão entre acontecimentos

determinada por uma lei de uma simples concomitância acidental. Outro tó-

pico é o da justificação da indução e da interpretação de probabilidades, ou

géneros de probabilidade, que a indução supostamente confere às suas con-

clusões. As relações causais, as crenças de âmbito geral e aquelas que consi-

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deramos não serem meramente prováveis, são características indispensáveis

do pensamento típico do senso-comum.

A terceira e última grande subdivisão da filosofia é a ética, ou teoria dosvalores; o seu objectivo consiste no exame crítico e racional do pensamento

acerca do modo como nos conduzimos na vida. A acção, em contraste com o

comportamento, é entendida como o produto de uma escolha; a compara-

ção entre diversas alternativas é empreendida à luz do seu carácter desejá-

vel, das suas consequências ou da possibilidade ou facilidade de as efectuar.

Na acção encontram-se, assim, envolvidos dois tipos de crenças: crenças fac-tuais acerca do que está em causa ao agir de determinada maneira e quais

os seus resultados, e crenças a respeito do valor desses resultados ou ausên-

cia de valor do que é necessário fazer para os assegurar.

De facto, na ética posterior aos gregos, o tipo de acção que monopolizou

a atenção foi a acção moral estritamente concebida. Eis, provavelmente, um

resultado do entusiasmo religioso. O cristianismo iniciou-se como um religião

milenarista, indiferente aos assuntos mundanos e preocupada com a salva-

ção, em parte porque estava convencido da falta de valor do mundo e da

carne mas, principalmente, devido à crença no fim do mundo. Qualquer que

seja a causa desta concepção estrita, ela provocou um efeito de distorção.

Em princípio, a ética deveria interessar-se pelos diferentes géneros de con-

duta deliberada e reflectida: a conduta prudencial e de interesse próprio

com vista, respectivamente, à mínima perda e ao ganho máximo para o agen-

te, a conduta técnica eficiente, a conduta económica, a conduta saudável, etc.

O bem moral e a rectidão são apenas tipos particulares de rectidão. A lógica

e a epistemologia, na medida em que se ocupam em distinguir o certo do er-

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rado no plano do raciocínio, podem ser descritas, não por liberdade metafó-

rica, como éticas da inferência e da crença.

A influência da religião na moral fez esta última ser considerada os man-damentos de Deus à humanidade. Dado que esta situação conduziu a pro-

blemas de autentificação e de interpretação, a voz de Deus internalizou-se,

quer como uma espécie de sentido moral sob cuja influência a qualidade

moral das acções e o carácter do agente é apreendido, quer como razão mo-

ral manifesta na apreensão da necessidade auto-evidente dos princípios mo-

rais. São duas as assunções que podemos questionar a propósito destes ti-pos de intuicionismo. A primeira é a de que as características morais são sui

generis, sem relação lógica com as características naturais ou percepcioná-

veis dos agentes e das suas acções. A segunda é a de que as acções, ou cer-

tos tipos de acção, estão intrinsecamente certas ou erradas, quaisquer que

sejam as suas consequências, reais ou esperadas. Estas características, se re-

almente distintivas da moralidade, torná-la-iam diferente dos restantes mo-

dos de acção.

Os utilitaristas rejeitam ambas as assunções. Derivam a rectidão ou a não

rectidão das acções da bondade ou malignidade das suas consequências e,

de forma plausível, das consequências que é razoável para o agente esperar,

de preferência às consequências de facto resultantes. Em segundo lugar,

consideram que o bem coincide com a felicidade e o prazer ou, mais exacta-

mente, que reside na felicidade geral, na felicidade do maior número de indi-

víduos. Formulada negativamente, a doutrina utilitarista coincide com o senti-

mento moral irreflectido: um acção é má se implica o prejuízo de outros e é

permissível caso esse prejuízo não se verifique; moralmente, uma acção me-

rece ser creditada se alivia ou previne o sofrimento alheio.

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Apesar das diferenças que os separam, intuicionistas e utilitaristas estão

de acordo quanto à existência de verdades morais objectivas. A magnitude e

intensidade das disputas morais fortalece o cepticismo, segundo o qual os juízos morais são apenas manifestações dos nossos gostos e repulsas e as

disputas morais o resultado da colisão de sentimentos que não podem ser

resolvidas através de meios racionais. A questão fundamental em ética, con-

cebida simplesmente como filosofia moral, é a de saber se as nossas convic-

ções morais possuem validade objectiva e, em caso afirmativo, de que tipo.

Serão, como pretendem os intuicionistas, convicções de um tipo especial, oumantêm ligações lógicas com o conjunto das nossas crenças? Será que as

propriedades morais são intrínsecas à acção ou apenas dependem das suas

consequências? Em que consiste o bem e a virtude moral? Será uma disposi-

ção para praticar acções rectas ou, de forma mais estrita, a disposição para

praticar acções rectas porque são rectas? Em que condições um agente me-

rece ser censurado (ou elogiado) em consequência de acções praticadas?

Será que a responsabilidade pressupõe a liberdade da vontade, no sentido

em que as que as escolhas livres não são causalmente influenciadas?

Outras duas formas estabelecidas da teoria dos valores são a filosofia po-

lítica e a estética. A filosofia política é uma extensão da ética para o domínio

das instituições sociais e, tal como a ética em geral, parece excessivamente

moralizada. O problema fundamental da filosofia política é a base da obriga-

ção dos cidadãos em obedecer ao estado e às suas leis e, visto do outro ân-

gulo, o do estado em compelir os cidadãos a obedecer-lhe. (Seria interessan-

te investigar em que consiste o que torna mais razoável para os cidadãos

obedecerem.) Será que a obrigação de obedecer depende do conteúdo das

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leis ou da forma como o estado é formado e mantido? Será que os seres hu-

manos possuem direitos que limitam a esfera de actuação do estado?

O valor estético é reconhecido como independente dos valores morais,apesar da ocorrência de elementos morais na crítica — por vezes relevante-

mente, outras de forma intrometida. A palavra "beleza" não o indica satisfato-

riamente. Outras línguas conseguem fazer melhor. "Beau" e "schön" signifi-

cam a propriedade dos objectos artísticos ou naturais que merecem ser con-

templados por direito próprio, independentemente de considerações a res-

peito da sua eventual utilidade ou da informação que podemos obter pelofacto de os estudarmos.

As partes estabelecidas da filosofia foram já mencionadas, mas não exis-

tem limites evidentes para o seu campo de aplicação. Sempre que nos depa-

ramos com uma ideia cujo significado é de algum modo indeterminado ou

controverso, se os enunciados onde ocorre parecem dificilmente sustentá-

veis ou mantêm com outras crenças comparativamente mais claras relações

lógicas obscuras, deparamo-nos ainda com uma oportunidade para reflectir

filosoficamente.

Anthony Quinton

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W. V. Quine e U. J. Ullian, The Web of Belief (Nova Iorque, 1970)

Bertrand Russell, Os Problemas da Filosofia (Arménio Amado, várias edi-

ções)

Tradução de Paulo Ruas

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Texto retirado de Oxford Companion to Philosophy , org. por Ted Honde-

rich (OUP, 1995, pp. 666-670)

Termos de utilização " Não reproduza sem citar a fonte

Como se escreve um ensaio de filoso-fia

Escrever, aparentemente, é a tarefa mais complexa que realizamos. Inciial-

mente, porque é um trabalho solitário, embora haja uma certa dimensão co-

letiva. Mas, no fim das contas, é o escritor que se depara com a página em

branco, ou com a tela de seu computador. Segundo, o risco de perder-se no

bom uso da gramática inibe até os mais desinibidos. A exposição de seu des-

leixo com a língua faz com que o texto fique contido em pensamentos, sem

nunca virar sentenças registradas em escritura. Terceiro, parece haver um de-

sejo secreto de todo escritor em seduzir seu leitor, levá-lo para os caminhos

que sua imaginação inventou, com a fantasia de que esta breve jornada será

repleta de deleite. Ao primeiro sinal de que esta travessia será enfadonha, os

dedos fogem do teclado, a mão larga a caneta.

Estas notas tomei de um autor que admiro, porque consegue me aterrori-

zar sem produzir repulsa: Stephen King. Acho seu terror fino, seu estilo sedu-

tor, suas estórias criativas. Estas notas eu li em Sobre a escrita.E como escrever em Filosofia?

É como escrever em qualquer outra área. Eu sei, há algumas peculiarida-

des, mas servem para outras áreas também. Espero trazer, neste texto, algu-

mas indicações da escrita rigoroza. Mas que não seja entendida como escrita

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sisuda. Escrever rigorosamente não significa escrever de forma desagradável,

sem elegância, de estilo aborrecedor.

Espero que as estratégias apresentadas aqui sejam úteis para qualquerestudante que precisa escrever ensaios. Com elas, quero oferecer formas de

construir a boa e rigorosa prosa.

Seria bom lembrarmos como Nietzsche trata os escritos. No seu Zaratus-

tra ele diz: “De todo escrito, amo apenas o que se escreve com o próprio san-

gue. Escreve com sangue: e verás que sangue é espírito.” (Nietzsche,  Assim

falou Zaratustra, Do ler e do escrever) Haverá maior comprometimento do es-critor com seu texto do que escrever com o próprio sangue? Engana-se

quem imagina que, aqui, está em questão noções como verdade ou fidelida-

de. Entendo que a força do entendimento desta sentença é a de que ne-

nhum texto irá para além de seu autor. Isso é uma forma de dizer que todo

texto é autobiográfico. É isso que ele diz em Além de bem e mal: “Gradual-

mente foi se revelando para mim o que toda grande filosofia foi até o mo-

mento: a confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias involun-

tárias e inadvertidas” (Nietzsche, Além de bem e mal, § 6) Entendo que aqui é

dado um golpe nas pretensões de qualquer ideal de uma escrita objetiva;

penso que nunca iremos ultrapassar nossos limites, nossas fronterias valorati-

vas, culturais, linguisticas. Se há preconceitos, eles aparecerão. Se há fragili-

dades, elas estarão lá. Se há incompreensões, elas serão apresentadas. Por-

tanto, o melhor do bom escritor é sua dieta cultural, ou seja, o modo como

ele cultiva seu pathos.

Agora, há algo inalienável: ninguém escreve se não começar.

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O que se faz num ensaio de Filosofia?

1. Um ensaio de filosofia consiste numa defesa argumentadade uma afirmação.

Os ensaios dos estudantes devem oferecer um argumento. Não podem con-

sistir na mera exposição das suas opiniões, nem na mera apresentação das

opiniões dos filósofos discutidos. É preciso que o estudante defenda as afir-

mações que faz e que ofereça razões para se pensar que são verdadeiras.

Assim, o estudante não pode simplesmente dizer:

 A minha opinião é que P.

Deve antes dizer algo como:

 A minha opinião é que P. Penso isto porque...

ou:

Penso que as considerações seguintes... oferecem um argumento

convincente em defesa de P.

Da mesma forma, o estudante não deve dizer simplesmente:

Descartes afirma que Q.

Ao invés, terá de dizer algo como o seguinte:

Descartes afirma que Q; contudo, a seguinte experiência mental mos-

trará que não é verdade que Q...

Ou:

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Descartes afirma que Q. Julgo que esta afirmação é plausível, pelas

 seguintes razões...

Um ensaio de filosofia pode ter vários objetivos. Geralmente começamos por

apresentar algumas teses ou argumentos para consideração do leitor, pas-

sando de seguida a fazer uma ou duas das coisas seguintes:

- Criticar o argumento, ou demonstrar que certos argumentos em

defesa da tese não são bons.

- Defender o argumento ou tese contra uma crítica.- Oferecer razões para se acreditar na tese.

- Oferecer contra-exemplos à tese.

- Contrapor os pontos fortes e fracos de duas perspectivas opostas

sobre a tese.

- Dar exemplos que ajudem a explicar a tese, ou a torná-la mais

plausível.

- Argumentar que certos filósofos estão comprometidos com a tese

por causa dos seus pontos de vista, apesar de não a terem explici-

tamente afirmado ou endossado.

- Discutir que consequências a tese teria, se fosse verdadeira.

- Rever a tese à luz de uma objecção qualquer.

É necessário apresentar explicitamente as razões que sustentam as nossas

afirmações, independentemente de quais destes objectivos tenhamos em

mente. Os estudantes geralmente sentem que não há necessidade de muita

argumentação quando uma dada afirmação é para eles evidente; mas é mui-

to fácil sobrestimar a força da nossa própria posição. Afinal de contas, já a

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aceitamos. O estudante deve presumir que o leitor ainda não aceita sua posi-

ção e tratar o ensaio como uma tentativa de persuadir o leitor. Por isso, não

se deve começar um ensaio com pressupostos que quem não aceita a nossaposição vai com certeza rejeitar. Se queremos ter alguma hipótese de persu-

adir as pessoas, temos de partir de afirmações comuns, com as quais todos

concordam.

2. Um bom ensaio de filosofia é modesto e defende uma pe-quena ideia, mas apresenta-a com clareza e objectividade, e

oferece boas razões em sua defesa.Muitas vezes, as pessoas têm demasiados objectivos num ensaio de filosofia.

O resultado disto é, normalmente, um ensaio difícil de ler e repleto de afir-

mações pobremente explicadas e inadequadamente defendidas. Portanto,

devemos evitar ser demasiado ambiciosos. Não devemos tentar chegar a

conclusões extraordinárias num ensaio de 5 ou 6 páginas. Feita adequada-

mente, a filosofia avança em pequenos passos.

3. Originalidade

O objectivo dos ensaios escolares é demonstrar que o estudante entende o

problema e é capaz de pensar criticamente sobre ele. Para que isto aconteça,

o ensaio do estudante tem de revelar algum pensamento independente.

Isto não significa que o estudante tem de apresentar a sua própria teoria,

ou que tenha de dar uma contribuição completamente original para o pensa-

mento humano. Haverá muito tempo para isso no futuro. Um ensaio bem es-

crito é claro e directo (veja abaixo), rigoroso ao atribuir opiniões a outros filó-

sofos (veja abaixo), e contém respostas ponderadas e críticas aos textos que

lemos. Não é necessário inovar sempre.

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Mas o estudante deve tentar trabalhar com os seus próprios argumentos,

ou a sua maneira de elaborar, criticar ou defender algum argumento que viu

nas aulas. Não basta simplesmente resumir o que os outros disseram.

Três estágios de redação

1. Primeiros Estágios

Os primeiros estágios de redação de um ensaio de filosofia incluem tudo o

que o estudante faz antes de se sentar para escrever o seu primeiro esboço.Estes primeiros estágios envolvem a escrita, mas o estudante ainda não vai

escrever um ensaio completo. Pelo contrário, o estudante deve fazer anota-

ções de leituras, rascunhos das suas ideias, tentativas para explicar o argu-

mento principal que deseja avançar, e deve criar um esboço.

Discuta as questões com os outros

Como foi dito, espera-se que os ensaios dos estudantes demonstrem que es-

tes entenderam o assunto que discutiram nas aulas e, mais ainda, que podem

pensar criticamente sobre esse assunto. Uma das melhores maneiras de veri-

ficar a nossa compreensão da matéria das aulas é tentar explicá-la a quem

não está ainda familiarizado com ela. Eu descobri repetidamente, enquanto

ensinava filosofia, que não conseguia explicar adequadamente uma questão

ou argumento que julgava ter entendido bem. Isto aconteceu porque o pro-

blema era mais complexo do que eu tinha percebido. O estudante terá a

mesma experiência. Por isso, é bom que troque considerações com colegas e

com amigos que não assistem às aulas, o que o ajudará a compreender me-

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lhor o que discutimos nas aulas e a identificar o que ainda não compreendeu

inteiramente.

Será ainda mais proveitoso que os estudantes troquem consideraçõesentre si sobre o que querem discutir nos seus ensaios. Quando as ideias do

estudante estiverem suficientemente bem trabalhadas para que ele possa ex-

plicá-las oralmente, então ele estará pronto para se sentar e fazer um esboço.

Faça um esboço de trabalho

Antes de começar a escrever um rascunho, você precisa pensar sobre o que

vai escrever: em que ordem deve explicar os diversos pontos a serem abor-

dados? Em que pontos deve apresentar a posição ou argumento contrários?

Em que ordem deve expor a crítica que faz aos argumentos ou posições con-

trárias? O que pretende discutir pressupõe outra discussão anterior? E assim

por diante.

A clareza geral do seu ensaio dependerá em grande parte da sua estrutu-

ra. Por isso, é importante pensar sobre estas questões antes de começar a es-

crever.

Eu recomendo fortemente que, antes de começar a escrever, o estudante

faça um esboço do ensaio e dos argumentos que vai apresentar, o que lhe

será útil para organizar os pontos que quer abordar e para lhes dar uma di-

recção. Este procedimento também ajuda o estudante a assegurar-se de que

pode dizer qual é seu argumento principal ou crítica, antes de se sentar paraescrever um rascunho completo. Geralmente, quando os estudantes têm difi-

culdade em escrever, é porque ainda não compreenderam bem aquilo que

estão a tentar dizer.

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Dê toda a atenção ao esboço, que deve ser bem detalhado. (Para um en-

saio de 5 páginas, um esboço adequado deve ter uma página inteira ou mes-

mo mais.)Eu acho que fazer um esboço de trabalho representa pelo menos 80%

do trabalho de escrever um ensaio de filosofia. Se faz um bom esboço, o res-

to do processo de escrita será muito mais tranquilo.

Comece logo a trabalhar

Os problemas filosóficos e a redacção filosófica exigem cuidado e reflexão

complementares. O estudante não deve esperar até duas ou três noites antes

da data de entrega para começar a escrever. Isto é tolo. Escrever um bom en-

saio de filosofia exige um grande esforço de preparação.

O estudante precisa dar a si mesmo tempo suficiente para pensar sobre

o tópico e escrever um esboço detalhado. Só então estará pronto para escre-

ver um rascunho completo. Concluído o rascunho, abandone-o por um ou

dois dias. Só então deve retomá-lo e reescrevê-lo várias vezes. Pelo menos 3

ou 4. Se puder, mostre-o aos seus amigos e observe as suas reacções. Eles

compreendem os seus pontos principais? Há partes no seu rascunho obscu-

ras ou confusas para eles?

Tudo isso leva tempo. Assim, o estudante deve começar a trabalhar nos

seus ensaios assim que os tópicos estejam determinados.

2. Escreva um rascunho

Se o estudante já reflectiu sobre o seu argumento e criou um esquema para

o ensaio, então está pronto para se sentar e escrever um rascunho completo.

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Use uma linguagem simples

Não aposte na elegância literária. Use um estilo simples e directo; mantenha

frases e parágrafos curtos e escolha palavras familiares. Se usar palavras re-

buscadas onde as simples dariam conta do recado, os professores riem-se de

si. As questões da filosofia são suficientemente profundas e difíceis sem que

o estudante tenha de as enlamear com um linguagem pretensiosa ou verbor-

reica. Não escreva num estilo que não usaria coloquialmente: se não se diz

assim, não o escreva assim.

O estudante pode pensar que, uma vez que o professor de filosofia já

sabe muito sobre o tema do ensaio, pode deixar de lado boa parte da expli-

cação básica e escrever num estilo super-sofisticado, como um especialista

que fala com outro. Garanto que este procedimento tornará o seu trabalho

incompreensível.

Se o seu ensaio soar como se tivesse sido escrito para uma audiência da

terceira classe, então provavelmente tem a clareza adequada.

Nas aulas de filosofia o estudante encontra por vezes filósofos cujo estilo

é obscuro e complicado. Todos os que lêem este tipo de texto acham-no difí-

cil e frustrante. Os autores em questão são filosoficamente importantes, ape-

sar de a sua prosa ser má, e não por causa dela. Assim, não tente imitar esse

tipo de prosa.

Torne óbvia a estrutura de seu ensaio

A estrutura do seu ensaio tem de ser óbvia para o leitor. Não obrigue o leitor

a despender energias para a compreender. Ofereça as suas ideias de bande-

 ja.

Como se pode fazer isso?

Antes de mais nada, use conectivos como os seguintes:

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- Porque, uma vez que, dado o argumento.

- Logo, portanto, por conseguinte, segue-se que, consequentemen-

te.- Não obstante, todavia, mas.

- No primeiro caso, por outro lado.

Estes recursos ajudam o leitor a não perder a direcção da sua argumentação.

Certifique-se que usa as palavras correctamente! Se disser "P. Portanto Q.",

está a afirmar que P é uma boa razão para se aceitar Q. É melhor que isso

seja mesmo assim. Se não for, os professores protestam. Não atire de qual-

quer maneira um "portanto" ou um "consequentemente" para fazer o seu

pensamento parecer mais lógico do que realmente é.

Outro recurso que pode ajudá-lo a tornar óbvia a estrutura do seu traba-

lho é dizer ao leitor o que já fez até o momento e o que vai fazer em seguida.

Pode dizer algo como o seguinte:

- Começarei por...

- Antes de dizer o que está errado com este argumento quero...

- Estas passagens sugerem que...

- Vou agora defender esta afirmação...

- Esta afirmação é também apoiada por...

- Por exemplo...

Estes indicadores fazem uma grande diferença. Considere os seguintes dois

fragmentos de ensaios:

- … Acabamos de ver como X diz que P. Vou agora apresentar dois

argumentos a favor de não-P. O primeiro argumento é...

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- O segundo argumento a favor de não-P é...

- X pode responder aos meus argumentos de várias formas. Por

exemplo, poderia dizer que...- Todavia esta resposta falha, porque...

- X também poderia responder a meu argumento afirmando que...

- Esta resposta também falha, porque...

- Assim, vimos que nenhuma das respostas aos meus argumentos a

favor de não-P foi bem sucedida. Consequentemente, devemos re-

 jeitar a afirmação de X de que P.- Vou defender a ideia de que Q.

- Há três razões para se pensar que é verdade que Q. Primeiramen-

te...

- Em segundo lugar...

- Em terceiro lugar...

- A objecção mais forte a Q é que...

- Todavia, esta objecção não é bem sucedida, pela seguinte razão...

Veja-se como é fácil reconhecer a estrutura destes ensaios. A estrutura dos

ensaios dos estudantes deve ser igualmente fácil.

Uma observação final: deixe sempre muito claro quando expõe suas opi-

niões ou, ao contrário, quando apresenta a opinião de algum filósofo que es-

tiver discutindo. O leitor não deve ficar em dúvida sobre a autoria das afirma-ções que faz em um dado parágrafo.

O estudante não conseguirá tornar óbvia a estrutura do seu ensaio se

não souber que estrutura é essa, ou se o ensaio não tiver nenhuma. Por isso é

tão importante fazer um esboço de trabalho.

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Seja conciso, mas explique-se completamente

Para escrever um bom ensaio de filosofia, precisamos de ser concisos. Ainda

assim, temos de explicar completamente os nossos pontos de vista.

Pode parecer que estas exigências nos empurram em direcções opostas

(é como se a primeira dissesse "Não fale muito," e a segunda dissesse "Fale

muito") mas, se as compreender adequadamente, verá que é possível aten-

der a ambas.

- Os professores insistem na concisão porque não querem ver o es-

tudante a divagar a respeito de tudo o que conhece de um deter-minado tema, tentando mostrar como é inteligente e culto. Cada

ensaio deve tratar de uma única questão ou problema específico.

Certifique-se de que trata efectivamente desse problema em parti-

cular. O que não se referir especificamente ao problema a ser tra-

tado não deve constar do seu ensaio. Elimine tudo o resto. É sem-

pre melhor concentrar-se em um ou dois pontos e desenvolvê-los

em profundidade do que falar de tudo. Um ou dois caminhos cla-

ros funcionam melhor que uma floresta impenetrável.

Formule, no início do artigo, o problema ou questão central que deseja tratar,

e mantenha-o em mente o tempo todo. Esclareça qual é o problema, e por

que razão é um problema. Certifique-se de que diz apenas o que é relevante

para o tema central e de que informa ao leitor da relevância do que vai tratar.Não o obrigue a adivinhar.

- O que quero dizer com "explique-se completamente" é que, quan-

do temos um tópico para explorar, não devemos simplesmente ati-

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rá-lo numa frase. Explique-o; dê um exemplo; esclareça de que

forma esse tópico ajuda o seu argumento.

Mas "explique-se completamente" também significa ser tão claro e explícito

quanto possível quando estiver a escrever. Não é uma boa ideia protestar,

depois de o professor ter corrigido o seu artigo, dizendo "Eu sei que disse

isso, mas o que queria dizer é..." Diga exactamente o que pretende. Parte da

nota que receberá terá sido em função da capacidade para dizer o que quer

dizer.

Faça de conta que o leitor não leu o material que está a discutir, e que

não reflectiu muito sobre ele, o que obviamente não será verdade. Mas, se o

estudante escrever como se isto fosse verdade, sente-se forçado a explicar

termos técnicos, ilustrar distinções estranhas ou obscuras, e ser tão claro

quanto possível quando resumir o que os outros filósofos disseram.

- Será bastante útil levar este primeiro passo mais além e fingir que

o seu leitor é preguiçoso, tolo e maldoso. Preguiçoso, porque não

quer se esforçar para descobrir o que as suas frases embrulhadas

querem dizer, nem qual é seu argumento, se não for completa-

mente evidente. Tolo, porque terá de explicar-lhe, de forma sim-

ples e pormenorizada, tudo o que disser. Maldoso, porque não vai

ser caridoso ao ler seu artigo. (Por exemplo, se disser qualquer coi-

sa que permita mais de uma interpretação, ele vai presumir que

dissemos a menos plausível.) Se o estudante compreende a maté-

ria sobre a qual está a escrever, e se direcciona seu artigo para

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este tipo de leitor, provavelmente conseguirá ter uma nota muito

elevada.

Use muitos exemplos e definições

É muito importante usar exemplos num ensaio de filosofia. Boa parte das afir-

mações que os filósofos fazem são muito abstractas e de difícil compreensão,

e os exemplos são a melhor forma de as tornar mais claras.

Os exemplos são também úteis para explicar os conceitos que ocupam

um papel central no argumento do estudante. Procure deixar clara a maneiracomo os entende, mesmo que sejam recorrentes em discursos do dia-a-dia.

Tal como são usados no dia-a-dia podem não ter um significado suficiente-

mente claro ou preciso. Por exemplo, suponha que está a escrever um ensaio

sobre o aborto, e quer sustentar que "Um feto é uma pessoa." O que quer di-

zer com "pessoa"? O que quer dizer com "pessoa" vai determinar fortemente

se esta premissa será ou não aceitável para o leitor. Também fará uma grande

diferença no efeito persuasivo do seu argumento. Em si, o seguinte argumen-

to não tem valor:

Um feto é uma pessoa.

É errado matar uma pessoa.

Logo, é errado matar um feto.

Não tem valor porque não sabemos o que o autor pretende dizer ao afirmar

que um feto é uma pessoa. Segundo algumas interpretações de "pessoa",

pode ser óbvio que um feto seja uma pessoa. Em contrapartida, será bastan-

te controverso se, no mesmo sentido de "pessoa", matar for sempre algo er-

rado. Segundo outras interpretações, é mais plausível que seja sempre erra-

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do matar pessoas, mas totalmente confuso se um feto pode ser entendido

como "pessoa." Assim, tudo resulta no que o autor pretende dizer com "pes-

soa". O autor tem de ser explícito a respeito do uso desse conceito.Num ensaio de filosofia, podemos dar às palavras um sentido diferente

do usual, mas teremos de deixar claro que estamos a fazer isso. Por exemplo,

alguns filósofos usam a palavra "pessoa" significando qualquer ser capaz de

pensamento racional e auto-consciência. Entendido desta forma, animais

como baleias e chimpanzés podem perfeitamente ser entendidos como

"pessoas". Não é este o significado que comummente damos a esta palavra;comummente, só os seres humanos são "pessoas". Mas está muito bem usar

"pessoa" neste sentido, se esclarecermos o que queremos dizer com este ter-

mo. O mesmo acontece com quaisquer outras palavras deste género que

usemos nos nossos ensaios.

Não diversifique o vocabulário em benefício da variedade. Se referimos

algo como "X" no começo do ensaio, temos de continuar a referir-nos a isso

como "X". Por exemplo, não comece por falar sobre "a perspectiva de Platão

sobre o ego", mudando para "a perspectiva de Platão sobre a alma", e de-

pois para "a perspectiva de Platão sobre a mente". Se se refere à mesma coi-

sa nos três casos, use só um nome. Em filosofia, uma ligeira mudança no vo-

cabulário indica geralmente a intenção de nos referirmos a outra coisa.

Como usar palavras com significados filosóficos precisos?  Os filósofos

dão a muitas palavras comummente usadas significados técnicos precisos.

Certifique-se de que usa essas palavras correctamente. Não use palavras que

não compreende bem. Use termos filosóficos técnicos somente quando fo-

rem necessários. Não há necessidade de explicar termos filosóficos gerais

como "argumento válido" e "verdade necessária". Mas deve explicar quais-

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quer termos técnicos cujo uso conduza ao tópico específico que está a discu-

tir. Assim, por exemplo, se usar quaisquer termos especializados como "dua-

lismo" ou "fisicismo" ou "behaviorismo," deve explicar o seu significado. Pro-ceda da mesma forma se usar termos técnicos como "sobreveniência" e ou-

tros semelhantes. Mesmo quando os filósofos profissionais escrevem para

outros filósofos profissionais têm de explicar o vocabulário técnico especial

que estão a usar. Pessoas diferentes às vezes usam o vocabulário especial de

diferentes formas, por isso é importante ter certeza de que os nossos leitores

dão a estas palavras o mesmo significado. Faça de conta que seus leitoresnunca as ouviram antes.

Como apresentar e avaliar pontos de vista alheios

Se temos em mente discutir as opiniões do filósofo X, temos de começar por

descobrir quais são os seus argumentos ou pressupostos centrais. Para algu-

ma ajuda nesse sentido, vejam-se as indicações que dou em Como Ler um

Texto Filosófico.

De seguida, pergunte a si mesmo: os argumentos de X são bons? Os

seus pressupostos são apresentados com clareza? São plausíveis? São pon-

tos de partida razoáveis para o argumento de X, ou ele deveria ter oferecido

algum argumento independente?

Certifique-se de que entende exactamente o que a posição que está criti-

cando diz. Os estudantes perdem muito tempo a argumentar contra opiniõesque parecem indicar o que supõem estar sendo afirmado, mas na verdade

dizem outra coisa. Lembre-se: a filosofia exige um alto nível de precisão. Não

basta simplesmente entender a ideia geral da posição ou argumento de al-

guém. Temos de compreender rigorosamente o que está a ser dito. (Neste

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aspecto, a filosofia está mais próxima da ciência do que as outras humanida-

des.) Boa parte do trabalho em filosofia consiste em certificarmo-nos de que

compreendemos bem a posição de quem discordamos.Podemos presumir que o nosso leitor é tolo (veja-se acima), mas não de-

vemos tratar o filósofo ou as posições que estamos a discutir como tolas. Se o

fossem, não estaríamos a discuti-las. Se não conseguimos ver nenhuma plau-

sibilidade na posição que estamos a refutar, talvez não tenhamos muita expe-

riência em pensar e argumentar sobre ela e ainda não compreendemos intei-

ramente por que motivos os seus proponentes a defendem. Procure esforçar-se um pouco mais para descobrir o que os motiva.

Os filósofos às vezes dizem coisas perturbadoras, mas se a opinião que

você está atribuindo a um filósofo parece obviamente louca, então deve re-

flectir melhor e descobrir se ele realmente diz o que você acha que diz. Use a

imaginação. Tente descobrir que opinião razoável o filósofo poderia ter tido

em mente, e dirija seus argumentos contra ela.

Nos nossos ensaios temos sempre de explicar qual é a perspectiva X que

queremos criticar, antes de fazê-lo. Se não o fizermos, o leitor não poderá jul-

gar se a crítica que oferecemos a X é boa, ou se apenas se baseia em uma

má interpretação ou má compreensão do ponto de vista de X. Assim, diga ao

leitor o que acha que X afirma.

Contudo, não tente dizer ao leitor tudo que sabe sobre o ponto de vista

de X. O estudante também tem de ter espaço para oferecer sua própria con-

tribuição filosófica. Resuma apenas aquelas partes da posição de X que são

relevantes para o que pretende fazer. 

Às vezes precisamos de argumentar em defesa das nossas interpretações

do que X diz, citando passagens que a confirmem. E é aceitável que queira-

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Paráfrases

Às vezes, quando os estudantes tentam explicar o ponto de vista de um filó-

sofo, fazem-no através de paráfrases muito próximas às próprias palavras do

filósofo. Mudam algumas palavras, omitem outras, mas geralmente ficam

muito próximos do texto original. Por exemplo, Hume começa o seu Tratado

Sobre o Entendimento Humano da seguinte forma:

Todas as percepções da mente humana se dividem em dois tipos dis-

tintos, a que irei chamar impressões e ideias. A diferença entre eles

consiste no grau de força e vivacidade com que afectam a mente eentram no nosso pensamento ou consciência. Àquelas percepções

que entram com mais força e violência podemos chamar impressões;

e sob este nome eu abranjo todas as nossas sensações, paixões e

emoções, tal como primeiro surgem na alma. Por ideias entendo as

imagens mais fracas destas impressões no pensamento e no raciocí-

nio.

Aqui está um exemplo de como não se deve parafrasear:

Hume diz que todas as percepções da mente se dividem em dois ti-

 pos: impressões e ideias. A diferença está na intensidade da força ou

vivacidade que têm nos nossos pensamentos e na nossa consciência.

 As percepções com maior força e violência são impressões: são as

 sensações, paixões e emoções. As ideias são imagens fracas de nosso

 pensamento e raciocínio.

Há dois problemas principais com paráfrases deste tipo. Em primeiro lugar,

são feitas mecanicamente. Não demonstram que o autor compreendeu o tex-

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to. Em segundo lugar, uma vez que o autor ainda não compreendeu bem o

que o texto quer dizer de modo a expressá-lo pelas suas próprias palavras,

há o risco de inadvertidamente alterar o significado original do texto. Noexemplo acima, Hume diz que as impressões "afectam a mente" com mais

força e vivacidade do que as ideias. Mas a paráfrase diz que as impressões

têm mais força e vivacidade "nos nossos pensamentos". Não é óbvio que isto

seja a mesma coisa. Além disso, Hume diz que as ideias são imagens fracas

das impressões; mas a paráfrase diz que as ideias são imagens fracas do nos-

so pensamento, o que não é a mesma coisa. Assim, o autor da paráfrase pa-rece não ter compreendido o que Hume diz.

Um modo muito melhor de explicar o que Hume diz aqui seria o seguin-

te:

Hume afirma que há dois tipos de "percepções" ou estados mentais, a

que chama impressões e ideias. Uma impressão é um estado mental

muito "forte", como a impressão sensorial que alguém tem ao olhar

uma maçã vermelha. Uma ideia é um estado mental menos "forte",

como a ideia que se tem de uma maçã quando pensamos sobre ela

 sem a ver. Não é claro o que Hume quer dizer com "forte". Pode que-

rer dizer que...

 Antecipe objecções

Tente antecipar objecções ao seu ponto de vista e responda-lhes. Por exem-

plo, se você objectar contra a opinião de algum filósofo, não presuma que

ele admitiria imediatamente que estava enganado. Imagine qual poderá ser

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a contra-objecção desse filósofo. E como poderá responder a essa contra-ob-

 jecção?

Não tenha receio de mencionar objecções à sua própria tese. É melhorque nós mesmos apresentemos objecções do que pressupor que o leitor

não vai pensar nelas. Explique como acha que estas objecções podem ser

contraditas ou superadas. Certamente não é possível, com frequência, res-

ponder a todas as objecções que se possa levantar. Assim, concentre-se na-

quelas que parecem mais fortes ou mais importantes.

O que acontece se ficarmos encravados?

Os nossos ensaios nem sempre têm de dar uma solução definitiva para um

problema, ou uma resposta directa, do tipo sim ou não, para o problema le-

vantado. Muitos ensaios excelentes de filosofia não oferecem respostas di-

rectas. Às vezes argumentam que o problema precisa de ser clarificado, ou

que certos problemas adicionais precisam de ser levantados. Outras vezes,

argumentam que certos pressupostos precisam de ser desafiados. Outras ve-

zes, ainda, argumentam que certas respostas ao problema são fáceis demais,

isto é, não funcionam. Assim, se estes ensaios estiverem correctos, o proble-

ma será de resolução muito mais complexa do que poderíamos ter pensado.

Estes resultados são todos importantes e filosoficamente valiosos.

Portanto, não há problema em fazer perguntas e levantar problemas nos

nossos ensaios, mesmo que não possamos dar respostas satisfatórias a to-dos. Podemos deixar algumas perguntas não respondidas no final do ensaio.

(Mas temos de deixar claro para o leitor que algumas questões ficarão pro-

positadamente sem resposta.) E devemos dizer algo sobre como a questão

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poderia ser respondida, e o que torna a questão interessante e relevante

para o tema em causa.

Se alguma coisa na abordagem que estamos a investigar não ficou clara,não a devemos disfarçar. Pelo contrário, devemos chamar a atenção para a

falta de clareza e sugerir diferentes formas de a compreender. Temos ainda

de explicar por que razão ainda não se pode dizer quais destas interpreta-

ções é a correcta.

Se apresentamos duas opiniões e, após um exame cuidadoso, não con-

seguimos decidir entre elas, tudo bem. Não há problema em dizer que ospontos fortes e fracos destas opiniões têm igual força, mas note-se que isto

também é uma afirmação que exige explicação e defesa ponderada, como

qualquer outra. Devemos apresentar razões que a apoiem, mas estas razões

têm de ser suficientemente boas para eventualmente persuadir quem não

acha que as duas opiniões têm igual força.

Às vezes, ao escrever, descobrimos que os nossos argumentos não são

tão bons como pareciam no início. Podemos ter encontrado uma objecção a

um argumento a que não conseguimos dar uma boa resposta. Não é caso

para entrar em pânico. Se há uma dificuldade com o nosso argumento que

não conseguimos resolver, temos de tentar descobrir por que razão não po-

demos fazê-lo. Não há problema em mudar a nossa tese para outra que seja

defensável. Por exemplo, ao invés de escrever um ensaio que apresenta uma

defesa inteiramente sólida da perspectiva P, podemos mudar de ideias e es-

crever um ensaio que seja mais ou menos assim:

Segundo uma perspectiva filosófica, P. Esta perspectiva é plausível,

 pelas seguintes razões...

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Todavia, há algumas razões para duvidar se será verdade que P.

Uma destas razões é X. X levanta um problema à opinião de que P

 porque...Não é claro como o defensor de P pode superar esta objecção.

Ou podemos escrever um ensaio da seguinte forma:

Um argumento a favor de P é o "Argumento da Conjunção", que fun-

ciona como se segue...

 À primeira vista, este argumento é bastante atraente. Todavia, fa-lha pelas seguintes razões...

Podemos tentar corrigir o argumento, da seguinte maneira...

Mas estas correcções não funcionam, porque...

Concluo que o Argumento da Conjunção na verdade não conse-

 gue estabelecer que P.

Escrever um ensaio desse tipo não significa que nos "rendemos" à posição

contrária. Afinal, nenhum destes ensaios nos compromete com a perspectiva

não-P. São apenas justificações honestas da dificuldade de se encontrar argu-

mentos conclusivos a favor de P. Mas pode ser que mesmo assim P seja ver-

dade.

3. Reescreva, e continue a reescreverDepois de termos escrito um rascunho completo do nosso ensaio devemos

deixá-lo de lado por um dia ou dois. Então, devemos retomá-lo e relê-lo. À

medida que for lendo cada frase, diga a si mesmo coisas como:

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”Esta afirmação realmente faz sentido?" "Isto não está claro!" "Isto é

 pretensioso." "O que quer isto dizer?" "Qual é a conexão entre estas

duas frases?" "Estou a repetir-me?", e assim por diante.

Certifique-se que todas as frases do seu rascunho fazem falta e livre-se da-

quelas que não fazem falta. Se não consegue identificar a contribuição de

uma frase qualquer para a sua discussão central, livre-se dela, ainda que pa-

reça boa. Nunca devemos inserir questões a mais nos nossos ensaios, a me-

nos que sejam importantes para o argumento principal e que haja espaço

para explicá-las.

Se não estiver satisfeito com alguma frase, pergunte a si mesmo por que

razão essa frase o incomoda. Pode ser que não tenha entendido bem o que

está a tentar dizer, ou que não acredite realmente no que está a afirmar.

Temos de nos certificar de que nossas frases dizem exactamente o que

queremos dizer. Por exemplo, suponha-se que escrevemos "O aborto é o

mesmo que assassinato". É isso realmente o que pretendemos dizer? Então,

quando Oswald assassinou Kennedy, ele estava a fazer o mesmo do que a

abortar Kennedy? Ou queremos dizer outra coisa qualquer? Talvez queira-

mos dizer que o aborto é uma forma de assassinato. Numa conversa, é razoá-

vel esperar que alguém entenda o que queiramos dizer, mas não deve escre-

ver dessa maneira. Ainda que o nosso professor de filosofia consiga entender

o que queremos dizer, está mal escrito. Na redacção filosófica, é preciso dizerexactamente o que se pretende.

Procure, ainda, prestar atenção à estrutura de seu esboço. Quando for

revê-lo, é muito mais importante trabalhar na estrutura e clareza geral do tra-

balho do que ocupar-se em apagar uma frase ou palavra. Certifique-se de

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que seu leitor sabe qual é sua afirmação principal e quais são seus argumen-

tos a favor dela. Temos de garantir que os nossos leitores são capazes de di-

zer qual é o ponto principal de cada parágrafo. Não basta que nós o saiba-mos. É preciso que seja óbvio para o leitor, mesmo para um leitor preguiço-

so, tolo e maldoso.

Se puder, mostre o rascunho do seu ensaio a amigos ou colegas de curso

e recolha alguns argumentos e conselhos. Recomendo vivamente que o faça.

Os seus amigos compreendem os seus pontos principais? Há trechos obscu-

ros ou confusos para os outros no seu rascunho? Se os seus amigos não sãocapazes de compreender tudo que escreveu, o professor também não o

será. Os seus parágrafos e seu argumento podem parecer perfeitamente cla-

ros para si e não fazer sentido para mais ninguém.

Outra maneira boa de verificar seu rascunho é lê-lo em voz alta, o que o

ajudará a perceber se é coerente. Nós podemos saber o que queremos dizer,

mas o que pretendemos dizer pode não estar realmente escrito. Ler o ensaio

em voz alta ajuda-nos a perceber falhas no nosso raciocínio, digressões e tre-

chos obscuros.

Saiba que precisará de escrever muitos rascunhos de seu artigo. Pelo me-

nos 3 ou 4!

Questões menores

Começar a escrever

Não comece com frases do tipo "Ao longo dos tempos, a humanidade tem

reflectido sobre o problema do...". Não há necessidade de aquecimento. Vá

directo ao ponto, na primeira frase.

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3. A redacção é clara e bem organizada?

Os professores não avaliam o seu trabalho a partir de uma possível concor-

dância com sua conclusão. Pode ser que venhamos a discordar entre nós so-

bre qual seria a melhor conclusão, mas não teremos dificuldade em concor-

dar que tenha feito um bom trabalho argumentando a favor de sua conclu-

são.

Mais especificamente, faremos perguntas como as seguintes:

- O estudante afirma claramente o que pretende com seu artigo? Asua tese principal é óbvia para o leitor?

- O estudante oferece argumentos que apoiem as suas afirmações?

É óbvio para o leitor quais são esses argumentos?

- A estrutura do ensaio é clara? Por exemplo, é fácil perceber que

partes de seu artigo são exposições de ideias e que partes são sua

própria contribuição positiva?

- A prosa é simples, fácil de ler e de fácil compreensão?

- O estudante ilustra as suas afirmações com bons exemplos? Expli-

ca as noções principais? Diz exactamente o que quer dizer?

- O estudante apresenta as opiniões de outros filósofos de forma

precisa e caridosa?

Os comentários que mais frequentemente tenho feito aos artigos dos meusestudantes são os seguintes:

- ”Explique esta afirmação" ou "O que quer dizer com isto?" ou

"Não compreendo o que está a dizer aqui".

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pecífica de como corrigi-las. Por isso, tente melhorar todo o trabalho, não

apenas as passagens que o professor comentou.

É possível melhorar um ensaio sem que esta melhoria seja suficiente paragarantir uma nota superior à primeira. Às vezes isso acontece. Mas espero

que consiga fazer melhor.

Normalmente, não terá a possibilidade de reescrever seus ensaios de-

pois de terem sido corrigidos. Por isso, precisa se disciplinar para escrever

um rascunho, examiná-lo cuidadosamente, revê-lo e reescrevê-lo antes de o

entregar ao professor.James Pryor

Universidade de Princeton

Agradecimentos: Não quero atribuir crédito falso a este trabalho. A mi-

nha contribuição consistiu, na sua maior parte, em coligir e organizar suges-

tões de outras pessoas. Boa parte dos conselhos que apresento aqui foi to-

mada de empréstimo dos apontamentos de amigos e colegas. (Alison Sim-

mons e Justin Broackes merecem crédito especial.) E é de esperar que eu te-

nha encontrado alguns destes conselhos ao ler outros guias deste género na

Internet. Tenho muita pena de não ter registado essas dívidas.

Tradução de Eliana Curado para o site Crítica na rede.

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Parte II: Indaga-ções delocadas: oque é o que é?

Para que Filosofia?

 A atitude filosófica 

Imaginemos, agora, alguém que tomasse uma decisão muito estranha e co-

meçasse a fazer perguntas inesperadas. Em vez de “que horas são?” ou “que

dia é hoje?”, perguntasse: O que é o tempo? Em vez de dizer “está sonhan-

do” ou “ficou maluca”, quisesse saber: O que é o sonho? A loucura? A razão?

Se essa pessoa fosse substituindo sucessivamente suas perguntas, suas

afirmações por outras: “Onde há fumaça, há fogo”, ou “não saia na chuva

para não ficar resfriado”, por: O que é causa? O que é efeito?; “seja objetivo ”,

ou “eles são muito subjetivos”, por: O que é a objetividade? O que é a subje-

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Perguntaram, certa vez, a um filósofo: “Para que Filosofia?”. E ele respon-

deu: “Para não darmos nossa aceitação imediata às coisas, sem maiores con-

siderações”.

 A atitude crítica

A primeira característica da atitude filosófica é negativa, isto é, um dizer não

ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos fatos e às idéias da

experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao estabelecido.

A segunda característica da atitude filosófica é positiva, isto é, uma inter-

rogação sobre o que são as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os com-

portamentos, os valores, nós mesmos. É também uma interrogação sobre o

porquê disso tudo e de nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é as-

sim e não de outra maneira. O que é? Por que é? Como é? Essas são as inda-

gações fundamentais da atitude filosófica.

A face negativa e a face positiva da atitude filosófica constituem o quechamamos de atitude crítica e pensamento crítico.

A Filosofia começa dizendo não às crenças e aos preconceitos do senso

comum e, portanto, começa dizendo que não sabemos o que imaginávamos

saber; por isso, o patrono da Filosofia, o grego Sócrates, afirmava que a pri-

meira e fundamental verdade filosófica é dizer: “Sei que nada sei”. Para o dis-

cípulo de Sócrates, o filósofo grego Platão, a Filosofia começa com a admira-

ção; já o discípulo de Platão, o filósofo Aristóteles, acreditava que a Filosofia

começa com o espanto.

Admiração e espanto significam: tomamos distância do nosso mundo

costumeiro, através de nosso pensamento, olhando-o como se nunca o tivés-

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semos visto antes, como se não tivéssemos tido família, amigos, professores,

livros e outros meios de comunicação que nos tivessem dito o que o mundo

é; como se estivéssemos acabando de nascer para o mundo e para nós mes-mos e precisássemos perguntar o que é, por que é e como é o mundo, e pre-

cisássemos perguntar também o que somos, por que somos e como somos.

Para que Filosofia? 

Ora, muitos fazem uma outra pergunta: afinal, para que Filosofia?

É uma pergunta interessante. Não vemos nem ouvimos ninguém pergun-

tar, por exemplo, para que matemática ou física? Para que geografia ou geo-

logia? Para que história ou sociologia? Para que biologia ou psicologia? Para

que astronomia ou química? Para que pintura, literatura, música ou dança?

Mas todo mundo acha muito natural perguntar: Para que Filosofia?

Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irônica, conheci-

da dos estudantes de Filosofia: “A Filosofia é uma ciência com a qual e sem aqual o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, a Filosofia não serve para nada.

Por isso, se costuma chamar de “filósofo” alguém sempre distraído, com a ca-

beça no mundo da lua, pensando e dizendo coisas que ninguém entende e

que são perfeitamente inúteis.

Essa pergunta, “Para que Filosofia?”, tem a sua razão de ser.

Em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que al-

guma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, mui-

to visível e de utilidade imediata.

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Por isso, ninguém pergunta para que as ciências, pois todo mundo imagi-

na ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação ci-

entífica à realidade.Todo mundo também imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa

da compra e venda das obras de arte, quanto porque nossa cultura vê os ar-

tistas como gênios que merecem ser valorizados para o elogio da humanida-

de. Ninguém, todavia, consegue ver para que serviria a Filosofia, donde di-

zer-se: não serve para coisa alguma.

Parece, porém, que o senso comum não enxerga algo que os cientistassabem muito bem. As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros,

obtidos graças a procedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir

sobre a realidade, através de instrumentos e objetos técnicos; pretendem fa-

zer progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os.

Ora, todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam

na existência da verdade, de procedimentos corretos para bem usar o pensa-

mento, na tecnologia como aplicação prática de teorias, na racionalidade dos

conhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados.

Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, re-

lação entre teoria e prática, correção e acúmulo de saberes: tudo isso não é

ciência, são questões filosóficas. O cientista parte delas como questões já

respondidas, mas é a Filosofia quem as formula e busca respostas para elas.

Assim, o trabalho das ciências pressupõe, como condição, o trabalho da

Filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas

os cientistas e filósofos sabem disso, o senso comum continua afirmando que

a Filosofia não serve para nada.

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Para dar alguma utilidade à Filosofia, muitos consideram que, de fato, a

Filosofia não serviria para nada, se “servir” fosse entendido como a possibili-

dade de fazer usos técnicos dos produtos filosóficos ou dar-lhes utilidadeeconômica, obtendo lucros com eles; consideram também que a Filosofia

nada teria a ver com a ciência e a técnica.

Para quem pensa dessa forma, o principal para a Filosofia não seriam os

conhecimentos (que ficam por conta da ciência), nem as aplicações de teori-

as (que ficam por conta da tecnologia), mas o ensinamento moral ou ético. A

Filosofia seria a arte do bem viver. Estudando as paixões e os vícios humanos,a liberdade e a vontade, analisando a capacidade de nossa razão para impor

limites aos nossos desejos e paixões, ensinando-nos a viver de modo hones-

to e justo na companhia dos outros seres humanos, a Filosofia teria como fi-

nalidade ensinarnos a virtude, que é o princípio do bem-viver.

Essa definição da Filosofia, porém, não nos ajuda muito. De fato, mesmo

para ser uma arte moral ou ética, ou uma arte do bem-viver, a Filosofia conti-

nua fazendo suas perguntas desconcertantes e embaraçosas: O que é o ho-

mem? O que é a vontade? O que é a paixão? O que é a razão? O que é o ví-

cio? O que é a virtude? O que é a liberdade? Como nos tornamos livres, raci-

onais e virtuosos? Por que a liberdade e a virtude são valores para os seres

humanos? O que é um valor? Por que avaliamos os sentimentos e as ações

humanas?

Assim, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia não é o conheci-

mento da realidade, nem o conhecimento da nossa capacidade para conhe-

cer, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia é apenas a vida moral

ou ética, ainda assim, o estilo filosófico e a atitude filosófica permaneceriam

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os mesmos, pois as perguntas filosóficas - o que, por que e como - permane-

cem.

 Atitude filosófica: indagar 

Se, portanto, deixarmos de lado, por enquanto, os objetos com os quais a Fi-

losofia se ocupa, veremos que a atitude filosófica possui algumas característi-

cas que são as mesmas, independentemente do conteúdo investigado. Essas

características são:

- perguntar o que a coisa, ou o valor, ou a idéia, é. A Filosofia per-

gunta qual é a realidade ou natureza e qual é a significação de al-

guma coisa, não importa qual;

- perguntar como a coisa, a idéia ou o valor, é. A Filosofia indaga

qual é a estrutura e quais são as relações que constituem uma coi-

sa, uma idéia ou um valor;

- perguntar por que a coisa, a idéia ou o valor, existe e é como é. A

Filosofia pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa, de

uma idéia, de um valor.

A atitude filosófica inicia-se dirigindo essas indagações ao mundo que nos

rodeia e às relações que mantemos com ele. Pouco a pouco, porém, desco-

bre que essas questões se referem, afinal, à nossa capacidade de conhecer, à

nossa capacidade de pensar.

Por isso, pouco a pouco, as perguntas da Filosofia se dirigem ao próprio

pensamento: o que é pensar, como é pensar, por que há o pensar? A Filoso-

fia torna-se, então, o pensamento interrogando-se a si mesmo. Por ser uma

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A definição, portanto, não consegue acercar-se da especificidade do tra-

balho filosófico e por isso não podemos aceitá-la.

1. Sabedoria de vida. Aqui, a Filosofia é identificada com a definição

e a ação de algumas pessoas que pensam sobre a vida moral, de-

dicando-se à contemplação do mundo para aprender com ele a

controlar e dirigir suas vidas de modo ético e sábio.

A Filosofia seria uma contemplação do mundo e dos homens para nos con-

duzir a uma vida justa, sábia e feliz, ensinando-nos o domínio sobre nós mes-mos, sobre nossos impulsos, desejos e paixões. É nesse sentido que se fala,

por exemplo, numa filosofia do budismo.

Esta definição, porém, nos diz, de modo vago, o que se espera da Filoso-

fia (a sabedoria interior), mas não o que é e o que faz a Filosofia e, por isso,

também não podemos aceitá-la.

1. Esforço racional para conceber o Universo como uma totalidade

ordenada e dotada de sentido. Nesse caso, começa-se distinguin-

do entre Filosofia e religião e até mesmo opondo uma à outra,

pois ambas possuem o mesmo objeto (compreender o Universo),

mas a primeira o faz através do esforço racional, enquanto a se-

gunda, por confiança (fé) numa revelação divina.

Ou seja, a Filosofia procura discutir até o fim o sentido e o fundamento da re-

alidade, enquanto a consciência religiosa se baseia num dado primeiro e in-

questionável, que é a revelação divina indemonstrável.

Pela fé, a religião aceita princípios indemonstráveis e até mesmo aqueles

que podem ser considerados irracionais pelo pensamento, enquanto a Filo-

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sofia não admite indemonstrabilidade e irracionalidade. Pelo contrário, a

consciência filosófica procura explicar e compreender o que parece ser irraci-

onal e inquestionável.No entanto, esta definição também é problemática, porque dá à Filosofia

a tarefa de oferecer uma explicação e uma compreensão totais sobre o Uni-

verso, elaborando um sistema universal ou um sistema do mundo, mas sabe-

mos, hoje, que essa tarefa é impossível.

Há pelo menos duas limitações principais a esta pretensão totalizadora:

em primeiro lugar, porque a explicação sobre a realidade também é ofereci-da pelas ciências e pelas artes, cada uma das quais definindo um aspecto e

um campo da realidade para estudo (no caso das ciências) e para a expres-

são (no caso das artes), já não sendo pensável uma única disciplina que pu-

desse abranger sozinha a totalidade dos conhecimentos; em segundo lugar,

porque a própria Filosofia já não admite que seja possível um sistema de

pensamento único que ofereça uma única explicação para o todo da realida-

de. Por isso, esta definição também não pode ser aceita.

1. Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práti-

cas.A Filosofia, cada vez mais, ocupa-se com as condições e os

princípios do conhecimento que pretenda ser racional e verda-

deiro; com a origem, a forma e o conteúdo dos valores éticos, po-

líticos, artísticos e culturais; com a compreensão das causas e dasformas da ilusão e do preconceito no plano individual e coletivo;

com as transformações históricas dos conceitos, das idéias e dos

valores.

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A Filosofia volta-se, também, para o estudo da consciência em suas várias

modalidades: percepção, imaginação, memória, linguagem, inteligência, ex-

periência, reflexão, comportamento, vontade, desejo e paixões, procurandodescrever as formas e os conteúdos dessas modalidades de relação entre o

ser humano e o mundo, do ser humano consigo mesmo e com os outros. Fi-

nalmente, a Filosofia visa ao estudo e à interpretação de idéias ou significa-

ções gerais como: realidade, mundo, natureza, cultura, história, subjetividade,

objetividade, diferença, repetição, semelhança, conflito, contradição, mudan-

ça, etc.Sem abandonar as questões sobre a essência da realidade, a Filosofia

procura diferenciar-se das ciências e das artes, dirigindo a investigação sobre

o mundo natural e o mundo histórico (ou humano) num momento muito pre-

ciso: quando perdemos nossas certezas cotidianas e quando as ciências e as

artes ainda não ofereceram outras certezas para substituir as que perdemos.

Em outras palavras, a Filosofia se interessa por aquele instante em que a

realidade natural (o mundo das coisas) e a histórica (o mundo dos homens)

tornam-se estranhas, espantosas, incompreensíveis e enigmáticas, quando o

senso comum já não sabe o que pensar e dizer e as ciências e as artes ainda

não sabem o que pensar e dizer.

Esta última descrição da atividade filosófica capta a Filosofia como análi-

se (das condições da ciência, da religião, da arte, da moral), comoreflexão

(isto é, volta da consciência para si mesma para conhecer-se enquanto capa-

cidade para o conhecimento, o sentimento e a ação) e como crítica (das ilu-

sões e dos preconceitos individuais e coletivos, das teorias e práticas científi-

cas, políticas e artísticas), essas três atividades (análise, reflexão e crítica) es-

tando orientadas pela elaboração filosófica de significações gerais sobre a

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A ciência tem de envolver mais do que a mera catalogação de factos e

do que a descoberta, através da tentativa e erro, de maneiras de proceder

que funcionam. O que é crucial na verdadeira ciência é o facto de envolver adescoberta de princípios que subjazem e conectam os fenómenos naturais.

Apesar de concordar completamente que devemos respeitar a visão do

mundo de povos indígenas não europeus, não penso que coisas como a as-

tronomia maia, a acupunctura chinesa, etc., obedeçam à minha definição. O

sistema ptolemaico de epiciclos alcançou uma precisão razoável ao descre-

ver o movimento dos corpos celestes, mas não havia qualquer teoria propria-mente dita subjacente ao sistema. A mecânica newtoniana, pelo contrário,

não apenas descrevia os movimentos dos planetas de modo mais simples,

conectava o movimento da Lua com a queda da maçã. Isto é verdadeira ciên-

cia, pois revela coisas que não podemos saber de nenhuma outra maneira.

Terá a astronomia maia ou a acupunctura chinesa alguma vez conduzido

a uma previsão que não tenha falhado nem seja trivial e que tenha conduzido

a novos conhecimentos sobre o mundo? Muitas pessoas tropeçaram no facto

de que certas coisas funcionam, mas a verdadeira ciência consiste em saber

por que razão as coisas funcionam. Tenho uma atitude de abertura em rela-

ção à acupunctura, mas se tal coisa funcionar, apostaria muito mais numa ex-

plicação baseada em impulsos nervosos do que em misteriosas correntes de

energia cuja realidade física nunca foi demonstrada.

Por que razão nasceu a ciência na Europa? Na época de Galileu e New-

ton a China era muito mais avançada tecnologicamente. Contudo, a tecnolo-

gia chinesa (como a dos aborígenes australianos) foi alcançada por tentativa

e erro, refinados ao longo de muitas gerações. O boomerang não foi inventa-

do partindo da compreensão dos princípios da hidrodinâmica para depois

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conceber um instrumento. A bússola (descoberta pelos chineses) não envol-

veu a formulação dos princípios do magnetismo. Estes princípios emergiram

da (verdadeira, segundo a minha definição) cultura científica da Europa. Cla-ro que, historicamente, surgiu também alguma ciência de descobertas aci-

dentais que só mais tarde foram compreendidas. Mas os exemplos mais óbvi-

os da verdadeira ciência — tais como as ondas de rádio, a energia nuclear, o

computador, a engenharia genética — emergiram, todos eles, da aplicação de

uma compreensão teórica profunda que já existia — muitas vezes há muito

tempo — antes da tecnologia que se procurava.As razões que determinaram que tenha sido a Europa a dar à luz a ciên-

cia são complexas, mas têm certamente muito a ver com a filosofia grega e a

sua noção de que os seres humanos podiam alcançar uma compreensão do

modo como o mundo funciona por intermédio do pensamento racional, e

com as três religiões monoteístas — o judaísmo, o cristianismo e o islamismo

— e a sua noção de uma ordem na natureza, ordem essa que era real, legifor-

me, criada e imposta por um Grande Arquitecto.

Apesar de a ciência ter começado na Europa, é universal e está agora à

disposição de todas as culturas. Podemos continuar a dar valor aos sistemas

de crenças das outras culturas, ao mesmo tempo que reconhecemos que o

conhecimento científico é algo de especial que transcende a cultura.

Paul Davies

Tradução de Desidério Murcho

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teorias mutuamente incompatíveis acerca de inobserváveis, e portanto não

pode justificar a escolha de nenhuma delas em particular. Esta ideia pode,

por sua vez, ser defendida apelando para a “tese Duhem-Quine”, que dizque, em face de dados aparentemente recalcitrantes, se pode sempre man-

ter uma proposição teórica por meio de ajustamentos em hipóteses auxilia-

res que sejam parte integrante de toda a teoria. Uma via alternativa para a

subdeterminação das teorias pelos dados consiste em observar que, dada

qualquer teoria que consiga acomodar os dados observacionais, podemos

sempre “cozinhar” uma teoria alternativa que explica os mesmos factos ob-servacionais.

A doutrina do instrumentalismo assenta na distinção entre o que é obser-

vável e o que não é. Esta distinção não está isenta de problemas. Alguns filó-

sofos da ciência, os mais notórios dos quais são T.S. Kuhn e Paul Feyerabend,

argumentam que a observação está “contaminada pela teoria”, com o que

pretendem dizer que as nossas teorias anteriores influenciam as observações

que fazemos e a importância que lhes atribuímos. Daqui inferem que muitas

vezes teorias científicas diferentes são “incomensuráveis”, no sentido em que

não há nenhum conjunto de proposições observacionais teoricamente neu-

tras que possa fazer decidir entre elas. Um corolário disto, para Kuhn e Feye-

rabend, é que a verdade científica objectiva não é alcançável mesmo ao nível

dos observáveis, quanto mais ao nível dos inobserváveis. Kuhn argumenta

que a história da ciência apresenta uma sucessão de “paradigmas”, conjuntos

de pressupostos e exemplos representativos que condicionam o modo como

os cientistas resolvem problemas e compreendem os dados, e que apenas

são substituídos, em “revoluções científicas” ocasionais, quando os cientistas

mudam de uma crença teórica para outra.

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Nem todos os epistemólogos da ciência aceitam o relativismo epistemo-

lógico de Kuhn e Feyerabend. Muitos deles diriam que mesmo que a frontei-

ra entre os observáveis e os inobserváveis não seja nítida nem imutável, asproposições observacionais básicas podem ainda proporcionar um teste im-

parcial para as previsões de uma teoria. E outros diriam que, mesmo que as

teorias sejam sempre subdeterminadas — no sentido em que qualquer con-

 junto de dados será sempre compatível com várias teorias diferentes — daí

não se segue que não possamos escolher racionalmente entre essas teorias,

visto que algumas dessas teorias podem estar mais bem sustentadas por es-ses dados do que outras.

Há, porém, outro argumento poderoso contra o ponto de vista realista de

que as teorias científicas são descrições verdadeiras de uma realidade inde-

pendente. Reside na versão do passado e obsoleta de tais teorias. Muitas te-

orias científicas do passado, desde a astronomia ptolemaica até à teoria flo-

gística da combustão, revelaram-se falsas. Assim, parece que deveríamos in-

ferir, por meio de uma “meta-indução pessimista”, que, uma vez que as teori-

as científicas do passado se revelaram normalmente falsas, as do presente e

as do futuro serão também provavelmente falsas.

Em resposta a isto, pode-se argumentar que até mesmo as teorias do

passado falsas contêm uma grande componente de verdade, e que portanto

se pode esperar que as teorias do presente e do futuro se aproximem da ver-

dade. Além disso, alguns filósofos detectam um padrão de convergência, ar-

gumentando que as teorias científicas que se sucedem a outras aproximam-

se cada vez mais da verdade. Estas teses pressupõem, contudo, uma noção

de “aproximação à verdade”, ou verosimilhança. Veio a revelar-se surpreen-

dentemente difícil atribuir um conteúdo bem determinado a esta noção. As

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primeiras tentativas para a definir, por parte de Popper e outros, revelaram-se

incoerentes, e não é óbvio que uma elucidação satisfatória dessa noção seja

possível.Nos anos 80, alguns filósofos adoptaram uma abordagem naturalista em

epistemologia da ciência. Em vez de tentarem identificar regras a priori do

método científico, inspiraram-se na história da ciência e noutras disciplinas a

posteriori para mostrar que estratégias metodológicas constituem de facto

meios eficazes para se atingirem objectivos científicos. É possível combinar

esta abordagem naturalista com o ponto de vista realista de que o objectivoda formulação de teorias científicas é a descoberta da verdade. Todavia, à luz

dos argumentos mencionados acima, muitos filósofos da ciência naturalistas

rejeitam a ideia de que a verdade seja um objectivo sensato para a ciência,

investigando em vez disso estratégias para se atingirem objectivos teóricos

como a simplicidade, o sucesso das previsões e a proficuidade heurística.

1. Voltando-nos agora para a metafísica da ciência, uma questão

central é a análise da causalidade. Segundo David Hume, a causa-

lidade, enquanto relação objectiva, é apenas uma questão de as-

sociação constante: um acontecimento causa outro se, e só se, os

acontecimentos do primeiro tipo estiverem constantemente asso-

ciados aos acontecimentos do segundo tipo. Esta análise gera,

contudo, alguns problemas. Primeiro, há a questão da distinçãoentre genuínas leis causais da natureza e associações acidental-

mente verdadeiras: ser um parafuso da minha mesa pode muito

bem estar constantemente associado ao facto de ser feito de co-

bre, sem que seja verdade que esses parafusos sejam feitos de

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cobre porque fazem parte minha mesa. Em segundo lugar, há um

problema quanto à direcção da causalidade: como distinguimos

nós as causas dos efeitos, dado que uma associação constante deacontecimentos do tipo A com acontecimentos do tipo B implica

imediatamente a associação constante de acontecimentos do tipo

B com acontecimentos do tipo A? E, em terceiro lugar, há a ques-

tão da causalidade probabilística: será que as causas têm de de-

terminar os seus efeitos, ou é suficiente que elas estejam probabi-

listicamente (e não “constantemente”) associadas a eles?

Muitos filósofos da ciência deste século preferiram falar acerca de explicação

em vez de causalidade. De acordo com o modelo da cobertura por leis de-

senvolvido por Hempel, um acontecimento particular é explicado se a sua

ocorrência puder ser deduzida da ocorrência de outros acontecimentos par-

ticulares com a ajuda de uma ou mais leis naturais. Mas isto não é muito dife-

rente da análise humeana da causalidade, e como é de esperar enfrenta es-

sencialmente os mesmos problemas. Como distinguimos leis de acidentes?

Será que às vezes não somos capazes de deduzir “para trás” — como quando

deduzimos a altura do mastro a partir do comprimento da sua sombra — ape-

sar de não querermos dizer que o comprimento da sombra explica a altura

do mastro? E não haverá casos em que somos capazes de explicar um acon-

tecimento — o sr. X ter desenvolvido um cancro, por exemplo — por meio deoutro — o facto de ele fumar sessenta cigarros por dia — apesar de não ser-

mos capazes de deduzir o primeiro do segundo, uma vez que a relação entre

eles é apenas probabilística?

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Sobre a questão de distinguir leis de acidentes, há duas estratégias pos-

síveis. A primeira permanece fiel ao ponto de vista humeano de que as pro-

posições legiformes não afirmam nada mais do que a associação constante etenta então explicar por que razão algumas asserções que exprimem associa-

ções constantes — as (legiformes) — são mais importantes do que as outras —

as acidentais. A versão mais conhecida desta estratégia humeana, proposta

originalmente por F. P. Ramsey e depois reavivada por David Lewis, argumen-

ta que as leis são aquelas generalizações verdadeiras que podem ser encai-

xadas numa sistematização ideal do conhecimento; ou, na formulação deRamsey, as leis são “uma consequência daquelas proposições que tomaría-

mos como axiomas se soubéssemos tudo e o organizássemos do modo mais

simples possível num sistema dedutivo”. A estratégia não humeana alternati-

va, cujo defensor mais proeminente é D. M. Armstrong, rejeita o pressuposto

de que as leis não implicam mais do que associações constantes, postulando

em vez disso uma relação de “necessitação” que se verifica entre os tipos de

acontecimentos que estão relacionados de modo legiforme, mas não entre

aqueles que apenas estão associados acidentalmente.

Quanto à questão da direcção da causalidade, o próprio Hume apenas

disse que, de entre dois acontecimentos constantemente associados, o acon-

tecimento anterior era a causa e o posterior o efeito. Mas há algumas objec-

ções a este uso da assimetria anterior-posterior para analisar a assimetria

causa-efeito. Para começar, é pelo menos concebível que haja causas que se-

 jam simultâneas com os seus efeitos, ou mesmo causas que sejam posterio-

res aos seus efeitos. Além disso, parece haver boas razões para querer fazer a

análise em sentido contrário, usando a direcção da causalidade para analisar

a direcção do tempo. Se fizermos isto, quereremos uma explicação da direc-

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ção da causalidade que seja temporalmente independente? Têm sido pro-

postas algumas explicações desse tipo. David Lewis argumenta que a assime-

tria da causalidade deriva da “assimetria da sobredeterminação”: ao passoque a sobredeterminação dos efeitos pelas causas é muito rara, é perfeita-

mente normal as causas serem “sobredeterminadas” por um grande número

de encadeamentos de efeitos independentes, cada um dos quais é condição

suficiente para a causa anterior. Outros autores apelaram para uma assimetria

probabilística relacionada para explicar a assimetria causal, fazendo notar

que as diferentes causas de um dado efeito comum são normalmente proba-bilisticamente independentes umas das outras, mas que os diferentes efeitos

de uma causa comum estão normalmente correlacionados probabilistica-

mente.

O advento da mecânica quântica (e em particular a infirmação empírica

da desigualdade de Bell) persuadiu a maioria dos filósofos da ciência da fal-

sidade do determinismo. De acordo com isto, procuraram desenvolver mo-

delos de explicação causal segundo os quais as causas se limitam a tornar

prováveis o seus efeitos, em vez de os determinar. O primeiro destes mode-

los, influenciado pela análise de Carl Hempel da explicação “indutivo-estatís-

tica” exigia que as causas conferissem aos seus efeitos uma probabilidade

alta. Contudo, embora fumar inequivocamente cause o cancro, nunca o torna

altamente provável. De modo que os modelos mais recentes apenas exigem

que as causas aumentem a probabilidade dos seus efeitos, mesmo que ape-

nas seja de um valor baixo para um valor ligeiramente menos baixo. Os mo-

delos de causalidade probabilística precisam de se precaver contra a possibi-

lidade de as associações probabilísticas entre acontecimentos poderem ser

espúrias em vez de genuinamente causais, como a associação entre o pontei-

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ro de um barómetro baixar e a chuva subsequente. É uma questão em aberto

a de saber se tais associações espúrias podem ser rejeitadas por meios pura-

mente probabilísticos, ou se é necessário introduzir-se critérios não probabi-lísticos.

A noção de probabilidade tem interesse filosófico independentemente

da sua relação com a causalidade. Há várias maneiras diferentes de interpre-

tar o cálculo matemático das probabilidades. As teorias subjectivas da proba-

bilidade, que se desenvolveram a partir da teoria lógica da probabilidade de

J. M. Keynes, encaram as probabilidades como graus subjectivos de crença.Esta é a interpretação adoptada pelos bayesianos partidários da teoria da

confirmação. Contudo, a maior parte dos filósofos da probabilidade argu-

mentam que precisamos de uma interpretação objectiva da probabilidade

para além desta análise subjectiva. Segundo a teoria da frequência de Ri-

chard von Mises, a probabilidade de um dado tipo de resultado é o limite da

frequência relativa com que ele ocorre em sequências cada vez mais longas

extraídas de uma qualquer “classe de referência” infinita. Uma dificuldade

que se põe à teoria da frequência é a de que ela atribuirá uma probabilidade

diferente a um dado resultado isolado quando esse resultado for considera-

do como membro de diferentes classes de referência. Para cancelar esta con-

sequência, Karl Popper propôs que as probabilidades fossem encaradas

como propensões de cenários experimentais específicos, no sentido em que

só as frequências de classes de referência geradas por repetições do mesmo

cenário experimental deveriam contar como probabilidades genuínas. As

versões posteriores desta teoria das propensões abandonam o apelo a clas-

ses de referência infinitas, tomando simplesmente a probabilidade como

uma característica quantitativa de cenários específicos, que é exibida pelas

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frequências nas repetições desses cenários, mas que não pode ser definida

em termos de frequências.

A interpretação filosófica da probabilidade objectiva está intimamenterelacionada com a nossa compreensão da mecânica quântica moderna. A in-

terpretação da mecânica quântica, porém, é ainda um problema em aberto

na filosofia da física. Tomada à letra, a mecânica quântica diz que, quando os

sistemas físicos são medidos, adquirem subitamente, para parâmetros obser-

váveis, valores definidos que não tinham antes. A teoria especifica as proba-

bilidades de diferentes desses valores, mas não pode prever sem margempara dúvida quais serão observados. A reacção de Albert Einstein foi a de

que a mecânica quântica tinha de ser incompleta, e que uma teoria futura

acabaria por encontrar as “variáveis ocultas” que efectivamente determinam

os resultados observados. Contudo, a possibilidade de uma teoria compro-

metida com tais variáveis ocultas foi entretanto concludentemente desacredi-

tada: John Bell mostrou que qualquer teoria desse género conteria previsões

diferentes das da mecânica quântica, e há resultados experimentais que infir-

mam essas previsões. Permanece, então, o problema de explicar as medições

quânticas. Medições são, afinal de contas, processos físicos. Contudo, a me-

cânica quântica não explica a razão por que as medições determinam valores

definidos observáveis; apenas o dá de barato. É provável que uma compre-

ensão satisfatória das medições quânticas tenha de aguardar uma interpreta-

ção radicalmente nova da teoria.

Um outro aspecto metafísico da filosofia da ciência é a questão da expli-

cação teleológica. Esta é basicamente uma questão de filosofia da biologia,

visto que é no domínio da biologia que encontramos os exemplos paradig-

máticos da explicação teleológica, como quando dizemos que a clorofila está

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presente nas plantas com o fim de facilitar a fotossíntese. Explicações como

esta são filosoficamente interessantes porque explicam as causas pelos efei-

tos, e parecem assim ir contra o modelo habitual que consiste em explicar osefeitos pelas causas. Carl Hempel argumentou que tais explicações são ape-

nas uma variante de explicação pelo modelo de cobertura por leis em que o

facto usado para explicar — a fotossíntese — calha ocorrer num momento pos-

terior ao do facto explicado — a clorofila. Há, porém, contra-exemplos a esta

proposta e as tentativas de a restringir impondo a condição de que os ele-

mentos envolvidos façam parte de um sistema auto-regulador revelaram-seproblemáticas. A maioria dos filósofos da ciência favoreceria agora uma abor-

dagem diferente, de acordo com a qual as explicações teleológicas da biolo-

gia são uma forma de explicação causal disfarçada, nas quais é feita referên-

cia implícita a uma hipotética história da selecção natural durante a qual o

elemento em questão — a clorofila — foi favorecido porque produziu o efeito

relevante — a fotossíntese. Alguns filósofos interrogar-se-iam se estas explica-

ções “para trás” merecem de facto ser chamadas “teleológicas”, visto que não

explicam de facto o presente por meio do futuro, mas antes por meio de his-

tórias anteriores de selecção; esta questão, no entanto, é essencialmente ter-

minológica.

“Ciências especiais” como a biologia, a química, a geologia, a meteorolo-

gia e assim por diante levantam a questão do reducionismo. Diz-se que uma

ciência pode ser “reduzida” a outra se as suas categorias puderem ser defini-

das em termos das categorias da segunda, e as suas leis explicadas também

em termos das leis da segunda. Os reducionistas argumentam que as ciênci-

as formam uma hierarquia na qual as que estão num nível mais alto podem

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No singular, ta onta se diz to on, que é traduzida por: o ser. Os primeiros filó-

sofos ocupavam-se com a origem e a ordem do mundo, o kosmos, e a filoso-

fia nascente era uma cosmologia. Pouco a pouco, passou-se a indagar o queera o próprio kosmos, qual era o fundo eterno e imutável que permanecia

sob a multiplicidade e transformação das coisas. Qual era e o que era o ser

subjacente a todos os seres. Com isto, a filosofia nascente tornou-se ontolo-

gia, isto é, conhecimento ou saber sobre o ser.

Por esse mesmo motivo, considera-se que os primeiros filósofos não ti-

nham uma preocupação principal com o conhecimento enquanto conheci-mento, isto é, não indagavam se podemos ou não conhecer o Ser, mas parti-

am da pressuposição de que o podemos conhecer, pois a verdade, sendo

aletheia, isto é, presença e manifestação das coisas para os nossos sentidos e

para o nosso pensamento, significa que o Ser está manifesto e presente para

nós e, portanto, nós o podemos conhecer.

Todavia, a opinião de que os primeiros filósofos não se preocupavam

com nossa capacidade e possibilidade de conhecimento não é exata. Para

tanto, basta levarmos em conta o fato de afirmarem que a realidade (o Ser, a

Natureza) é racional e que a podemos conhecer porque também somos raci-

onais; nossa razão é parte da racionalidade do mundo, dela participando.

Heráclito, Parmênides e Demócrito

Alguns exemplos indicam a existência da preocupação dos primeiros fi-

lósofos com o conhecimento e, aqui, tomaremos três: Heráclito de Éfeso, Par-

mênides de Eléia e Demócrito de Abdera.

Heráclito de Éfeso considerava a Natureza (o mundo, a realidade) como

um “fluxo perpétuo”, o escoamento contínuo dos seres em mudança perpé-

tua. Dizia: “Não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio, porque as

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dos princípios da realidade plena e total, aquilo que Aristóteles chamava de

“o Ser enquanto Ser”.

A diferença entre os seis primeiros graus e o último decorre da diferençado objeto do conhecimento, isto é, os seis primeiros graus conhecem obje-

tos que se oferecem a nós na sensação, na imaginação, no raciocínio, en-

quanto o sétimo lida com um objeto que só pode ser alcançado pelo pensa-

mento puro.

Princípios gerais 

Com os filósofos gregos, estabeleceram-se alguns princípios gerais do co-

nhecimento verdadeiro:

1. as fontes e as formas do conhecimento: sensação, percepção,

imaginação, memória, linguagem, raciocínio e intuição intelectual;

2. a distinção entre o conhecimento sensível e o conhecimento inte-

lectual;

3. o papel da linguagem no conhecimento;

4. a diferença entre opinião e saber;

5. a diferença entre aparência e essência;

6. a definição dos princípios do pensamento verdadeiro (identida-

de, não contradição, terceiro excluído, causalidade), da forma do

conhecimento verdadeiro (idéias, conceitos e juízos) e dos proce-

dimentos para alcançar o conhecimento verdadeiro (indução, de-

dução, intuição);

7. a distinção dos campos do conhecimento verdadeiro, sistematiza-

dos por Aristóteles em três ramos: teorético(referente aos seres

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meiro? Pode-se dizer, é claro, que o segundo tem a prova evidente e que o

primeiro não a tem, ou que algo é evidente para um que não é para o outro.

Mas o que é prova evidente e como decidiremos, em qualquer caso determi-nado, se temos ou não prova?

Essas perguntas têm suas análogas tanto na filosofia moral como na lógi-

ca. O que significa um acto estar certo e como decidiremos, em qualquer

caso determinado, se um certo acto está certo ou não? O que significa uma

inferência ser válida e como decidiremos, num determinado caso, se uma

dada inferência é ou não válida?2

A nossa prova para algumas coisas, ao que parece, consiste no facto de

termos provas para outras coisas. "A minha prova de que ele cumprirá sua

promessa é o facto de ele ter dito que cumpriria a sua promessa. E a minha

prova de que ele disse que cumpriria a sua promessa é o facto de que..." De-

veremos dizer de tudo aquilo para o que temos prova que a nossa prova

consiste no facto de termos prova de outra coisa? Se tentarmos formular, so-

craticamente, a nossa justificação para qualquer afirmação particular de co-

nhecimento ("A minha justificação para pensar que sei que A é o facto de

que B" ) e se formos inexoráveis em nossa investigação ("e a minha justifica-

ção para pensar que sei que B é o facto de que C"), chegaremos, mais cedo

ou mais tarde, a uma espécie de fim da linha ("mas a minha justificação para

pensar que sei que N é simplesmente o facto de que N" ). Um exemplo de N

poderá ser o facto de que me parece recordar que já estive aqui antes ou o

facto de que alguma coisa, agora, me parece azul.

Esse tipo de interrupção pode ser descrito de duas maneiras bastante di-

ferentes. Poderíamos dizer: "Há certas coisas (por exemplo, o facto de que

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me parece recordar ter aqui estado antes) que são evidentes para mim e que

o são de tal forma que a minha prova de evidência para essas coisas não con-

siste no facto de haver certas outras coisas que são evidentes para mim". Oupoderíamos dizer, alternativamente: "Há certas coisas (por exemplo, o facto

de que me parece recordar ter aqui estado antes) que não se pode dizer que

sejam evidentes, em si, mas que se parecem com o que se pode considerar

evidente, na medida em que funcionam como prova evidente para certas ou-

tras coisas." Essas duas formulações apenas pareceriam diferentes verbal-

mente. Se adoptarmos a primeira, poderemos afirmar que algumas coisassão directamente evidentes.

3

As coisas que correntemente dizemos que conhecemos não são coisas,

portanto, "directamente evidentes". Mas ao justificarmos a afirmação de que

conhecemos qualquer dessas coisas particulares podemos ser levados de

novo, da maneira descrita, às várias coisas que são directamente evidentes.

Deveríamos dizer, portanto, que o conjunto daquilo que conhecemos, em

qualquer momento dado, é uma espécie de "estrutura", que tem seu "funda-

mento" no que acontece ser directamente evidente, nesse momento? Se dis-

sermos isso, deveremos estar então preparados para explicar de que manei-

ra esse fundamento serve de apoio ao resto da estrutura. Mas essa questão é

difícil de responder, visto que o apoio dado pelo fundamento não seria de-

dutivo nem indutivo. Por outras palavras, não é o género de apoio que as

premissas de um argumento dedutivo dão à sua conclusão, nem é o género

de apoio que as premissas de um argumento indutivo dão à sua conclusão.

Pois se tomarmos como nossas premissas o conjunto do que é directamente

evidente em determinado momento, não podemos formular um bom argu-

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com um exemplo particularmente instrutivo do problema de critério. Alguns

filósofos pensam que qualquer teoria satisfatória do conhecimento deve ser

adequada ao facto de que algumas das verdades da razão, tal como tradicio-nalmente são concebidas, não estão entre as coisas que conhecemos. Ou-

tros, ainda, procuram simplificar o problema afirmando que as chamadas

"verdades da razão" só pertencem realmente, de algum modo, à maneira

como as pessoas pensam ou à maneira como empregam a sua linguagem.

Mas, quando essas sugestões se equacionam com precisão, perdem toda e

qualquer plausibilidade que aparentemente tenham tido, no começo.6

Outros problemas da teoria do conhecimento poderiam designar-se,

apropriadamente, por "metafísicos". Abrangem certas questões sobre as ma-

neiras como as coisas nos parecem. As aparências que as coisas nos apresen-

tam quando, digamos, as percepcionamos, parecem subjetivas na medida

em que dependem, para a sua existência e natureza, do estado do cérebro.

Este simples facto levou os filósofos, talvez com excessiva facilidade, a esta-

belecerem algumas conclusões extremas. Alguns afirmaram que as aparênci-

as das coisas externas devem ser duplicações internas dessas coisas — que,

quando um homem percebe um cão, uma tênue réplica do cão é produzida

dentro da cabeça do homem. Outros disseram que as coisas externas devem

ser bastante distintas do que correntemente aceitamos que sejam — que as

rosas não podem ser vermelhas quando ninguém está a olhar para elas. Ain-

da outros afirmaram que as coisas físicas devem-se compor, de algum modo,

de aparências; e houve também quem dissesse que “as aparências devem

ser compostas, de algum modo, de coisas físicas”. O problema levou até al-

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guns filósofos a indagarem se existirão coisas físicas e outros, mais recente-

mente, a indagarem se existirão aparências.

7O "problema da verdade" poderá parecer um dos mais simples da teoria

do conhecimento. Se dissermos a respeito de um homem "Ele acredita que

Sócrates é mortal", e depois acrescentarmos "E o que é mais, a sua crença é

verdadeira", então o que acrescentamos não é, certamente, mais do que isto:

Sócrates é mortal. E "Sócrates é mortal" diz-nos tanto quanto "é verdade que

Sócrates é mortal". Mas que aconteceria se disséssemos, a respeito de umhomem, que algumas das suas crenças são verdadeiras, sem especificarmos

que crenças? Que propriedade, nesse caso, estaríamos atribuindo à sua cren-

ça?

Suponha-se que dizemos: "O que ele está a dizer agora é verdade",

quando acontece que o que ele está a dizer agora é o que nós estamos ago-

ra a dizer que é falso, seja lá o que for. Nesse caso, estaremos a dizer algo

que é verdadeiro ou a dizer algo que é falso?

Finalmente, qual é a relação entre as condições da verdade e os critérios

de evidência? Temos boas provas, presumivelmente, para pensar que exis-

tem nove planetas. Essa prova consiste em vários outros factos que conhece-

mos a respeito de astronomia, mas não inclui, em si, o facto de que existem

nove planetas. Pareceria logicamente possível, portanto, que um homem ti-

vesse boas provas para uma crença que, não obstante, é uma crença falsa.

Significará isso que o facto de existirem nove planetas, se porventura for um

facto, é realmente algo que não pode ser evidente? Deveríamos dizer, por-

tanto, que ninguém sabe, realmente, se existem nove planetas? Ou devería-

mos dizer que, embora seja possível saber que existem nove planetas, não é

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Os filósofos modernos, porém, não aceitaram essas respostas e por esse

motivo a questão do conhecimento tornou-se central para eles.

Os gregos se surpreendiam que pudesse haver erro, ilusão e mentira.Como a verdade – aletheia  – era concebida como presença e manifestação

do verdadeiro aos nossos sentidos ou ao nosso intelecto, isto é, como pre-

sença do Ser à nossa experiência sensível ou ao puro pensamento, a pergun-

ta filosófica só podia ser: Como é possível o erro ou a ilusão? Ou seja, como

é possível ver o que não é, dizer o que não é, pensar o que não é?

Para os modernos, a situação é exatamente contrária. Se a verdade de-pende da revelação e da vontade divinas, e se nosso intelecto foi pervertido

pela nossa vontade pecadora, como podemos conhecer a verdade? Se a ver-

dade depender da fé e se depender da fraqueza da nossa vontade, como

nossa razão poderá conhecê-la?

O cristianismo, particularmente com santo Agostinho, trouxe a idéia de

que cada ser humano é uma pessoa. Essa idéia vem do Direito Romano, que

define a pessoa como um sujeito de direitos e de deveres. Se somos pesso-

as, somos responsáveis por nossos atos e pensamentos. Nossa pessoa é nos-

sa consciência, que é nossa alma dotada de vontade, imaginação, memória e

inteligência.

A vontade é livre e, aprisionada num corpo passional e fraco, pode mer-

gulhar nossa alma na ilusão e no erro. Estar no erro ou na verdade depende-

rá, portanto, de nós mesmos e por isso precisamos saber se podemos ou não

conhecer a verdade e em que condições tal conhecimento é possível. Os pri-

meiros filósofos cristãos e os medievais afirmavam que podemos conhecer a

verdade, desde que a razão não contradiga a fé e se submeta a ela no tocan-

te às verdades últimas e principais.

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4. ídolos da tribo: são as opiniões que se formam em nós em decor-

rência de nossa natureza humana; esses ídolos são próprios da

espécie humana e só podem ser vencidos se houver uma reformada própria natureza humana.

Bacon acreditava que o avanço dos conhecimentos e das técnicas, as mudan-

ças sociais e políticas e o desenvolvimento das ciências e da Filosofia propici-

ariam uma grande reforma do conhecimento humano, que seria também

uma grande reforma na vida humana. Tanto assim que, ao lado de suas obras

filosóficas, escreveu uma obra filosófico-política, a Nova Atlântida, na qual

descreve e narra uma sociedade ideal e perfeita, nascida do conhecimento

verdadeiro e do desenvolvimento das técnicas.

Descartes localizava a origem do erro em duas atitudes que chamou de

atitudes infantis:

1. a prevenção, que é a facilidade com que nosso espírito se deixa

levar pelas opiniões e idéias alheias, sem se preocupar em verifi-

car se são ou não verdadeiras. São as opiniões que se cristalizam

em nós sob a forma de preconceitos (colocados em nós por pais,

professores, livros, autoridades) e que escravizam nosso pensa-

mento, impedindo-nos de pensar e de investigar;

2. a precipitação, que é a facilidade e a velocidade com que nossa

vontade nos faz emitir juízos sobre as coisas antes de verificarmos

se nossas idéias são ou não são verdadeiras. São opiniões que

emitimos em conseqüência de nossa vontade ser mais forte e po-

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Essa diferença de perspectiva estabelece as duas grandes orientações da

teoria do conhecimento, conhecidas como racionalismo e empirismo.

Para o racionalismo, a fonte do conhecimento verdadeiro é a razão ope-rando por si mesma, sem o auxílio da experiência sensível e controlando a

própria experiência sensível.

Para o empirismo, a fonte de todo e qualquer conhecimento é a experi-

ência sensível, responsável pelas idéias da razão e controlando o trabalho da

própria razão.

Essas diferenças, porém, não impedem que haja um elemento comum atodos os filósofos a partir da modernidade, qual seja, tomar o entendimento

humano como objeto da investigação filosófica.

Tornar o entendimento objeto para si próprio, tornar o sujeito do conhe-

cimento objeto de conhecimento para si mesmo é a grande tarefa que a mo-

dernidade filosófica inaugura, ao desenvolver a teoria do conhecimento.

Como se trata da volta do conhecimento sobre si mesmo para conhecer-se,

ou do sujeito do conhecimento colocando-se como objeto para si mesmo, a

teoria do conhecimento é a reflexão filosófica.

O que é a epistemologia?

O que é a epistemologia? A resposta é: o ramo da filosofia que se ocupa doconhecimento humano, pelo que também é designada de "teoria do conhe-

cimento". Só que isto diz-nos quase nada. Por que temos necessidade de

uma teoria do conhecimento? E ela é uma teoria acerca de quê, e como é

que a defendemos (ou contestamos)? Aliás, o que implica dizer que a episte-

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cernentes à gênese e à estruturação das ciências. No pensamento anglo-sa-

xão, epistemologia é sinônimo de teoria do conhecimento (ou gnoseologia),

sendo mais conhecida pelo nome de “philosophy of science”. É neste sentidoque se fala de epistemologia a propósito dos trabalhos de Piaget versando

sobre os processos de aquisição dos conhecimentos na criança. O fato é que

um tratado de epistemologia pode receber títulos tão diversos como: “A lógi-

ca da pesquisa científica”, “Os fundamentos da física”, “Ciência e sociedade”,

“Teoria do conhecimento científico”, “Metodologia científica”, “Ciência da ci-

ência”, “Sociologia das ciências” etc. Por essa simples enumeração, podemosver que a epistemologia é uma disciplina proteiforme que, segundo as ne-

cessidades, se faz “lógica”, “filosofia do conhecimento”, “sociologia”, “psicolo-

gia”, “história” etc. Seu problema central, e que define seu estatuto geral, con-

siste em estabelecer se o conhecimento poderá ser reduzido a um puro re-

gistro, pelo sujeito, dos dados já anteriormente organizados independente-

mente dele no mundo exterior, ou se o sujeito poderá intervir ativamente no

conhecimento dos objetos. Em outras palavras, ela se interessa pelo proble-

ma do crescimento dos conhecimentos científicos. Por isso, podemos defini-

la como a disciplina que toma por objeto não mais a ciência verdadeira de

que deveríamos estabelecer as condições de possibilidade ou os títulos de

legitimidade, mas as ciências em via de se fazerem, em seu processo de gê-

nese, de formação e de estruturação progressiva.

Hilton Japiassú

Danilo Marcondes

Dicionário básico de filosofia

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Gottfried Leibniz (1646-1716)

David Hume (1711-1776)

Rousseau (1712-1778)Kant (1724-1804)

Hegel (1770-1831)

Schopenhauer (1788-1860)

Comte (1798-1857)

Kierkegaard (1813-1855)

Karl Marx (1818-1883)William James (1842-1910)

Nietzsche (1844-1900)

Freud (1856-1939)

Edmund Husserl (1859-1938)

Wittgenstein (1889-1951)

Heidegger (1889-1976)

Karl Popper (1902-1994)

Canguilhem (1904-1995)

Sartre (1905-1980)

Simone de Beauvoir (1908-1986)

Claude Levi-Strauss (1908-2009)

Albert Camus (1913-1960)

Kuhn (1922-1996)

Feyerabend (1924-1994)

Arthur Danto (1924-2013)

Gilles Deleuze (1925-1995)

Michel Foucault (1926-1984)

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Jürgen Habermas (1929-)

Jacques Derrida (1930-2004)

Richard Rorty (1931-2007)

Tales de Mileto

(625-556 a.C.)

No dizer de Diógenes Laércio, Tales, chamado de Mileto, mas de origem fení-

cia, foi “o primeiro a receber o nome de sábio”. Legislador de Mileto, geôme-

tra, matemático e físico, Tales é considerado o “pai da filosofia grega”. No di-

zer de Aristóteles, ele foi “o fundador” da filosofia concebendo como princí-

pios das coisas aqueles que procedem “da natureza da matéria”. Foi o primei-

ro pensador a indagar por que as coisas são e pelo princípio de suas mudan-

ças. E descobre na água o princípio de composição de todas as coisas. As

coisas nada mais são do que alterações, condensações ou dilatações da

água (ou do úmido). Eis o princípio de todas as coisas e de vitalidade de to-

dos os viventes. Não deixou nada escrito. Tornou-se conhecido através de

Diógenes Laércio, Heródoto e Aristóteles.

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riores. Por outro lado, os números constituem a essência de todas as coisas.

São o princípio de tudo: por detrás das qualidades sensíveis, há somente di-

ferenças de número e de qualidade. A natureza do som que ouvimos depen-de da longitude da corda vibrante. O número é a verdade eterna. O número

perfeito é o 10 (triângulo místico). Os astros são harmônicos. Nessa harmo-

nia, que só os iniciados ouvem, cada astro, tendo um número por essência,

fornece uma relação musical. Pitágoras é um dos primeiros filósofos a elabo-

rar uma “cosmogonia”, isto é, um vasto sistema que pretende explicar o uni-

verso.

Heráclito

(540-470 a.C.)

Considerado o filósofo do devir, do vir-a-ser, do movimento, o grego (nasci-

do em Éfeso) Heráclito é o mais importante pré-socrático. Filósofo melancóli-

co e obscuro, de estilo oracular, contentava-se com a representação: o sol é

novo cada dia. O universo muda e se transforma infinitamente a cada instan-

te. Um dinamismo eterno o anima. A substância única do cosmo é um poder

espontâneo de mudança e se manifesta pelo movimento. Tudo é movimento:

“panta rei”, isto é, “tudo flui”, nada permanece o mesmo. As coisas estão

numa incessante mobilidade. E a verdade se encontra no devir, não no ser:

“Não nos banhamos duas vezes no mesmo rio.” E a unidade da variedade in-

finita dos fenômenos é feita pela “tensão oposta dos contrários”. “Tudo se faz

por contraste”, declarou. “Da luta dos contrários é que nasce a harmonia.” Se

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nossos sentidos fossem bastante poderosos, veríamos a universal agitação.

Tudo o que é fixo é ilusão. A imortalidade consiste em nos ressituarmos no

fluxo universal. O pensamento humano deve participar do pensamento uni-versal imanente ao universo. E o princípio unificador que governa o mundo é

o logos.

Sócrates

(470-399 a.C.)

A vida de Sócrates nos é contada por Xenofonte (em suas Memorabilia) e por

Platão, que faz dele o personagem central de seus diálogos, sobretudo Apo-

logia de Sócrates e Fédon. Ele nasceu em Atenas. Sua mãe era parteira, seu

pai escultor. Recebeu uma educação tradicional: aprendizagem da leitura e

da escrita a partir da obra de Homero. Conhecedor das doutrinas filosóficas

anteriores e contemporâneas (Parmênides, Zenão, Heráclito), participou do

movimento de renovação da cultura empreendido pelos sofistas, mas se re-

velou um inimigo destes. Consolidador da filosofia, nada deixou escrito. Parti-

cipou ativamente da vida da cidade, dominada pela desordem intelectual e

social, submetida à demagogia dos que sabiam falar bem. Convidado a fazer

parte do Conselho dos 500, manifestou sua liberdade de espírito combaten-

do as medidas que julgava injustas. Permaneceu independente em relação às

lutas travadas entre os partidários da democracia e da aristocracia. Acreditan-

do obedecer a uma voz interior, realizou uma tarefa de educador público e

gratuito. Colocou os homens em face da seguinte evidência oculta: as opi-

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niões não são verdades, pois não resistem ao diálogo crítico. São contraditó-

rias. Acreditamos saber, mas precisamos descobrir que não sabemos. A ver-

dade, escondida em cada um de nós, só é visível aos olhos da razão. Acusa-do de introduzir novos deuses em Atenas e de corromper a juventude, foi

condenado pela cidade. Irritou seus juízes com sua mordaz ironia. Morreu to-

mando cicuta. É conhe-cido seu famoso método, sua arte de interrogar, sua

“maiêutica”, que consiste em forçar o interlocutor a desenvolver seu pensa-

mento sobre uma questão que ele pensa conhecer, para conduzi-lo, de con-

sequência em consequência, a contradizer-se, e, portanto, a confessar quenada sabe. As eta-pas do saber são: a) ignorar sua ignorância; b) conhecer

sua ignorância; c) ignorar seu saber; d) conhecer seu saber. Sua famosa ex-

pressão “conhece-te a ti mesmo” não é uma investigação psicológica, mas

um método de se adquirir a ciência dos valores que o homem traz em si. “O

homem mais justo de seu tempo”, diz Platão, foi condenado à morte sob a

acusação de impiedade e de corrupção da juventude. Seria sua morte o fra-

casso da filosofia diante da violência dos homens? Ou não indicaria ela que o

filósofo é um servidor da razão, e não da violência, acreditando mais na força

das ideias do que na força das armas?

Platão

(427-347 a.C.)

Filósofo grego, discípulo de Sócrates, Platão deixou Atenas depois da conde-

nação e morte de seu mestre (399 a.C.) Peregrinou doze anos. Conheceu, en-

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tre outros, os pitagóricos. Retornou a Atenas em 387 a.C. com 40 anos, pro-

curando reabilitar Sócrates, de quem guardava a memória e o ensinamento.

Retomou a teoria de seu mestre sobre a “ideia”, e deu-lhe um sentido novo: aideia é mais do que um conhecimento verdadeiro: ela é o ser mesmo, a reali-

dade verdadeira, absoluta e eterna, existindo fora e além de nós, cujos obje-

tos visíveis são apenas reflexos. A doutrina central de Platão é a distinção de

dois mundos: o mundo visível, sensível ou mundo dos reflexos, e o mundo in-

visível, inteligível ou mundo das ideias. A essa concepção dos dois mundos

se ligam as outras partes de seu sistema: a) o método é a 

dialética, consistin-do em que o espírito se eleve do mundo sensível ao mundo verdadeiro, o

mundo inteligível, o mundo das ideias; ele se eleva por etapas, passando das

simples aparências aos objetos, em seguida dos objetos às ideias abstratas e,

enfim, dessas ideias às ideias verdadeiras que são seres reais que existem

fora de nosso espírito; b) a teoria da reminiscência: vivemos no mundo das

ideias antes de nossa  encarnação” em nosso corpo atual e contemplamos

face a face as ideias em sua pureza; dessa visão, guardamos uma mudança

confusa; nós a reencontramos, pelo trabalho da inteligência, a partir dos da-

dos sensíveis, por “reminiscência”; c) a doutrina da imortalidade da alma, de-

monstrada no Fédon. Das obras de Platão, as mais importantes são: Apologia

de Sócrates (trata-se do discurso que Sócrates poderia ter pronunciado dian-

te de seus juízes; descreve seu itinerário, seu método e sua ação); Hippias

Maior (o que é o belo?); Eutifron (o que é a piedade?);

Menon (o que é a virtude? Pode ser ensinada? São os diálogos constituin-

do o exemplo perfeito da maiêutica; são aporéticos: a questão colocada não

é resolvida, o leitor é convidado a prosseguir a pesquisa após ter purificado

seu falso saber); Teeteto (o que é a ciência? Expõe e faz a crítica da tese que

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 Aristóteles

(384-322 a.C.)

Filósofo grego nascido em Estagira, Macedônia. Discípulo de Platão na Aca-

demia. Preceptor de Alexandre Magno. Construiu um grande laboratório,

graças à amizade com Felipe e seu filho Alexandre. Aos cinquenta anos, fun-

da sua própria escola, o Liceu, perto de um bosque dedicado a Apolo Lício.

Daí o nome de seus alunos: os peripatéticos. Seus últimos anos são entreme-

ados de lutas políticas. O partido nacional retoma o poder em Atenas. Aristó-

teles se exila na Eubeia, onde morre. Sua obra aborda todos os ramos do sa-

ber: lógica, física, filosofia, botânica, zoologia, metafísica etc. Seus livros fun-

damentais: Retórica, Ética a Nicômaco, Ética a Eudemo, Órganon: conjunto

de tratados da lógica, Física, Política e Metafísica. Para Aristóteles, contraria-

mente a Platão, que ele critica, a ideia não possui uma existência separada.

Só são reais os indivíduos concretos. A ideia só existe nos seres individuais:

ele a chama de “forma”. Preocupado com as primeiras causas e com os pri-

meiros princípios de tudo, dessacraliza o “ideal” platônico, realizando as idei-

as nas coisas. O primado é o da experiência. Os caminhos do conhecimento

são os da vida. Sua teoria capital é a distinção entre potência e ato. O que

leva à segunda distinção básica, entre matéria e forma: “a substância é a for-

ma”. Daí sua concepção de Deus como Ato puro, Primeiro Motor do mundo,

motor imóvel, Inteligência, Pensamento que ignora o mundo e só pensa a si

mesmo. Quanto ao homem, é um “animal político” submetido ao Estado que,

pela educação, obriga-o a realizar a vida moral, pela prática das virtudes: a

vida social é um meio, não o fim da vida moral. A felicidade suprema consiste

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na contemplação da realização de nossa forma essencial. A política aparece

como um prolongamento da moral. A virtude não se confunde com o heroís-

mo, mas é uma atividade racional por excelência. O equilíbrio da conduta sóse realiza na vida social: a verdadeira humanidade só é adquirida na sociabili-

dade.

Epicuro

(341-270 a.C.)

Filósofo grego (nascido em Samos) atomista, fundador do epicurismo. Come-

çou a filosofar aos 14 anos sob a influência de Demócrito. Em 323 a.C., insta-

lou-se em Atenas. Devido à hostilidade dos macedônios, partiu para a Ásia

Menor. Retornou a Atenas em 306 a.C. onde fundou uma escola filosófica

composta de homens e mulheres, dando origem a anedotas escandalosas.

Paralítico, morreu em Atenas. A base de seu sistema é uma física fundada nos

átomos, como em Demócrito. Pontos últimos se deslocando no vazio, os áto-

mos constituem a explicação última do mundo: nada existe a não ser os áto-

mos e o vazio no qual se movem; a alma, como tudo o que existe, é formada

de átomos materiais; tudo o que acontece no mundo deve-se às ações e in-

terações mecânicas dos átomos. Sua moral é comandada pelo primeiro prin-

cípio: o bem é o prazer. Trata-se de uma moral hedonista. Mas, sob o pretex-

to de que sua moral se funda no prazer, quiseram fazer de Epicuro um defen-

sor da volúpia. Para ele, o prazer seria o soberano bem, e a dor o soberano

mal. O prazer consiste na eliminação de toda dor; o estado estável do prazer

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é a ausência de dor, a ataraxia. É o prazer estável que garante a felicidade. O

critério do bem e do mal reside na sensação: “o prazer é o começo e o fim da

vida feliz”. E o sábio despreza a morte. Aprender a bem viver é aprender amelhor gerir seus prazeres, afas- tando aqueles que não são nem naturais

nem necessários e fomentando aqueles que se encontram nos limites da na-

tureza. O cume dessa moral seria a beatitude da ataraxia: a total imperturba-

bilidade diante da dor.

Santo Agostinho

(354-430)

Aurélio Agostinho, bispo de Hipona, nasceu em Tagaste, hoje SoukAhras, na

Argélia, e é um dos mais importantes iniciadores da tradição platônica no

surgimento da filosofia cristã, sendo um dos principais responsáveis pela sín-

tese entre o pensamento filosófico clássico e o cristianismo. Estudou em Car-

tago, e depois em Roma e Milão, tendo sido professor de retórica. Reconver-

teu-se ao cristianismo, que fora a religião de sua infância, em 386, após ter

passado pelo maniqueísmo e pelo ceticismo. Regressou então à África (388),

fundando uma comunidade religiosa. Suas obras mais conhecidas são as

Confissões (400), de caráter autobiográfico, e A cidade de Deus, composta

entre 412 e 427. Sto. Agostinho sofreu grande influência do pensamento gre-

go, sobretudo da tradição platônica, através da escola de Alexandria e do ne-

oplatonismo, com sua interpretação espiritualista de Platão. Sua filosofia tem

como preocupação central a relação entre a fé e a razão, mostrando que se

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Nicolau Maquiavel

(1469-1527)

Homem solitário e revoltado, o italiano Maquiavel (nascido em Florença) tor-

nou-se, aos 29 anos, secretário do governo republicano de Florença. Empre-

endeu várias missões diplomáticas. Os Medicis, porém, sustentados pelo

papa Júlio II, apoderaram-se de Florença e dos Estados vizinhos. O republi-

cano Maquiavel organizou, em vão, a resistência. Foi preso, torturado e bani-

do (exilado). Em San Casciano, onde se refugiou e passou 10 anos, escreveu

dois livros: O discurso sobre a primeira década de Tito Lívio e O Príncipe. Em

1520, escreveu A arte da guerra, no qual reivindicava a substituição dos mer-

cenários por milícias nacionais. Tentou reaproximar-se dos Medicis, mas con-

tinuou sob suspeita. Sua obra mais célebre, O Príncipe, não é, como preten-

dia Frederico II em seu Antimaquiavel, um manual de técnica política de um

realismo satânico, sem se preocupar com as questões de justiça, de direito,

da autoridade legítima e da moral. No contexto em que foi escrito, a Itália era

um país dividido em vários principados, além dos Estados do papa. A proble-

mática de Maquiavel era: como chegar ao poder? Como exercê-lo? Como

conservá-lo? Para abordá-la, rompeu com todas as teorias da legitimação do

poder, deixando o domínio do direito pelo domínio do fato, que é o da força.

Imagina uma Itália unificada, desembaraçada das pilhagens e dos chefes de

bandos, uma Itália regenerada numa nova república. Para a realização desse

sonho, não se precisava de um profeta falador nem de um novo tirano, mas

de um libertador inspirado e realista, de um profeta armado: o príncipe. O

príncipe deveria ter uma tríplice missão: a) tomar o poder; b) assegurar a es-

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mia contra um crítico, Nicolau Ursus, que a acusara de “mera hipótese”. A

Apologia (1600) resultante não foi publicada. Ela contém uma análise aguda

da natureza das hipóteses astronômicas. Salvar apenas os fenômenos, argu-men ta Kepler, geralmente não é suficiente para separar dois sistemas mate-

máticos como os de Ptolomeu e Copérnico. São necessários outros critérios

“físicos” mais propriamente explicativos.

Utilizando a massa de dados acumulados por Tycho, Kepler pôde come-

çar a trabalhar sobre a órbita de Marte. Mas pouco depois Tycho morreu re-

pentinamente (1601). Kepler sucedeu a Tycho no cargo de matemático impe-rial. Mais importante que isso: foi incumbido da guarda dos preciosos dados

de Tycho. Anos de trabalho levaram à publicação da Astronomia nova (1609),

que anunciava a descoberta da órbita elíptica de Marte. Um traço característi-

co da longa pesquisa de Kepler, para chegar à verdadeira forma da órbita, foi

sua ênfase em encontrar uma possível explicação física de qualquer movi-

mento planetário que postulava antes de concluir que se tratava do movi-

mento verdadeiro. A consideração da força do sol como magnética permitiu-

lhe supor que o seu efeito sobre a terra variaria quando o eixo magnético da

terra alterasse a sua orientação em relação ao sol, talvez explicando assim as

distâncias e velocidades variáveis da terra na sua órbita elípti ca. O título

completo do seu livro deixa clara a sua ambição: Uma nova astronomia base-

ada nas causas, ou umafísica do céu.

Distúrbios em Praga mais uma vez forçaram Kepler a mudar-se. Acabou

encontrando lugar em Linz (1612), onde continuou sua exploração das har-

monias cósmicas, baseando-se na teologia e na filosofia, bem como na músi-

ca e na matemática. Harmonia mundi (1618) era o favorito entre os seus li-

vros: “Ele pode esperar um século para encontrar um leitor, pois o próprio

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Deus esperou seis mil anos por uma testemunha”. A descoberta do que mais

tarde se tornou conhecida como a sua terceira lei, relacionando o quadrado

dos períodos de revolução de quaisquer dois planetas com o cubo dos raiosmédios de suas respectivas órbitas, serviu para con firmar sua convicção, ali-

mentada havia muito tempo, de que o universo molda-se de acordo com re-

lações harmônicas ideais.

Em Epitome astronomiae Copemicanae (1612) continuou a investigação

das causas “naturais ou arquetípicas”, não só dos movimentos planetários,

mas também de detalhes como o tamanho do sol e as densidades dos plane-tas. Estava mais convencido que nunca que uma física do céu tinha de base-

ar-se na sua capacidade de explicar (e não apenas de prever) as peculiarida-

des dos movimentos dos planetas e da lua. O que o impediu de avançar ain-

da mais do que o fez no rumo de uma nova física foi o fato de não ter com-

preendido aquilo que mais tarde passou a chamar-se princípio da inércia. Por

isso foi obrigado a postular não só uma força de atração entre planeta e sol,

mas também uma segunda força para impelir o planeta para frente. Foi New-

ton quem mostrou que a segunda força era desnecessária, e quem finalmen-

te construiu “a física do céu”, que fora a ambição de Kepler. Mas Newton não

poderia ter feito isso, sem a noção kepleriana de uma força quantificável que

opera entre planeta e sol, idéia não ortodoxa pela primeira vez desenvolvida

por uma imaginação imergida na metafísica neoplatônica e na teologia do

Espírito Santo.

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Thomas Hobbes

(1588-1679)

Filósofo materialista inglês, foi um empirista mas, na história da filosofia, é

considerado sobretudo um pensador político. Estudou em Oxford. Viajou

muito. Em 1621, encontrou-se com Francis Bacon, com ele indo para a França

e a Itália. Descobriu a ciência de Galileu. Estudou os clássicos e se apaixonou

por Euclides. No início da crise revolucionária de Charles I (decapitado em

1649), exilou-se em Paris, onde entrou em contato com Mersenne e com as

Meditações de Descartes (às quais fez objeções). Retornou à Inglaterra em

1651, onde foi acusado de ateísmo pelo Parlamento. Manteve controvérsias

violentas sobre a liberdade e a necessidade. Ganhou notoriedade. Suas

obras principais são: De cive (1642), Leviathan (1651), De homine (1658), De

corpore (1661). Os temas centrais de sua filosofia giram em torno: a) do esta-

do de natureza, no qual as relações dos homens entre si são deixadas à livre

iniciativa de cada um: “o homem é um lobo para o homem”; b) do Estado so-

cial: a sociedade política é a obra artificial de um pacto voluntário de um cál-

culo; todos os homens são iguais por natureza; do lado do conhecimento,

tudo vem da sensação; c) da moralidade, que é o acordo da natureza com a

ação: é bem tudo o que favorece e conduz à paz; pela paz e pela razão os

homens fazem pactos; d) do papel do soberano: o de garantir a segurança e

a prosperidade de seus súditos; o poder absoluto é legítimo quando assegu-

ra a paz civil; o soberano tem todos os direitos; a justiça é inteiramente domi-

nada pela lei positiva; a lei imposta pelo soberano é justa por definição; a

Igreja deve subordinar-se ao Estado; devemos seguir a lei do Estado de pre-

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ferência à lei divina; a paz civil é o soberano bem, devendo ser mantida a

todo preço; o papel do soberano, que Hobbes chama de Leviatã, indomável

e terrível dragão bíblico, é puramente utilitário. Na guerra de todos contra to-dos, há a necessidade de um pacto social entre os indivíduos-cidadãos, cada

um renunciando à sua liberdade em favor do soberano absoluto.

René Descartes

(1596-1650)

René Descartes nasceu na França, de família nobre. Aos oito anos, órfão de

mãe, é enviado para o colégio dos jesuítas de La Flèche, onde se revela um

aluno brilhante. Termina o secundário em 1612, contente com seus mestres,

mas descontente consigo mesmo, pois não havia descoberto a Verdade que

tanto procurava nos livros. Decide procurá-la no mundo. Viaja muito. Alista-se

nas tropas holandesas de Maurício de Nassau (1618). Sob a influência de Be-

eckmann, entra em contato com a física copernicana. Em seguida, alista-se

nas tropas do imperador da Baviera. Para receber a herança da mãe, retorna

a Paris, onde frequenta os meios intelectuais. Aconselhado pelo cardeal Bé-

rulle, dedica-se ao estudo da filosofia, com o objetivo de conciliar a nova ci-

ência com as verdades do cristianismo. A fim de evitar problemas com a In-

quisição, vai para a Holanda (1629), onde estuda matemática e física. Escreve

muitos livros e cartas. Os mais famosos: O discurso do método, As medita-

ções metafísicas, Os princípios de filosofia, O tratado do homem e o Tratado

do mundo. Convidado pela rainha Cristina, vai passar uns tempos em Esto-

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gico-político (1670), colocou o problema das relações entre religião e Estado.

Reconheceu ao Estado, poder soberano, o direito e o dever de fazer reinar a

paz interior na comunidade, bem como de organizar as ações exteriores. Aética, demonstrada segundo o método geométrico (1677) é sua obra princi-

pal. Uma demonstração rigorosa, ordenada numa impecável série de teore-

mas, revela seu aspecto polêmico: trata-se de uma máquina de guerra contra

a filosofia dominante, sobretudo contra a teoria do sujeito voluntário, pela

qual o homem pretende converter-se em mestre e possuidor da natureza. A

essa vontade livre, Espinoza opõe uma única necessidade, vida interna detodo o universo: todas as coisas (inclusive os homens) são modos da substân-

cia única que é Deus. A inteligência pode chegar ao saber absoluto; a essên-

cia de Deus e das coisas é totalmente inteligível; Deus é a natureza concebi-

da como totalidade; dessa totalidade, o entendimento humano só pode con-

ceber dois atributos: o pensamento e a extensão; mas as coisas singulares

existem realmente; todo conhecimento verdadeiro se realiza por uma dedu-

ção de tipo geométrico; a ideia não consiste na imagem nem nas palavras,

mas no exercício do intelecto que coincide com seu objeto; o homem não é

um império num império, mas está submetido às leis comuns da natureza.

Precisamos analisar as diferentes instituições em seu funcionamento: que po-

der as produz? Quais são seus efeitos? Eis o objetivo da obra inacabada Tra-

tado político (1677). A alegria, a tristeza e o desejo são três afeições primiti-

vas das quais nascem todas as outras. O bem, o mal, o belo e o feio não cons-

tituem propriedades das coisas, mas modos de imaginar. Como a supersti-

ção constitui a grande ameaça do homem, a tarefa do filósofo é eminente-

mente política: denunciar os sistemas políticos que só se impõem aos ho-

mens inspirando-lhes paixões tristes. É na cidade que o homem realiza sua li-

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berdade: “O sábio é mais livre na cidade, onde obedece à lei comum, do

que na solidão onde só obedece às suas paixões”; “Não devemos confundir

o sentido de um discurso com a verdade das coisas”. Se o “Deus sive Natura”de Espinoza não é um Deus criador, pessoal e juiz, nem por isso pode ser dis-

solvido no mundo (panteísmo).

John Locke

(1632-1704)

John Locke nasceu perto de Bristol, Inglaterra. Estudou medicina e foi secre-

ta # rio poli #tico de va # rios homens de Estado. Fez va # rias viagens ao exterior. Até

os 38 anos, não manifestou nenhuma vocação filoso # fica. Foi somente em

1670/71 que seu pensamento tomou um novo rumo: surgiu-lhe a ideia de

sua grande obra: An Essay concerning Human Understanding (Ensaio sobre o

entendimento humano, 1690). No mesmo ano, escreveu An Essay concerning

Toleration (Ensaio sobre a tolerância). Em 1693, publicou The Reasonableness

of Christianity  (A razoabilidade do Cristianismo). Sua obra é uma reação con-

tra Descartes e sua doutrina das ideias inatas. Ao descrever a formação de

nossas ideias, Locke mostra que todas elas têm por fonte a experiência. Ele

defende o empirismo contra o racionalismo cartesiano. O essencial de sua

doutrina é sua teoria do conhecimento: a) todo conhecimento humano tem

sua origem na sensação: “nada há na inteligência que, antes, não tenha esta-

do nos sentidos”; não há ideias inatas no espi #rito; b) a partir dos dados da ex-

periência, o entendimento vai produzir novas ideias por abstração; c) se o en-

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tendimento humano é passivo na origem, pois é tributa # rio dos sentidos, tem

também um papel ativo, pois pode combinar as ideias simples e formar idei-

as complexas. Assim, seu empirismo leva-o a conferir à probabilidade um pa-pel essencial no conhecimento. Quanto à poli #tica, parte da seguinte ideia:

“Os homens são todos, por natureza, livres, iguais e independentes, e nin-

guém pode ser despossui #do de seus bens nem submetido ao poder poli #tico

sem seu consentimento”. A consequência de seu empirismo se revela na con-

cepção do Estado social e do poder poli #tico: em primeiro lugar, refuta o di-

reito divino e o absolutismo, pois trata-se de renunciar a essas especulaçõespara se voltar às coisas mesmas; em seguida, declara que o poder só é legi #ti-

mo quando é a emanação da vontade popular, pois a soberania pertence ao

povo que a delega a uma assembleia ou a um monarca; finalmente, antecipa

Marx declarando que o fundamento da propriedade é o trabalho.

Isaac Newton

(1642-1727)

Matemático e físico inglês, professor na Universidade de Cambridge, Newton

pode ser considerado o criador da física moderna, devido à formalização

que efetuou da mecânica de Galileu, à formulação da lei da gravidade, e a

suas pesquisas em ótica e sobre a natureza da luz. A contribuição de Newton

à física levou ao amadurecimento da concepção de ciência moderna inaugu-

rada por Francis Bacon, Galileu e Descartes. Sua mecânica é a primeira for-

mulação elaborada de uma teoria geral unificada do movimento, aplicando-

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se não só ao movimento de um corpo na superfície da Terra como ao movi-

mento dos corpos celestes, tendo como princípio básico a lei da gravitação

universal. Newton empregou com sucesso o formalismo matemático na cons-trução de sua teoria física, ao mesmo tempo defendeu a necessidade e a im-

portância do método experimental. Foi grande a influência de Newton no de-

senvolvimento da ciência, podendo-se considerar que sua física fornece um

paradigma de ciência que irá vigorar praticamente até o período contempo-

râneo, tendo também grande influência na filosofia. As implicações da mecâ-

nica de Newton tiveram grande impacto na filosofia dos empiristas ingleses,sobretudo em Locke, que pretende explicar o conhecimento humano do

mundo natural levando em conta a nova descrição desse mundo formulada

por Newton. Kant considerava a física de Newton um modelo de ciência de-

senvolvida e acabada, devendo servir de inspiração à filosofia e às demais ci-

ências. Foi célebre sua controvérsia com Leibniz sobre quem teria sido o in-

ventor do cálculo infinitesimal, podendo-se supor, no entanto, que o trabalho

de ambos foi simultâneo e independente. Sua obra mais famosa, em que ex-

põe seu sistema, intitula-se Principia Mathematica (1687). Além de suas notá-

veis contribuições à física, Newton teve também grande interesse por ques-

tões as mais diversas, incluindo a alquimia e a teologia.

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Gottfried Leibniz

(1646-1716)

O filósofo e matemático alemão (nascido em Leipzig) Gottfried Wilhelm Leib-

niz, além de filosofia e matemática, interessava-se também por direito, pelas

questões religiosas e sobretudo por política. Sonhou com a fundação de uma

confederação dos Estados europeus. Descobriu, em 1676, ao mesmo tempo

que Newton, o cálculo infinitesimal. Trabalhou para a reunião das Igrejas ca-

tólica e protestante. Suas obras mais importantes: Ensaio filosófico sobre o

entendimento humano (1690), Novos ensaios sobre o entendimento humano

(1704), A teodiceia (1710) e A monadologia (1714). Sua filosofia é influencia-

da pelo mecanicismo cartesiano e pelas causas finais de Aristóteles. Acredi-

tando na onipotência da razão, ele reintegra no universo a força, o dinamis-

mo e o ponto de vista do individual concreto. Ao grande problema do acesso

ao saber, responde dizendo que não há um caminho único. Seu sistema é for-

mado de uma pluralidade de cadeias de razões, todas representando uma

possibilidade de entrada no sistema. Assim, na Monadologia, começamos

pela “mônada”; na Teodiceia, por Deus. Para ele, a demonstração matemática

permite determinar o possível, mas é impotente para provar o real, que nos é

revelado pela experiência. Torna-se imprescindível um princípio superior: o

da “razão suficiente”. As mônadas são os elementos das coisas, os átomos da

natureza. O universo é o conjunto das mônadas, diferentes umas das outras e

se hierarquizando segundo seu maior ou menor grau de perfeição, numa sé-

rie crescente cujo cume é Deus. Cada uma das mônadas constitui um espe-

lho representativo de todo o universo. Mas essa representação jamais é intei-

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ramente perceptível, a não ser por Deus. As mônadas são fechadas, “sem

portas nem janelas”, mas podem coexistir segundo uma “harmonia preesta-

belecida”: a série dos estados do universo teria sido regulada de modo óti-mo, desde a origem, no ato criador da divindade; cada mônada é um univer-

so do qual está parcialmente consciente, todas sendo como pontos de vista

sobre a mesma paisagem. A combinação das ideias que dá origem ao univer-

so é uma combinação entre uma infinidade de possíveis. Mas o possível não

é o real. Uma vez que o mundo existe, é necessário, conforme o princípio de

razão suficiente, uma razão suplementar: ele é o melhor dos mundos possí-veis.

David Hume

(1711-1776)

O filósofo e historiador escocês David Hume nasceu em Edimburgo. Estudou

filosofia e se interessou pelas letras. Abandonou o curso de direito e dedi-

cou-se ao comércio, passando três anos na França (1734-1737). Retornou à

Inglaterra, tornou-se secretário do general Saint Clair e o acompanhou a Vie-

na e Turim. Em 1744, candidatou-se a uma cadeira de filosofia em Edimbur-

go, foi acusado de ateísmo e não nomeado. Posteriormente, candidatou-se à

cadeira de lógica em Glasgow, para substituir Adam Smith, e fracassou nova-

mente. Conseguiu ser nomeado bibliotecário da faculdade de direito, onde

se dedicou a uma grande atividade literária. Em 1763, retornou à França

como secretário da embaixada, onde conheceu Rousseau. Voltou à Inglaterra

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e tornou-se subsecretário de Estado (1767-1768). No ano seguinte (1769), re-

gressou então a Edimburgo, onde permaneceu até sua morte. A filosofia de

David Hume caracteriza-se como um fenomenismo que procede ao mesmotempo do empirismo de Locke e do idealismo de Berkeley; também é conhe-

cida por ser um ceticismo, na medida em que reduz os princípios racionais a

ligações de ideias fortificadas pelo hábito e o eu a uma coleção de estados

de consciência. Suas obras principais são: A Treatise of Human Nature (1739),

Essays Moral and Political (1741), An Enquiry Concerning Human Understan-

ding (inicialmente intitulado Philosophical Essays Concerning Human Un-derstanding) (1748), Political Discourses (1752), History of England during the

Reigns of James I and Charles I (1754 ss.), Dialogues on Natural Religion

(1779), póstuma. Abordam os seguintes temas fundamentais: a) não é possí-

vel nenhuma teoria geral da realidade: o homem não pode criar ideias, pois

está inteiramente submetido aos sentidos; todos os nossos conhecimentos

vêm dos sentidos; b) a ciência só consegue atingir certezas morais: suas ver-

dades são da ordem da probabilidade; c) não há causalidade objetiva, pois

nem sempre as mesmas causas produzem os mesmos efeitos; d) convém que

substituamos toda certeza pela probabilidade. Eis seu ceticismo, a condição

da tolerância e da coexistência pacífica entre os homens. Trata-se de um ceti-

cismo teórico, não válido na vida prática.

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Jean-Jacques Rousseau

(1712-1778)

Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra, Suíça, de uma família de ori-

gem francesa. Em 1742, instalou-se em Paris e vinculou-se ao movimento en-

ciclopedista, especialmente a Diderot, tendo uma vida mundana. Manteve

uma longa ligação com Thérèse Le Vasseur, de quem teve cinco filhos que

entregou à assistência pública. Em 1750, publicou o Discurso sobre as ciênci-

as e as artes, rompendo com o otimismo do Século das Luzes. Em 1755, pu-

blicou o Discurso sobre a origem da desigualdade, que lhe deu celebridade

e lhe causou problemas: polemizou com Voltaire e outros. Em 1762, publicou

o Contrato social, livro que o levou a exilar-se na Suíça, depois na Inglaterra.

Finalmente, retorna à França, onde morre. Dos temas por ele abordados, des-

taquemos: a) o homem é, por natureza, bom; é a sociedade que o corrompe;

quer dizer: a sociedade não é, por essência, corruptora, mas somente certo

tipo de sociedade, isto é, aquela que repousa na afirmação da desigualdade

natural dos homens, oprimindo a maioria em proveito de uma minoria privi-

legiada; b) o estado de natureza é um estado primordial onde o homem vive

feliz, em harmonia com o mundo e na inocência, não havendo necessidade

de sociedade: o social não tem sua norma na natureza, mas no homem; a

passagem da natureza à sociedade é puramente contingente, é uma causali-

dade puramente externa que o induz a isso; c) o homem difere essencial-

mente dos outros seres naturais e animais por sua perfectibilidade; o proble-

ma, para ele, consiste em encontrar uma forma de sociedade na qual possa

preservar sua liberdade natural e garantir sua segurança; d) para solucionar

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esse problema, Rousseau propõe o contrato social. O soberano é o conjunto

dos membros da sociedade. Cada homem é ao mesmo tempo legislador e

sujeito. Ele obedece à lei que ele mesmo fez. Isso pressupõe uma vontadegeral distinta da soma das vontades particulares. Cada homem possui, como

indivíduo, uma vontade particular; mas também possui, como cidadão, uma

vontade geral que o conduz a querer o bem do conjunto do qual é membro.

Cabe à educação formar essa vontade geral. O regime social ideal é o demo-

crático, mas Rousseau está consciente das dificuldades de tal regime: o go-

verno, mesmo representativo, pode usurpar a soberania: “Um homem livreobedece, mas não serve; tem chefes, e não mestres; obedece às leis mas so-

mente às leis; e é pela força das leis que não obedece aos homens.”

Immanuel Kant

(1724-1804)

Um dos filósofos que mais profundamente influenciou a formação da filosofia

contemporânea, Kant nasceu em Königsberg, na Prússia Oriental (Alemanha),

atualmente Kaliningrado na Rússia, onde passou toda a sua vida, tendo che-

gado a reitor da Uni#versidade de Königsberg, onde foi estudante e profes-

sor. O pensamento de Kant é tradicional#mente dividido em duas fases: a

pré-crítica (1755-1780) e a crítica (1781 em diante), que se inicia com a publi-

cação da Crítica da razão pura, sua obra capital. Na fase pré-crítica o pensa-

mento kantiano está totalmente inserido na tradição do sistema metafísico de

Leibniz e Wolff, então dominante nos meios acadêmicos alemães. Sua princi-

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em que se combinam sensibilidade e entendimento, de tal forma que só co-

nhecemos realmente o mundo dos fenômenos, da experiência, dos objetos

enquanto se relacionam a nós, sujeitos, e não a realidade em si, tal qual ela é,independentemente de qualquer relação de conhecimento. O método trans-

cendental, que Kant então formula, caracteriza-se precisamente como análise

das condições de possibilidade do conhecimento, ou seja, como reflexão crí-

tica sobre os fundamentos da ciência e da experiência em geral. A Crítica da

razão prática (1788) analisa os fundamentos da lei moral, formulando o famo-

so princípio do imperativo categórico: “age de tal forma que a norma de tuaação possa ser tomada como lei universal”. Trata-se de um princípio formal e

universal, estabelecendo que só devemos basear nossa conduta em valores

que todos possam adotar, embora não prescrevendo especificamente quais

são esses valores. Na Crítica da faculdade de julgar (1790), Kant procura esta-

belecer as bases objetivas para o juízo estético, em um princípio semelhante

ao ético. Na verdade, essa obra vai além da questão da estética, envolvendo

todo juízo teleológico e o reconhecimento de um fim ou propósito que daria

sentido à natureza. Assim, “a beleza é a forma da finalidade em um objeto,

percebida entretanto separadamente da representação de um fim”. Kant es-

creveu ainda outras obras de grande importância como os Prolegômenos a

toda metafísica futura (1783), que pretende ser uma retomada das ideias da

Crítica da razão pura de forma mais acessível; os Fundamentos da metafísica

dos costumes (1785), que também tratam da questão ética; um tratado sobre

a Religião nos limites da simples razão (1793); uma obra política, o Tratado

sobre a paz perpétua (1795); a Antropologia de um ponto de vista pragmáti-

co (1798); a Lógica (1800); além de vários outros textos dentre os quais se

destacam “A ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopoli-

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espírito (Geist). A Fenomenologia do espírito (1807), subintitulada “ciência da

experiência da consciência”, é a obra que inaugura esse pensamento, que

será desenvolvido de forma sistemática em obras subsequentes, bem comoem cursos e conferências. Hegel traça aí o percurso da consciência humana

até chegar ao espírito absoluto, ou ainda, as etapas do caminho que o espíri-

to percorre através da consciência humana até chegar a si mesmo. Em sua Ci-

ência da lógica (1816), formula sua “filosofia do conceito”, através da qual

pretende examinar “a natureza das eventualidades puras que formam o con-

teúdo da lógica ... os pensamentos puros, o espírito que pensa, sua essência”.A filosofia de Hegel é dialética, porém esta não deve ser vista aí como um

método, mas como uma concepção do real mesmo, a contradição constituin-

do a essência das próprias coisas: “todas as coisas são contraditórias em si”.

Segundo Hegel, portanto, em suas Lições sobre a história da filosofia

(1819-1828), os grandes sistemas filosóficos do passado não devem ser vis-

tos como um conflito em si, mas como antecipando, de alguma forma, uma

parcela da verdade sobre o real. O seu sistema representaria assim o fim da

filosofia, a superação da oposição entre os diferentes sistemas e a síntese das

verdades que todos contêm, resultado de sua análise das etapas do desen-

volvimento do espírito. Suas principais obras, além das já citadas, são: Prope-

dêutica filosófica (1809-1816), Enciclopédia das ciências filosóficas (1817) e

Princípios da filosofia do direito (1821).

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 Arthur Schopenhauer

(1788-1860)

O filósofo alemão Schopenhauer (nascido em Dantzig), influenciado forte-

mente por Kant, desenvolveu uma filosofia pessoal, considerada pessimista e

ascética. Combateu o hegelianismo, então dominante, e sua oposição ao

meio acadêmico na Alemanha fez com que seu pensamento tivesse relativa-

mente pouca repercussão, alcançando notoriedade apenas no final de sua

vida. Partindo essencialmente de Kant, mas também sob a influência de Pla-

tão e até mesmo do budismo, Schopenhauer considera o mundo de nossa

experiência como simples representação. Ao procurar superar o nível da apa-

rência, em direção à realidade verdadeira, o absoluto, o sujeito descobre

pela autointuição sua vontade, chegando depois à vontade única como ser

verdadeiro. Sua obra mais importante é O mundo como vontade e represen-

tação (1818), sendo também bastante populares em sua época seus aforis-

mos publicados sob o título de Parerga und paralipomena (Acessórios e res-

tos, 1851). Para Schopenhauer, a “vontade de viver” ou o “querer-viver” de-

signa uma força universal de todos os seres. É essa força que leva cada indiví-

duo a lutar, consciente ou inconscientemente, para preservar sua espécie: “A

vontade é a substância íntima, o meio de toda coisa particular como do con-

 junto; ela se manifesta na força cega da natureza e encontra-se na conduta

razoável do homem.”

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 Auguste Comte

(1798-1857)

Criador do positivismo, discípulo e colaborador de Saint-Simon, Auguste

Comte (nascido em Montpelier, França) pode ser considerado não só filósofo

como reformador social. A reforma que defende pressupõe, por sua vez, a re-

forma do saber, já que a sociedade se caracteriza exatamente pela etapa de

desenvolvimento espiritual que atingiu. O termo “positivismo” deriva da lei

dos três estados que Comte formula em sua teoria da história, designando as

características globais da humanidade em seus períodos históricos básicos: o

teológico, o metafísico e o positivo. A característica essencial do estado posi-

tivo é ter atingido a ciência, quando o espírito supera toda a especulação e

toda a transcendência, definindo-se pela verificação e comprovação das leis

que se originam na experiência. Comte é considerado um dos criadores da

sociologia, procurando conciliar em sua proposta política de reforma social

elementos da política conservadora, como a defesa da ordem, e da corrente

liberal ou progressista, como a necessidade de progresso. Daí o famoso lema

do positivismo comtiano, “o amor por princípio, a ordem por base e o pro-

gresso por fim”. As ideias de Comte tiveram grande influência no Brasil na

formação do pensamento republicano a partir da segunda metade do séc.

XIX, e muitas das ideias positivistas foram incorporadas à Constituição de

1891. Essa influência pode ser ilustrada pela presença na bandeira nacional

do lema de inspiração positivista “Ordem e Progresso”. Comte escreveu nu-

merosas obras, destacando-se o Curso de filosofia positiva (1830-1848), o

Sistema de política positiva (1851-1854) e o Catecismo positivista (1850).

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Soren Kierkegaard

(1813-1855)

Pensador romântico e precursor do existencialismo contemporâneo, Kierke-

gaard nasceu em Copenhague, Dinamarca, onde estudou filosofia e teologia.

Profundamente marcado por angústias pessoais e familiares às quais se so-

mou a crise provocada pelo rompimento de seu noivado com Regina, Kierke-

gaard desenvolveu um pensamento indissociável de sua vida pessoal e de

seus sentimentos trágicos. Atacou o cristianismo e especialmente o luteranis-

mo de sua pátria, valorizando contra a religião estabelecida a vivência da reli-

giosidade. Combateu o hegelianismo e a metafísica especulativa, por seu ca-

ráter abstrato e sua busca do universal, defendendo a necessidade de uma

“filosofia existencial”. Seu estilo é irônico e polêmico, porém também poético,

embora sem nenhuma preocupação teórica ou sistemática, muito distante da

forma tradicional do tratado filosófico de sua época, tendo sido quase todas

as suas obras publicadas sob pseudônimo. Para Kierkegaard, o homem é um

ser que se caracteriza pelo desespero que se origina das contradições de sua

existência e de sua distância de Deus: “o homem é uma síntese de infinito e

de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade” (Desespe-

ro humano). Em sua obra Estágios do caminho da vida (1845), formula uma

doutrina de três níveis de consciência, o estético, no qual o indivíduo busca a

felicidade no prazer, cuja fugacidade entretanto leva ao desespero inevitável;

o ético, em que procura alcançar a felicidade pelo cumprimento do dever,

sendo no entanto condenado ao eterno arrependimento por suas faltas; e fi-

nalmente, o religioso, em que o homem busca Deus, entretanto a verdadeira

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fé é a angústia da distância de Deus. Dentre suas obras destacam-se ainda:

Ou ... ou (1843), Tremor e terror (1843), O conceito de angústia (1844), as Mi-

galhas filosóficas (1844) e o Diário, escrito ao longo de vários anos. É signifi-cativa a influência de Kierkegaard no existencialismo contemporâneo, sobre-

tudo em Heidegger, bem como na renovação da teologia, principalmente

protestante, que se dá no séc. XX com Karl Barth e a “teologia dialética” ou

“teologia da crise”.

Karl Marx

(1818-1883)

Filósofo alemão, nascido em Trier de uma família judia convertida ao protes-

tantismo. Sua obra teve um grande impacto em sua época e na formação do

pensamento social e político contemporâneo. Estudou direito nas Universi-

dades de Bonn e de Berlim, doutorandose pela Universidade de Iena (1841),

com uma tese sobre a filosofia da natureza de Demócrito e de Epicuro. Ligou-

se aos “jovens hegelianos de esquerda”, escrevendo em jornais socialistas.

Depois de um intenso período de militância política, marcado pela fundação

da “liga” dos comunistas (1847) e pela redação, com Engels, do Manifesto do

Partido Comunista (1848), exilou-se na Inglaterra (1849), onde viveu até a sua

morte, desenvolvendo suas pesquisas e escrevendo grande parte de sua

obra na biblioteca do Museu Britânico, em Londres. Sua obra não se restrin-

ge ao campo da filosofia apenas, mas abrange ainda sobretudo os campos

da história, da ciência política e da economia. O pensamento de Marx desen-

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volve-se a partir do contato com a obra dos economistas ingleses como

Adam Smith e David Ricardo, e da ruptura com o pensamento hegeliano e

com a tradição idealista da filosofia alemã. É então que surge o materialismohistórico, segundo o qual as relações sociais são determinadas pela satisfa-

ção das necessidades da vida humana, não sendo apenas uma forma, dentre

outras, da atividade humana, mas a condição fundamental de toda a história.

Logo, a economia política, que estuda a natureza dessas relações de produ-

ção, deve ser a base de todo estudo sobre o homem, sua vida social e sua ex-

pressão cultural. Grande parte das obras de Marx foram escritas em colabo-ração com Engels, sendo por vezes difícil separar as ideias de um e as de ou-

tro. Apesar de ter elaborado um grande número de obras teóricas nos mais

diversos campos da filosofia e das ciências sociais, Marx nunca abandonou a

militância política, nem a convicção de que a tarefa de uma filosofia, que se

queira verdadeiramente crítica, deve ser a transformação da realidade. Escre-

veu também um grande número de artigos para jornais, meio como ganhou

a vida em Londres, e de textos em que analisou os eventos históricos e políti-

cos de sua época como as comunas de Paris. Suas principais obras são: A crí-

tica da filosofia do direito de Hegel (1843, publicada postumamente); A sa-

grada família (1845), em colaboração com Engels; A ideologia alemã

(1845-1846), em colaboração com Engels, também publicada postumamen-

te; A miséria da filosofia: resposta à filosofia da miséria de Proudhon (1847);

A luta de classes na França (1850); O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852);

Crítica da economia política (1859); O capital, 3 vols. (1867-1895), tendo En-

gels colaborado na edição desta obra.

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William James

(1842-1910)

O filósofo e psicólogo norte-americano William James é conhecido como um

dos fundadores do pragmatismo, definindo a verdade por “aquilo que tem

êxito praticamente e traz o novo ao mundo”, e como o primeiro a desenvol-

ver a psicologia nos Estados Unidos. Seu livro Principles of Psychology  (1890)

é um clássico. Em 1875, criou, em Harvard, o primeiro laboratório de psicolo-

gia. Teve, como alunos, entre outros, Edward Lee Thorndike e John Dewey.

Uma de suas teses centrais diz que a consciência é uma função biológica,

que ela é ação sobre e no real, adaptação ativa a um meio que a influencia,

mas que também modela (pois é operante). James encontra-se na origem do

“funcionalismo” que será adotado por Dewey e outros da “escola de Chica-

go”. Seu pragmatismo deriva, na ordem do conhecimento, do empirismo e,

na ordem da ação, do utilitarismo de John Stuart Mill. O espírito que o domi-

na sustenta que se deve dar maior importância à prática ( pragma, em grego)

do que à teoria, o critério da verdade devendo ser procurado na ação. Por-

que a verdade é uma ideia que tem êxito, o verdadeiro é aquilo que se verifi-

ca e que é útil. O mesmo ocorre na ordem moral: o justo consiste naquilo

que é vantajoso para nossa conduta. O conhecimento deve ser prospectivo,

voltado para o futuro. Por isso, a verdade é concebida como um “programa”,

seu valor sendo medido por sua eficácia. William James fala inclusive do va-

lor monetário (cash value) de nossas ideias. Outras obras importantes de sua

autoria: The Will to Believe and Other Essays (1897), The Varieties of Religious

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Experience (1902), Pragmatism  (1907), The Meaning of Truth  (1909), A Plural-

istic Universe (1909), Essays in Radical Empiricism, póstuma (1912).

Friedrich Nietzsche

(1844-1900)

Filósofo alemão (nascido na Prússia), Nietzsche é um dos pensadores mais

originais do séc. XIX e um dos que mais influenciou o pensamento contem-

porâneo, sobretudo na Alemanha e na França. Estudou nas Universidades de

Bonn e Leipzig, tornando-se em 1868 professor de filologia grega na Univer-

sidade de Basileia (Suíça). Em 1879, sentindo-se doente, abandonou a vida

acadêmica, empreendendo uma série de viagens pela Suíça, Itália e sul da

França. Em 1889, sofreu uma crise de loucura da qual não se recuperou até a

morte. Nietzsche iniciou sua obra através de uma reflexão sobre a cultura gre-

ga e sua influência no desenvolvimento do pensamento ocidental. Identificou

aí dois elementos fundamentais: o espírito apolíneo, representando a ordem,

a harmonia e a razão; e o espírito dionisíaco, representando o sentimento, a

ação, a emoção; em nossa tradição cultural o espírito apolíneo teria triunfado

sufocando tudo que é, na expressão de Nietzsche, “afirmativo da vida”. Sua fi-

losofia possui um caráter assistemático e fragmentário, correspondendo à

sua maneira de conceber a própria atividade filosófica: seu pensamento de-

senvolveu-se em um sentido mais poético e crítico do que teórico e doutriná-

rio. Formula uma crítica profundamente cáustica e radical aos valores tradici-

onais da cultura ocidental, que considera decadentes, ao conservadorismo e

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à visão de mundo burguesa, ao cristianismo, enfim, a toda uma forma de vida

que considera contrária à criatividade e à espontaneidade da natureza huma-

na. A tarefa da filosofia deveria ser assim a de libertar o homem dessa tradi-ção, anunciando uma nova era, uma nova forma de pensar e agir, através da

“transmutação de todos os valores”. Nietzsche enfatiza o apelo aos mitos pri-

mitivos dos povos, ao heroísmo e à vontade humana, bem como às manifes-

tações artísticas que expressam esses valores. Sua exaltação inicial da música

de Wagner, com quem se envolveu posteriormente em polêmica, e dos mi-

tos originários do povo alemão permitiu que a ideologia nazista, mais tarde,tentasse se apropriar de seu pensamento. Foi profunda a influência de Ni-

etzsche no pensamento contemporâneo, na filosofia e na literatura, na discus-

são da decadência e da crise da cultura ocidental em nossa época, bem

como na obra de filósofos como Heidegger e, mais tarde, Foucault e Deleu-

ze. Suas principais obras são: O nascimento da tragédia (1872), A filosofia na

época da tragédia grega (1873), A gaia ciência (1882), Assim falou Zaratustra

(1883-1885), Além do bem e do mal (1886), A genealogia da moral (1887), O

caso Wagner (1888), O crepúsculo dos ídolos (1889), A vontade de poder,

póstuma (1911).

Sigmund Freud

(1856-1939)

Criador da psicanálise, e um dos autores que mais profundamente revolucio-

naram o pensamento de nossa época, Freud nasceu em uma família judaica

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de Freilberg, na Morávia, então parte do Império Austro-Húngaro. Formou-se

em medicina na Universidade de Viena (1881), onde seguiu alguns cursos de

Brentano. Mais tarde tornou-se professor da universidade, passando tambéma manter um consultório em Viena. Começou a desenvolver sua teoria psica-

nalítica no início do século, alcançando grande fama e notoriedade. Em

1910, foi fundada a Associação Internacional de Psicanálise, sendo Freud seu

primeiro presidente. Em 1938, com a anexação da Áustria pela Alemanha,

exilou-se na Inglaterra, onde veio a falecer no ano seguinte. A teoria freudia-

na teve grande impacto não só na psiquiatria e na psicologia, mas na filosofiae nas ciências humanas e sociais em geral. Especialmente para a filosofia, sua

revelação do inconsciente como lugar de nossos desejos reprimidos, origem

de nossos sonhos e fonte de nosso imaginário, provocou um profundo ques-

tionamento da tradição filosófica racionalista que definia o homem precisa-

mente por sua consciência e racionalidade. “A psicanálise nos ensina que a

essência do processo de repressão não consiste em suprimir, negar uma re-

presentação que indica uma pulsão, mas em impedi-la de tornar-se conscien-

te. Dizemos assim que se encontra em um estado ‘inconsciente’, e podemos

fornecer provas sólidas de que, mesmo inconsciente, ela produz efeitos, al-

guns dos quais podem até atingir finalmente a consciência.” Freud desenvol-

veu assim um exame de um lado da natureza humana em grande parte igno-

rado até então pela filosofia, forçando a revisão da conceituação filosófica do

pensamento, da razão, da consciência e da vontade. Também para a análise

da cultura e da sociedade, a contribuição de Freud foi considerável, especial-

mente em seus estudos sobre a relação entre ordem social e culpa, que, se-

gundo ele, se encontraria na própria gênese da sociedade, na morte do pai

primitivo por seus filhos que o devoram e assumem seu papel. Apesar de sua

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análise antropológica ser questionável e de sua reconstrução histórica ser es-

peculativa, o valor interpretativo da relação estabelecida por Freud entre or-

dem social e culpa permanece importante. A psicanálise representa também,do ponto de vista metodológico, uma revisão do próprio conceito de inter-

pretação, indicando as relações da linguagem e dos signos em geral com o

inconsciente e o desejo no homem, mostrando a necessidade de, através de

uma técnica interpretativa própria, penetrar nesse mundo até então insuspei-

tado. Isso levou Freud a afirmar que “como Schliemann, havia desenterrado

uma outra Troia, que se acreditava mítica”. Obras principais: A interpretaçãodos sonhos (1900), Psicopatologia da vida cotidiana (1901), O chiste e sua re-

lação com o inconsciente (1905), Cinco lições sobre a psicanálise (1909), To-

tem e tabu (1912), O futuro de uma ilusão (1927), Mal-estar na civilização

(1930).

Edmund Husserl

(1859-1938)

Criador da fenomenologia, Husserl nasceu em Prosznitz, na Morávia (atual

República Tcheca), tendo estudado matemática e filosofia nas Universidades

de Leipzig, Berlim e Viena, onde sofreu a influência de Brentano. Foi profes-

sor nas Universidades de Halle (1887), Göttingen (1906) e Freiburg (1938).

Sua filosofia desenvolveu-se inicialmente como uma reação contra o psicolo-

gismo e o naturalismo, então largamente dominantes nos meios acadêmicos

alemães. Conservou da influência de Brentano a retomada do conceito aris-

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totélico de intencionalidade, entendido aqui como a direção da consciência

ao objeto, ao real, que é definidora da própria consciência e que será um dos

conceitos-chave de sua teoria fenomenológica. Sua obra Ideias para uma fe-nomenologia pura e uma filosofia fenomenológica (1913) propõe a fenome-

nologia como uma investigação sistemática da consciência e de seus objetos.

Segundo Husserl, os objetos se definem precisamente como correlatos dos

estados mentais, não havendo distinção possível entre aquilo que é percebi-

do e nossa percepção. A experiência inclui, entretanto, não só a percepção

sensorial, mas todo objeto do pensamento. A filosofia de Husserl é assimuma forma de idealismo transcendental, fortemente influenciada por Kant,

uma tentativa de descrição fenomenológica da subjetividade transcendental,

dos modos de operar da consciência. Foi grande a influência de Husserl na fi-

losofia contemporânea, especialmente na Alemanha, onde Heidegger e

Scheler foram seus discípulos, e na França, mais diretamente com o desen-

volvimento de uma filosofia fenomenológica (Merleau-Ponty) e indiretamente

com o existencialismo. Suas obras mais importantes são: Filosofia da aritméti-

ca (1891) e Investigações lógicas (1900-1901) da chamada fase “pré-fenome-

nológica”, A filosofia como ciência rigorosa (1910-1911), Ideias para uma fe-

nomenologia pura e uma filosofia fenomenológica (1913), Lógica formal e

transcendental (1929), Meditações cartesianas (1931), A crise das ciências eu-

ropeias e a fenomenologia transcendental (1936).

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Ludwig Wittgenstein

(1889-1951)

Filósofo austríaco, viveu grande parte de sua vida na Inglaterra, tendo sido

professor na Universidade de Cambridge (1929-1947, com algumas interrup-

ções), onde havia anteriormente estudado com Russell e Moore (1912-1913).

Wittgenstein é um dos fundadores da filosofia analítica e sua obra, extrema-

mente idiossincrática e original, teve grande influência no desenvolvimento

dessa corrente filosófica. Seu pensamento é tradicionalmente dividido em

duas fases. A primeira corresponde ao Tractatus logico-philosophicus (1921),

única obra que publicou em vida, e que se insere na tradição da análise lógi-

ca da linguagem iniciada por Frege e Russell e desenvolvida pelo “Círculo de

Viena”, o qual sofreu sua influência. Segundo sua visão, a preocupação cen-

tral da filosofia deve ser a análise da linguagem, de seu alcance e de seus li-

mites. A linguagem é vista nessa primeira obra como tendo uma estrutura ló-

gica que reflete a estrutura lógica do real — a famosa “teoria pictórica do sig-

nificado” — sendo a tarefa do filósofo estabelecer as condições dessa relação,

determinando assim a possibilidade do significado. Por um período, Witt-

genstein acreditou com isso ter esgotado os problemas filosóficos que pre-

tendia tratar, chegando a abandonar a filosofia (1926). Várias questões, entre-

tanto, dentre elas as levantadas pelo intuicionismo em relação à lógica e aos

fundamentos da matemática, fizeram com que retomasse suas preocupações

filosóficas (1929), considerando, contudo, sua visão de linguagem no Tracta-

tus como insatisfatória. Embora continuando a considerar a tarefa da filosofia

como análise da linguagem através da qual podemos entender melhor nossa

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forma de ver a realidade de nossa experiência, e não como construção de te-

orias ou de sistemas, Wittgenstein altera radicalmente sua concepção de lin-

guagem. A noção central dessa segunda fase de seu pensamento, comumen-te conhecida como “o segundo Wittgenstein”, é a de jogo de linguagem, ou

seja, de uma multiplicidade de usos que fazemos de palavras e expressões,

sem que haja nenhuma essência definidora da linguagem enquanto tal. A

análise da linguagem passa a ser vista agora como consideração desses

usos, das formas de vida a que pertencem, dos contextos de comunicação

em que se inserem. O processo de elucidação, que é a prática filosófica, deveser realizado levando-se em conta esses elementos. Por seu caráter essencial-

mente assistemático e fragmentário, o pensamento de Wittgenstein deu mar-

gem a um grande número de interpretações, muitas vezes divergentes, e seu

caráter mais sugestivo do que teórico ou doutrinário fez com que sua influên-

cia desse origem a diferentes desenvolvimentos. Suas principais obras, publi-

cadas postumamente, são: Investigações filosóficas (1953), Observações so-

bre os fundamentos da matemática (1956), Livro azul e livro marrom (1958),

Observações filosóficas (1964), Fichas (1967), Gramática filosófica (1969), So-

bre a certeza (1969), Observações sobre a filosofia da psicologia (1980), to-

das resultantes da organização de seus textos compostos nas décadas de

1930 e 1940.

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Martin Heidegger

(1889-1976)

Um dos filósofos alemães mais importantes e influentes do séc. XX, Heideg-

ger nasceu em Messkirch e foi inicialmente professor na Universidade de

Freiburg (1916), onde havia estudado com Husserl. Em 1923, foi nomeado

professor-titular na Universidade de Marburgo e sucedeu a Husserl na cáte-

dra de filosofia em Freiburg (1928), chegando a reitor da universidade por

um breve período (1933). O envolvimento de Heidegger com o nazismo, ain-

da que possa ser considerado superficial, fez com que, após a ocupação da

Alemanha em 1945 pelos aliados, fosse afastado da universidade. Autorizado

a retornar em 1952, voltou a lecionar, entretanto de forma intermitente. A

obra mais marcante de Heidegger, que no entanto permanece inacabada, é

Ser e tempo (1927), na qual se afasta da fenomenologia de seu mestre Hus-

serl e inicia seu caminho de reflexão sobre o sentido mais profundo da exis-

tência humana, bem como sobre as origens da metafísica e o significado de

sua influência na formação do pensamento ocidental. Procura assim recupe-

rar a importância fundamental da questão do ser, que na tradição do pensa-

mento moderno dera lugar à problemática do conhecimento e da ciência. É

necessário para Heidegger realizar uma destruição da ontologia tradicional

para recuperar o sentido original do ser. Propõe assim toda uma nova termi-

nologia filosófica que possa dar conta desse sentido. A existência só pode

ser compreendida a partir da análise do Dasein (o ser-aí), do ser humano

aberto à compreensão do ser. Heidegger retoma, em seguida, a questão

clássica da tradição filosófica — o problema da verdade — examinando-a em

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relação aos conceitos de ser e conhecer, para estabelecer sua gênese e seu

sentido. Segundo Heidegger, a filosofia é uma exploração contínua: “o per-

manente em um pensamento é o caminho”. A partir dos anos 30, dá-se a fa-mosa “virada” (Kehre) em seu pensamento. Busca então nos fragmentos dos

pré-socráticos (sobretudo Parmênides e Heráclito) as fontes da filosofia e

uma forma mais direta e originária de apreensão do ser, de sua presença, de

sua manifestação, anterior à constituição da noção metafísica de verdade,

que segundo ele, nasceu com Platão. É através da linguagem, sobretudo da

linguagem poética, que essa apreensão se dá, já que “a linguagem é a mora-da do ser”. Em sua fase final, a obra de Heidegger torna-se menos sistemáti-

ca, mais fragmentária, mais poética, correspondendo à sua visão de um senti-

do mais originário do pensamento filosófico e de sua forma de expressão.

Suas principais obras são: Ser e tempo (1927), Kant e o problema da metafísi-

ca (1928), Sobre a essência da verdade (1930, publicada em 1943), Introdu-

ção à metafísica (1935, publicada em 1953), Caminhos que não levam a lugar

nenhum (Holzwege, 1950), Carta sobre o humanismo (1946), além de inúme-

ros artigos, ensaios e conferências publicados em coletâneas.

Karl Popper

(1902-1994)

Um dos mais influentes filósofos da ciência contemporânea, Karl Popper nas-

ceu e estudou em Viena, exilando-se, após a ascensão do nazismo, na Nova

Zelândia, de onde transferiu-se para a Inglaterra onde passou a viver. Foi pro-

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fessor na London School of Economics da Universidade de Londres (1949),

onde criou um importante centro de investigações em filosofia da ciência. Ini-

cialmente influenciado pela filosofia do Círculo de Viena, Popper desenvol-veu, no entanto, uma concepção própria da lógica e da metodologia da ciên-

cia. Sua principal contribuição consiste na formulação da noção de falsificabi-

lidade como critério fundamental para a caracterização das teorias científicas,

tentando assim superar o problema da impossibilidade da verificação defini-

tiva de uma hipótese através do método indutivo encontrado na ciência. As-

sim, para Popper, é a possibilidade de falsificar uma hipótese científica quepermite a correção e o desenvolvimento das teorias científicas, e em última

análise o progresso da ciência, embora nenhuma teoria possa jamais ser fun-

damentada de forma conclusiva. O conhecimento é portanto essencialmente

conjetural, sendo impossível a certeza definitiva. É necessário por isso defen-

der a liberdade de crítica e de experimentação. Na política e nas ciências so-

ciais, Popper defende o liberalismo e o individualismo, criticando o historicis-

mo. Suas principais obras são: A lógica da pesquisa científica (1935), A socie-

dade aberta e seus inimigos (1945), A pobreza do historicismo (1957), Conje-

turas e refutações (1963), Conhecimento objetivo (1972), Autobiografia inte-

lectual (1976) e O eu e seu cérebro (1977), em colaboração com J. Eccles.

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George Canguilhem

(1904-1995)

Médico e filósofo francês, notabilizou-se por seus estudos de história das ci-

ências, particularmente da biologia. Juntamente com Gaston Bachelard, para

quem é um dos melhores historiadores, é considerado um dos fundadores

da epistemologia histórica contemporânea. Seus trabalhos versam sobre o

discurso médico e o discurso biológico: A formação do conceito de reflexo

nos séculos XVII e XVIII (1955), O conhecimento da vida (1952), O normal e o

patológico (1966), Estudos de história e de filosofia das ciências (1968), Intro-

dução à história das ciências (1970), Ideologia e racionalidade na história das

ciências da vida (1977).

Jean-Paul Sartre

(1905-1980)

Principal representante do chamado existencialismo francês, Sartre foi um

dos pensadores mais famosos do séc. XX, destacando-se não só como filóso-

fo, mas como romancista, autor de peças teatrais de grande sucesso e mili-tante político. Nasceu em Paris, onde estudou na Escola Normal Superior.

Após um período de estudos de fenomenologia e da obra de Heidegger na

Alemanha, foi professor de liceu em várias cidades do interior da França, mili-

tou na resistência francesa, tendo sido preso pelos alemães, e em 1945 fun-

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dou a influente revista Les temps modernes, passando a dedicar-se à ativida-

de literária. Sartre foi um dos poucos filósofos importantes de nossa época a

não pertencer ao mundo acadêmico. Inicialmente marcado pela fenomeno-logia de Husserl, à qual dedicou algumas obras, como L’imagination (A ima-

ginação, 1936), Esquisse d’une théorie des émotions (Esboço de uma teoria

das emoções, 1939) e L’imaginaire (O imaginário, 1940), Sartre desenvolveu

em seguida sua filosofia da existência, a partir de uma análise da condição

humana, do homem como “um ser em que a existência precede a essência”.

Para Sartre, cujo pensamento é ateísta, a descoberta do absurdo da vida pelohomem que toma consciência de sua condição de ser finito, marcado pela

morte, deve levar à busca de uma justificativa, de um sentido para a existên-

cia humana. O existencialismo é assim um humanismo. A consciência é, por-

tanto, o elemento central dessa busca de sentido, e é essa consciência que

revela a existência do outro, sem o qual ela não pode existir, já que a consci-

ência só existe através daquilo de que é consciência. Sua principal obra des-

se período é L’être et le néant (O ser e o nada, 1943), que contém o núcleo

da filosofia do existencialismo. Sartre defende a liberdade como uma das ca-

racterísticas mais fundamentais da existência humana. Segundo ele, parado-

xalmente, “o homem está condenado a ser livre”, e precisa assumir essa liber-

dade vivendo autenticamente seu projeto de vida — seu engajamento — recu-

sando os papéis sociais que lhe são impostos pelas normas convencionais da

sociedade. É assim que “nós somos aquilo que fazemos do que fazem de

nós”. A partir da década de 60, Sartre aproximou-se da filosofia marxista, pas-

sando a considerar o marxismo como “a filosofia insuperável de nosso tem-

po”, sobretudo como pensamento revolucionário comprometido com a trans-

formação da sociedade. Questionou, porém, o materialismo e o determinis-

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mo marxistas, continuando a defender o papel central do homem no pensa-

mento filosófico. Sua obra Critique de la raison dialectique (Crítica da razão

dialética, 1960) inaugura a aproximação entre existencialismo e marxismo.Posteriormente, Sartre retomou os temas mais centrais de seu existencialismo

inicial, em sua monumental biografia do romancista francês Flaubert,L’idiot

de la famille (O idiota da família, 1972), recorrendo à psicanálise para inter-

pretar, através da consideração de um caso concreto, o sentido da existência

humana e de um projeto de vida. Dentre suas obras mais importantes desta-

cam-se, além das já citadas: L’existencialisme est un humanisme (O existenci-alismo é um humanismo, 1946), Baudelaire (1947), a autobiografia Les mots

(As palavras, 1963) e uma dezena de volumes intitulados Situations (Situa-

ções, 1947-1976) reunindo artigos e ensaios sobre temas diversos. Alguns

consideram que a expressão mais significativa do existencialismo sartriano

está em sua obra literária: nos romances La nausée (A náusea, 1937), Le mur

(O muro, 1939), coletânea de contos, e Les chemins de la liberté (Os cami-

nhos da liberdade, 1944-1949), em 3 volumes; e nas peças teatrais, algumas

de grande sucesso, como Les mouches (As moscas), em que revive a tragédia

clássica de Orestes, e Huis clos (Entre quatro paredes).

Simone de Beauvoir

(1908-1986)

Considerada a mais fiel discípula de Sartre, a escritora fran- cesa Simone de

Beauvoir, nascida em Paris, é autora de ensaios (O segundo sexo é o mais co-

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nhecido, sendo pioneiro no movimento feminista), de romances (Os manda-

rins), de peças de teatro e de memórias; não é uma filósofa no sentido estrito

da palavra. Neste domínio, não possui um pensamento próprio. Seu papel,na escola existencialista, não foi o de criar, mas de vulgarizar (o que faz com

brilhantismo) e defender as grandes teses do movimento existencialista fran-

cês, particularmente as teses sartrianas. Empenhou-se, sobretudo, em aplicar

a teoria à prática. É por isso que, se quisermos conhecer a moral sartriana,

não é a Sartre que devemos recorrer, mas a Simone. As linhas gerais dessa

moral existencialista encontram-se em dois ensaios: Pyrrhus et Cinéas (1944),que estabelece os princípios gerais da ação humana, e Por une morale de

l’ambïguité (1947), que apresenta as regras da ação moral. As primeiras ques-

tões são as seguintes: Devemos agir? O que devemos fazer? Pouco antes de

morrer, Simone escreveu um livro relatando suas relações com Sartre: Ceri-

monia do adeus.

Claude Levi-Strauss

(1908-2009)

Filósofo e antropólogo nascido em Bruxelas, Bélgica, Claude Levi-Strauss es-

tudou na Universidade de Paris-Sorbonne e é considerado um dos principais

representantes do estruturalismo francês. De 1934 a 1937, foi professor na

Universidade de São Paulo, e de 1938 a 1939 realizou pesquisas antropológi-

cas junto aos índios bororos e nhambiquaras no Brasil Central. Foi também

professor nos Estados Unidos, tornando-se mais tarde professor no Collège

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de France e membro da Academia Francesa de Letras. A obra de Lévi-Strauss

é importante sobretudo devido à sua formulação e defesa do método estru-

turalista, bem como à aplicação deste método em pesquisas antropológicassobre sociedades indígenas. Segundo Lévi-Strauss, a problemática das ciên-

cias humanas e sociais é essencialmente uma problemática de linguagem,

entendida aí em um sentido amplo; incluindo a comunicação não verbal e

todo sistema de signos em geral. À semelhança de Marx e Freud, Lévi-Strauss

busca para além dos fenômenos e manifestações superficiais as “estruturas

profundas”, descrevendo seu método metaforicamente como “um modo depensar geológico”. Assim, em contraste com o funcionalismo, ao qual seu

pensamento se opõe, LéviStrauss desenvolveu uma visão segundo a qual há

nas manifestações culturais mais diversas das sociedades uma estrutura co-

mum, um sistema, que pode ser reconstruído, revelando, p. ex., as relações

entre os modos de vestir, os hábitos ali-mentares, as estruturas de parentes-

co, a forma de poder e o sistema econômico de uma sociedade. Essas rela-

ções formam uma sintaxe a ser decifrada pelo antropólogo. Em seu pensa-

mento a história é vista como um elemento superficial, opondo-se também

ao humanismo, já que o estudo antropológico-cultural na concepção estrutu-

ralista é o estudo de um sistema de signos e não da experiência humana e da

subjetividade. É famosa a esse respeito sua polêmica com Sartre. Nesse senti-

do, o estruturalismo revê as relações entre cultura e natureza, afirmando que

o homem se torna homem na medida em que pertence a uma sociedade, a

uma cultura. Obras principais: La vie familiale et sociale des indiens Nam-

bikwara (A vida familiar e social dos índios nhambiquaras, 1948), Structures

élémentaires de la parenté (Estruturas elementares de parentesco, 1949),

Tristes tropiques (Tristes trópicos, 1955), em que relata suas experiências no

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Brasil, Anthropologie structurale (Antropologia estrutural, 1958), La pensée

sauvage (O pensamento selvagem, 1962), e os famosos quatro volumes: Le

cru et le cuit (O cru e o cozido, 1964), Du miel aux cendres (Do mel às cinzas,1967), L’origine des manières de table (A origem das maneiras à mesa, 1968),

L’homme nu (O homem nu, 1971), em que analisa os mitos não como explica-

ções do mundo natural, mas como tentativas de solução de problemas con-

cretos da vida social de um povo.

 Albet Camus

(1913-1960)

Emboranãotenha sido um filósofo propriamente dito, o argelino Camus (nas-

cido em Mondovi) abordou, em seus ensaios literários, vários temas tratados

pelos filósofos existencialistas, sobretudo o tema do absurdo. Sem pretender

fazer filosofia ou metafísica, dizia que o único problema filosófico relevante é

o suicídio, que só ocorre porque há um divórcio entre o homem e sua vida. É

esse divórcio que produz o sentimento do absurdo e leva o homem a encon-

trar no suicídio uma solução. A tentação do absurdo e do suicídio é uma con-

sequência do “silêncio não racional do mundo”. Esses temas são tratados em

O estrangeiro (1942), O mito de Sísifo (1942) e A peste (1947). Mas o homem

não deve sucumbir à tentação de cair no niilismo, deixar-se dominar pela ali-

enação. Precisa rebelar-se contra sua situação de alienação. Em O homem re-

voltado (1951), Camus propõe uma rebelião autêntica, que não seja apenas

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individual ou “metafísica”, mas que engaje o pensamento e a ação nas lutas e

no destino comuns dos homens.

Thomas Kuhn

(1922-1996)

Thomas Kuhn é filósofo norte-americano, professor de história das ciências

na Universidade da Califórnia e depois na Universidade de Princeton. Sua

preocupação fundamental consiste em explicar a evolução da ciência pelo

 jogo das relações sociais no interior do meio científico: a ciência progride

quando os cientistas são treinados numa tradição intelectual comum e a utili-

zam para resolver problemas que ela suscita. Para ele, uma ciência “madura”

é, essencialmente, uma sucessão de tradições, cada uma tendo sua própria

teoria e seus próprios métodos de pesquisa e guiando a comunidade científi-

ca durante certo tempo, antes de ser abandonada. Daí seu conceito-chave de

ciência normal (aplicado para resolver problemas) imposto por um paradig-

ma aceito pelo conjunto dos pesquisadores e defendido enquanto não for

abalado por uma revolução. Quando se produz essa revolução, um novo pa-

radigma é adotado, e volta-se a praticar a nova ciência normal. Obras princi-

pais: The Copernican Revolution (1957), The Structure of Scientific Revolu-

tions (1962), The Essential Tension: Selected Studies in Scientific Tradition and

Change (1977), Black Body Theory and the Quantum Discontinuity,

1894-1912 (1978).

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Paul Feyerabend

(1924-1994)

Professor na Universidade da Califórnia (Berkeley), Paul K. Feyerabend (nasci-

do em Viena, Áustria) sempre se interessou pela física, pelo teatro e pelas le-

tras. Em 1954, recebeu, do presidente da república da Áustria, um prêmio

por seus trabalhos nas ciências e em belas-artes. Em seguida, marcado pelo

“segundo” Wittgenstein e por Karl Popper, nem por isso deixou de criticá-los.

Deu-se conta de que a lógica formal constitui um elemento pernicioso para o

desenvolvimento da filosofia. Revoltou-se contra o empirismo e adotou uma

postura epistemológica por ele considerada “anarquista”. Cansado de buscar

uma metodologia geral suscetível de englobar tanto a ciência quanto os mi-

tos, a metafísica e as artes, declarou abertamente que só há uma “regra” me-

todológica: “Admite-se tudo” ou “Tudo vale”. Assim, seu “anarquismo episte-

mológico” é enfático: nenhuma teoria possui o privilégio da verdade sobre

as outras; cada uma funciona mais ou menos, e sua concorrência é a única

condição do progresso científico. Além de numerosos artigos em revistas e

coletâneas, escreveu as obras: Against Method: Outline of an Anarchistic

Theory of Knowledge (1975), Philosophical Papers (1981), em 2 vols., Fa-

rewell to Reason (1987).

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 Arthur Danto

(1924-2013)

Arthur Coleman Danto foi filósofo americano da arte e da história da arte que

contribuiu também para as filosofias da história, da ação, do conhecimento,

da ciência e da metafilosofia. Entre seus influentes estudos na história da filo-

sofia estão obras sobre Nietzsche, Sartre e o pensamento hindu.

Danto chega à sua filosofia da arte mediante seu “métododos indiscerni-

veis”, que influenciou grandemente a estética filosófica contemporânea. De

acordo com a sua metafilosofia, as questões genuinamente filosóficas sur-

gem quando existe uma necessidade teórica de diferenciar duas coisas que

são pereeptualmente indiscemiveis - como as ações prudentes em contraste

com as ações morais (Kant), as cadeias causais em contraste com as conjun-

ções constantes (Hume), e os sonhos perfeitos em contraste com a realidade

(Descartes). Aplicando este método à filosofia da arte, Danto pergunta o que

distingue uma obra de arte, como a Brillo Box de Warhol, a partir dos seus

equivalentes perceptualmente indiscemiveis do mundo real, como as caixas

Brillo de Proctor e Gamble. Sua resposta - ou a sua definição parcial da arte -

é que x é uma obra de arte somente se (1) x é relativo a algo e (2) x encarna o

seu significado (isto é, descobre um modo de apresentação que tem a inten-

ção de ser apropriado para aquilo a que x diz respeito, seja lá o que for). São

estas duas condições necessárias, como afirma Danto, que nos tornam capa-

zes de distinguir entre as obras de arte e as coisas reais - entre a Brillo Box de

Warhol e as de Proctor e Gamble.

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Contudo, os críticos chamaram a atenção para o fato que estas condições

falham, uma vez que as caixas Brillo reais são relativas a alguma coisa (Brillo)

acerca da qual elas corporificam ou expressam sig nificados pelo seu modode apresentação (a saber, o Brillo é limpo, fresco e dinâmico). Além disso,

este não é um exemplo isolado. A teoria da arte de Dan to enfrenta dificulda-

des sistemáticas ao diferenciar artefatos culturais reais, como pacotes indus-

triais, de objetos de arte propriamente ditos.

Além da sua filosofia da arte, Danto propõe uma filosofia da história da

arte. Como Hegel, Danto sustenta que a história da arte como processo de-senvolvente e progressivo já terminou. Acredita que a arte moderna foi origi-

nariamente reflexiva (isto é, a respeito de si mesma); ela tentou usar suas pró-

prias formas e estratégias para revelar a natureza essencial da arte. O cubis-

mo e o expressionismo abstrato, por exemplo, exibem de modo notável a na-

tureza bidimensional da pintura. Com cada experimento, a arte moderna al-

cança mais de perto a sua própria essência. Mas, arrazoa Danto, com obras

como a Brillo Box de Warhol, os artistas levaram o projeto filosófico de auto-

definição tão longe quanto podem, pois uma vez que um artista como Wah-

rol mostrou que as obras de arte podem ser conceptualmente indiscerniveis

das “coisas reais”e, por isso mesmo, podem parecer qualquer coisa, não há

nada além disso que o artista, como artista, possa mostrar atra vés do meio

das aparências a respeito da natureza da arte. A tarefa de definir a arte deve

ser de novo atribuída aos filósofos para ser tratada racionalmente, e a história

da arte, como narração desenvolvente e progressiva de uma autodefinição -

deve ser dada por terminada.

Uma vez que uma reviravolta dos acontecimentos foi supostamente pre-

cipitada por Warhol nos anos 1960s, Danto classifica o presente período da

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arte como se tornando “pós-histórico”. Como crítico de arte do jornal The Na-

tion, ele veio registrando as suas vicissitudes por uma década e meia. Alguns

dissidentes, entretanto, sentiram-se preocupados com a afirmação de Dantosegundo a qual a história da arte acabou porque, afirmam eles, ele fracassou

em demonstrar que apenas perspectivas desenvolventes e progressivas para

uma história da arte residem no projeto da autodefinição da arte.

Gilles Deleuze

(1925-1995)

Considerado o mais importante filósofo francês contemporâneo, Gilles De-

leuze começou a elaborar seu pensamento filosófico comentando as obras

de Kant, Nietzsche, Bergson, Espinoza e Proust. Em seguida, sob a inspiração

de Nietzsche, buscou novos meios de expressão filosófica. Assim, sua Lógica

do sentido (1969) é um “ensaio de novela lógica e psicanalítica” com 34 séri-

es de “paradoxos arbitrários”. Para ele, a filosofia se salva, não obedecendo à

lei e à razão, mas na perversão. Porque a perversidade e a loucura conscien-

tes fazem ver os sistemas filosóficos como jogos de superfícies e profundida-

des: de desejos-significantes. Contra a profundidade, Deleuze enfatiza a su-

perfície e o oral. Com isso, procura desarticular os conceitos básicos da cultu-

ra moderna e, de modo especial, “desediponizar” o inconsciente psicanalíti-

co. Para ele, o que importa é o funcionamento da “máquina desejante”, pois a

história aparece como funcionamento de “máquinas”, a última das quais a do

Édipo familiar e capitalista. Por isso, a história precisa ser libertada de todas

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as forças de repressão a fim de retornar a uma razão pré-racional e sem ci-

sões. Obras principais: Empirismo e subjetividade (1953), Nietzsche e a filo-

sofia (1962), A filosofia de Kant (1963), Nietzsche (1965), O bergsonismo(1966), Diferença e repetição (1969), Espinoza: Filosofia prática (1981), Fran-

cis Bacon: Lógica da sensação (1981), O anti-Édipo (em colaboração com Fé-

lix Guattari, 1972), Foucault (1986) e O que é a filosofia (1992, também com

Guattari).

Michel Foucault

(1926-1984)

Um dos mais influentes pensadores franceses contemporâneos, identificado

inicialmente com o estruturalismo — do qual certamente sofreu a influência,

embora desenvolvendo um pensamento próprio, extremamente criativo e

original —, Foucault nasceu em Poitiers e foi professor no Collège de France

(1970). Empreendeu uma importante análise epistemológica do surgimento

das ciências humanas e de seu papel em nossa cultura, bem como uma críti-

ca à noção tradicional de sujeito. Por outro lado, foi também grande a in-

fluência do próprio método de análise do discurso proposto por Foucault.

Seu ponto de partida é o conceito de episteme, uma rede de significados —

uma “formação discursiva” — que caracterizaria uma determinada época nos

diversos domínios da sociedade e da cultura: da literatura à ciência, da arte à

filosofia. A análise arqueológica, que realizou, representa um método original

em história das ideias, cujas bases são formuladas em sua obra Arqueologia

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do saber (1969). Essa análise é essencialmente uma análise do discurso, to-

mado no entanto em um sentido prévio a qualquer categorização, procuran-

do estabelecer relações não tematizadas e examinar com rigor como as cate-gorizações se dão no discurso, como o próprio discurso se constitui. Foucault

questiona, em sua obra As palavras e as coisas, uma arqueologia das ciências

humanas (1966), a noção de sujeito e a ideia de ciências humanas que dela

se origina, tendo ficado célebre sua conclusão de que “o homem é uma in-

venção que a arqueologia de nosso pensamento mostra claramente a data

recente, e talvez também o fim próximo”. Mais tarde, inspirando-se em Nietzs-che, desenvolveu seu método em outra direção, que chamou de “genealo-

gia”, conceito que introduziu em seu Vigiar e punir (1975). A genealogia é es-

sencialmente uma análise histórica de como o poder

pode ser considerado explicativo da produção dos saberes. Os discursos

são vistos agora a partir das condições políticas que os tornam possíveis. O

poder, contudo, deve ser visto aí de uma forma difusa, não se identificando

necessariamente com o Estado, mas nas várias instâncias da vida social e cul-

tural, em uma perspectiva que Foucault denominou “microfísica do poder”.

No primeiro volume de sua última obra, História da sexualidade, desenvolveu

sua análise nessa direção. Foucault visitou diversas vezes o Brasil e sua obra

teve grande impacto em nosso meio acadêmico e cultural. Além dos já cita-

dos, destacam-se ainda os seguintes livros: História da loucura na idade clás-

sica (1961), O nascimento da clínica (1963), A ordem do discurso (1971), His-

tória da sexualidade em três volumes: A vontade do saber (1976), O uso dos

prazeres (1984) e O cuidado de si (1984).

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Jürgen Habermas

(1929-)

Filo # sofo alemão, pertencente à chamada “segunda geração” da escola de

Frankfurt, foi assistente de Adorno no Instituto de Pesquisas Sociais de Frank-

furt de 1956 a 1959, professor na Universidade de Heidelberg (1961-1964) e

depois em Nova York (1968), diretor do Instituto Max Planck (1971), em Starn-

berg, Alemanha, sendo atualmente professor na Universidade de Frankfurt. A

obra de Habermas desenvolve-se na perspectiva da teoria cri #tica da socieda-

de iniciada pela escola de Frankfurt, pretendendo ser uma revisão e uma atu-

alização do marxismo capaz de dar conta das características do capitalismo

avançado da sociedade industrial contempora $ nea. Inspirando-se em Weber,

Habermas toma como ponto central de sua ana # lise a racionalidade dessa so-

ciedade, caracterizando-a em termos de uma razão instrumental, que visa es-

tabelecer os meios para se alcançar um fim determinado. Segundo essa aná-

lise, o desenvolvimento técnico, e a ciência voltada para a aplicação técnica,

que resultam dessa razão instrumental, acarretam a perda da autono- mia do

pro # prio bem, submetido igualmente às regras de dominação técnica do

mundo natural. Para Habermas, numa perspectiva cri # tica, é necessa # rio por-

tanto recuperar a dimensão da interação humana, de uma racionalidade não

instrumental, baseada no agir comunicativo entre sujeitos livres, de cara # ter

emancipador em relação à dominação técnica. A ideologia corresponde,

para Habermas, à distorção dessa possibilidade de ação comunicativa, pro-

duzindo relações assime # tricas e impedindo que a interação se realize plena-

mente. A cri #tica, ao explicitar as condições da ação comunicativa, impli #citas

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em todo uso significativo do discurso, permite o desmascaramento da ideo-

logia e a retomada da razão emancipadora. Nesse sentido, a proposta de Ha-

bermas formula-se em termos de uma teoria da ação comunicativa, recorren-do inclusive à filosofia anali #tica da linguagem para tematizar essas condições

do uso da linguagem livre de distorção como fundamento de uma nova raci-

onalidade. Contra os cri #ticos da modernidade, que se caracterizam pela raci-

onalidade técnica, como Lyotard, Habermas, no entanto, defende o raciona-

lismo do projeto iniciado pelo Iluminismo, considerando-o como projeto ain-

da a ser desenvolvido e ainda significativo para nossa e #

poca, desde que a ra-zão seja entendida criticamente, no sentido do agir comunicativo. Dentre

suas obras mais importantes, destacam-se: Teoria e praxis  (1963), Técnica e

ciência como “ideologia”   (1968), Conhecimento e interesse  (1968), O proble-

ma da legitimação no capitalismo tardio (1973), Para a reconstrução do mate-

rialismo histo " rico  (1976), Teoria da ação comunicativa  (1981), O discurso filo-

 so " fico da modernidade  (1985), O passado como futuro  (1993), A inclusão do

outro (1996).

Jacques Derrida

(1930-2004)Filósofo francês (nascido na Argélia), professor na École Normale Supérieure

de Paris. Influenciado pelo estruturalismo de Lévi-Strauss e Lacan, bem como

pela fenomenologia de Husserl e o pensamento de Heidegger, Derrida de-

senvolveu um pensamento fortemente idiossincrático, caracterizado pela cri-

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uns nos outros, em virtude mesmo daquilo que eles são, encon-

trando-se eliminada a hipótese de sua separação.” Para pensar-

mos a história, diz Hegel, importa-nos concebê-la como sucessãode momentos, cada um deles formando uma totalidade, momen-

to que só se apresenta opondo-se ao momento que o precedeu:

ele o nega manifestando suas insuficiências e seu caráter parcial;

e o supera na medida em que eleva a um estágio superior, para

resolvê-los, os problemas não resolvidos. E na medida em que

afirma uma propriedade “comum do pensamento e das coisas, adialética pretende ser a chave do saber absoluto: do movimento

do pensamento, poderemos deduzir o movimento do mundo;

logo, o pensamento humano pode conhecer a totalidade do

mundo (caráter metafísico da dialética).

4. Marx faz da dialética um método. Insiste na necessidade de consi-

derarmos a realidade socioeconômica de determinada época

como um todo articulado, atravessado por contradições específi-

cas, entre as quais a da luta de classes. A partir dele, mas graças

sobretudo à contribuição de Engels, a dialética se converte no

método do materialismo e no processo do movimento histórico

que considera a Natureza: a) como um todo coerente em que os

fenômenos se condicionam reciprocamente; b) como um estado

de mudança e de movimento; c) como o lugar onde o processo

de crescimento das mudanças quantitativas gera, por acumulação

e por saltos, mutações de ordem qualitativa; d) como a sede das

contradições internas, seus fenômenos tendo um lado positivo e

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o outro negativo, um passado e um futuro, o que provoca a luta

das tendências contrárias que gera o progresso (Marx-Engels).

Trecho de: Hilton Japiassú, Danilo Marcondes. “Dicionário básico de filoso-

fia.”

Pragmatismo

Do inglês pragmatism, concepção filosófica, mantida em diferentes versõespor, dentre outros, Charles Sanders Peirce, William James e John Dewey, de-

fendendo o empirismo no campo da teoria do conhecimento e o utilitarismo

no campo da moral. O pragmatismo valoriza a prática mais do que a teoria e

“considera que devemos dar mais importância às consequências e efeitos da

ação do que a seus princípios e pressupostos. A teoria pragmática da verda-

de mantém que o critério de verdade deve ser encontrado nos efeitos e con-

sequências de uma ideia, em sua eficácia, em seu sucesso. A validade de

uma ideia está na concretização dos resultados que se propõe obter.

Trecho de: Hilton Japiassú, Danilo Marcondes. “Dicionário básico de filo-

sofia.”

Estruturalismo

1. Doutrina filosófica que considera a noção de estrutura fundamen-

tal como conceito teórico e metodológico. Concepção metodoló-

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gica em diversas ciências (linguística, antropologia, psicologia

etc.) que tem como procedimento a determinação e a análise de

estruturas.2. Pode-se considerar o estruturalismo como uma das principais cor-

rentes de pensamento, sobretudo nas ciências humanas, no séc.

XX. O método estruturalista de investigação científica foi estabe-

lecido pelo linguista suíço Ferdinand de Saussurre (1857-1913),

que afirma ver na linguagem “a predominância do sistema sobre

os elementos, visando extrair a estrutura do sistema através daanálise das relações entre os elementos” (E. Benveniste). A linguís-

tica, desse modo, teria por objeto não a descrição empírica das

línguas, mas a análise do sistema abstrato que constitui as rela-

ções linguísticas. Lévi-Strauss aplicou o método estruturalista no

estudo dos mitos e das relações de parentesco nas sociedades

primitivas, tomando as estruturas sociais como modelos a serem

descritos, estabelecendo assim o sentido da cultura em questão.

Trecho de: Hilton Japiassú, Danilo Marcondes. “Dicionário básico de filoso-

fia.” iBooks.

Positivismo“positivismo (fr. positivisme) 1. Sistema filosófico formulado por Augusto

Comte, tendo como núcleo sua teoria dos três estados, segundo a qual o es-

pírito humano, ou seja, a sociedade, a cultura, passa por três etapas: a teoló-

gica, a metafísica e a positiva. As chamadas ciências positivas surgem apenas

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Pós-estruturalismo

As principais características do pós-estruturalismo foram: a atomização dos

objetos e dos pontos de vista, em oposição ao projeto totalizador do estrutu-

ralismo; rejeição da razão como universal ou fundacional; o descentramento

do sujeito; o interesse pelas diferenças, exclusões e margens; o interesse

pela história e pela cultura como constructos discursivos; a dissolução das

fronteiras entre as disciplinas. Nos estudos literários desenvolveu-se a teoria

do texto ou da escritura; discutiu-se a questão da subjetividade autoral; intro-

duziram-se os conceitos de signiíicância e intertextualidade. Algumas pala-

vras-chave foram entronizadas e depois sacralizadas: diferença, desejo, outro,

margem, deriva. O que o pós-estruturalismo mantinha do estruturalismo era

a atenção à linguagem, agora encarnada no discurso; a desconfiança nas "as-

serções de verdade", a concepção da "significação" como um jogo de rela-

ções e diferenças.

Nos anos de 1970, ocorreu nos EUA uma virada cultural, chamada por

uns de "pós-modernismo", por outros, de "pós-estruturalismo". Embora te-

nham pontos de coincidência ou de superposição, pós-modernismo e pós-

estruturalismo são coisas diversas, e nenhum dos dois é uniforme. O pós-mo-

dernismo é uma denominação pouco consistente, que ora se refere à crono-

logia, ora às práticas sociais e culturais do capitalismo tardio, ora a um estilo,

visível sobretudo na arquitetura. O pós-estruturalismo é uma postura filosófi-ca, um conjunto de novas maneiras de pensar o sujeito, sua constituição e

suas práticas.

Nos anos de 1980 e 1990, instalou-se a ideologia do "politicamente cor-

reto", acirraram-se as revindicações das "minorias", constestaram-se as hierar-

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rais, acolhendo prioritariamente estudos sobre literaturas minoritárias, emer-

gentes, e fenômenos da cultura de massa.

As coisas ficaram, assim, muito embaralhadas, e ainda estão, porque ascausas políticas defendidas pelos estudos culturais são inegavelmente pro-

gressistas e justas, mas o modo como se substituíram as análises bem funda-

mentadas das novas práticas culturais por denúncias ideológicas simplistas é

contestável. Pretendendo exercer a interdisciplinaridade, os culturalistas lite-

rários recorreram, de forma geralmente amadorística, à história, à antropolo-

gia, à sociologia, à psicanálise, e acabaram por incorrer numa a-disciplinari-dade. A submissão dos textos à crítica ideológica pré-conceituada, sem levar

em conta os contextos e os momentos históricos desses textos, produziu um

sem número de anacronismos e de condenações oportunistas. Além disso,

os estudos culturais não têm tido o mínimo efeito prático na sociedade norte-

americana, ou noutra qualquer, já que as verdadeiras lutas políticas, como os

movimentos anti-coloniais, negros, feministas e gays, já vinham de longe e

avançaram fora da academia.

A recepção dos teóricos franceses, nos EUA, se fez à custa da simplifica-

ção de suas idéias, usadas como bandeiras de causas politicamente corretas.

Da obra de Foucault, tomaram sua demons- tração do uso do poder nas or-

dens discursivas, e a contestação dos "regimes de verdade", para atacar todo

e qualquer discurso insti- tucional. Também colheram em Foucault a valoriza-

ção das margens, das práticas sociais e sexuais recusadas pela razão oficial, e

as transformaram em "ações afirmativas". Em Barthes, o que interessou e con-

tinua interessando aos culturalistas foi sua crítica de base marxista, dirigida

contra os mitos da sociedade de consumo, a imprensa, a publicidade (que é

dos anos de 1950), a análise da fotografia (que é dos anos de 1970), e seu as-

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sumido homossexua- lismo. O Barthes amante e defensor da literatura ficou

obliterado, pois "literatura" passou a ser uma palavra fora de moda.

Dos teóricos franceses, o que continua mais atuante nos EUA é Derrida, oque se explica, em parte, pelo fato de ele ser o úni- co sobrevivente de sua

brilhante geração. "Desconstrução" é uma palavra que pegou e continua sen-

do usada a torto e à direita, mais a torto do que à direita. A palavra descons-

trução é, à primeira vista, negativa. Parece ser o contrário de construção, e

sinônimo de demolição ou destruição. Quase sem querer, dei a esta coletâ-

nea um título curioso: do positivismo à desconstrução. Essa seqüência pare-ce indicar uma passagem do positivo ao negativo, conotando uma decadên-

cia ou uma falta de projeto, o propalado fim da história, o pós-tudo do pós-

modernismo. Por ter sido vista assim, a desconstrução foi acusada de niilismo

e de irracionalismo. Na verdade, ela não é nada disso, e somente aqueles

que não conhecem bem a obra de Derrida podem fazer essas associações.

Derrida não é nem niilista, nem irracionalista, nem pós-modernista (ele só é

pós-moderno se dermos a essa ambígua palavra apenas um sentido cronoló-

gico).

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ciência. Os desenvolvimentos científicos surgem apenas como pano de fun-

do. Procurar ver como ao longo da história a pergunta filosófica "O que é a

ciência da natureza?" seria respondida, pareceu-me uma boa maneira de ori-entar este texto. Estas páginas incluem, como ilustração das idéias aqui apre-

sentadas, algumas passagens dos filósofos e cientistas referidos. Apesar de

essas passagens serem escolhidas a pensar na facilidade de compreensão

por parte dos alunos, todo o texto pode ser lido passando por cima delas

sem que algo de essencial se perca.

Apesar de o termo "ciência" ser muito abrangente, neste texto iremos so-bretudo centrar a nossa atenção nas ciências da natureza. Pelo fato de as ci-

ências da natureza, e em particular a física e a astronomia, se terem desenvol-

vido mais cedo do que as ciências sociais, exerceram e continuam a exercer

uma influência assinalável no modo como os filósofos encaram a ciência —

acontecendo até muitas vezes que eles usam o termo "ciência" como abrevi-

atura de "física". Ao longo do texto irei muitas vezes usar o termo "ciência"

para falar das ciências da natureza; quando falar das ciências formais como a

geometria ou a matemática em geral, será suficientemente claro que já não

estou a falar de ciências da natureza.

1. Os gregos

Mitos e deuses

Quando surgiu a ciência? Esta parece ser uma pergunta simples. Contudo,

tem freqüentemente dado origem a longas discussões. Discussões que aca-

bam quase sempre por se deslocar para uma outra pergunta mais básica: o

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que é a ciência? Mais básica, pois a resposta para aquela depende da solu-

ção encontrada para esta.

Ora, o termo "ciência" nem sempre foi entendido da mesma maneira eainda hoje as opiniões acerca do que deve ou não ser considerado como ci-

entífico continuam divididas. Uma definição rigorosa e consensual de ciência

é, pois, algo difícil de estabelecer.

Mas isso não nos deve impedir de avançar. Assim, a melhor maneira de

começar talvez seja a de correr o risco de propor uma definição de ciência

que, apesar de imprecisa, nos possa servir como ponto de partida, mesmoque venha depois a ser corrigida: a ciência da natureza é o estudo sistemáti-

co e racional, baseado em métodos adequados de prova, da natureza e do

seu funcionamento.

Muitas das perguntas mais elementares que os seres humanos colocam a

si próprios desde que são seres humanos são perguntas que podem dar ori-

gem a estudos científicos. Eis alguns exemplos dessas perguntas: Porque é

que chove? O que é o trovão? De onde vem o relâmpago? Por que razão

crescem as ervas? Por que razão existem os montes? Por que razão tenho

fome? Por que razão morrem os meus semelhantes? Porque é que cai a noite

e a seguir vem o dia de novo? O que são as estrelas? Por que razão voam os

pássaros?...

Mas estas perguntas podem dar origem também a outro tipo de respos-

tas que não as científicas; podem dar origem a respostas de caráter religioso

e mítico. Essas respostas têm a característica de não se basearem nos méto-

dos mais adequados e de não serem o produto de estudos sistemáticos.

Uma resposta mítica ou religiosa apela à vontade de um Deus ou de deuses

e conta uma história da origem do universo. Essa resposta não se baseia em

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do séc. VI a. C. na cidade grega de Mileto, por aquele que é apontado como

o primeiro filósofo, Tales de Mileto.

Tales de Mileto acreditava em deuses. Só que a resposta que ele dá àpergunta acerca da origem ou princípio de tudo o que vemos no mundo já

não é mítica; já não se baseia em entidades sobrenaturais. Dizia Tales que o

princípio de todas as coisas era algo que por todos podia ser diretamente

observado na natureza: a água. Tendo observado que a água tudo fazia cres-

cer e viver, enquanto que a sua falta levava os seres a secar e morrer; tendo,

talvez, reparado que na natureza há mais água do que terra e que grandeparte do próprio corpo humano era formado por água; verificando que esse

elemento se podia encontrar em diferentes estados, o líquido, o sólido e o

gasoso, foi assim levado a concluir que tudo surgiu a partir da água. A expli-

cação de Tales ainda não é científica; mas também já não é inteiramente míti-

ca. Tem características da ciência e características do mito. Não é baseada na

observação sistemática do mundo, mas também não se baseia em entidades

míticas. Não recorre a métodos adequados de prova, mas também não recor-

re à autoridade religiosa e mítica.

Este último aspecto é muito importante. Consta que Tales desafiava

aqueles que conheciam as suas idéias a demonstrar que não tinha razão. Esta

é uma característica da ciência — e da filosofia — que se opõe ao mito e à reli-

gião. A vontade de discutir racionalmente idéias, ao invés de nos limitarmos a

aceitá-las, é um elemento sem o qual a ciência não se poderia ter desenvolvi-

do. Uma das vantagens da discussão aberta de idéias é que os defeitos das

nossas idéias são criticamente examinados e trazidos à luz do dia por outras

pessoas. Foi talvez por isso que outros pensadores da mesma região surgi-

ram apresentando diferentes teorias e, deste modo, se iniciou uma tradição

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das coisas, os resultados matemáticos eram consensuais. Eram consensuais

porque os métodos de prova usados eram poderosos; dada a demonstração

matemática de um resultado, era praticamente impossível recusá-lo.A matemática tornou-se assim um modelo da certeza. Mas este modelo

não é apropriado para o estudo da natureza, pois a natureza depende cruci-

almente da observação. Além disso, não se pode aplicar a matemática à na-

tureza se não tivermos à nossa disposição instrumentos precisos de quantifi-

cação, como o termômetro ou o cronômetro. Assim, o sentimento de alguns

filósofos era (e por vezes ainda é) o de que só o domínio da matemática eraverdadeiramente "científico" e que só a matemática podia oferecer realmen-

te a certeza. Só Galileu e Newton, já no século XVII, viriam a mostrar que a

matemática se pode aplicar à natureza e que as ciências da natureza têm de

se basear noutro tipo de observação diferente da observação que até aí se

fazia.

Platão e Aristóteles

Uma das preocupações de Platão (428-348 a.C.) foi distinguir a verdadeira ci-

ência e o verdadeiro conhecimento da mera opinião ou crença. Um dos pro-

blemas que atormentaram os filósofos gregos em geral e Platão em particu-

lar, foi o problema do fluxo da natureza. Na natureza verificamos que muitas

coisas estão em mudança constante: as estações sucedem-se, as sementes

transformam-se em árvores, os planetas e estrelas percorrem o céu noturno.

Mas como poderemos nós ter a esperança de conseguir explicar os fenôme-

nos naturais, se eles estão em permanente mudança? Para os gregos, isto re-

presentava um problema por alguns dos motivos que já vimos: não tinham

instrumentos para medir de forma exata, por exemplo, a velocidade; e assim

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a matemática, que constituía o modelo básico de pensamento científico, era

inútil para estudar a natureza. A matemática parecia aplicar-se apenas a do-

mínios estáticos e eternos. Como o mundo estava em constante mudança,parecia a alguns filósofos que o mundo não poderia jamais ser objeto de co-

nhecimento científico.

Era essa a idéia de Platão. Este filósofo recusava a realidade do mundo

dos sentidos; toda a mudança que observamos diariamente era apenas ilu-

são, reflexos pálidos de uma realidade suprassensível que poderia ser verda-

deiramente conhecida. E a geometria, o ramo da matemática mais desenvol-vida do seu tempo, era a ciência fundamental para conhecer o domínio su-

prassensível. Para Platão, só podíamos ter conhecimento do domínio supras-

sensível, a que ele chamou o domínio das Idéias ou Formas; do mundo sensí-

vel não podíamos senão ter opiniões, também elas em constante fluxo. O do-

mínio do sensível era, para Platão, uma forma de opinião inferior e instável

que nunca nos levaria à verdade universal, eterna e imutável, já que se a mes-

ma coisa fosse verdadeira num momento e falsa no momento seguinte, en-

tão não poderia ser conhecida.

Podemos ver a distinção entre os dois mundos, que levaria à distinção

entre ciência e opinião, na seguinte passagem de um dos seus diálogos:

Há que admitir que existe uma primeira realidade: o que tem uma for-

ma imutável, o que de nenhuma maneira nasce nem perece, o que ja-mais admite em si qualquer elemento vindo de outra parte, o que

nunca se transforma noutra coisa, o que não é perceptível nem pela

vista, nem por outro sentido, o que só o entendimento pode contem-

 plar. Há uma segunda realidade que tem o mesmo nome: é seme-

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lhante à primeira, mas é acessível à experiência dos sentidos, é en-

 gendrada, está sempre em movimento, nasce num lugar determinado

 para em seguida desaparecer; é acessível à opinião unida à sensação.(Platão, Timeu)

Conhecer as idéias seria o mesmo que conhecer a verdade última, já que

elas seriam os modelos ou causas dos objetos sensíveis. Como tal, só se po-

deria falar de ciência acerca das idéias, sendo que estas não residiam nas coi-

sas. Procurar a razão de ser das coisas obrigava a ir para além delas; obrigava

a ascender a uma outra realidade distinta e superior. A ciência, para Platão

não era, pois, uma ciência acerca dos objetos que nos rodeiam e que pode-

mos observar com os nossos sentidos. Neste aspecto fundamental é que o

principal discípulo de Platão, Aristóteles (384-322 a.C), viria a discordar do

mestre.

Aristóteles não aceitou que a realidade captada pelos nossos sentidos

fosse apenas um mar de aparências sobre as quais nenhum verdadeiro co-

nhecimento se pudesse constituir. Bem pelo contrário, para ele não havia co-

nhecimento sem a intervenção dos sentidos. A ciência, para ele, teria de ser o

conhecimento dos objetos da natureza que nos rodeia.

É verdade que os sentidos só nos davam o particular e Aristóteles pensa-

va que não há ciência senão do universal. Mas, para ele, e ao contrário do seu

mestre, o universal inferia-se do particular. Aristóteles achava que, para sechegar ao conhecimento, nos devíamos virar para a única realidade existente,

aquela que os sentidos nos apresentavam.

Sendo assim, o que tínhamos de fazer consistia em partir da observação

dos casos particulares do mesmo tipo e, pondo de parte as características

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próprias de cada um (por um processo de abstração), procurar o elemento

que todos eles tinham em comum (o universal). Por exemplo, todas as árvo-

res são diferentes umas das outras, mas, apesar das suas diferenças, todasparecem ter algo em comum. Só que não poderíamos saber o que elas têm

em comum se não observássemos cada uma em particular, ou pelo menos

um elevado número delas. Ao processo que permite chegar ao universal

através do particular chama-se por vezes "indução". A indução é, pois, o mé-

todo correto para chegar à ciência, tal como escreveu Aristóteles:

É evidente também que a perda de um sentido acarreta necessaria-

mente o desaparecimento de uma ciência, que se torna impossível de

adquirir. Só aprendemos, com efeito, por indução ou por demonstra-

ção. Ora a demonstração faz-se a partir de princípios universais, e a in-

dução a partir de casos particulares. Mas é impossível adquirir o co-

nhecimento dos universais a não ser pela indução, visto que até os

chamados resultados da abstração não se podem tornar acessíveis a

não ser pela indução. (...) Mas induzir é impossível para quem não tem

a sensação: porque é nos casos particulares que se aplica a sensação;

e para estes não pode haver ciência, visto que não se pode tirá-la de

universais sem indução nem obtê-la por indução sem a sensação.

(Aristóteles, Segundos Analíticos)

Aristóteles representa um avanço importante para a história da ciência. Além

de ter fundado várias disciplinas científicas (como a taxionomia biológica, a

cosmologia, a meteorologia, a dinâmica e a hidrostática), Aristóteles deu um

passo mais na direção da ciência tal como hoje a conhecemos: pela primeira

vez encarou a observação da natureza de um ponto de vista mais sistemático.

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Ao passo que para Platão a verdadeira ciência se fazia na contemplação dos

universais, descurando a observação da natureza que é fundamental na ciên-

cia, Aristóteles dava grande importância à observação.Aristóteles desenvolveu teorias engenhosas sobre muitas áreas da ciên-

cia e da filosofia. A própria filosofia da ciência foi pela primeira vez estudada

com algum rigor por ele. Aristóteles achava que havia vários tipos de explica-

ções, que correspondiam a vários tipos de causas. Um desses tipos de causas

e de explicações era fundamental, segundo Aristóteles: a explicação teleoló-

gica ou finalista. Para Aristóteles, todas as coisas tendiam naturalmente paraum fim (a palavra portuguesa "teleologia" deriva da palavra grega para fim:

telos), e era esta concepção teleológica da realidade que explicava a nature-

za de todos os seres. Esta concepção da ciência como algo que teria de ser

fundamentalmente teleológica iria perdurar durante muitos séculos, e consti-

tuir até um obstáculo importante ao desenvolvimento da ciência. Ainda hoje

muitas pessoas pensam que a ciência contemporânea descreve o modo

como os fenômenos da natureza ocorrem, mas que não explica o porquê

desses fenômenos; isto é uma idéia errada, que resulta ainda da idéia aristo-

télica de que só as explicações finalistas são verdadeiras explicações.

Devido a um conjunto de fatores, a Grécia não voltou a ter pensadores

com a dimensão de Platão e Aristóteles. Mesmo assim apareceram ainda, no

séc. III a. C, alguns contributos para a ciência, tais como os Elementos de Ge-

ometria de Euclides, as descobertas de Arquimedes na Física e, já no séc. II,

Ptolomeu na astronomia.

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2. A idade média

Crer para compreender

Entretanto, o mundo grego desmoronou-se e o seu lugar cultural viria, em

grande parte, a ser ocupado pelo império romano. Entretanto, surge uma

nova religião, baseada na religião judaica e inspirada por Jesus Cristo, que a

pouco e pouco foi ganhando mais adeptos. O próprio imperador romano,

Constantino, converteu-se ao cristianismo no início do século IV, acabando o

cristianismo por se tornar a religião oficial do Império Romano. Inicialmente

pregada por Cristo e seus apóstolos, a sua doutrina veio também a ser difun-

dida e explicada por muitos outros seguidores, estando entre os primeiros S.

Paulo e os padres da igreja dos quais se destacou S. Agostinho (354-430).

Tratava-se de uma doutrina que apresentava uma mensagem apoiada na

idéia de que este mundo era criado por um Deus único, onipotente, onisci-

ente, livre e infinitamente bom, tendo sido nós criados à sua imagem e seme-

lhança. Sendo assim, tanto os seres humanos como a própria natureza eram o

resultado e manifestação do poder, da sabedoria, da vontade e da bondade

divinas. Como prova disso, Deus teria enviado o seu filho, o próprio Cristo, e

deixado a sua palavra, as Sagradas Escrituras. Por sua vez, os seres humanos,

como criaturas divinas, só poderiam encontrar o sentido da sua existência

através da fé nas palavras de Cristo e das Escrituras. Uma das diferenças fun-

damentais do cristianismo em relação ao judaísmo consistia na crença de

que Jesus era um deus encarnado, coisa que o judaísmo sempre recusou e

continua a recusar.

A religião cristã acabou por ser a herdeira da civilização grega e romana.

Aquando da derrocada do império romano, foram os cristãos — e os árabes —,

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espalhados por diversos mosteiros, que preservaram o conhecimento antigo.

Dada a sua formação essencialmente religiosa, tinham tendência para enca-

rar o conhecimento, sobretudo o conhecimento da natureza, de uma maneirareligiosa. O nosso destino estava nas mãos de Deus e até a natureza nos

mostrava os sinais da grandeza divina. Restava-nos conhecer a vontade de

Deus. Só que, para isso, de nada serve a especulação filosófica se ela não for

iluminada pela fé. E o conhecimento científico não pode negar os dogmas

religiosos, e deve até fundamentá-los. A ciência e a filosofia ficam assim sub-

metidas à religião; a investigação livre deixa de ser possível. Esta atitude detotalitarismo religioso irá acabar por ter conseqüências trágicas para Galileu

e para Giordano Bruno (1548-1600), tendo este último sido condenado pela

Igreja em função das suas doutrinas científicas e filosóficas: foi queimado

vivo.

As teorias dos antigos filósofos gregos deixaram de suscitar o interesse

de outrora. A sabedoria encontrava-se fundamentalmente na Bíblia, pois esta

era a palavra divina e Deus era o criador de todas as coisas. Quem quisesse

compreender a natureza, teria, então, que procurar tal conhecimento não di-

retamente na própria natureza, mas nas Sagradas Escrituras. Elas é que conti-

nham o sentido da vontade divina e, portanto, o sentido de toda a natureza

criada. Era isso que merecia verdadeiramente o nome de "ciência".

Compreender a natureza consistia, no fundo, em interpretar a vontade de

Deus patente na Bíblia e o problema fundamental da ciência consistia em en-

quadrar devidamente os fenômenos naturais com o que as Escrituras diziam.

Assim se reduzia a ciência à teologia, tal como é ilustrado na seguinte passa-

gem de S. Boaventura (1217-1274), tirada de um escrito cujo título é, a este

respeito, elucidativo:

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E assim fica manifesto como a "multiforme sabedoria de Deus", que

aparece claramente na Sagrada Escritura, está oculta em todo o co-

nhecimento e em toda a natureza. Fica, igualmente, manifesto comotodas as ciências estão subordinadas à teologia, pelo que esta colhe

os exemplos e utiliza a terminologia pertencente a todo o gênero de

conhecimentos. Fica, além disso, manifesto como é grande a ilumina-

ção divina e de que modo no íntimo de tudo quanto se sente ou se

conhece está latente o próprio Deus. (S. Boaventura, Redução das Ci-

ências à Teologia)

Investigações recentes revelaram que, apesar do que atrás se disse, houve

mesmo assim algumas contribuições que iriam ter a sua importância no que

posteriormente viria a pertencer ao domínio da ciência. Mas o mundo medie-

val é inequivocamente um mundo teocêntrico e a instituição que se encarre-

gou de fazer perdurar durante séculos essa concepção foi a Igreja. A Igreja

alargou a sua influência a todos os domínios da vida. Não foi apenas o domí-

nio religioso, foi também o social, o econômico, o artístico e cultural, e até o

político. Com o poder adquirido, uma das principais preocupações da Igreja

passou a ser o de conservar tal poder, decretando que as suas verdades não

estavam sujeitas à crítica e quem se atrevesse sequer a discuti-las teria de se

confrontar com os guardiães em terra da verdade divina.

Compreender para crer

Todavia, começou a surgir, por parte de certos pensadores, a necessidade de

dar um fundamento teórico, ou racional, à fé cristã. Era preciso demonstrar as

verdades da fé; demonstrar que a fé não contradiz a razão e vice-versa. Se

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antes se dizia que era preciso "crer para compreender", deveria então juntar-

se "compreender para crer". A fé revela-nos a verdade, a razão demonstra-a.

Assim, fé e razão conduzem uma à outra.Foi esta a posição do mais destacado de todos os filósofos cristãos, S. To-

más de Aquino (1224-1274). S. Tomás veio dar ao cristianismo todo um su-

porte filosófico, socorrendo-se para tal dos conceitos da filosofia aristotelica

que se vê, deste modo, cristianizada. Tanto os conceitos metafísicos de Aris-

tóteles — nomeadamente que tudo quanto existe tem uma causa primeira e

um fim último — como a sua cosmologia (geocentrismo reformulado por Pto-lomeu: o universo é formado por esferas concêntricas, no meio do qual está

a Terra imóvel) foram utilizados e adaptados à doutrina cristã da Igreja por S.

Tomás. Aristóteles passou a ser estudado e comentado nas escolas (que per-

tenciam à Igreja, funcionando nos seus mosteiros) e tornou-se, a par das Es-

crituras, uma autoridade no que diz respeito ao conhecimento da natureza.

 A alquimia

Além do que ficou dito, há um aspecto que não pode ser desprezado quan-

do se fala da ciência na Idade Média e que é a alquimia. As práticas alquími-

cas, apesar do manto de segredo com que se cobriam, eram muito freqüen-

tes na Idade Média. O alquimista encarava a natureza como algo de misterio-

so e fantástico, o que não era estranho ao espírito medieval, em que tudo es-

tava impregnado de simbolismo. Cabia-lhe decifrar e utilizar esses símbolos

para descobrir as maravilhas da natureza. Desse modo ele poderia não só

penetrar nos seus segredos como também manipulá-la e, por exemplo, trans-

formar os metais vis em metais preciosos. Por tudo isso, os alquimistas foram

vistos, por muitos, como verdadeiros agentes do demônio. O anonimato se-

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ria a melhor forma de prosseguir nas suas práticas, as quais eram considera-

das como ilícitas em relação aos programas oficiais das escolas da época. Daí

a existência das chamadas sociedades secretas, do ocultismo e do esoteris-mo, onde a própria situação de anonimato ia a par do mistério que cobre to-

das as coisas.

Há quem defenda que tudo isso, ao explorar certos aspectos da natureza

proibidos pelas autoridades religiosas, deu também o seu contributo à ciên-

cia, nomeadamente à química, que, na altura, ainda não tinha surgido. Mas

esta tese tem poucos exemplos em que se apoiar e parece até que o verda-deiro espírito científico moderno teve de se debater com a resistência dos

fantasmas irracionais associados à alquimia e outras práticas do gênero pou-

co dadas à compreensão racional dos fenômenos naturais. A alquimia conti-

nuou a praticar-se e chegou mesmo a despertar o interesse de algumas das

mais importantes figuras da história da ciência, como foi o caso de Newton.

O mais conhecido praticante da alquimia foi Paracelso (1493-1541), em ple-

no período renascentista.

3. A ciência moderna

Os precursores

Não é possível dizer exatamente quando terminou a Idade Média e começou

o período que se lhe seguiu. Há, todavia, uma data que é freqüentemente

apontada como referência simbólica da passagem de uma época à outra.

Essa data é 1453, data que marca a queda do Império Romano do Oriente.

O início do Renascimento trouxe consigo uma longa série de transforma-

ções que seria impossível referir aqui na sua totalidade. Algumas dessas

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transformações mostraram os seus primeiros indícios ainda no período medi-

eval e tiveram muito que ver com, entre outros fatos, o aparecimento de no-

vas classes que já não estavam inseridas na rígida estrutura feudal, própriado mundo rural medieval. Essas classes são as dos mercadores e artífices, as

quais dependem essencialmente do comércio marítimo. Fora da tradicional

hierarquia feudal, muitas pessoas prosperam nas cidades. Cidades que se

desenvolvem e onde começa a surgir também uma indústria, sobretudo liga-

da à manufatura de produtos — com a valorização dos artesãos — e à constru-

ção naval.Isso trouxe consigo um inevitável progresso técnico que viria a colocar

novos problemas no domínio da ciência. Para tal contribuíram, além do co-

mércio naval atrás referido, também os descobrimentos marítimos. Descobri-

mentos em que Portugal ocupa um lugar de relevo. O mundo fechado do

tempo das catedrais começa, assim, a abrir-se, com as velhas certezas a ruir e

os horizontes de um "novo universo" a alargar-se.

O homem renascentista começou a virar-se mais para si do que para os

dogmas bíblicos e a interessar-se cada vez mais pelas idéias, durante tantos

séculos esquecidas, dos grandes filósofos gregos, de modo a fazer renascer

os ideais da cultura clássica — daí o nome de Renascimento. Esta é uma nova

atitude a que se chamou "humanismo". O protótipo do homem renascentista

é Leonardo da Vinci, pintor, escultor, arquiteto, engenheiro, escritor, etc, a

quem tudo interessa. Muitas verdades intocáveis são revistas e caem do seu

pedestal. O que leva, inclusivamente, à contestação da autoridade religiosa

do Papa, como acontece com Lutero (1483-1546), dando origem ao protes-

tantismo e à reforma da Igreja.

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As mudanças acima apontadas irão estar na base de um acontecimento

de importância capital na história da ciência: a criação, por Galileu

(1564-1642), da ciência moderna. Com a criação da ciência moderna foi todauma concepção da natureza que se alterou, de tal modo que se pode dizer

que Galileu rompeu radicalmente com a tradicional concepção do mundo in-

contestada durante tantos séculos.

É claro que Galileu não esteve sozinho e podemos apontar pelo menos

dois nomes que em muito ajudaram a romper com essa tradição e contribuí-

ram de forma evidente para a criação da ciência moderna: Copérnico(1473-1543) e Francis Bacon (1561-1626).

Por um lado, Copérnico com a publicação do seu livro A Revolução das

Órbitas Celestes veio defender uma teoria que não só se opunha à doutrina

da Igreja, como também ao mais elementar senso comum, enquadrados pela

autoridade da filosofia aristotélica largamente ensinada nas universidades da

época: essa teoria era o heliocentrismo.

O heliocentrismo, ao contrário do geocentrismo até então reinante, veio

defender que a Terra não se encontrava imóvel no centro do universo com os

planetas e o Sol girando à sua volta, mas que era ela que se movia em torno

do Sol. Ao defender esta teoria, Copérnico baseava-se na convicção de que a

natureza não devia ser tão complicada quanto o esforço que era necessário

para, à luz do geocentrismo aristotélico, compreender o movimento dos pla-

netas, as fases da Lua e as estações do ano.

Seriam Galileu, graças às observações com o seu telescópio, e o astrôno-

mo alemão Kepler (1571-1630), ao descobrir as célebres leis do movimento

dos planetas, a completar aquilo que Copérnico não chegou a fazer: apre-

sentar as provas que davam definitivamente razão à teoria heliocêntrica, con-

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denando a teoria geocêntrica como falsa. Nada disto, porém, aconteceu sem

uma grande resistência por parte dos "sábios" da altura e da Igreja, tendo

esta ameaçado e mesmo julgado Galileu por tal heresia.Por outro lado, Bacon propôs na sua obra Novum Organum um novo mé-

todo para o estudo da natureza que viria a tornar-se uma marca distintiva da

ciência moderna. Bacon defende a experimentação seguida da indução.

Mas não vimos atrás que também Aristóteles defendia a indução? É ver-

dade que já há cerca de dois mil anos antes Aristóteles propunha a indução

como método de conhecimento. Só que, para este, a indução não utilizava aexperimentação. Se Aristóteles tivesse recorrido à experimentação, facilmen-

te poderia concluir que, ao contrário do que estava convencido, a velocidade

da queda dos corpos não depende do seu peso. Para Aristóteles, a indução

partia da simples enumeração de casos particulares observados, enquanto

que Bacon falava de uma observação que não era meramente passiva, até

porque o homem de ciência deveria estar atento aos obstáculos que se inter-

põem entre o espírito humano e a natureza. Assim, seria necessário eliminar

da observação vulgar as falsas imagens — que tinham diferentes origens e a

que Bacon dava o nome de idola — e pôr essa observação à prova através da

experimentação.

A par do que ficou dito, Bacon falava de uma ciência já não contemplati-

va como a anterior, mas uma ciência " ativa e operativa"que visava possibilitar

aos seres humanos os meios de intervir na natureza e a dominar. Esta ciência

dos efeitos traz consigo o germe da interdependência entre ciência e tecno-

logia.

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O nascimento da ciência moderna: Galileu

O que acaba de se referir contribuiu para o aparecimento de uma nova ciên-

cia, mas o seu fundador, como começou por se assinalar, foi Galileu.

Há três tipos de razões que fizeram de Galileu o pai de uma nova forma

de encarar a natureza: em primeiro lugar, deu autonomia à ciência, fazendo-a

sair da sombra da teologia e da autoridade livresca da tradição aristotélica;

em segundo lugar, aplicou pela primeira vez o novo método, o método expe-

rimental, defendendo-o como o meio adequado para chegar ao conheci-

mento; finalmente, deu à ciência uma nova linguagem, que é a linguagem do

rigor, a linguagem matemática.

Ao dar autonomia à ciência, Galileu fê-la verdadeiramente nascer. Embo-

ra na altura se lhe chamasse "filosofia da natureza", era a ciência moderna

que estava a dar os seus primeiros passos. Antes disso, a ciência ainda não

era ciência, mas sim teologia ou até metafísica. A verdade acerca das coisas

naturais ainda se ia buscar às Escrituras e aos livros de Aristóteles.

E não foi fácil a Galileu quebrar essa dependência, tendo que se defen-

der, após a publicação do seu livro Diálogo dos Grandes Sistemas, das acusa-

ções de pôr em causa o que a Bíblia dizia. Esta carta de Galileu é bem disso

exemplo:

Posto isto, parece-me que nas discussões respeitantes aos problemas da

natureza, não se deve começar por invocar a autoridade de passagens das

Escrituras; é preciso, em primeiro lugar, recorrer à experiência dos sentidos e

a demonstrações necessárias. Com efeito, a Sagrada Escritura e a natureza

procedem igualmente do Verbo divino, sendo aquela ditada pelo Espírito

Santo, e esta, uma executora perfeitamente fiel das ordens de Deus. Ora,

para se adaptarem às possibilidades de compreensão do maior número pos-

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sível de homens, as Escrituras dizem coisas que diferem da verdade absoluta,

quer na sua expressão, quer no sentido literal dos termos; a natureza, pelo

contrário, conforma-se inexorável e imutavelmente às leis que lhe foram im-postas, sem nunca ultrapassar os seus limites e sem se preocupar em saber

se as suas razões ocultas e modos de operar estão dentro das capacidades

de compreensão humana. Daqui resulta que os efeitos naturais e a experiên-

cia sensível que se oferece aos nossos olhos, bem como as demonstrações

necessárias que daí retiramos não devem, de maneira nenhuma, ser postas

em dúvida, nem condenadas em nome de passagens da Escritura, mesmoquando o sentido literal parece contradizê-las. (Galileu, Carta a Cristina de

Lorena)

Foi também Galileu quem, na linha de Bacon, utilizou pela primeira vez o

método experimental, o que lhe permitiu chegar a resultados completamen-

te diferentes daqueles que se podiam encontrar na ciência tradicional. Um

exemplo do pioneirismo de Galileu na utilização do método experimental é o

da utilização do famoso plano inclinado, por si construído para observar em

condições ideais (ultrapassando os obstáculos da observação direta) o movi-

mento da queda dos corpos. Pôde, desse modo, repetir as experiências tan-

tas vezes quantas as necessárias e registrar meticulosamente os resultados al-

cançados. Tais resultados devem-se, ainda, a uma novidade que Galileu

acrescentou em relação ao método indutivo de Bacon: o raciocínio matemá-

tico. A ciência não poderia mais construir-se e desenvolver-se tendo por base

a interpretação dos textos sagrados; mas também não o poderia fazer por

simples dedução lógica a partir de dogmas teológicos:

Ao cientista só se deve exigir que prove o que afirma. (...) Nas disputas

dos problemas das ciências naturais, não se deve começar pela autoridade

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dos textos bíblicos, mas sim pelas experiências sensatas e pelas demonstra-

ções indispensáveis. (Galileu, Audiência com o Papa Urbano VIII)

Tratava-se de uma ciência cujas verdades deveriam ter um conteúdo em-pírico e que podiam ser não só expressas, mas também demonstradas numa

linguagem já não qualitativa mas quantitativa: a linguagem matemática. Foi o

que aconteceu quando Galileu, graças ao referido plano inclinado, pôs em

prática o novo método e começou a investigar o movimento natural dos cor-

pos. O resultado foi formular uma lei universal expressa matematicamente, o

que tornava também possível fazer previsões. Diz ele:

Não há, talvez, na natureza nada mais velho que o movimento, e não

faltam volumosos livros sobre tal assunto, escritos por filósofos. Ape-

 sar disso, muitas das suas propriedades (...) não foram observadas

nem demonstradas até ao momento. (...) Com efeito, que eu saiba,

ninguém demonstrou que o corpo que cai, partindo de uma situação

de repouso, percorre em tempos iguais, espaços que mantêm entre si

uma proporção idêntica à que se verifica entre os números ímpares

 sucessivos começando pela unidade. (Galileu, As Duas Novas Ciênci-

as)

A velocidade da queda dos corpos (queda livre), é de tal modo apresentada

que pode ser rigorosamente descrita numa fórmula matemática. Não seria

possível fazer ciência sem se dominar a linguagem matemática. Metaforica-

mente, é através da matemática que a natureza se exprime:

 A filosofia está escrita neste grande livro que está sempre aberto dian-

te de nós: refiro-me ao universo; mas não pode ser lido antes de ter-

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mos aprendido a sua linguagem e de nos termos familiarizado com os

caracteres em que está escrito. Está escrito em linguagem matemática

e as letras são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem asquais é humanamente impossível entender uma só palavra. (Galileu, II

Saggiatore)

A descrição matemática da realidade, característica da ciência moderna, trou-

xe consigo uma idéia importante: conhecer é medir ou quantificar. Nesse

caso, os aspectos qualitativos não poderiam ser conhecidos. Também as cau-

sas primeiras e os fins últimos aristotélicos, pelos quais todas as coisas se ex-

plicavam, deixaram de pertencer ao domínio da ciência. Com Galileu a ciên-

cia aprende a avançar em pequenos passos, explicando coisas simples e

avançando do mais simples para o mais complexo. Em lugar de procurar ex-

plicações muito abrangentes, procurava explicar fenômenos simples. Em vez

de tentar explicar de forma muito geral o movimento dos corpos, procurava

estudar-lhe as suas propriedades mais modestas. E foi assim, com pequenos

passos, que a ciência alcançou o tipo de explicações extremamente abran-

gentes que temos hoje. Inicialmente, parecia que a ciência estava mais inte-

ressada em explicar o "como" das coisas do que o seu "porquê"; por exem-

plo, parecia que os resultados de Galileu quanto ao movimento dos corpos

se limitava a explicar o modo como os corpos caem e não a razão pela qual

caem; mas, com a continuação da investigação, este tipo de explicações par-celares acabaram por se revelar fundamentais para se alcançar explicações

abrangentes e gerais do porquê das coisas — só que agora estas explicações

gerais estão solidamente ancoradas na observação e na medição paciente,

assim como na descrição pormenorizada de fenômenos mais simples.

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O mecanicismo: Descartes e Newton

A ciência galilaica lançou as bases para uma nova concepção da natureza

que iria ser largamente aceite e desenvolvida: o mecanicismo.

O mecanicismo, contrariamente ao organicismo anteriormente reinante

que concebia o mundo como um organismo vivo orientado para um fim, via

a natureza como um mecanismo cujo funcionamento se regia por leis preci-

sas e rigorosas. À maneira de uma máquina, o mundo era composto de pe-

ças ligadas entre si que funcionavam de forma regular e poderiam ser reduzi-

das às leis da mecânica. Uma vez conhecido o funcionamento das suas pe-

ças, tal conhecimento é absolutamente perfeito, embora limitado. Um ser

persistente e inteligente pode conhecer o funcionamento de uma máquina

tão bem como o seu próprio construtor e sem ter que o consultar a esse res-

peito.

Um dos grandes defensores do mecanicismo foi o filósofo francês Des-

cartes (1596-1656), que chegou mesmo a escrever o seguinte:

Eu não sei de nenhuma diferença entre as máquinas que os artesãos

fazem e os diversos corpos que a natureza por si só compõe, a não ser

esta: que os efeitos das máquinas não dependem de mais nada a não

 ser da disposição de certos tubos, que devendo ter alguma relação

com as mãos daqueles que os fazem, são sempre tão grandes que as

 suas figuras e movimentos se podem ver, ao passo que os tubos ou

molas que causam os efeitos dos corpos naturais são ordinariamente

demasiado pequenos para poderem ser percepcionados pelos nos-

 sos sentidos. Por exemplo, quando um relógio marca as horas por

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meio das rodas de que está feito, isso não lhe é menos natural do que

uma árvore a produzir os seus frutos. (Descartes, Princípios da Filoso-

fia)

O mecanicismo é o antecessor do fisicalismo, uma doutrina que hoje em dia

está no centro de grande parte da investigação dos filósofos contemporâne-

os. Tanto o mecanicismo como o fisicalismo são diferentes formas de reduci-

onismo.

O que é o reducionismo? O reducionismo é a idéia, central no desenvol-

vimento da ciência e da filosofia, de que podemos reduzir alguns fenômenos

de um certo tipo a fenômenos de outro tipo. Do ponto de vista psicológico e

até filosófico, o reducionismo pode ser encarado como uma vontade de di-

minuir drasticamente o domínio de fenômenos primitivos existentes na natu-

reza. Por exemplo, hoje em dia sabemos que todos os fenômenos químicos

são no fundo agregados de fenômenos físicos; isto é, os fenômenos quími-

cos são fenômenos que derivam dos físicos — daí dizer-se que os fenômenos

físicos são primitivos e que os químicos são derivados. Mas o reducionismo é

mais do que uma vontade de diminuir o domínio de fenômenos primitivos: é

um aspecto da tentativa de compreender a natureza última da realidade; é

um aspecto importante da tentativa de saber o que explica os fenômenos.

Assim, se os fenômenos químicos são no fundo fenômenos físicos, e se tiver-

mos uma boa explicação e uma boa compreensão do que são os fenômenosfísicos, então teremos também uma boa explicação e uma boa compreensão

dos fenômenos químicos, desde que saibamos reduzir a química à física. O

mecanicismo foi refutado no século XIX por Maxwell (1831-79), que mostrou

que a radiação eletromagnética e os campos eletromagnéticos não tinham

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uma natureza mecânica. O mecanicismo é a idéia segundo a qual tudo o que

acontece se pode explicar em termos de contactos físicos que produzem

"empurrões" e "puxões".Dado que o mecanicismo é uma forma de reducionismo, não é de admi-

rar que o principal objetivo de Descartes tenha sido o de unificar as diferen-

tes ciências como se de uma só se tratasse, de modo a constituir um saber

universal. Não via mesmo qualquer motivo para que se estudasse cada uma

das ciências em separado, visto que a razão em que se apoia o estudo de

uma ciência é a mesma que está presente no estudo de qualquer outra:

Todas as ciências não são mais do que sabedoria humana, que per-

manece sempre una e sempre a mesma, por mais diferentes que se-

 jam os objetos aos quais ela se aplica, e que não sofre nenhumas alte-

rações por parte desses objetos, da mesma forma que a luz do Sol

não sofre nenhumas modificações por parte das variadíssimas coisas

que ilumina. (Descartes, Regras para a Direção do Espírito)

Para atingir tal objetivo seria necessário satisfazer três condições: dar a todas

as ciências o mesmo método; partir do mesmo princípio; assentar no mesmo

fundamento. Só assim se poderiam unificar as ciências.

Quanto ao método, Descartes achava também que só o rigor matemático

poderia fazer as ciências dar frutos. Daí que tivesse dado o nome de mathe-

sis universalis ao seu projeto de unificação das ciências. A matemática deve-

ria, portanto, servir todas as ciências:

Deve haver uma ciência geral que explica tudo o que se pode investi-

 gar respeitante à ordem e à medida, sem as aplicar a uma matéria es-

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 pecial: esta ciência designa-se (...) pelo vocábulo já antigo e aceite

 pelo uso de mathesis universalis, porque encerra tudo o que fez dar a

outras ciências a denominação de partes das matemáticas. (Descartes,Regras para a Direção do Espírito)

Relativamente à segunda condição, o princípio de que todo o conhecimento

deveria partir, só poderia ser o pensamento ou razão. Descartes queria tomar

como princípio do conhecimento alguma verdade que fosse de tal forma se-

gura, que dela não pudéssemos sequer duvidar. E a única certeza inabalável

que, segundo ele, resistia a qualquer dúvida só podia ser a evidência do pró-

prio ato de pensar.

Finalmente, em relação ao fundamento do conhecimento, este deveria

ser encontrado, segundo Descartes, em Deus. Deus era a única garantia da

veracidade dos dados — racionais e não sensíveis — e, consequentemente, da

verdade do conhecimento. Sem Deus não poderíamos ter a certeza de nada.

Ele foi o responsável pelas idéias inatas que há em nós, tornando-se por isso

o fundamento metafísico do conhecimento.

Temos, assim, as diversas ciências da época concebidas como os diferen-

tes ramos de uma mesma árvore, ligados a um tronco comum e alimentados

pelas mesmas raízes. As raízes de que se alimenta a ciência são, como vimos,

as idéias inatas colocadas em nós por Deus. Estamos, neste caso, no domínio

da metafísica:

 Assim toda a filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a metafísi-

ca, o tronco é a física, e os ramos que saem deste tronco são todas as

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outras ciências, que se reduzem a três principais, a saber, a medicina,

a mecânica e a moral. (Descartes, Princípios da Filosofia)

Vale a pena salientar duas importantes diferenças em relação a Galileu.

A primeira é a do papel que Descartes atribuiu à experiência. Se o méto-

do experimental de Galileu parte da observação sensível, o mesmo já não

acontece com Descartes, cujo ponto de partida é o pensamento, acarretando

com isso uma diferença de método. Não é que, para Descartes, a experiência

não tenha qualquer papel, mas este é apenas complementar em relação à ra-

zão. Reforça-se, todavia, a importância da matemática.

A segunda diferença diz respeito ao lugar da metafísica. Enquanto Gali-

leu se demarcou claramente de qualquer pressuposto metafísico, Descartes

achava que a metafísica era o fundamento de todo o conhecimento verda-

deiro. Mas se Descartes via em Deus o fundamento do conhecimento, não

achava necessário, todavia, fazer intervir a metafísica na investigação e des-

crição dos fenômenos naturais.

Entretanto, a ciência moderna ia dando os seus frutos e a nova concep-

ção do mundo, o mecanicismo, ganhando cada vez mais adeptos. Novas ci-

ências surgiram, como é o caso da biologia, cuja paternidade se atribuiu a

Harvey (1578-1657), com a descoberta da circulação do sangue. E assim se

chegou àquele que é uma das maiores figuras da história da ciência, que

nasceu precisamente no ano em que Galileu morreu: o inglês Isaac Newton(1642-1727).

Ao publicar o seu livro Princípios Matemáticos de Filosofia da Natureza,

Newton foi responsável pela grande síntese mecanicista. Este livro tornou-se

numa espécie de Bíblia da ciência moderna. Aí completou o que restava por

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fazer aos seus antecessores e unificou as anteriores descobertas sob uma

única teoria que servia de explicação a todos os fenômenos físicos, quer

ocorressem na Terra ou nos céus. Teoria que tem como princípio fundamen-tal a lei da gravitação universal, na qual se afirmava que "cada corpo, cada

partícula de matéria do universo, exerce sobre qualquer outro corpo ou partí-

cula uma força atrativa proporcional às respectivas massas e ao inverso do

quadrado da distância entre ambos".

Partindo deste princípio de aplicação geral, todos os fenômenos naturais

poderiam, recorrendo ao cálculo matemático — o cálculo infinitesimal, tam-bém inventado por Newton —, ser derivados. Vejamos o que, a esse propósi-

to, escreveu:

Proponho este trabalho como princípios matemáticos da filosofia, já

que o principal problema da filosofia parece ser este: investigar as for-

ças da natureza a partir dos fenômenos do movimento, e depois, a

 partir dessas forças, demonstrar os outros fenômenos; (...) Gostaria

que pudéssemos derivar o resto dos fenômenos da natureza pela

mesma espécie de raciocínio a partir de princípios mecânicos, pois

 sou levado por muitas razões a suspeitar que todos eles podem de-

 pender de certas forças pelas quais as partículas dos corpos, por cau-

 sas até aqui desconhecidas, são ou mutuamente impelidas umas para

as outras, e convergem em figuras regulares, ou são repelidas, e afas-tam-se umas das outras. (Newton, Princípios Matemáticos de Filosofia

da Natureza)

O universo era, portanto, um conjunto de corpos ligados entre si e regidos

por leis rígidas. Massa, posição e extensão, eis os únicos atributos da matéria.

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No funcionamento da grande máquina do universo não havia, pois, lugar

para qualquer outra força exterior ou divina. E, como qualquer máquina, o

movimento é o seu estado natural. Por isso o mecanicismo apresentava umaconcepção dinâmica do universo e não estática como pensavam os antigos.

Os fundamentos da ciência: Hume e Kant

Entretanto, os resultados proporcionados pela física newtoniana iam fazendo

desaparecer as dúvidas que ainda poderiam subsistir em relação ao ponto

de vista mecanicista e determinista da natureza. Os progressos foram imen-

sos, o que parecia confirmar a justeza de tal ponto de vista.

A velha questão acerca do que deveria ser a ciência estava, portanto, ul-

trapassada. Interessava, sim, explicar a íntima articulação entre matemática e

ciência, bem como os fundamentos do método experimental. Mas tais pro-

blemas imediatamente iriam dar origem a outro mais profundo: se o que ca-

racteriza o conhecimento científico é o fato de produzir verdades universais e

necessárias, então em que se baseiam a universalidade e necessidade de tais

conhecimentos?

Este problema compreende-se melhor se pensarmos que a inferência vá-

lida que se usa na matemática e na lógica tem uma característica fundamen-

tal que a diferencia da inferência que se usa na ciência e a que geralmente se

chama "indução", apesar de este nome referir muitos tipos diferentes de infe-

rencias. Na inferência válida da matemática e da lógica, é logicamente impos-

sível que a conclusão seja falsa e as premissas sejam verdadeiras. Mas o mes-

mo não acontece na inferência indutiva: neste caso, podemos ter uma boa in-

ferência com premissas verdadeiras, mas a sua conclusão pode ser falsa. Isto

levanta um problema de justificação: como podemos justificar que as conclu-

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sões das inferências são realmente verdadeiras? Na inferência válida, é logi-

camente impossível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa;

mas como podemos justificar que, na boa inferência indutiva seja impossívelque as conclusões sejam falsas se as premissas forem verdadeiras? É que

essa impossibilidade não é fácil de compreender, dado que não é uma im-

possibilidade lógica. E apesar de as ciências da natureza usarem também

muitas inferencias válidas, não podem avançar sem inferencias indutivas. O fi-

lósofo empirista escocês David Hume (1711-1776) no seu Ensaio sobre o En-

tendimento Humano defendia que tudo o que sabemos procede da experi-ência, mas que esta só nos mostra como as coisas acontecem e não que é im-

possível que acontecem de outra maneira. É um fato que hoje o Sol nasceu, o

que também sucedeu ontem, anteontem e nos outros dias anteriores. Mas

isso é tudo o que os sentidos nos autorizam a afirmar e não podemos con-

cluir daí que é impossível o Sol não nascer amanhã. Ao fazê-lo estaríamos a ir

além do que nos é dado pelos sentidos. Os sentidos também não nos permi-

tem formular juízos universais, mas apenas particulares. Ainda que um aluno

só tenha tido até agora professores de filosofia excêntricos, ele não pode,

mesmo assim, afirmar que todos os professores de filosofia são excêntricos.

Nem a mais completa coleção de casos idênticos observados nos permite ti-

rar alguma conclusão que possa tomar-se como universal e necessária. O

fato de termos visto muitas folhas cair em nada nos autoriza a concluir que

todas as folhas caem necessariamente, assim como o termos visto o Sol nas-

cer muitas vezes não nos garante que ele nasça no dia seguinte, pois isso não

constitui um fato empírico. Mas não é precisamente isso que fazemos quan-

do raciocinamos por indução? E as leis científicas não se apoiam nesse tipo

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de raciocínio ou inferência? Logo, se algo de errado se passa com a indução,

algo de errado se passa com a ciência.

Mas se as coisas na natureza sempre aconteceram de uma determinadamaneira (se o Sol tem nascido todos os dias), não será de esperar que acon-

teçam do mesmo modo no futuro (que o Sol nasça amanhã)? Para Hume só é

possível defender tal coisa se introduzirmos uma premissa adicional, isto é,

se admitirmos que a natureza se comporta de maneira uniforme. A crença de

que a natureza funciona sempre da mesma maneira é conhecida como o

"princípio da uniformidade da natureza". Mas, interroga-se Hume, em que sefundamenta por sua vez o princípio da uniformidade da natureza? A resposta

é que tal princípio se apoia na observação repetida dos mesmos fenômenos,

o que nos leva a acreditar que a natureza se irá comportar amanhã como se

comportou hoje, ontem e em todos os dias anteriores. Mas assim estamos a

cair num raciocínio circular que é o seguinte: a indução só pode funcionar se

tivermos antes estabelecido o princípio da uniformidade da natureza; mas

estabelecemos o princípio da uniformidade da natureza por meio do raciocí-

nio indutivo.

Por que razão insistimos, então, em fazer induções? A razão — ou melhor,

o motivo — é inesperadamente simples: porque somos impelidos pelo hábito

de observarmos muitas vezes a mesma coisa acontecer. Ora, isso não é do

domínio lógico, mas antes do psicológico.

O que Hume fez foi uma crítica da lógica da indução. Esta apoia-se mais

na crença do que na lógica do raciocínio. O mesmo tipo de crítica levou tam-

bém Hume a questionar a relação de causa-efeito entre diferentes fenôme-

nos. Como tal, para Hume, o conhecimento científico, enquanto conhecimen-

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to que produz verdades universais e necessárias, não é logicamente possível,

assumindo, por isso, uma posição cética.

Seria o ceticismo de Hume que iria levar Kant (1724-1804) a tentar en-contrar uma resposta para tal problema.

Depois de uma crítica completa, na sua obra Crítica da Razão Pura, à for-

ma como, em nós, se constituía o conhecimento, Kant concluiu que aquilo

que conferia necessidade e universalidade ao conhecimento residia no pró-

prio sujeito que conhece. Para Kant, o entendimento humano não se limitava

a receber o que os sentidos captavam do exterior; ele era ativo e continhaem si as formas a priori — que não dependem da experiência — às quais todos

os dados empíricos se teriam que submeter.

Era, pois, nessas formas a priori do entendimento que se devia encontrar

a necessidade e universalidade do conhecimento:

Necessitamos agora de um critério pelo qual possamos distinguir se-

 guramente um conhecimento puro de um conhecimento empírico. É

verdade que a experiência nos ensina que algo é constituído desta ou

daquela maneira, mas não que não possa sê-lo diferentemente. Em

 primeiro lugar, se encontrarmos uma proposição que apenas se possa

 pensar como necessária, estamos em presença de um juízo a priori

(...). Em segundo lugar, a experiência não concede nunca aos seus juí-

 zos uma universalidade verdadeira e rigorosa, apenas universalidade suposta e comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade,

antes se deveria dizer: tanto quanto até agora nos foi dado verificar,

não se encontram exceções a esta ou àquela regra. Portanto, se um

 juízo é pensado com rigorosa universalidade, quer dizer, de tal modo

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que nenhuma exceção se admite como possível, não é derivado da

experiência, mas é absolutamente válido a priori. (...)

(...) Pois onde iria a própria experiência buscar a certeza se todasas regras, segundo as quais progride, fossem continuamente empíri-

cas e, portanto, contingentes? (Kant, Crítica da Razão Pura)

Verificando que os conhecimentos científicos se referiam a fatos observáveis,

mas que se apresentavam de uma forma universal e necessária, Kant caracte-

rizou as verdades científicas como juízos sintéticos a priori. Sintéticos porque

não dependiam unicamente da análise de conceitos; a priori porque se fun-

damentavam não na experiência empírica, mas nas formas a priori do enten-

dimento, as quais lhes conferiam necessidade e universalidade.

Restava, para este filósofo, uma questão: saber se a metafísica poderia

ser considerada uma ciência. Mas a resposta foi negativa porque, em metafí-

sica, não era possível formular juízos sintéticos a priori. As questões metafísi-

cas — a existência de Deus e a imortalidade da alma — caíam fora do âmbito

da ciência, ao contrário da ciência medieval em que o estatuto de cada ciên-

cia dependia, sobretudo, da dignidade do seu objeto, sendo a teologia e a

metafísica as mais importantes das ciências.

A "solução" de Kant dificilmente é satisfatória. Ao explicar o caráter ne-

cessário e universal das leis científicas, Kant tornou-as inter-subjetivas: algo

que resulta da nossa capacidade de conhecer e não do mundo em si. Quan-do um cientista afirma que nenhum objeto pode viajar mais depressa do que

a luz, está para Kant a formular uma proposição necessária e universal, mas

que se refere não à natureza íntima do mundo, mas antes ao modo como

nós, seres humanos, conhecemos o mundo. Estavam abertas as portas ao

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idealismo alemão, que teria efeitos terríveis na história da filosofia. Nos anos

70 do século XX, o filósofo americano Saul Kripke (1940-) iria apresentar uma

solução parcial ao problema levantado por Hume que é muito mais satisfató-ria do que a de Kant. Kripke mostrou, efetivamente, como podemos inferir

conclusões necessárias a partir de premissas empíricas, de modo que a ne-

cessidade das leis científicas não deriva do seu caráter sintético a priori,

como Kant dizia, mas antes do seu caráter necessário a posteriori.

4. O positivismo do século XIX

Comte

No século XIX, o ritmo do desenvolvimento científico e tecnológico cresceu

imenso. Em conseqüência disso, a vida das pessoas sofreu alterações subs-

tanciais. Era a ciência que dava origem a novas invenções, as quais impulsio-

navam uma série de transformações na sociedade. Com efeito, estabeleceu-se uma relação entre os seres humanos e a ciência, de tal maneira que esta

passou a fazer parte das suas próprias vidas.

Apareceram muitas outras ciências ao longo do século XIX, onde se con-

tavam, por exemplo, a psicologia. O clima era de confiança em relação à ci-

ência, na medida em que ela explicava e solucionava cada vez mais proble-

mas. A física era o exemplo de uma ciência que apresentava imensos resulta-

dos e que nos ajudava a compreender o mundo como nunca antes tinha sido

possível. A religião ia, assim, perdendo terreno no domínio do conhecimento

e até a própria filosofia era freqüentemente acusada de se perder em esté-

reis discussões metafísicas. A ciência não tinha, pois, rival.

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É neste contexto que surge uma nova filosofia, apresentada no livro Cur-

so de Filosofia Positiva, com o francês Auguste Comte (1798-1857): o positi-

vismo.O positivismo considera a ciência como o estado de desenvolvimento do

conhecimento humano que superou, quer o estado das primitivas concep-

ções mítico-religiosas, as quais apelavam à intervenção de seres sobrenatu-

rais, quer o da substituição desses seres por forças abstratas. Comte pensa

mesmo ter descoberto uma lei fundamental acerca do desenvolvimento do

conhecimento, seja em que domínio for. Essa lei é a de que as nossas princi-pais concepções passam sempre por três estados sucessivos: "o estado teo-

lógico ou fictício, o estado metafísico ou abstracto e o estado científico ou

positivo". A cada estado corresponde um método de filosofar próprio. Trata-

se, respectivamente, do método teológico, do método metafísico e do méto-

do positivo. Assim, a ciência corresponde ao estado positivo do conhecimen-

to, que é, para Comte, o seu estado definitivo:

Estudando assim o desenvolvimento total da inteligência humana nas

 suas diversas esferas de atividade, desde o seu primeiro e mais sim-

 ples desenvolvimento até aos nossos dias, penso ter descoberto uma

 grande lei fundamental, à qual ele se encontra submetido por uma

necessidade invariável, e que me parece poder estabelecer-se solida-

mente, quer pelas provas racionais que o conhecimento da nossa or- ganização nos fornece, quer pelas verificações históricas que resultam

de um atento exame do passado. Esta lei consiste em que cada uma

das nossas principais concepções, cada ramo dos nossos conheci-

mentos, passa sucessivamente por três estados teóricos diferentes: o

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estado teológico ou fictício, o estado metafísico ou abstracto, o estado

científico ou positivo. Noutros termos, o espírito humano, dada a sua

natureza, emprega sucessivamente, em cada uma das suas pesquisas,três métodos de filosofar, de características essencialmente diferentes

e mesmo radicalmente opostos: primeiro o método teológico, depois

o método metafísico e, por fim, o método positivo. Donde decorre a

existência de três tipos de filosofia ou de sistemas gerais de concep-

ções sobre o conjunto dos fenômenos que mutuamente se excluem: a

 primeira é o ponto de partida necessário da inteligência humana; aterceira o seu estado fixo e definitivo; a segunda destina-se unicamen-

te a servir de transição. (Comte, Curso de Filosofia Positiva)

Comte prossegue, caracterizando cada um dos estados, de modo a concluir

que os primeiros dois estados foram necessários apenas como degraus para

chegar ao seu estado perfeito, o estado positivo:

No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente as

 suas pesquisas para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e

finais de todos os fenômenos que o atingem, numa palavra, para os

conhecimentos absolutos, concebe os fenômenos como produzidos

 pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos

numerosos, cuja arbitrária intervenção explicaria todas as aparentes

anomalias do universo.

No estado metafísico, que no fundo não é mais que uma modifi-

cação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos

 por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personifica-

das) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como ca-

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 pazes de engendrar por si mesmas todos os fenômenos observados,

cuja explicação consiste então em referir para cada um a entidade

correspondente.Por último, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a

impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a ori-

 gem e o destino do universo e a conhecer as causas íntimas dos fenô-

menos, para se dedicar apenas à descoberta, pelo uso bem combina-

do do raciocínio e da observação, das suas leis efetivas, isto é, das

 suas relações invariáveis de sucessão e similitude. A explicação dosfatos, reduzida então aos seus termos reais, não é mais, a partir daqui,

do que a ligação que se estabelece entre os diversos fenômenos par-

ticulares e alguns fatos gerais cujo número tende, com os progressos

da ciência, a diminuir cada vez mais. (...)

 Assim se vê, por este conjunto de considerações, que, se a filoso-

fia positiva é o verdadeiro estado definitivo da inteligência humana,

aquele para o qual ela sempre, e cada vez mais, tendeu, nem por isso

ela deixou de utilizar necessariamente, no começo e durante muitos

 séculos, a filosofia teológica, quer como método, quer como doutrina

 provisórios; filosofia cujo caráter é ela ser espontânea e, por isso mes-

mo, a única que era possível no princípio, assim como a única que po-

dia satisfazer os interesses do nosso espírito nos seus primeiros tem-

 pos. É agora muito fácil ver que, para passar desta filosofia provisória

à filosofia definitiva, o espírito humano teve, naturalmente, que adotar,

como filosofia transitória, os métodos e as doutrinas metafísicas. Esta

última consideração é indispensável para completar a visão geral da

 grande lei que indiquei.

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Com efeito, concebe-se facilmente que o nosso entendimento,

obrigado a percorrer degraus quase insensíveis, não podia passar

bruscamente, e sem intermediários, da filosofia teológica para a filo- sofia positiva. A teologia e a física são profundamente incompatíveis,

as suas concepções têm características tão radicalmente opostas que,

antes de renunciar a umas para utilizar exclusivamente as outras, a in-

teligência humana teve de se servir de concepções intermédias, de

características mistas, e por isso mesmo próprias para realizar, gradu-

almente, a transição. É este o destino natural das concepções metafísi-cas que não têm outra utilidade real. (Comte, Curso de Filosofia Positi-

va)

O pensamento de Comte, mais do que uma filosofia original, era uma filoso-

fia que captou um certo espírito do século XIX e lhe deu uma espécie de jus-

tificação. Este tipo de espírito positivista viria a conhecer uma reação extre-

ma, antipositivista: o romantismo e o irracionalismo, que acabariam por dar o

perfil definitivo à filosofia do continente europeu do século XX. Ao passo que

o positivismo exaltava a ciência, o romantismo e o irracionalismo deploravam

a ciência. Ambas as idéias parecem falsas e exageradas. As idéias de Comte

são vagas e os argumentos que ele usa para as sustentar são pouco mais do

que sugestões. A própria idéia de ciência que Comte apresenta está errada;

não é verdade que a ciência tenha renunciado a explicar as causas mais pro-fundas dos fenômenos, nem é verdade que na história do pensamento te-

nhamos assistido a uma passagem de uma fase mais abstrata para uma fase

mais concreta ou positiva. Pelo contrário, a ciência apresenta um grau de abs-

tração cada vez maior, e a própria filosofia, com as suas teorias e argumentos

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extremamente abstratos, conheceu no século XX um desenvolvimento como

nunca antes tinha acontecido.

O positivismo defende que só a ciência pode satisfazer a nossa necessi-dade de conhecimento, visto que só ela parte dos fatos e aos fatos se subme-

te para confirmar as suas verdades, tornando possível a obtenção de " no-

ções absolutas".

Do que dissemos decorre que o traço fundamental da filosofia positiva é

considerar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, sen-

do o fim de todos os nossos esforços a sua descoberta precisa e a sua redu-ção ao menor número possível, e considerando como absolutamente inaces-

sível e vazio de sentido a procura daquilo a que se chama as causas, sejam

primeiras ou finais. É inútil insistir muito num princípio que se tornou tão fa-

miliar a todos os que estudaram, com alguma profundidade, as ciências de

observação. Com efeito, todos nós sabemos que, nas nossas explicações po-

sitivas, mesmo nas mais perfeitas, não temos a pretensão de expor as causas

geradoras dos fenômenos, dado que nesse caso não faríamos senão adiar a

dificuldade, mas apenas de analisar com exatidão as circunstâncias da sua

produção e de as ligar umas às outras por normais relações de sucessão e si-

militude. (...) (cf. Comte, Curso de Filosofia Positiva)

O pressuposto fundamental é, pois, o de que há uma regularidade no

funcionamento da natureza, cabendo ao homem descobrir com exatidão as

"leis naturais invariáveis" a que todos os fenômenos estão submetidos. Essas

leis devem traduzir com todo o rigor as condições em que determinados fa-

tos são produzidos. Para isso tem de se partir da observação dos próprios fa-

tos e das relações que entre eles se estabelecem de modo a chegar a resulta-

dos universais e objetivos. Qualquer fato observado é o resultado necessário

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de causas bem precisas que é importante investigar. Até porque as mesmas

causas produzem sempre os mesmos efeitos, não havendo na natureza lugar

para a fantasia e o improviso, tal como, de resto, acontece com uma máquinaque se comporta sempre como previsto. A isto se chama determinismo. O

determinismo é, então, uma conseqüência do mecanicismo moderno e teve

inúmeros defensores, entre os quais se tornou famoso Laplace (1749-1827).

Escreve ele:

Devemos considerar o estado presente do universo como um efeito

do seu estado anterior e como causa daquele que se há-de seguir.

Uma inteligência que pudesse compreender todas as forças que ani-

mam a natureza e a situação respectiva dos seres que a compõem —

uma inteligência suficientemente vasta para submeter todos esses da-

dos a uma análise — englobaria na mesma fórmula os movimentos

dos maiores corpos do universo e os do menor átomo; para ela, nada

 seria incerto e o futuro, tal como o passado, seriam presente aos seus

olhos. (Laplace, Ensaio Filosófico sobre as Probabilidades)

Com efeito, a natureza ainda apresenta muitos mistérios, mas apenas porque

não temos a capacidade de conhecer integralmente as circunstâncias que a

cada momento se conjugam para o desencadear de todos os fenômenos ob-

servados. É, contudo, possível prever muitos deles.

Esta é uma perspectiva que, no fundo, acaba por desenvolver e sistemati-

zar em termos teóricos a concepção mecanicista própria da ciência moderna.

Concepção essa que, por sua vez, assenta numa determinada filosofia acerca

da natureza do conhecimento: o realismo crítico. Realismo porque defende a

existência de uma realidade objetiva exterior ao sujeito, e crítico porque nem

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tudo o que é percepcionado nos fenômenos naturais tem valor objetivo. É

por isso que o cientista precisa de um método de investigação que lhe per-

mita eliminar todos os aspectos subjetivos acerca dos fenômenos estudadose encontrar, por entre as aparências, as propriedades verdadeiramente obje-

tivas. Tal método continua a ser o método experimental.

Os grandes princípios nos quais se apoiava a ciência pareciam, então,

definitivamente assentes. As discussões sobre o estatuto ou os fundamentos

do conhecimento científico consideravam-se arrumadas e a linguagem utili-

zada, a matemática, estava também ela assente em princípios sólidos. Resta-va prosseguir com cada vez mais descobertas, de modo a acrescentar ao que

 já se sabia novos conhecimentos.

Que a ciência desse respostas definitivas às nossas perguntas, de modo a

ampliar cada vez mais o conhecimento humano, e que tal conhecimento pu-

desse ser aplicado na satisfação de necessidades concretas do homem, era o

que cada vez mais pessoas esperavam. Assim, a ciência foi conquistando

cada vez mais adeptos, tornando-se objeto de uma confiança ilimitada. Isto é,

surge um verdadeiro culto da ciência, o cientismo. O cientismo é, pois, a ci-

ência transformada em ideologia. Ele assenta, afinal, numa atitude dogmática

perante a ciência, esperando que esta consiga responder a todas as pergun-

tas e resolver todos os nossos problemas. Em grande medida, o cientismo re-

sulta de uma compreensão errada da própria ciência. A ciência não é a cari-

catura que Comte apresentou e que o cientismo de alguma forma adotou.

O sucessor moderno do mecanicismo, como vimos, é o fisicalismo. A

idéia geral é a de que podemos reduzir todos os fenômenos a fenômenos fí-

sicos. Hoje em dia, uma parte substancial da investigação em filosofia e em

algumas ciências, procura reduzir fenômenos que à primeira vista não pare-

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cem suscetíveis de serem reduzidos: é o caso, por exemplo, dos fenômenos

mentais (de que se ocupa a filosofia da mente e as ciências cognitivas) e dos

fenômenos semânticos (de que se ocupa a filosofia da linguagem e a lingüís-tica). Esta idéia não é nova; já Comte tinha apresentado uma classificação das

ciências em que, de maneiras diferentes, todas as ciências acabavam por se

reduzir à física. Até à mais recente das ciências, a sociologia, Comte dava o

nome de física social. Havia, assim, a física celeste, a física terrestre, a física or-

gânica e a física social nas quais se incluíam as cinco grandes categorias de

fenômenos, os fenômenos astronômicos, físicos, químicos, fisiológicos e soci-ais.

Assim, é preciso começar por considerar que os diferentes ramos dos

nossos conhecimentos não puderam percorrer com igual velocidade as três

grandes fases do seu desenvolvimento atrás referidas nem, portanto, chegar

simultaneamente ao estado positivo. (...)

É impossível determinar com rigor a origem desta revolução (...). Contu-

do, dado que é conveniente fixar uma época para impedir a divagação de

idéias, indicarei a do grande movimento imprimido há dois séculos ao espíri-

to humano pela ação combinada dos preceitos de Bacon, das concepções

de Descartes e das descobertas de Galileu, como o momento em que o espí-

rito da filosofia positiva começou a pronunciar-se no mundo, em clara oposi-

ção aos espíritos teológico e metafísico. (...)

Eis então a grande mas evidentemente única lacuna que é preciso colma-

tar para se concluir a constituição da filosofia positiva. Agora que o espírito

humano fundou a física celeste, a física terrestre — quer mecânica quer quími-

ca —, a física orgânica — quer vegetal quer animal —, falta-lhe terminar o siste-

ma das ciências de observação fundando a física social. (...)

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Uma vez preenchida esta condição, encontrar-se-á finalmente fundado,

no seu conjunto, o sistema filosófico dos modernos, pois todos os fenôme-

nos observáveis integrarão uma das cinco grandes categorias desde entãoestabelecidas: fenômenos astronômicos, físicos, químicos, fisiológicos e soci-

ais. Tornando-se homogêneas todas as nossas concepções fundamentais, a

filosofia constituir-se-á definitivamente no estado positivo; não podendo nun-

ca mudar de caráter, resta-lhe desenvolver-se indefinidamente através das

aquisições sempre crescentes que inevitavelmente resultarão de novas ob-

servações ou de meditações mais profundas. (...)

Com efeito, completando enfim, com a fundação da física social, o sis-

tema das ciências naturais, torna-se possível, e mesmo necessário, re-

 sumir os diversos conhecimentos adquiridos, então chegados a um

estado fixo e homogêneo, para os coordenar, apresentando-os como

outros tantos ramos de um único tronco, em vez de continuar a conce-

bê-los apenas como outros tantos corpos isolados. (Comte, Curso de

Filosofia Positiva)

Mas não é com classificações vagas que se conseguem realmente reduzir as

ciências à física — esta é a forma errada de colocar o problema. Trata-se, an-

tes, de mostrar que os fenômenos estudados pela química ou pela sociologia

ou pela psicologia são, no fundo, fenômenos físicos. Mas isto é um projeto

que, apesar de alimentar hoje em dia grande parte da investigação científica

e filosófica, está longe de ter alcançado bons resultados. E alguns filósofos

contemporâneos duvidam que tal reducionismo seja possível.

A distinção entre ciências da natureza e ciências sociais ou humanas tor-

nou-se, progressivamente, mais importante. Apesar dos devaneios de Comte,

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não era fácil ver como se poderiam reduzir os fenômenos sociais, por exem-

plo, a fenômenos físicos. A reação contrária a Comte resultou em doutrinas

que traçam uma distinção entre os dois tipos de ciências, alegando que osfenômenos sociais não podem ser reduzidos a fenômenos físicos. Dilthey

(1833-1911) dividia as ciências em ciências do homem, ou do espírito, entre

as quais se encontravam a história, a psicologia, etc, e as ciências da natureza,

como a física, a química, a biologia, etc. Aquelas tinham como finalidade

compreender os fenômenos que lhes diziam respeito, enquanto que estas

procuravam explicar os seus. Esta forma de encarar a diferença entre as ciên-cias humanas e as ciências da natureza é de algum modo simplista. Mas os

grandes filósofos das ciências sociais atuais, como Alan Ryan e outros, procu-

ram ainda encontrar modelos de explicação satisfatórios para as ciências hu-

manas. Apesar de admitirem que o tipo de explicação das ciências da nature-

za é diferente do tipo de explicação das ciências humanas, o verdadeiro pro-

blema é saber que tipo de explicação é a explicação fornecida pelas ciências

humanas.

As ciências da natureza e as ciências formais do século XIX e XX conhece-

ram desenvolvimentos sem precedentes. Mas porque o espírito científico é

um espírito crítico e não dogmático, apesar do enorme desenvolvimento al-

cançado pela ciência no século XIX, os cientistas continuavam a procurar res-

ponder a mais e mais perguntas, perguntas cada vez mais gerais, fundamen-

tais e exatas. E a resposta a essas perguntas conduziu a desenvolvimentos ci-

entíficos que mostraram os limites de algumas leis e princípios antes toma-

dos como verdadeiros. A geometria, durante séculos considerada uma ciên-

cia acabada e perfeita, foi revista. Apesar de a geometria euclidiana ser a ge-

ometria correta para descrever o espaço não curvo, levantou-se a questão de

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saber se não poderíamos construir outras geometrias, que dessem conta das

relações geométricas em espaços não curvos: nasciam as geometrias não eu-

clidianas. A existência de geometrias não euclidianas conduz à questão desaber se o nosso universo será euclidiano ou não. E a teoria da relatividade

mostra que o espaço é afinal curvo e não plano, como antes se pensava.

O desenvolvimento alucinante das ciências dos séculos XIX e XX, junta-

mente com o cientismo provinciano defendido por Comte, conduziu ao clima

anticientífico que caracteriza algumas correntes da filosofia do final do século

XX. Mas isso fica para depois.Aires Almeida

Crítica na rede

 A relação entre a ciência e a filosofia

A demarcação das ciências naturais em relação à filosofia foi um processo

longo e gradual no pensamento ocidental. Inicialmente, a investigação da na-

tureza das coisas consistia numa mistura entre o que hoje seria visto como fi-

losofia (considerações gerais das mais vastas sobre a natureza do ser e a na-

tureza do nosso acesso cognitivo a ele) e o que hoje seria considerado como

próprio das ciências particulares (a acumulação de factos da observação e a

formulação de hipóteses teóricas gerais para os explicar). Se olharmos paraos fragmentos que nos restam das obras dos filósofos pré-socráticos, encon-

traremos não só tentativas importantes e engenhosas para aplicar a razão a

questões metafísicas e epistemológicas vastas, mas também as primeiras teo-

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rias físicas, simples mas extraordinariamente imaginativas, sobre a natureza

da matéria e os seus aspectos mutáveis.

Na época da filosofia grega clássica já podemos encontrar uma certa se-paração entre as duas disciplinas. Nas suas obras metafísicas, Aristóteles faz

claramente algo que hoje seria feito por filósofos; mas em muitas das suas

obras de biologia, astronomia e física encontramos métodos de investigação

que são hoje comuns na prática dos cientistas.

À medida que as ciências particulares, como a física, a química e a biolo-

gia, foram aumentando em número, canalizando cada vez mais recursos edesenvolvendo metodologias altamente individualizadas, conseguiram des-

crever e explicar os aspectos fundamentais do mundo em que vivemos.

Dado o sucesso dos investigadores das ciências específicas particulares, há

muito quem pergunte se ainda restará algo para os filósofos fazerem. Alguns

filósofos pensam que existem áreas de investigação que são radicalmente di-

ferentes das que pertencem às ciências particulares, como, por exemplo, a in-

vestigação sobre a natureza de Deus, sobre o "ser em si" ou sobre qualquer

outra coisa do género. Outros filósofos tentaram de várias maneiras encon-

trar uma área remanescente de investigação em filosofia que estivesse mais

próxima dos desenvolvimentos mais recentes e sofisticados das ciências na-

turais.

Segundo uma perspectiva mais antiga, que foi perdendo popularidade

ao longo dos séculos sem nunca desaparecer inteiramente, existe uma ma-

neira de conhecer o mundo que nos seus fundamentos não precisa de de-

pender da investigação observacional ou experimental própria do método

das ciências particulares. Esta perspectiva foi influenciada parcialmente pela

existência da lógica e matemática puras, cujas verdades firmemente estabe-

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lecidas não parecem depender, para que estejam garantidas, de qualquer

base observacional ou experimental. De Platão e Aristóteles a Leibniz e aos

outros racionalistas, passando por Kant e pelos idealistas, e mesmo até aopresente, tem persistido a esperança de que, se fôssemos suficientemente in-

teligentes e perspicazes, poderíamos estabelecer um corpo de proposições

que descreveriam o mundo e que, no entanto, seriam conhecidas com a

mesma certeza com que dizemos conhecer as verdades da lógica e da mate-

mática. Poderíamos acreditar nessas proposições independentemente de

qualquer apoio indutivo obtido de factos específicos observados. Se dispu-séssemos de um corpo de conhecimento como esse, não teríamos atingido o

objectivo procurado durante séculos pela disciplina tradicionalmente conhe-

cida por "filosofia"?

Segundo uma perspectiva mais recente, o papel da filosofia não é o de

funcionar como fundamento ou extensão das ciências, mas como sua obser-

vadora crítica. A ideia é a de que as disciplinas científicas particulares usam

conceitos e métodos. As relações entre os diversos conceitos, embora este-

 jam implícitas no seu uso científico, podem não ser explicitamente claras para

nós. O papel da filosofia da ciência seria assim o de clarificar essas relações

conceptuais. Uma vez mais, as ciências particulares usam métodos específi-

cos para fazer generalizações, a partir de dados da observação, em direcção

a hipóteses e teorias. O papel da filosofia, segundo esta perspectiva, é o de

descrever os métodos usados pelas ciências e explorar as bases de justifica-

ção desses métodos, isto é, compete à filosofia mostrar que os métodos são

apropriados para encontrar a verdade na disciplina científica em questão.

Mas será que podemos diferenciar a filosofia e a ciência, a partir de qual-

quer uma destas perspectivas, de uma maneira simples e directa? Muitos es-

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pecialistas sugeriram que não. Nas ciências específicas, as teorias por vezes

não são adoptadas devido apenas à sua consistência com os dados da ob-

servação, mas também com base na sua simplicidade, força explicativa ououtras considerações que pareçam contribuir para a sua plausibilidade intrín-

seca. Quando constatamos isto, começamos a perder confiança na ideia de

que existem dois domínios de proposições bastante diferentes: aquelas que

são apoiadas apenas por dados empíricos, e aquelas que são apoiadas ape-

nas pela razão. Muitos metodólogos contemporâneos, como Quine, estariam

dispostos a defender que as ciências naturais, a matemática, e até a lógicapura, formam um contínuo unificado de crenças sobre o mundo. Todas elas,

defendem estes metodólogos, são indirectamente apoiadas por dados da

observação, mas todas contêm também elementos de apoio "racional". Se

isto for verdade, não será a própria filosofia, vista como o lugar das verdades

da razão, uma parte do todo unificado? Isto é, não será também a filosofia

apenas uma componente do corpo das ciências especializadas?

Quando procuramos a descrição e a justificação apropriada dos métodos

da ciência, parece que estamos à espera que os resultados específicos das ci-

ências particulares entrem de novo em cena. Como poderíamos compreen-

der a capacidade dos métodos da ciência para nos conduzir à verdade se

não estivéssemos em condições de mostrar que esses métodos têm realmen-

te a fiabilidade que lhes é atribuída? E como poderíamos fazer isso sem usar

o nosso conhecimento sobre o mundo, que nos foi revelado pela melhor ci-

ência de que dispomos? Como poderíamos, por exemplo, justificar a confian-

ça da ciência na observação sensorial se a nossa compreensão do processo

perceptivo (uma compreensão baseada na física, na neurologia e na psicolo-

gia) não nos assegurasse que a percepção, tal como é usada quando se tes-

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tam as teorias científicas, é realmente um bom guia da verdade sobre a natu-

reza do mundo?

É ao discutir as teorias mais gerais e fundamentais da física que a impre-cisão da fronteira entre as ciências naturais e a filosofia se torna mais manifes-

ta. Dado que elas têm a ambição ousada de descrever o mundo natural nos

seus aspectos mais gerais e fundamentais, não é surpreendente que os tipos

de raciocínio usados ao desenvolver estas teorias altamente abstractas pare-

çam por vezes estar mais próximos dos raciocínios filosóficos que dos méto-

dos usados quando se conduzem investigações científicas de âmbito mais li-mitado e particular. Mais adiante, à medida que explorarmos os conceitos e

os métodos usados pela física quando esta lida com as suas questões funda-

mentais mais básicas, veremos repetidamente que pode estar longe de ser

claro se estamos a explorar questões de ciência natural ou questões de filo-

sofia. Na verdade, nesta área da investigação sobre a natureza do mundo, a

distinção entre as duas disciplinas torna-se bastante obscura.

Lawrence Sklar

Universidade de Michigan

Tradução de Desidério Murcho, Pedro Galvão e Paula Mateus

Retirado de Philosophy of Physics, de Lawrence Sklar (Oxford University

Press, 1992).

Termos de utilização " Não reproduza sem citar a fonte

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Parte V: Conceitosda Filosofia da Ci-ência

Indução e filosofia da ciência

A filosofia da ciência é uma das mais velhas subdivisões da filosofia, remon-

tando pelo menos a Aristóteles. Está hoje em rápido crescimento, uma vez

que os grandes avanços científicos do último século têm levado os filósofos a

pensar mais cuidadosamente sobre a ciência. Estes filósofos poderão vir a in-

fluenciar o futuro da ciência.

A filosofia da ciência implica reflexão filosófica sobre a ciência. Os filóso-fos da ciência não colocam questões científicas — essa é a tarefa dos cientis-

tas. Em vez disso, os filósofos da ciência enfrentam questões sobre a ciência.

Por exemplo: o que é a ciência? O que distingue a ciência da não ciência?

Qual o papel da observação na ciência? Como progride a ciência? Outras

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questões focam-se nos conceitos que a ciência aplica. Por exemplo, o que é

uma lei da natureza? Outra preocupação filosófica é a de se saber até que

ponto temos justificação para acreditar que as entidades inobservadas sãoreais. Devemos supor que os electrões existem realmente, ou são apenas "fic-

ções" úteis?

O equilíbrio dos indícios

Algumas das questões mais centrais e importantes colocadas por filóso-

fos da ciência dizem respeito ao problema da confirmação. Os cientistas

constroem teorias que pensar ser confirmadas pelo que observam. Essa con-firmação, no entanto, faz-se por graus. Uma teoria pode ser ligeiramente con-

firmada por alguma evidência ou pode ser confirmada mais fortemente. Su-

pomos que quanto mais fortemente uma teoria científica for confirmada pela

evidência disponível, mais racional se torna nela acreditar. Uma pergunta re-

lativa à confirmação em que podemos pensar é a seguinte: o que faz uma te-

oria ser mais fortemente confirmada do que outra? Outra pergunta, mais fun-

damental, é a de saber se as nossas teorias científicas podem ser alguma vez

confirmadas. O filósofo do século XVIII David Hume argumentou que apesar

de supormos que aquilo que observámos até hoje confirma as nossas teorias

científicas, tais observações não fornecem de facto qualquer confirmação. Se

Hume tiver razão, todas as teorias, quer a teoria de que a Terra gira em torno

do Sol, quer a teoria de que o núcleo da Terra é feito de queijo, são igual-

mente racionais. O problema que Hume levanta é conhecido como o "pro-

blema da indução". Trata-se de um problema que numerosos pensadores na

filosofia tentaram enfrentar.

O problema da indução

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Todos nos baseamos enormemente no raciocínio indutivo. Supomos que

em virtude de o Sol ter nascido todos os dias no passado, temos boas razões

para supor que nascerá amanhã. Porém, se o filósofo David Hume tiver razão,o passado não fornece qualquer espécie de pista para o que acontecerá no

futuro.

Grandes esperanças

A forma de argumento mais fiável é a dedução. Num argumento deduti-

vo válido, as premissas implicam logicamente a conclusão. Tomando um

exemplo simples:Sócrates é homem. 

Todos os homens são mortais.  

Logo, Sócrates é mortal.

Se dizemos que as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa é por-

que nos envolvemos numa contradição.

Num argumento indutivo, por contraste, as premissas não fornecem su-

postamente uma garantia de que a conclusão é verdadeira. Em vez disso, es-

pera-se que as premissas forneçam apenas indícios de que a conclusão é ver-

dadeira. Eis um exemplo:

O ganso 1 é branco. 

O ganso 2 é branco. 

O ganso 3 é branco. 

O ganso 1000 é branco. 

Portanto, todos os gansos são brancos.

Se observamos mil gansos e se todos eles são brancos, concluímos que

todos os gansos são brancos. Supomos que as premissas do nosso argumen-

to tornam razoável aceitar a conclusão. Porém, é claro que não há contradi-

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ção lógica em supor que apesar de os primeiros mil gansos observados se-

rem brancos, o próximo possa não sê-lo.

Baseamo-nos a toda a hora em argumentos indutivos. Quando fazemosuma previsão do que acontecerá no futuro ou acerca do que está a aconte-

cer, ou aconteceu, em zonas do universo que não observámos, baseamo-nos

no raciocínio indutivo para justificar as nossas posições.

Por exemplo, suponho que a cadeira onde estou sentado aguentará o

meu peso. Que justifação tenho para acreditar nisso? Bem, a cadeira sempre

aguentou o meu peso no passado. Portanto, concluo que aguentará tambémdesta vez. É evidente que o facto de a cadeira ter aguentado comigo no pas-

sado não me dá garantia lógica de que agora aguentará. É possível que a ca-

deira se desmorone. Ainda assim, supomos que o facto de a cadeira ter sem-

pre aguentado comigo me dá razões para acreditar que continuará a fazê-lo.

Os cientistas também se baseiam enormemente no raciocínio indutivo. Cons-

troem teorias que valem supostamente em toda a parte e em qualquer épo-

ca, incluindo o futuro. Justificam as teorias apresentando as suas observa-

ções. Contudo, as afirmações acerca do que foi observado não implicam lo-

gicamente as afirmações acerca do que acontecerá no futuro. Assim, se os ci-

entistas querem justificar estas teorias, não o podem fazer através de argu-

mentação dedutiva. Em vez disso, têm de basear-se no raciocínio indutivo.

Não é, portanto, a razão o guia da vida, mas o hábito que por si só deter-

mina em todos os caso a mente a supor o futuro conforme ao passado. 

David Hume, Tratado Sobre A Natureza Humana

É a natureza uniforme?

O filósofo David Hume coloca a questão de saber se podemos ou não

 justificar alguma vez este tipo de conclusões acerca do que não observámos.

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Hume afirma que quando raciocinamos indutivamente fazemos um pressu-

posto: pressupomos que a natureza é uniforme, pressupomos que existem os

mesmos padrões gerais subjacentes à natureza. O que aconteceria se nãopartíssemos deste pressuposto? Nesse caso, não poderíamos tirar as conclu-

sões que tiramos. Eu não concluiria que a cadeira onde me sento agora

aguentará comigo, em virtude de ela ter sempre aguentado comigo no pas-

sado. É porque acredito que as mesmas regularidades gerais subjazem à na-

tureza, incluindo no futuro, que suponho que a cadeira aguentará comigo da

próxima vez que nela me sentar. Mas é aí que Hume detecta um problema.Sempre que raciocinamos indutivamente pressupomos que a natureza é uni-

forme. Porém, se queremos justificar a nossa crença de que a indução é um

método fidedigno para chegar a crenças verdadeiras, temos de justificar este

pressuposto.

Justificar as nossas crenças

Hume indica que há duas possibilidades. Podemos tentar justificar a ideia

de que a natureza é uniforme recorrendo à experiência ou podemos justificá-

la independentemente da experiência, afirmando porventura que se trata de

uma verdade lógica. O problema com esta segunda sugestão é bastante ób-

vio. A ideia de que a natureza é uniforme não é claramente uma verdade ló-

gica. Não há contradição lógica em supor que, embora a natureza tenha sido

uniforme até agora, possa tornar-se de repente uma confusão caótica e de-

sarrumada, onde as coisas se comportam ao acaso e de forma imprevisível.

Não resta senão uma possibilidade para justificar o pressuposto de que a

natureza é uniforme. Temos de fazê-lo apelando à experiência. Uma forma de

levar isso a cabo seria observar directamente tudo o que se passa na nature-

za. Desse modo poderíamos simplesmente observar que ela é uniforme em

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todas as suas partes. Mas é claro que não podemos fazer isto. Podemos ob-

servar directamente apenas uma pequena porção do universo. E é certo que

não podemos observar directamente o futuro.Portanto, a nossa justificação terá de recorrer a uma inferência baseada

no que pode ser observado directamente. E por que não podemos testemu-

nhar que a natureza é aqui e agora uniforme e, depois, concluir que a nature-

za é provavelmente uniforme em todas as outras circunstâncias?

O problema é, obviamente, que este raciocínio é ele próprio indutivo. Te-

ríamos de nos basear num raciocínio indutivo para tentar mostrar que o raci-ocínio indutivo é fidedigno. Mas isto é certamente uma justificação circular

inaceitável. Seria como confiar nas afirmações de um doente mental quando

este assevera ser digno de confiança. Não é de modo algum uma justifica-

ção.

Hume conclui que embora raciocinemos indutivamente, não temos real-

mente qualquer justificação para supor que o raciocínio indutivo conduz pro-

vavelmente a conclusões verdadeiras. Não temos fundamentos para supor

que as coisas continuarão a comportar-se como no passado. Sim, acredito

que esta cadeira aguentará comigo da próxima vez que nela me sentar, que

esta caneta cairá quando a largar e que o Sol nascerá amanhã, como sempre

aconteceu. Mas, espantosamente, a verdade é que tenho tanta razão para su-

por que a cadeira se desmoronará, como para acreditar que a caneta se er-

guerá vagarosamente ou que amanhã de manhã um panda luminoso insuflá-

vel com milhões de quilómetros de largura se erguerá no horizonte.

A conclusão de Hume parece louca. Em condições normais, consideraría-

mos louca uma pessoa que acredita que um panda com milhões de quilóme-

tros de largura tomará o lugar do Sol. Mas se Hume tiver razão, esta crença

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"louca" não é menos razoável do que a nossa própria crença de que será o

Sol a erguer-se e não o panda. As previsões de um louco não são mais nem

menos razoáveis do que as dos maiores cientistas."Porém, funciona"

Pode ser tentador responder ao problema da indução de Hume notando

que o raciocínio indutivo tem tido um grande sucesso até agora. Baseando-

se no raciocínio indutivo os cientistas alcançaram coisas extraordinárias, des-

de as lâmpadas eléctricas e computadores, às viagens espaciais e à manipu-

lação genética. Todos estes feitos grandiosos da ciência e da engenharia de-pendem do raciocínio indutivo. Não é isto fundamento para supor que o raci-

ocínio indutivo é um método fidedigno para alcançarmos crenças verdadei-

ras?

A dificuldade com esta justificação da indução é uma vez mais que ela

própria é um raciocínio indutivo. Refere que o raciocínio indutivo tem sido ex-

tremamente bem-sucedido até hoje e conclui que continuará provavelmente

a ser bem-sucedido no futuro. Estamos outra vez a cair no problema da circu-

laridade: usar a indução para justificar a indução é como confiar no que diz

um anúncio porque o próprio anúncio garante ser de confiança.

Baseando-se em raciocínios indutivos os cientistas alcançaram resultados

estupendos. O Homem caminhou na Lua. Não mostra isto que a indução é fi-

dedigna?

Apelo à racionalidade

Dado que acreditamos que temos justificação para tirar conclusões acer-

ca do futuro e que as previsões dos grandes cientistas estão mais provavel-

mente próximas da verdade do que as de um louco, é espantoso que Hume

tenha aparentemente mostrado que tais crenças são irracionais.

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Os filósofos continuam de volta deste problema espinhoso. Alguns suge-

riram o seguinte. Como a palavra "racional" significa "raciocionar dedutiva ou

indutivamente", não precisamos de justificar a convicção "a indução é racio-nal", tal como não precisamos de o fazer em relação à crença de que nenhum

solteiro é casado ou de que todas as mães são mulheres. Estas proposições

são, se quisermos, analíticas ou "verdadeiras por definição".

Uma dificuldade com esta manobra é que, ao aceitarmos que "a indução

é racional" é "verdadeira por definição", estamos apenas a adiar o problema.

Hume pergunta-nos como podemos saber que a indução nos pode conduzirfidedignamente a crenças verdadeiras acerca do futuro. Insistir na ideia de

que a indução é racional porque é "verdadeira por definição" apenas faz le-

vantar a questão: e que fundamento temos para supor que "ser racional"

conduzirá fidedignamente a crenças verdadeiras acerca do futuro? Porquê

supor que "racionalidade" será um guia mais fidedigno para o futuro do que

as suposições de um louco?

O problema da indução levou alguns pensadores a procurarem formas

alternativas de estabelecer verdades científicas.

A teoria de Hume é assim tão radical?

Para aqueles que só há pouco tiveram contacto com a filosofia não é fácil

perceber quão radical é realmente a posição de Hume sobre a indução. A

conclusão a que ele chega não é, como pode parecer à primeira vista, que

não podemos estar completamente certos quanto ao que irá acontecer no

futuro. Todos podemos ver que há pelo menos alguma margem de erro nas

nossas previsões. A conclusão de Hume é que não temos fundamento para

supor que as coisas continuem a comportar-se como até agora se comporta-

ram. Se Hume tiver razão, a ciência é no seu todo uma actividade irracional e

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as previsões feitas pelos cientistas não são mais racionais do que as de um

louco.

Os "cientistas loucos" só existem na ficção, mas de acordo com Hume, oraciocínio indutivo usado por todos os cientistas é de certa maneira louco,

visto que não tem uma base racional.

Falsificacionismo

O filósofo Karl Popper oferece uma solução radical para o "problema da

indução" de Hume e para a nuvem de dúvida que este problema lança sobre

as teorias científicas. De acordo com Popper, a ciência não se baseia na indu-ção, progredindo em vez disso através da "falsificação" de teorias.

Eliminar o erro

Suponhamos que acredito que todos os gansos são brancos. Mas depois,

numa visita à Nova Zelândia, vejo um ganso negro. A minha observação de

que existe um ganso negro falsifica — quer dizer, torna falsa — a minha teoria

original de que todos os gansos são brancos.

Note-se que aqui o raciocínio é dedutivo e não indutivo. Observo que é

verdadeiro que existe um ganso não branco. A verdade desta afirmação im-

plica que a minha teoria "Todos os gansos são brancos." é falsa.

A perspectiva de Karl Popper é que a ciência, em vez de progredir atra-

vés de teorias que são confirmadas indutivamente, progride na verdade atra-

vés de teorias que são falsificadas por raciocínio dedutivo. Os cientistas cons-

troem teorias a partir das quais deduzem certas consequências que podem

ser submetidas a testes. As teorias que não são falsificadas pelos testes man-

têm-se, as que são falsificadas põem-se de parte, construindo-se no seu lugar

teorias que escapam a essa falsificação. Também estas são depois testadas e

aquelas que se mostram falsas, postas de parte, e assim sucessivamente.

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Note-se que, como a falsificação não envolve raciocínio indutivo, o problema

da indução de Hume é contornado. A concepção de Popper sobre o modo

como a ciência funciona em vez de resolver o problema da indução, evita-o.Encontrar boas teorias

A teoria de Popper não diz que são igualmente boas todas as teorias que

ainda não foram falsificadas. Algumas teorias são melhores do que outras. O

que faz uma teoria não falsificada ser preferível a outra é o facto de poder ser

mais facilmente falsificada. Mas o que faz uma teoria ser mais facilmente falsi-

ficada do que outra? Uma forma de uma teoria ser mais facilmente falsificadadeve-se à sua maior abrangência. Consideremos estas duas teorias acerca da

gravidade:

Todos os objectos caem em direcção ao centro da Terra. Em Londres to-

dos os objectos caem em direcção ao centro da Terra.

A primeira teoria é mais abrangente. Prevê tudo o que a segunda prevê e

prevê ainda muito mais. Sendo que prevê mais, é mais fácil de falsificar do

que a segunda teoria.

Uma teoria é também mais facilmente falsificada se fizer previsões mais

precisas. Consideremos a afirmação:

Todas as pessoas felizes usam cores brilhantes.

Trata-se de uma asserção bastante vaga. O que é exactamente a felicida-

de e como podemos medi-la? Onde está precisamente a fronteira entre ser

feliz e não o ser? O que se deve considerar brilhante? Estas e outras questões

levantam-se assim que resolvemos testar a afirmação. E é claro, dada a sua

vagueza, alguém que esteja interessado em defendê-la pode sempre fugir

ao que parece uma falsificação, dizendo "Bem, não era propriamente isso

que queria dizer com "brilhante"", ou "Esta pessoa não é propriamente al-

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guém que eu consideraria "feliz"". A vagueza faz uma afirmação ser muito

mais difícil de falsificar.

Uma teoria que faz previsões precisas e sem ambiguidades acerca de fe-nómenos quantificáveis e mensuráveis é muito mais fácil de falsificar. Por

exemplo, a teoria de que todas as pedras pesam precisamente 500g pode

ser facilmente falsificável com a ajuda de uma simples balança. Os instrumen-

tos de medida, como os manómetros ou os termómetros, fornecem aos cien-

tistas ferramentas eficazes para testar as suas teorias.

Karl Popper sobre a ciência genuínaDe acordo com Karl Popper, qualquer teoria científica genuína será falsifi-

cável. Quer dizer, haverá uma possível observação que poderá falsificá-la. Na

opinião de Popper, uma teoria verdadeiramente científica faz uma afirmação

positiva acerca do modo como o mundo funcionará. Corre o risco de ser falsa

— o mundo pode não funcionar como a teoria diz. As posições não falsificá-

veis não permitem fazer este tipo de afirmações, pois são compatíveis com

qualquer modo de ser do mundo, seja ele qual for. Por isso, carecem de qual-

quer conteúdo empírico. Por exemplo, dizer que "As esmeraldas são verdes

ou não são verdes" é uma afirmação não falsificável — o que quer que seja

que observemos será compatível com a sua verdade. Portanto, não é genui-

namente científica. Popper sugere que esta é a maneira de distinguir entre as

teorias que são genuinamente científicas e as que são apenas pseudocientífi-

cas. As teorias genuinamente científicas são falsificáveis. Teorias que dizem

ser científicas, mas que não são falsificáveis, são falsa ciência. De acordo com

Popper, nem a teoria da história de Marx, nem a teoria do inconsciente de

Freud podem ser sujeitas ao teste da falsificabilidade. Popper argumenta que

qualquer que sejam os contra-indícios que possamos recolher contra as teo-

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rias de Marx ou de Freud, há sempre uma maneira de a teoria se lhes acomo-

dar. Segundo Popper, estas teorias não são más teorias científicas. Não são

sequer teorias científicas.Evitar o "ad hoc"

Suponhamos que acredito que "toda a madeira arde". Faço então uma

encomenda de lenha e nenhum tronco arde. Esta observação falsifica a mi-

nha teoria de que toda a madeira arde. Como posso ripostar? Uma possibili-

dade seria emendar a minha teoria original para:

Toda a madeira arde excepto a que foi encomendada no último Domin-go.

Contrariamente à minha teoria original, esta nova teoria não pode ser fal-

sificada pela lenha recebida no Domingo. Mas os falsificacionistas não consi-

deram desejável este género de modificação.

Quanto mais falsificável melhor. Uma teoria não falsificável que faz previ-

sões precisas e mensuráveis é melhor do que uma que é vaga e confusa. Ins-

trumentos calibrados ajudam-nos a falsificar algumas teorias.

E a razão disso é que se trata de uma solução ad hoc (um termo do latim

que significa "para este propósito"). É inaceitável porque nada acrescenta à

teoria original em termos de consequências futuras testáveis — não posso, na

verdade, dispor de outra encomenda de lenha entregue no mesmo Domingo

de modo a fazer um teste.

Porém, nem todas as modificações são ad hoc. Suponhamos que observo

que a madeira que não arde está molhada. Posso testar amostras de madeira

seca e molhada para examinar se a minha nova hipótese é correcta.

Um exemplo concreto de um desses raciocínios ad hoc liga-se à teoria

de Aristóteles de que todos os corpos celestes são perfeitamente esféricos.

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Galileu desenvolveu um telescópio que mostrava a existência de montanhas

e vales na superfície lunar. Esta observação parecia falsificar a teoria de Aris-

tóteles, visto que parecia provar que pelo menos a Lua não era perfeitamenteesférica. Mas alguns tentaram defender a teoria de Aristóteles modificando-a

ligeiramente. Afirmaram que tem de existir uma substância invisível que pre-

encha os vales lunares até ao topo das montanhas. Portanto, a Lua é, afinal de

contas, esférica. Este desenvolvimento da teoria de Aristóteles foi ad hoc por-

que nada acrescentou a essa teoria em termos de possíveis consequências

que pudessem ser testadas. Ninguém podia fazer o que quer que fosse na al-tura para testar a existência ou não da dita substância invisível. De modo algo

sarcástico, Galileu afirmou então que essa substância realmente existia, só

que em cima das montanhas, fazendo com que a lua fosse ainda mais aci-

dentada do que parece.

Onde falha a falsificação

Uma dificuldade óbvia que se pode levantar ao falsificacionismo é a sua

aceitação da ideia de que não temos quaisquer justificação para supor qual-

quer teoria científica como verdadeira. Esta ideia é, no mínimo, altamente

contra-intuitiva. Não seria preferível se pudéssemos divisar outra solução

para o problema da indução, uma solução que nos permitisse evitar esta con-

clusão bizarra? É claro que, em resposta, o falsificacionista pode insistir que

não há uma solução melhor.

Outra dificuldade é que o falsificacionismo não fornece uma descrição

adequada do modo como a ciência progride ou deve progredir. Tomemos,

por exemplo, a teoria de Copérnico de que a Terra se move em redor do Sol.

Quando foi pela primeira vez proposta, os críticos apontavam duas observa-

ções que pareciam falsificar a teoria de Copérnico. Primeiro, se a Terra se

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move, um objecto que cai de uma torre alta devia cair fazendo um ângulo e

não a direito, pois se a Terra se move durante o período da queda, o objecto

devia cair a uma distância equivalente relativamente ao ponto exactamenteabaixo de foi largado. Porém, é claro que os objectos caídos de torres caem

sempre na vertical. Esta observação parece imediatamente falsificar a teoria

copernicana.

Segundo, se a Terra anda em volta do Sol, as estrelas fixas deviam ter um

movimento aparente para trás e para diante ao longo do nosso campo de vi-

são durante o período de um ano (do mesmo modo que se olhássemos di-rectamente para norte andando à volta de um poste de iluminação, as casas

ao longo da rua se moveriam para trás e para diante ao longo do nosso cam-

po de visão). Mas nenhum movimento desse género, a paralaxe, foi observa-

do. A não observação da paralaxe também parece falsificar a teoria coperni-

cana. Alguns tentaram defender a teoria copernicana insistindo que as estre-

las estão demasiado longe para que a paralaxe seja detectada pelos instru-

mentos da época (o que se mostrou ser verdade). Mas, é claro, foi um argu-

mento ad hoc. Não havia nesse tempo maneira de poder falsificar esta nova

ideia sobre a distância das estrelas fixas.

Apesar disso, a teoria de Copérnico não foi rejeitada e ainda bem. Os ci-

entistas provaram nos anos seguintes que Copérnico estava certo e que am-

bas as objecções eram infundadas. Uma vez que o falsificacionismo implica

que a teoria de Copérnico devia ter sido rejeitada, parece que o próprio falsi-

ficacionismo está errado, pois não consegue descrever correctamente o

modo como a ciência funciona.

Mesmo que o falsificacionismo não forneça uma descrição correcta do

modo como a ciência procede ou deve proceder, o teste da falsificação man-

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tém a sua importância. Muitos teorizadores que se afirmam "científicos" são

dificilmente falsificados porque não fazem previsões claras e sem ambiguida-

des. Como resultado, aconteça o que acontecer, podem sempre afirmar queas suas teorias não foram falsificadas. Os astrólogos, por exemplo, podem ha-

bitualmente sustentar que se mostrou que a sua previsão é verdadeira.

Stephen Law

Termos de utilização " Não reproduza sem citar a fonte

O problema das intuições

A relação entre teoria e observação

A filosofia baseia-se, em parte, em intuições. Os filósofos apresentam teo-

rias para dar resposta a problemas como a natureza da verdade, a relação en-

tre teorias e observação, e a justificação dos juízos morais. Estas teorias são

defendidas ou criticadas de acordo com a sua capacidade para captar intui-

ções associadas aos problemas em causa. Criticamos uma teoria filosófica

por meio de contra-exemplos, que pretendem mostrar que uma dada teoria

é falsa e cuja plausibilidade depende de intuições contrárias. A teoria tradici-

onal do conhecimento afirma que o conhecimento é crença verdadeira justifi-

cada. Esta teoria enfrenta o seguinte contra-exemplo: imagine que o Gilson

faz um passeio pelo campo e vê o que ele pensa ser uma ovelha. Passa aacreditar que há ovelhas no campo, pois viu o que parece ser uma ovelha —

esta crença é justificada. E de fato há ovelhas no campo — a sua crença tam-

bém é verdadeira. Agora suponha que o que o Gilson viu não foram ovelhas,

mas poodles brancos que, vistos de longe, parecem ovelhas — as verdadeiras

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ovelhas estavam escondidas atrás dos poodles. Nesse caso, ao contrário do

que prevê a teoria tradicional do conhecimento, parece intuitivamente óbvio

que o fato de o Gilson ter uma crença verdadeira justificada não é suficientepara afirmar que tem conhecimento. Contra-exemplos como este convence-

ram a generalidade dos filósofos de que a teoria tradicional do conhecimen-

to é falsa.

Uma conseqüência natural do uso de contra-exemplos é que as intuições

não são apenas indícios para pensar que uma teoria é verdadeira ou falsa,

mas também indícios para comparar teorias filosóficas rivais: uma teoria doconhecimento que está de acordo com as nossas intuições acerca do que é

conhecimento é melhor do que uma teoria do conhecimento que colide com

as nossas intuições acerca do que é o conhecimento. Portanto, os filósofos

apresentam as intuições como dados neutros que todos aceitamos para com-

parar as teorias.

É claro que um filósofo pode defender sua teoria mesmo diante de intui-

ções contrárias; mas para isso precisará de apresentar boas razões que expli-

quem por que as intuições contrárias estão equivocadas. Além disso, essas

razões devem basear-se em intuições igualmente fortes quanto às intuições

contrárias em questão.

O termo “intuição” pode ser enganador, pois é utilizado de maneira in-

discriminada na filosofia, para falar um pouco de tudo: de “palpites” a “cren-

ças de senso comum.” Para evitar confusões, há um quase consenso entre os

filósofos que investigam o papel das intuições na filosofia de que esses usos

do termo não devem ser confundidos com o uso das intuições entendidas

como indícios para avaliar as teorias, que é o uso do termo que nos interessa.

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O que são então as intuições? As intuições são realmente indícios da ver-

dade de uma teoria ou apenas ilusões psicológicas? O uso de intuições re-

quer algum tipo de faculdade mental particular? Se sim, de qual tipo? Comochegamos às intuições? Os filósofos ofereceram inúmeras respostas para es-

sas questões. Uma resposta promissora é que as intuições são crenças fortes

que, mesmo supondo todas as nossas crenças restantes, não temos razões in-

dependentes para pensar que estão erradas. O modo de chegar a essas

crenças não envolve qualquer método além da tradicional análise de concei-

tos e raciocínio intenso. É por isso que os filósofos não testam as suas teoriasnum laboratório, mas sentados em suas cadeiras — a filosofia é uma profissão

que se faz majoritariamente apenas com análise de conceitos e raciocínio in-

tenso.

Vários filósofos criticaram o uso das intuições enquanto indícios e a con-

cepção de filosofia associada a esse uso. Os empiristas radicais defendem

que somente as observações e experiências dos sentidos devem ser conside-

radas fontes indiciárias e, por isso, são céticos quanto ao uso das intuições.

Esse ceticismo empirista, contudo, é auto-refutante. O empirista conclui que

somente a observação e a experiência dos sentidos contam como indícios,

mas esta conclusão não é estabelecida pela observação e a experiência dos

sentidos e sim por meio de argumentos filosóficos, que por sua vez se basei-

am em intuições. Portanto, o empirista radical precisa utilizar intuições para

concluir que as intuições devem ser descartadas, o que é auto-refutante.

Talvez o maior desafio à prática de usar intuições na filosofia seja o movi-

mento da filosofia contemporânea denominado “filosofia experimental.”

Usando métodos da psicologia experimental e pesquisas de opinião, estes fi-

lósofos sustentam que a concepção tradicional do filósofo sentado na cadei-

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ra raciocinando intensamente está profundamente equivocada. Os filósofos

experimentais moderados criticam esta concepção de filosofia tradicional e

defendem que a pesquisa empírica deve complementar o uso dos indícios.Os filósofos experimentais radicais vão ainda mais longe e defendem que a

pesquisa empírica deve substituir inteiramente o uso das intuições. Este

abandono das intuições se justificaria porque inúmeros testes indicam que as

intuições das pessoas acerca de casos como o contra-exemplo à definição

tradicional de conhecimento variam de acordo com o pano de fundo sócio-

econômico e cultural. Portanto, as intuições não são dados objetivos paraavaliar e comparar teorias, mas apenas um resultado de elementos culturais

filosoficamente irrelevantes.

A posição do filósofo experimental radical enfrenta objeções difíceis de

responder. A principal é que a sua posição é incoerente, pois os próprios filó-

sofos experimentais usam intuições que não foram confirmadas a partir de

testes — por exemplo, dependem da intuição de que apenas as intuições que

foram testadas empiricamente são confiáveis. O filósofo experimental pode

responder aqui que apenas emprega os métodos da psicologia experimental

que têm demonstrado serem bem-sucedidos na psicologia. Mas esta respos-

ta também não funciona, pois depende da intuição não confirmada empirica-

mente de que os métodos que funcionam em psicologia funcionarão tam-

bém na filosofia. O filósofo experimental precisa apresentar argumentos con-

tra as intuições que não envolvam o uso de intuições, mas isso é impossível.

O empirista radical e o filósofo experimental não foram capazes de de-

monstrar que as intuições não são confiáveis. O que os ataques ao uso da in-

tuição conseguiram foi aumentar imenso a nossa compreensão do uso das

intuições, além de fornecerem novas questões: será que as intuições de pes-

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soas comuns acerca dos problemas de filosofia são as mesmas dos filósofos?

Se não são, quais são as diferenças? E se forem diferentes, são igualmente

confiáveis? Será que pesquisas de opinião ou questionários são meios ade-quados de determinar quais são as intuições das pessoas? De qualquer

modo, quaisquer que sejam as respostas para essas questões, o uso das in-

tuições continuará a ser um dos princípios metodológicos fundamentais de

todo o filósofo.

Leituras

• Bealer, G. (1992) “The Incoherence of Empiricism,” The Aristotelean So-ciety Supplementary 66, 99-138. Defende que o empirismo radical é auto-re-

futante, pois a sua argumentação envolve o uso de intuições na sua tentativa

de abandonar o uso de intuições ()

• DePaul, M. and Ramsey, W. (orgs.). (1997). Rethinking Intuition: The Psy-

chology of Intuition and Its Role in Philosophical Inquiry. Lanham, Maryland:

Rowman & Littlefield Publishers, Inc. Uma antologia sobre o uso das intuições

que inclui temas como a origem psicológica das intuições, além de críticas e

defesas ao seu uso ()

• Hintikka, J. (1999). “The Emperor's New Intuitions.” The Journal of Phi-

losophy 96.3: 127-147. Defende que o uso das intuições é um movimento re-

cente na filosofia e que devido à sua falta de justificação deve ser abandona-

do ()

• Kauppinen, A. (2007). “The Rise and Fall of Experimental Philosophy.”

Philosophical Explorations 10.2: 95-118. Argumenta que as pesquisas de opi-

nião conduzidas pelos filósofos experimentais são incapazes de determinar

quais são as intuições das pessoas, pois não distinguem intuições genuínas

de meras respostas instintivas influenciadas por fatores pragmáticos ()

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270

• Kornblith, H. (2007). “Naturalism and Intuitions.” Grazer Philosophische

Studien 74. Defende que alguns trabalhos empíricos de psicologia demons-

tram que a confiança tradicional nas intuições é equivocada e deve possuirum papel muito limitado na filosofia ()

• Knobe, J. & Nichols, S. (orgs.). (2008). Experimental Philosophy, New

York: Oxford University Press. Antologia de ensaios acerca da filosofia experi-

mental. A maior parte são ensaios de filosofia experimental focados em ética

e alguns ensaios de epistemologia ()

• Kripke, S. (1980) Naming and Necessity. Cambridge, MA: Harvard Uni-versity Press. Um clássico da filosofia contemporânea que demonstra de ma-

neira eloqüente a importância das intuições para as teorias filosóficas ()

Matheus Silva

Universidade Federal de Minas Gerais

Termos de utilização " Não reproduza sem citar a fonte

 A consciência: o eu, a pessoa, o cida-dão e o sujeito 

A teoria do conhecimento no seu todo realiza-se como reflexão do entendi-

mento e baseia-se num pressuposto fundamental: o de que somos seres raci-

onais conscientes.O que se entende por consciência?

A capacidade humana para conhecer, para saber que conhece e para sa-

ber o que sabe que conhece. A consciência é um conhecimento (das coisas e

de si) e um conhecimento desse conhecimento (reflexão).

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Do ponto de vista psicológico, a consciência é o sentimento de nossa

própria identidade: é o eu, um fluxo temporal de estados corporais e men-

tais, que retém o passado na memória, percebe o presente pela atenção eespera o futuro pela imaginação e pelo pensamento. O eu é o centro ou a

unidade de todos esses estados psíquicos.

A consciência psicológica ou o eu é formada por nossas vivências, isto é,

pela maneira como sentimos e compreendemos o que se passa em nosso

corpo e no mundo que nos rodeia, assim como o que se passa em nosso in-

terior. É a maneira individual e própria com que cada um de nós percebe,imagina, lembra, opina, deseja, age, ama e odeia, sente prazer e dor, toma

posição diante das coisas e dos outros, decide, sente-se feliz ou infeliz.

Do ponto de vista ético e moral, a consciência é a espontaneidade livre e

racional, para escolher, deliberar e agir conforme à liberdade, aos direitos

alheios e ao dever. É a pessoa, dotada de vontade livre e de responsabilida-

de. É a capacidade para compreender e interpretar sua situação e sua condi-

ção (física, mental, social, cultural, histórica), viver na companhia dos outros

segundo as normas e os valores morais definidos por sua sociedade, agir

tendo em vista fins escolhidos por deliberação e decisão, realizar as virtudes

e, quando necessário, contrapor-se e opor-se aos valores estabelecidos em

nome de outros, considerados mais adequados à liberdade e à responsabili-

dade.

Do ponto de vista político, a consciência é o cidadão, isto é, tanto o indi-

víduo situado no tecido das relações sociais, como portador de direitos e de-

veres, relacionando-se com a esfera pública do poder e das leis, quanto o

membro de uma classe social, definido por sua situação e posição nessa clas-

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se, portador e defensor de interesses específicos de seu grupo ou de sua

classe, relacionando-se com a esfera pública do poder e das leis.

A consciência moral (a pessoa) e a consciência política (o cidadão) for-mam-se pelas relações entre as vivências doeu e os valores e as instituições

de sua sociedade ou de sua cultura. São as maneiras pelas quais nos relacio-

namos com os outros por meio de comportamentos e de práticas determina-

dos pelos códigos morais (que definem deveres, obrigações, virtudes) e polí-

ticos (que definem direitos, deveres e instituições coletivas públicas), a partir

do modo como uma cultura e uma sociedade determinadas definem o beme o mal, o justo e o injusto, o legítimo e o ilegítimo, o legal e o ilegal, o priva-

do e o público. O eu é uma vivência e uma experiência que se realiza por

comportamentos; a pessoa e o cidadão são a consciência como agente (mo-

ral e político), como práxis.

Do ponto de vista da teoria do conhecimento, a consciência é uma ativi-

dade sensível e intelectual dotada do poder de análise, síntese e representa-

ção. É o sujeito. Reconhece-se como diferente dos objetos, cria e descobre

significações, institui sentidos, elabora conceitos, idéias, juízos e teorias. É do-

tado de capacidade para conhecer-se a si mesmo no ato do conhecimento,

ou seja, é capaz de reflexão. É saber de si e saber sobre o mundo, manifes-

tando-se como sujeito percebedor, imaginante, memorioso, falante e pen-

sante. É o entendimento propriamente dito.

A consciência reflexiva ou o sujeito do conhecimentoforma-se como ativi-

dade de análise e síntese, de representação e de significação voltadas para a

explicação, descrição e interpretação da realidade e das outras três esferas

da vida consciente (vida psíquica, moral e política), isto é, da posição do

mundo natural e cultural e de si mesma como objetos de conhecimento.

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Apóia-se em métodos de conhecer e busca a verdade ou o verdadeiro. É o

aspecto intelectual e teórico da consciência.

Ao contrário do eu, o sujeito do conhecimento não é uma vivência indivi-dual, mas aspira à universalidade, ou seja, à capacidade de conhecimento

que seja idêntica em todos os seres humanos e com validade para todos os

seres humanos, em todos os tempos e lugares. Assim, por exemplo, João

pode gostar de geometria e Paula pode detestar essa matéria, mas o que

ambos sentem não afetam os conceitos geométricos, nem os procedimentos

matemáticos, cujo sentido e valor independem das vivências de ambos e sãoo objeto construído ou descoberto pelo sujeito do conhecimento.

Maria pode não saber que existe a física quântica e pode, ao ser informa-

da sobre ela, não acreditar nela e não gostar da idéia de que seu corpo seja

apenas movimento infinito de partículas invisíveis. Isso, porém, não afeta a

validade e o sentido da ciência quântica, descoberta e conhecida pelo sujei-

to. Luíza tem lembranças agradáveis quando vê rosas amarelas; Antônio, po-

rém, tem péssimas lembranças quando as vê. Porém, ver flores e cores, per-

ceber qualidades, sentilas afetivamente não depende de que queiramos ou

não vê-las, como não depende do nosso eupercebê-las espacialmente ou

temporalmente. A percepção de cores, de seres espaciais e temporais se rea-

liza em mim não apenas segundo minhas vivências psicológicas individuais,

mas também segundo leis, normas, princípios de estruturação e organização

das coisas, que são as mesmas para todos os sujeitos percebedores. É com

essa estruturação e organização que lida o sujeito. A vivência é singular (mi-

nha). O conhecimento é universal (nosso, de todos os humanos).

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Eu, pessoa, cidadão e sujeito constituem a consciência como subjetivida-

de ativa, sede da razão e do pensamento, capaz de identidade consigo mes-

ma, virtude, direitos e verdade.Subjetividade e graus de consciência

Embora a subjetividade se manifeste plenamente como uma atividade

que sabe de si mesma, isso não significa que a consciência esteja sempre

alerta e atenta. Quando, por exemplo, recebemos uma anestesia geral, va-

mos perdendo gradualmente a consciência, deixamos de ter consciência de

ver, sentir, lembrar. Dependendo da intensidade da dose aplicada, podemosperder todas as formas de consciência menos, por exemplo, a auditiva. No

entanto, mesmo a consciência auditiva, nessa situação, é fluida, não parece

estar referida a um eu. Quando despertamos à noite, de um sono profundo e

num local que não é nosso quarto, levamos um certo tempo até sabermos

quem somos e onde estamos.

Quando devaneamos ou divagamos, ou sonhamos de olhos abertos, per-

demos a consciência de tudo quanto está à nossa volta e, muitas vezes, quan-

do “voltamos a nós”, temos um braço ou uma perna adormecidos, uma quei-

madura na mão, o rosto queimado de sol ou o corpo molhado de chuva sem

que tivéssemos consciência do que se passava conosco. Situações como es-

sas indicam que há graus de consciência.

De um modo geral, distinguem-se os seguintes graus de consciência:

? consciência passiva: aquela na qual temos uma vaga e uma confusa

percepção de nós mesmos e do que se passa à nossa volta, como no deva-

neio, no momento que precede o sono ou o despertar, na anestesia e, sobre-

tudo, quando somos muito crianças ou muito idosos;

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? consciência vivida, mas não reflexiva: é nossa consciência efetiva, que

tem a peculiaridade de seregocêntrica, isto é, de perceber os outros e as coi-

sas apenas a partir de nossos sentimentos com relação a eles, como, porexemplo, a criança que bate numa mesa ao tropeçar nela, julgando que a

mesa “fez de propósito” para machucá-la. Nesse grau de consciência, não

conseguimos separar o eu e o outro, o eu e as coisas. É típico, por exemplo,

das pessoas apaixonadas, para as quais o mundo só existe a partir dos seus

sentimentos de amor, ódio, cólera, alegria, tristeza, etc.;

? consciência ativa e reflexiva: aquela que reconhece a diferença entre ointerior e o exterior, entre si e os outros, entre si e as coisas. Esse grau de

consciência é o que permite a existência da consciência em suas quatro mo-

dalidades, isto é, eu, pessoa, cidadão e sujeito.

Esse último grau de consciência, nas suas quatro modalidades, é definido

pela fenomenologia comoconsciência intencional ou intencionalidade, isto é,

como “consciência de”. Toda a consciência, diz a fenomenologia, é sempre

consciência de alguma coisa, visa sempre a alguma coisa, de tal maneira que

perceber é sempre perceber alguma coisa, imaginar é sempre imaginar algu-

ma coisa, lembrar é sempre lembrar alguma coisa, dizer é sempre dizer algu-

ma coisa, pensar é sempre pensar alguma coisa. A consciência realiza atos

(perceber, lembrar, imaginar, falar, refletir, pensar) e visa a conteúdos ou sig-

nificações (o percebido, o lembrado, o imaginado, o falado, o refletido, o

pensado). O sujeito do conhecimento é aquele que reflete sobre as relações

entre atos e significações e conhece a estrutura formada por eles (a percep-

ção, a imaginação, a memória, a linguagem, o pensamento).

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 A utopia de Gadamer

Richard Rorty

Folha de S.Paulo, 13 de fevereiro de 2000

O pensamento de Hans-Georg Gadamer, que completou cem anos na úl-

tima sexta-feira, oferece uma saída às rivalidades filosóficas a respeito da ver-

dade

Num ensaio chamado "Filosofia ou Teoria da Ciência?", Hans-Georg Gada-

mer indaga se "em algum sentido ainda pode haver filosofia a não ser no

sentido da teoria da ciência" ("Razão na Era da Ciência"). Sua própria respos-

ta a essa questão é afirmativa, obviamente. Costuma-se pensar que a chama-

da tradição "analítica" na filosofia -a tradição que remonta a Frege e Russell e

cujos representantes vivos mais proeminentes são Quine, Davidson, Dum-

mett e Putnam- retrucaria uma resposta negativa. Isso porque se costuma jul-

gar essa tradição como uma espécie de órgão de relações públicas das ciên-

cias naturais. Quem pensa em filosofia analítica dessa maneira costuma des-

crever a própria obra de Gadamer como uma espécie de apologia das ciên-

cias do espírito. Sob esse ponto de vista, cada uma das "duas culturas", assim

batizadas por C.P. Snow, tem seus adeptos filosóficos. Aqueles que aceitam o

retrato da cena intelectual pintado por Snow julgam que a disputa entre ciên-

cia e religião -disputa que dividiu os intelectuais no século 19- evoluiu para adisputa contemporânea entre aqueles que nós, californianos, chamamos "os

tecnos" e "os obscuros". Esse retrato cru e simplificado das tensões no interi-

or da filosofia contemporânea não é de todo equivocado. Mas uma exposi-

ção mais detalhada da história da filosofia no século 20 distinguiria entre

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uma primeira fase cientificista da filosofia analítica e uma segunda fase, antici-

entificista. Entre 1900 e 1960, a maioria dos admiradores de Frege teria con-

cordado com o dito de Quine de que "a filosofia da ciência é filosofia o bas-tante". Mas sobreveio uma mudança na filosofia analítica por volta da época

em que os filósofos começaram a ler as "Investigações Filosóficas" de Ludwig

Wittgenstein lado a lado com "A Estrutura das Revoluções Científicas", de

Thomas Kuhn. Desde então, mais e mais filósofos analíticos têm dado razão a

Putnam, para quem "parte do problema com a filosofia atual é um cientificis-

mo herdado do século 19". Putnam nos incita a abandonar a idéia de que aciência natural possui um "método" insigne, um método que torna a física um

melhor paradigma de racionalidade que, por exemplo, a historiografia ou a

 jurisprudência. Ele é secundado nesse apelo por filósofos da física como

Arthur Fine, que nos convida a abandonar a suposição de que a ciência natu-

ral "é especial, e que o pensamento científico é diverso dos demais". Putnam

e Fine ridicularizam a idéia de que o discurso da física tenha de algum modo

maior contato com a realidade que qualquer outra parcela da cultura. A filo-

sofia da linguagem pós-wittgensteiniana de língua inglesa, do tipo encontra-

do em Putnam, Davidson e Brandom, tem colaborado com a filosofia da ciên-

cia pós-kuhniana de língua inglesa, do tipo encontrado em Latour, Hacking e

Fine. O resultado dessa colaboração tem sido borrar as fronteiras entre as ci-

ências natural e do espírito -uma tentativa de fazer com que a controvérsia

"tecnos versus obscuros" de Snow pareça tão exótica quanto o debate oito-

centista sobre a idade da Terra.  

### Essências e acidentes

Isso não quer dizer que o cientificismo esteja morto. Há muitos filósofos analí-

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ticos de envergadura, em particular seguidores de Kripke, como David Lewis

e Frank Jackson, que são inabaláveis metafísicos fisicalistas. Eles se julgam

herdeiros da batalha contra o contra-senso mistificador que Thomas Huxleymoveu contra o bispo Wilberforce, Russell contra Bergson e Carnap contra

Heidegger. Esse filósofos ainda conferem um status ontológico especial às

partículas elementares descobertas pelos físicos. Eles acreditam que a ciên-

cia natural nos dá essências e necessidades que são, como dizem, "de re", e

não "de dicto". Eles julgam que os filósofos da linguagem wittgensteinianos

são perigosamente irracionalistas quando dizem que toda a distinção entreessências e acidentes, ou entre necessidades e contingências, são artefatos

que mudam à medida que muda nossa escolha de descrição. Eles acham

que os filósofos da ciência estão igualmente enganados ao recusarem à ciên-

cia natural qualquer privilégio metafísico ou epistemológico. 

Essa disputa para saber se a ciência natural é especial hoje domina a filosofia

analítica. Nestes meus comentários, pretendo sugerir que uma frase bastante

citada e bastante discutida de Gadamer talvez sirva de lema para aqueles fi-

lósofos da linguagem e da ciência que seguem Putnam e Fine em vez de

Kripke e Lewis. A frase é: "O ser que pode ser compreendido é linguagem".

Essa afirmação engloba, segundo meu argumento, tanto o que era verdadei-

ro no nominalismo quanto o que era verdadeiro no idealismo. 

Defino "nominalismo" como a doutrina de que todas as essências são nomi-

nais e todas as necessidades, "de dicto". Isso equivale a dizer que nenhuma

descrição de um objeto é mais verdadeira à natureza desse objeto do que

qualquer outra. Os nominalistas julgam que a metáfora de Platão sobre trin-

char a natureza nas juntas deveria ser abandonada de uma vez por todas.

Adeptos do nominalismo costumam ser descritos como "idealistas linguísti-

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cos" pelos metafísicos materialistas. Isso porque esses últimos acreditam que

Dalton e Mendeleiev de fato trincharam a natureza nas juntas. Dessa perspec-

tiva kripkiana, os wittgensteinianos são tão ébrios de palavras que perderamcontato com o mundo real, o mundo que a ciência moderna nos franqueou.

Filósofos desse tipo aceitam o relato da história da filosofia que Gadamer re-

sumiu ao escrever: "O pronto colapso do império hegeliano do espírito ab-

soluto confirma enfaticamente o fim da metafísica, ou seja, a ascensão das ci-

ências experimentais a uma posição de vanguarda no reino do espírito pen-

sante" ("Razão na Era..."). 

O nominalismo, contudo, é um protesto contra qualquer tipo de metafísica. É

certo que ele foi equivocadamente associado ao materialismo por Hobbes e

outros filósofos do início da época moderna e ainda hoje é assim associado

por Quine. Mas esses pensadores se contradizem ao sustentar que palavras

cuja referência são as menores partes da matéria trincham a natureza nas jun-

tas de um modo que outras palavras não fazem. Um nominalista coerente in-

sistirá que o sucesso profético e explicativo de um vocabulário corpuscular

não tem respaldo em seu status ontológico e que a própria idéia de "status

ontológico" deve ser abandonada. 

Isso significa que um nominalista coerente não pode endossar uma organiza-

ção hierárquica do reino da mente pensante que corresponda, como os qua-

dros organizacionais de Platão, a uma hierarquia ontológica. As lutas pela pri-

mazia entre metafísica e física, ou entre "tecnos" e "obscuros", parecem ridí-

culas de uma perspectiva nominalista. E assim também a distinção de Hei-

degger entre metafísica e pensamento ("Denken"), ou ainda sua afirmação

de que "no fim, a tarefa da filosofia é conservar a força das palavras mais ele-

mentares" ("Sein und Zeit").  

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Para um nominalista, palavras como "physis" ou "essência" não são mais "ele-

mentares" ou "primordiais" que palavras como "berinjela" e "beisebol". As

palavras mais sonoras não possuem privilégio filosófico sobre os mais crusneologismos, e nem as partículas elementares sobre os últimos artefatos hu-

manos. Para defender minha sugestão de que o nominalismo é melhor resu-

mido pela doutrina de Gadamer segundo a qual só a linguagem pode ser

compreendida, exponho a objeção óbvia a esse argumento. Os "tecnos" são

rápidos em protestar que o paradigma do aumento da compreensão remon-

ta à apreensão da natureza do universo físico nas ciências modernas -um uni-verso que não é linguagem. A réplica nominalista a tal objeção é: nós nunca

compreendemos nada exceto sob uma descrição, e não há descrições privi-

legiadas. Não há como desviar de nossa linguagem descritiva para alcançar o

objeto tal como é em si mesmo -não porque nossas faculdades sejam limita-

das, mas porque a distinção entre "para nós" e "em si mesmo" é uma relíquia

de um vocabulário metafísico, que sobreviveu à sua utilidade. Devemos inter-

pretar a expressão "compreender um objeto" como uma forma equivocada

de descrever nossa capacidade de relacionar velhas descrições com outras

novas. Ela é equivocada porque sugere, como faz a teoria da verdade como

correspondência, que as palavras podem ser confrontadas com não-palavras,

a fim de descobrir quais palavras são adequadas ao mundo.  

### Novos e velhos predicados

Segundo os nominalistas, o progresso feito pela ciência moderna consiste

em formular novas descrições do universo físico e então fundir os horizontes

desses novos discursos com aqueles do senso comum e de antigas teorias ci-

entíficas. Em termos mais gerais, compreender algo melhor é ter mais a dizer

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sobre ele, é ser capaz de reunir as várias coisas ditas antes de uma maneira

nova e perspicaz. O que os metafísicos chamam aproximar-se da verdadeira

natureza de um objeto, os nominalistas chamam inventar um discurso emque novos predicados são atribuídos à coisa previamente identificada por

velhos predicados -e então fazer com que esses novos atributos se harmoni-

zem com os antigos de modo a darem conta do fenômeno. Ou, nos termos

hegelianos de Robert Brandom: compreender a natureza de um objeto é ser

capaz de recapitular a história do conceito desse objeto. Essa história, por

sua vez, é simplesmente a história dos usos das várias palavras empregadaspara descrever o objeto. A tese central do idealismo é que a verdade é deter-

minada pela coerência em vez da correspondência à natureza intrínseca do

objeto. Essa doutrina sugere, embora não imponha, a tese do nominalismo:

que devemos substituir a noção de "natureza intrínseca" pela de "descrição

identificadora". Pois as noções de essência real e verdade-como-correspon-

dência mantêm-se de pé ou vêm abaixo juntas. O lema de Gadamer nos for-

nece uma forma de varrer ambas do caminho. De fato, esse lema não é uma

descoberta metafísica sobre a natureza do ser. É uma redescrição do proces-

so que chamamos "aumentar nossa compreensão". Dos gregos até nós, esse

processo foi descrito geralmente com a ajuda de metáforas falocêntricas de

profundidade. Quanto mais profunda e penetrante nossa compreensão de

algo, assim dizem, mais afastados estamos da aparência e mais perto da rea-

lidade. Adotar o lema de Gadamer tem como efeito substituir essas metáfo-

ras de profundidade por metáforas de amplitude: quanto mais descrições es-

tiverem disponíveis e quanto maior a integração entre elas, melhor nossa

compreensão do objeto identificado por qualquer dessas descrições.  

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### A matéria e a missa 

Nas ciências naturais, o exemplo óbvio dessa melhor compreensão é a inte-

gração de um vocabulário macroscópico a outro microscópico. Mas a dife-rença entre esses dois conjuntos de descrições não tem maior significado on-

tológico ou epistemológico que entre uma descrição da missa nos termos da

teologia católica ortodoxa e uma descrição nos termos da antropologia com-

parada. Em nenhum dos casos há profundidade maior ou maior aproximação

à realidade. Mas em ambos há aumento de compreensão. Compreendemos

melhor a matéria após os corpúsculos de Hobbes serem suplementados pe-los átomos de Dalton, e então pelos de Bohr. Compreendemos melhor a mis-

sa depois de Frazer; e melhor ainda depois de Freud. Mas, se seguirmos as

implicações do lema de Gadamer, resistiremos à tentação de dizer que agora

compreendemos o que a matéria ou a missa realmente é. Devemos ser cau-

telosos para não explicar a distinção entre maior e menor compreensão com

a ajuda de uma distinção entre aparência e realidade. 

### Véu das aparências

A última distinção tem um uso legítimo, não-filosófico, para descrever as per-

pétuas ilusões, a chicana financeira, a propaganda governamental, a publici-

dade enganosa e assim por diante. Mas o progresso intelectual é apenas

ocasionalmente uma questão de detectar ilusões ou mentiras. A distinção

aparência-realidade não é mais apropriada para descrever os avanços feitos

entre Priestley e Bohr do que os avanços feitos em nossa compreensão da

"Ilíada". Gabamo-nos de nossa capacidade de fundir as próprias descrições

de Homero de seus poemas com aquelas usadas por Platão, Virgílio, Alexan-

der Pope, pelos filólogos do século 19 e pelas feministas acadêmicas do sé-

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culo 20. Mas não dizemos, nem deveríamos, que penetramos o véu das apa-

rências que originalmente nos separava da natureza intrínseca do poema. O

poema não tem uma tal natureza, e a matéria tampouco. 

O debate "tecnos versus obscuros", tal como o debate religioso do século

19, é uma disputa sobre qual área da cultura fornece um relato preciso de

como as coisas "realmente" são. Mas, à medida que o século 20 avançava,

propostas para a coexistência pacífica entre religião e ciência proliferaram, e

o debate sobre os respectivos méritos das duas começou a parecer pueril.

Com sorte, o debate entre "tecnos" e "obscuros" irá dissipar-se da mes-ma maneira no curso dos próximos cem ou 200 anos. Pois a tentativa de en-

contrar uma diferença filosoficamente interessante entre "tecnos" e "obscu-

ros" foi um sintoma da tentativa de preservar uma certa imagem da relação

entre linguagem e entidades não-humanas. Essa é a imagem que os nomina-

listas wittgensteinianos e os filósofos da ciência kuhnianos estão ajudando a

abandonar. Se eles tiverem êxito, não acharemos mais paradoxal afirmar que

"o ser que pode ser compreendido é linguagem". Esse lema será tomado

como um lugar-comum do que seja compreensão, e não como uma tentativa

arquitetada para melhorar a imagem das ciências do espírito.

Joio e trigo

Gadamer já foi muitas vezes acusado de inventar uma variante linguística do

idealismo. Mas, como sugeri antes, devemos tomá-lo com alguém que guar-

dou o trigo do idealismo e jogou fora o joio metafísico. O idealismo só pas-

sou a ser malvisto porque custou a abandonar a distinção aparência-realida-

de. Uma vez posta de lado essa distinção, idealismo e nominalismo tornam-

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se dois nomes de uma mesma posição filosófica. Os efeitos colaterais dessa

distinção podem ser vistos em Berkeley. Tendo dito que "nada pode ser

como uma idéia exceto uma idéia", Berkeley inferiu que somente idéias ementes são verdadeiras. O que deveríamos ter dito era que somente uma

sentença pode ser relevante para a verdade de outra sentença, uma tese no-

minalista que é livre de implicações metafísicas. A metafísica de Berkeley é

um resultado típico da idéia de que pensamentos ou sentenças se acham de

um lado do abismo e são verdadeiras apenas se se relacionarem com algo

que esteja do outro lado do abismo. Essa imagem cativou Berkeley e levou-oa concluir que aquilo que se achava do outro lado era homogêneo ao que se

achava deste lado, que a realidade era de alguma forma mental ou espiritual

em sua natureza. Idealistas posteriores, como Hegel e Royce, recaíram nesse

erro ao definir a realidade como conhecimento perfeito ou perfeita auto-

consciência. Essa também foi uma tentativa de tornar o abismo transitável, fa-

zendo com que nossa situação epistêmica atual fosse análoga à situação

epistêmica ideal, com que nossa própria rede de estados mentais fosse aná-

loga à de Deus. Mas esse tipo de especulação panteísta deixou o idealismo

vulnerável ao cientificismo, ao justificado desdém daqueles para quem a tese

de que só o mental é real não passa de uma "reductio ad absurdum" da me-

tafísica. E assim é, porém não mais do que a tese de que só o material é real.

Ir além da metafísica é deixar de se perguntar o que é ou não é real.

 A virada linguística

Nossa capacidade de voltar as costas a essa pergunta aumentou quando de-

mos aquilo que Gustav Bergman chamou a "virada linguística", virada essa

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dada quase simultaneamente por Frege e Peirce. Isso porque tal guinada

possibilitou a positivistas lógicos como Ayer retirar o que havia de metafísica

na teoria da verdade como correspondência. Eles nos incitaram a parar de fa-lar sobre como cruzar o abismo que separava o sujeito do objeto e falar em

vez disso sobre como as asserções de sentenças se justificam. Os positivistas

viram que, tão logo substituímos linguagem por "experiência" ou "idéias" ou

"consciência", não podemos mais reconstruir a tese de Locke segundo a qual

as idéias de qualidades primárias têm alguma espécie de relação mais próxi-

ma à realidade que as idéias de qualidades secundárias. Mas foi precisamen-te essa tese que a revolta kripkiana contra Wittgenstein exumou. Ao fazê-lo,

os kripkianos estavam proclamando que a virada linguística fora uma idéia

ruim, idealista. O atual debate entre os kripkianos e seus colegas, os filósofos

analíticos, é uma forma de dar seguimento ao antigo debate sobre o que ha-

via de verdadeiro no idealismo. Um modo mais frutífero, porém, de abordar

esse debate talvez seja aceitar uma sugestão de Heidegger.

Metáforas falocêntricas

Heidegger via a série de grandes metafísicos, de Platão a Nietzsche, como

aficionados por controle: pessoas convictas de que o pensamento nos faria

alcançar o domínio. De acordo com Heidegger, as metáforas falocêntricas

dos nominalistas sobre a profundidade e a penetração são expressões do

desejo de tomar posse da cidadela do universo. A idéia de se tornar idêntico

ao objeto do conhecimento, de representá-lo como ele realmente é em si

mesmo, exprime o desejo de adquirir o poder do objeto.

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O cientificismo do século 19 zombava da religião e da filosofia idealista

porque a ciência natural oferecia uma espécie de controle que seus rivais não

podiam oferecer. Esse movimento via a religião como uma tentativa frustradade obter controle, via o idealismo alemão como uma tentativa escapista, ilu-

sória, de negar a necessidade de controle. A capacidade de a ciência natural

predizer os fenômenos e fornecer a tecnologia para produzir fenômenos de-

sejados mostrou que só essa área da cultura oferecia verdadeira compreen-

são, porque só ela oferecia controle efetivo.

O ponto forte dessa linha de pensamento cientificista é que, embora acompreensão seja sempre de objetos sob uma descrição, os poderes causais

que os objetos têm de nos ferir ou nos ajudar não são afetados pelo modo

como são descritos. Ficamos doentes e morremos, não importa como des-

crevemos a doença e a morte. Os cientistas cristãos, infelizmente, estão erra-

dos. O ponto fraco do cientificismo é inferir, do fato de que um certo vocabu-

lário descritivo nos permite predizer e utilizar os poderes causais dos objetos,

a afirmação de que esse vocabulário oferece uma melhor compreensão des-

ses objetos que qualquer outro. Esse "non sequitur" ainda hoje é explorado

pelos kripkianos. Que isso seja visto ou não como um "non sequitur" depen-

de da predisposição de a pessoa redescrever a compreensão do modo

como Gadamer sugeriu.

Linguagem do presente

Para seguir a redescrição de Gadamer, teríamos de abandonar a idéia de um

termo natural ao processo de compreender -seja a matéria, seja a missa, seja

a "Ilíada", seja todo o resto-, um nível em que cavamos tão fundo que nossa

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pá entorta. Pois não há limite à imaginação humana -à nossa capacidade de

redescrever um objeto e, portanto, recontextualizá-lo. Um vocabulário descri-

tivo é um modo de relacionar um objeto a outros objetos, de pô-lo num novocontexto. Não há limite ao número de relações que a linguagem pode apre-

ender, nem de contextos que os vocabulários descritivos podem criar. En-

quanto o metafísico perguntará se as relações expressas num vocabulário re-

almente existem, o gadameriano perguntará apenas se elas podem ser entre-

laçadas a relações apreendidas por vocabulários anteriores de forma útil.

Mas, tão logo se usa um termo como "útil", aqueles que acreditam em essên-cias reais e na verdade como correspondência perguntarão: "Útil segundo

que critério?". Pensar que tal busca por critérios está sempre em jogo é ima-

ginar que a linguagem do futuro devia ser uma ferramenta nas mãos da lin-

guagem do presente. É tornar-se um aficionado por controle, alguém que

pensa poder abreviar a história encontrando algo que se ache por trás dela.

É acreditar que podemos agora, no presente, construir um sistema de arqui-

vamento que terá um escaninho apropriado para tudo quanto possa surgir

no futuro. Aqueles que ainda esperam um tal sistema de arquivamento sele-

cionarão alguma área específica da cultura -filosofia, ciência, religião, arte- e

lhe atribuirão "o primeiro posto no reino da mente pensante". Mas aqueles

que seguem Gadamer -e também os que seguem Habermas- deixarão de

lado esse projeto hierárquico. Eles o substituirão pela idéia de uma conversa-

ção livre de injunções ("herrschaftsfrei"), que nunca poderá chegar ao termo

e na qual as barreiras entre as disciplinas acadêmicas são tão permeáveis

quanto aquelas entre épocas históricas. Tais pessoas esperam uma cultura

em que as lutas por poder entre bispos e biólogos -ou poetas e filósofos, ou

"tecnos" e "obscuros"- sejam tratadas simplesmente como lutas pelo poder.

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Rivalidades como essas sem dúvida sempre existirão, simplesmente porque

Hegel estava certo ao dizer que apenas um "agon" dialético produzirá a novi-

dade. Mas, numa cultura que tome a peito o lema de Gadamer, tais rivalida-des não seriam pensadas como controvérsias sobre quem está em contato

com a realidade e quem ainda está atrás do véu de aparências. Elas seriam

lutas para captar a imaginação, para fazer com que outras pessoas usem seu

vocabulário. Uma cultura desse tipo parecerá aos metafísicos materialistas

uma cultura em que os "obscuros" levaram a melhor, uma cultura em que a

poesia e a imaginação por fim triunfaram sobre a filosofia e a razão. Esse pe-queno sermão sobre um texto gadameriano que eu venho lhes dando prova-

velmente parecerá a eles outro exercício de relações públicas em prol das ci-

ências do espírito. Concluo dizendo por que penso não ser essa a maneira

correta de ver a questão. Em primeiro lugar, uma cultura gadameriana não te-

ria uso para faculdades chamadas "razão" ou "imaginação", faculdades con-

cebidas como tendo alguma relação especial com a realidade. Quando falo

de "captar a imaginação", refiro-me a nada mais que "ser apanhado e usado".

Em segundo lugar, uma cultura gadameriana reconheceria que o sistema de

arquivamento de qualquer pessoa há de ter um escaninho em que enfiar o

sistema de todas as outras. Toda área da cultura teria sua própria descrição

das demais áreas da cultura, mas ninguém perguntará qual dessas descri-

ções entende corretamente aquela área. O importante é que ela será "herrs-

chaftsfrei"; não haverá um sistema de arquivamento superior, a que todos de-

vam submeter-se. Meu sermão sobre o texto "O ser que pode ser compreen-

dido é linguagem" obviamente não foi dado como um relato da essência real

do pensamento de Gadamer. Antes, é dado como uma sugestão sobre como

alguns horizontes a mais podem ser fundidos. Tentei sugerir como a própria

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descrição de Gadamer sobre a evolução do pensamento filosófico recente

pode ser integrada com algumas descrições alternativas que agora estão em

voga entre os filósofos analíticos. Eu creio e espero, porém, que uma vez ter-minado mais outro século, a distinção que acabei de empregar -a distinção

entre filosofia analítica e não-analítica- parecerá insignificante para os histori-

adores da filosofia. Filósofos no ano 2100, creio eu, lerão Gadamer e Putnam,

Kuhn e Heidegger, Davidson e Derrida, Habermas e Vattimo lado a lado. Se o

fizerem, será porque terão enfim abandonado o modelo cientificista voltado

à solução de problemas da atividade filosófica com que Kant onerou nossadisciplina. Eles o terão substituído por um modelo de conversação, um mo-

delo em que o sucesso filosófico é medido por horizontes fundidos, e não

por problemas solucionados ou mesmo problemas dissecados. Nessa utopia

filosófica, o historiador da filosofia não escolherá seu vocabulário descritivo

com um olho na distinção entre os problemas reais e permanentes da filoso-

fia e os problemas aparentes e transitórios. Antes, ele escolherá um vocabulá-

rio que o capacitará a descrever o máximo possível de figuras passadas

como interlocutores numa única conversação coerente.

Plenitude da conversa

Gadamer uma vez descreveu o processo de fusão de horizontes como o que

acontece quando "o horizonte próprio do intérprete é determinante, mas

não como um ponto de vista ao qual a pessoa se apega ou pelo qual se im-

põe, senão como uma opinião e uma possibilidade posta em jogo e que lhe

ajuda a apropriar-se daquilo que vem dito no texto" ("Wahrheit und Metho-

de", 4ª ed., pág. 366). Em seguida, ele descreve esse processo como "a pleni-

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tude da conversa ("Gespräch'), na qual ganha expressão uma coisa ("Sache')

que não é só de interesse meu ou do meu autor, mas de interesse geral".

Substituir a distinção aparência-realidade com a distinção entre um lequelimitado e outro mais extenso de descrições seria abandonar a idéia da "Sa-

che" como algo separado de nós pelo abismo que separa a linguagem da

não-linguagem. Seria substituí-la por uma concepção gadameriana da "Sa-

che" como algo eternamente aberto à discussão, a ser eternamente reinven-

tado e redescrito no curso da "Gespräch". Tal substituição seria o fim da bus-

ca pelo poder que Heidegger definiu como a "tradição ontoteológica".Essa tradição foi dominada pela idéia de que existe algo não-humano a

que os seres humanos devem tentar se igualar, uma idéia que hoje encontra

sua expressão mais plausível na concepção cientificista da cultura. Numa cul-

tura gadameriana do futuro, os seres humanos desejariam apenas se igualar

uns aos outros, no sentido de que Galileu se igualou a Aristóteles, Blake a

Milton, Dalton a Lucrécio e Nietzsche a Sócrates. A relação entre antecessor e

sucessor seria concebida, como sublinhou Gianni Vattimo, não como uma re-

lação de "Überwindung", uma superação repassada de poder, mas de

"Verwindung", uma superação em termos mais brandos. Numa tal cultura,

Gadamer seria visto como uma das figuras que ajudou a dar um sentido

novo, mais literal, ao verso de Hölderlin: "Seit wir ein Gespräch sind..." ("Des-

de que somos uma conversa...").

Richard Rorty é filósofo norte-americano, autor, entre outros, de "A Filoso-

fia e o Espelho da Natureza" e "Escritos Filosóficos 1 e 2" (Ed. Relume-

Dumará).

Tradução de José Marcos Macedo.

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Parte VI: Por umaGaia Ciência

 A gaia ciência § 344

Em que medida nós também somos devotos ainda. — Na ciência as convic-

ções não têm nenhum direito de cidadania, assim se diz com bom fundamen-

to: somente quando elas se resolvem a rebaixar-se à modéstia de uma hipó-tese, de um ponto de vista provisório de ensaio, de umaficção regulativa,

pode ser-lhes concedida a entrada e até mesmo um certo valor dentro do

reino do conhecimento — sempre com a restrição de permanecerem sob vigi-

lância policial, sob a polícia da desconfiança. — Mas isso, visto com mais pre-

cisão, não quer dizer: somente quando a convicção deixa de ser convicção,

ela pode ter acesso à ciência? A disciplina do espírito científico não começa

com o não mais se permitir convicções?. . . Assim é, provavelmente: só resta

perguntar se, para essa disciplina poder começar, já não tem de haver uma

convicção, e aliás tão imperiosa e incondicional, que sacrifica a si mesma to-

das as outras convicções? Vê-se que também a ciência repousa sobre uma

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crença, não há nenhuma ciência "sem pressupostos". A questão, se é preciso

verdade, não só já tem de estar de antemão respondida afirmativamente,

mas afirmada em tal grau que nela alcança a expressão esta proposição, estacrença, esta convicção: “Nada é mais necessário do que a verda- de, e em

proporção a ela todo o resto só tem um valor de segunda ordem ". — Essa in-

condicionada vontade de verdade: o que é ela? É a vontade de não se deixar

enganar ? É a vontade de não enganar? Pois também desta última maneira

poderia ser interpretada a vontade de verdade: pressuposto que sob a gene-

ralização "eu não quero enganar" esteja incluído também o caso particular"eu não quero me enganar". Mas por que não enganar? Mas por que não se

deixar enganar? — Note-se que os fundamentos do primeiro caso ficam em

um domínio totalmente outro do que os do segundo caso: não se quer dei-

xar-se enganar, sob a hipótese de que é pernicioso, perigoso, fatal ser enga-

nado — nesse sentido, ciência seria uma longa prudência, uma cautela, uma

utilidade, contra a qual, porém, se poderia, com justiça, objetar: como? o

não-querer-se-deixar-enganar é efetivamente menos pernicioso, menos peri-

goso, menos fatal? O que sabeis de antemão do caráter da existência, para

poder decidir se a maior vantagem está do lado do desconfiado incondicio-

nal ou do confiante incondicional? Mas, caso ambas forem necessárias, muita

confiança e muita desconfiança: de onde então poderia a ciência tirar sua

crença incondicionada, e sua convicção, que repousa sobre ela, de que ver-

dade é mais importante do que qualquer outra coisa, do que qualquer outra

convicção? Justamente essa convicção não poderia ter surgido, se verdade e

inverdade se mostrassem ambas constantemente como úteis: como é o caso.

Portanto — a crença na ciência, que agora está aí incontestavelmente, não

pode ter tirado sua origem de um tal cálculo utilitário, mas, antes, a despeito

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de lhe ter sido constantemente demonstrada a inutilidade e periculosidade

da "vontade de verdade", da "verdade a todo preço". "A todo preço": oh, nós

o entendemos bastante bem, depois que oferecemos e trucidamos umacrença depois da outra sobre esse altar! — Conseqüentemente, "vontade de

verdade" não quer dizer "eu não quero me deixar enganar", mas sim — não

há nenhuma escolha — "eu não quero enganar, nem sequer a mim mesmo": —

e com isso estamos no terreno da moral. Pois basta perguntar-se fundamen-

talmente: "Por que não queres enganar?", especialmente se houvesse a apa-

rência — e há essa aparência — de que a vida depende de aparência, querodizer, de erro, impostura, disfarce, cegamento, autocega- mento, e se, por ou-

tro lado, a grande forma da vida sempre se tivesse mostrado, defato, do lado

do mais inescrupuloso polytropoi. Um tal propósito poderia, tal- vez, interpre-

tado brandamente, ser um quixotismo, um pequeno desatino entusiasta; mas

poderia também ser algo ainda pior, ou seja, um princípio destrutivo, hostil à

vida. . . "Vontade de verdade "— isso poderia ser uma velada vontade de mor-

te. — Dessa forma a questão: por que ciência? reconduz ao problema moral:

para que em geral moral, se vida, natureza, história, são "imorais "? Sem dúvi-

da nenhuma, o verídico, naquele sentido temerário e último, como o pressu-

põe a crença na ciência, afirma com isso um outro mundo do que o da vida,

da natureza e da história; e, na medida em que afirma esse "outro mundo",

como? não precisa, justamente com isso, de. . . negar seu reverso, este mun-

do, o nosso mundo?. . . No entanto, já se terá compreendido aonde quero

chegar, ou seja, que é sempre ainda sobre uma crença metafísica que repou-

sa nossa crença na ciência — que também nós, conhecedores de hoje, nós os

sem-Deus e os antimetajísicos, também nosso fogo, nós o tiramos ainda da

fogueira que uma crença milenar acendeu, aquela crença cristã, que era tam-

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bém a crença de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina.

. . Mas, e se precisamente isso se tornar cada vez mais desacreditado, se nada

mais se demonstrar como divino, que não seja o erro, a cegueira, a mentira —se Deus mesmo se demonstrar como nossa mais longa mentira?

Fragmentos

 A filosofia na época trágica dos gregos § 19

Para os filósofos posteriores da Antigüidade, o modo como Anaxágoras fez

uso de seu noüs para a explicação do mundo era curioso, e mesmo dificil-

mente perdoável: aparecia-lhes como se ele tivesse encontrado um soberbo

instrumento, mas não o tivesse entendido bem, e eles procuraram reparar o

que foi desperdiçado pelo descobridor. Não reconheceram, pois, que senti-

do tinha a abstenção de Anaxágoras; inspirada pelo mais puro espírito do

método da ciência natural, que, em cada caso e antes de tudo, se pergunta

por que algo é (causa efficiens) e não para que algo é (causa finalis). O noüs

não é introduzido por Anaxágoras para responder à pefgunta especial: "Por

que há movimento e por que há movimentos regulares?"; Platão, entretanto,

objeta-lhe que ele deveria ter mostrado, mas não mostrou, que cada coisa à

sua maneira e em seu lugar encontra-se em seu estado mais belo, melhor e

mais adequado. Isso, porém, Anaxágoras não teria ousado afirmar em ne-

nhum caso singular; para ele o mundo presente nem sequer era o mais per-

feito dos pensáveis, pois ele via cada coisa nascer de outra e nunca encontra-

va a separação das substâncias pelo noüs completa e terminada, nem na ex-

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tremidade do espaço preenchido do mundo, nem nos seres singulares. É to-

talmente suficiente para seu conhecimento ter encontrado um movimento

que, na continuação simples de sua atuação, pode criar, a partir de um caosinteiramente misturado, a ordem visível, e ele tinha todo o cuidado de não

colocar a pergunta pelo "para que?" do movimento, pelo fim racional do mo-

vimento. Se o noüs tivesse um fim, necessário segundo sua essência, para

cumprir por meio dele, não estaria mais em seu arbítrio iniciar alguma vez o

movimento; na medida em que é eterno, ele teria também de já estar eterna-

mente determinado por esse fim, e nesse caso não poderia haver nenhumponto do tempo em que o movimento ainda faltassse, e até mesmo estaria

logicamente proibido admitir, para o movimento, um ponto inicial: com isso,

então, mais uma vez, a representação do caos originário, o fundamento de

toda a interpretação anaxagórica do mundo, ter-se-ia tornado, do mesmo

modo, logicamente impossível. Para obviar essas dificuldades, criadas pela

teleologia, Anaxágoras tinha sempre de acentuar e encarecer com a máxima

energia que o espírito é arbitrário; todos os seus atos, mesmo o daquele mo-

vimento primordial, são atos da "vontade livre", enquanto todo o resto do

mundo se forma rigorosamente determinado, e aliás determinado mecanica-

mente, depois daquele momento primordial. Essa vontade absolutamente li-

vre, entretanto, só pode ser pensada como sem finalidade, mais ou menos ao

modo do jogo da criança ou do impulso lúdico do artista.

Humano, demasiado humano § 11

 A linguagem como pretensa ciência. — A significação da linguagem para o

desenvolvimento da civilização está em que, nela, o homem colocou um

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mundo próprio ao lado do outro, um lugar que ele considerou bastante firme

para, apoiado nele, deslocar o restante do mundo de seus gonzos e tornar-se

senhor dele. Na medida em que o homem acreditou, por longos lances detempo, nos conceitos e nomes das coisas como em aeternae veritates, adqui-

riu aquele orgulho com que se elevou acima do animal: pensava ter efetiva-

mente, na linguagem, o conhecimento do mundo. O formador da linguagem

não era tão modesto de acreditar que dava às coisas, justamente, apenas de-

signações; mas antes, ao que supunha, exprimia com as palavras o supremo

saber sobre as coisas; de fato, a linguagem é o primeiro grau do esforço emdireção à ciência. Foi da crença na verdade encontrada, também aqui, que

fluíram as mais poderosas fontes de força. Muito posteriormente — só agora —

começa a despontar para os homens que eles propagaram um erro desco-

munal, em sua crença na linguagem. Felizmente é tarde demais para fazer

voltar atrás o desenvolvimento da razão, que repousa sobre essa crença. —

Mesmo a lógica repousa sobre pressupostos, aos quais nada no mundo efeti-

vo corresponde, por exemplo, sobre o pressuposto da igualdade entre coi-

sas, da identidade da mesma coisa em diferentes pontos do tempo: mas essa

ciência surgiu pela crença no oposto (que certamente há algo assim no mun-

do efetivo). O mesmo se dá com a matemática, que com toda certeza não te-

ria surgido se desde o começo se tivesse sabido que na natureza não há ne-

nhuma linha exatamente reta, nenhum círculo efetivo, nenhuma medida ab-

soluta de grandeza.

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Humano, demasiado humano § 635

No conjunto, os métodos científicos são, pelo menos, um resultado tão im-

portante da investigação quanto qualquer outro resultado: pois sobre a com-preensão do método repousa o espírito científico, e todos os resultados da

ciência não poderiam, se aqueles métodos se perdessem, impedir um reno-

vado recrudescimento da superstição e do não-senso. Pessoas de espírito

podem aprender  quanto quiserem dos resultados da ciência: nota-se sempre

em sua conversação, e especialmente nas hipóteses que ela contém, que

lhes falta o espírito científico : não têm aquela instintiva desconfiança contra

os desvios do pensamento que, em decorrência de longo exercício, lançou

suas raízes na alma de todo homem científico. A eles basta, sobre um assun-

to, encontrar em geral alguma hipótese, e depois são fogo e flama por ela e

pensam que com isso está tudo feito. Ter uma opinião já significa, para eles,

fanatizar-se por ela e daí em diante guardá-la no coração como convicção.

Eles se acaloram, diante de uma coisa inexplicada, pela primeira idéia que

lhes passe pela cabeça e pareça semelhante a uma explicação: do que cons-

tantemente resultam, em especial no domínio da política, as piores con-

seqüências. — Por isso, agora, cada qual deveria ter aprendido a conhecer

pelo menos uma ciência desde o fundamento: pois saberia então o que quer

dizer método e como é necessária a extrema atenção. É especialmente às

mulheres que este conselho deve ser dado; pois são elas agora, irremedia-

velmente, as vítimas de todas as hipóteses, sobretudo quando estas dão a

impressão de serem cheias de espírito, fascinantes, vivificantes, fortalecedo-

ras. E até mesmo, observando com mais precisão, nota-se que a maior parte

daqueles que têm cultura deseja, ainda agora, de um pensador, convicções e

nada além de convicções, e que somente uma pequena minoria quercerteza.

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